Arquivo do mês: abril 2008

Artur de Carvalho (Rindo pra não chorar)

Todos os dias eu chego em casa e me sento na frente da TV, ansioso, esperando começar o horário eleitoral. Para dar umas risadas, sabe? São tão poucos os motivos para se rir hoje em dia que a gente não pode perder a oportunidade de ver um louco de pedra gritando de punhos fechados que a solução para São Paulo é um trem bala. Eu simplesmente rolo de rir. E o mais engraçado é quando o candidato a governador (é, o cara é candidato a governador) obriga seus partidários (sim, o maluco tem partidários) a vestirem uma camisa da seleção brasileira e gritarem juntos “rumo à vitória”, todos dando um soco no ar, de punhos fechados, como se tivessem feito um gol. Mas o que é isso, meu Deus? Alguém tem de internar aqueles caras imediatamente num sanatório antes que eles cometam algum ato mais violento, ou até mesmo alguma perversidade.

E falando em Deus, tem um outro que diz que vai entregar São Paulo nas Mãos de Deus. Pelo menos esse aí tem lá uma certa dose de razão e de sinceridade. Ninguém dá conta mesmo de arrumar essa bagunça, melhor entregar logo nas mãos de Deus e acabar de vez com toda essa anarquia.

E aí, entra o Enéas.

Bem, a gente pode falar qualquer coisa do Enéas, menos que ele não seja uma figuraça. Tirando aquelas encanações dele com a bomba atômica, daria para confundi-lo com aqueles loucos mansos de cidade do interior, sabe? As crianças assobiam e os malucos saem correndo e babando atrás das crianças, mas quando alcançam não fazem nada e todo mundo acaba dando risada. Eu sou fã do Enéas. Se eu fosse ele, nas próximas eleições me candidatava a uma vaga na “A Praça é Nossa”.

Mas o mais engraçado mesmo são aqueles candidatos que ficam com os olhinhos mexendo, tentando ler o texto que está escondido atrás das câmeras. Normalmente o texto se resume a algo assim: “Eu sou Fulano de Tal, apóio Sicrano de Tal, o meu número é tal”. São apenas três frases, e o pobre coitado não consegue decorar! O que é que ele vai querer fazer lá na assembléia legislativa se ele não consegue decorar nem três frases seguidas, puxa vida?

Sei que, desde que o horário eleitoral começou, eu venho me esbaldando de tanto rir. Toda noite eu estouro umas pipocas, ligo a televisão e quando o programa acaba eu estou com o fígado completamente desopilado. Parei até de tomar uns comprimidos para os nervos que o médico tinha me receitado.

Eu só fico bravo mesmo quando aparecem uns estraga-prazeres que resolvem baixar o astral do programa. Tá todo mundo dando risada e se divertindo, e de repente aparecem esses sujeitos de cara fechada e voz embargada. Eles abrem uns papéis e começam a expor uns tais planos de governo. E ficam falando dos problemas da educação. Mostram favelas e criancinhas com fome. Falam que não sei quantos seqüestros estão acontecendo por semana. Do crime organizado. Que a dívida no exterior não sei o quê. Que os juros brasileiros são os mais altos do mundo. Esse tipo de coisa que não leva a lugar algum.

Será que ninguém vê que desse jeito o programa vai acabar perdendo totalmente a graça?

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Artur de Carvalho (Marcelo, Marmelo, Martelo)

Ao Marcelo Andrade e ao Marcelo Martinez. Dois amigos.

Não tem erro pior no mundo que trocar o nome de alguém. Ainda mais quando são pessoas mais ou menos chegadas. E não sei se é problema de idade, ou o quê, mas ultimamente está acontecendo comigo com mais freqüência do que meu estoque de desculpas esfarrapadas permite. É, porque a gente sempre arruma uma desculpa:

– E aí, Marcelo?

– Marcelo? Que Marcelo?

– Você… quer dizer…

– Meu nome é Hélio, Artur.

– Ah, é… Hélio… Mas onde é que estava com a cabeça? Sabe o que é, Hélio? É que eu estava aqui, pensando num quadro que tenho de pendurar na parede… E não conseguia encontrar o martelo…

– E o que é que tem?

– Você entende, né? Martelo… Marcelo… Me atrapalhei… Desculpa aí…

A sorte é que existem pessoas que entendem o nosso constrangimento. Outro dia desses, eu precisava falar com o diretor da escola da minha filha, o seu Agenor. Entrei na sala dele, minha filha ficou esperando do lado de fora.

– Bom dia, seu Agenor? Como vão as coisas?

– Tudo bem, Artur… Sente-se.

– E a família? Como vai a dona Estela?

– Tudo bem também…

Conversamos mais ou menos uns dez minutos. Ele, um homem super educado. Na hora da saída, ainda se lembrou da minha esposa.

– Manda um abraço para a dona Telma, Artur…

– Pode deixar, seu Agenor. Eu mando.

Saí da sala dele. Chamei minha filha e fomos embora. No caminho, a minha filha perguntou:

– E aí, pai? O que é que o seu Angelo queria?

– Angelo? Que Angelo?

– O diretor da escola, uai…

– Angelo, é? Mas não é Agenor?

– Não. É Angelo.

– E… Vem cá, filha… Por um acaso você sabe se a mulher dele se chama Estela?

– Não sei, por que?

– Nada não. Deixa pra lá…

Mas o que me deixa razoavelmente tranqüilo é que essas coisas não acontecem só comigo. As outras pessoas também, volta e meia, trocam o meu nome… Não sei porque cargas d’água, sempre aparece um que me chama de Raul… Olha que de Artur para Raul tem uma diferença e tanto. Mas não adianta. Outro dia desses, por exemplo, eu estava num evento aqui em Votuporanga, fazendo uma noite de autógrafos para o meu livro recém lançado. Chegaram uma mãe e sua filha de uns doze anos. A mãe veio logo se chegando, e dizendo que eu era o ídolo da filha dela. E cutucava a garota com o cotovelo:

– Fala pra ele, filha…- e a filha não falava nada.

E ela continuava:

– Porque a minha filha não perde uma crônica sua no jornal… não é filha? – e cutucava a filha. E a filha nada. Aí a mulher comprou um livro e pediu um autógrafo. Para a filha, é claro. Eu perguntei como era o nome da menina. E a mãe:

– Silvia. Silvinha.

E eu, todo orgulhoso, peguei a caneta e escrevi ali, na contracapa “para a silvinha, com um beijão”.

Assinei e entreguei o livro para a garota. Ela se encolheu. Ficou vermelha. Não sabia onde colocar as mãos. Aí a mãe deu outro cutucão.

– Agradece o seu ídolo, filha!

E a garota:

– Muito obrigado, seu Raul.

Eu fico pensando. Será que alguém erra o nome do Michael Jackson?

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Artur de Carvalho (Fábrica de Casamento)

Chegamos correndo. O casamento estava marcado para as sete horas. Já era sete e meia.

Apressamos o passo até onde permitia o salto alto da minha mulher.

— Calma, querido…

— Olha lá… já começou…

— Eu vou acabar quebrando o salto…

Entramos. Os noivos já estavam no altar.

— Tá vendo? Nem vimos a noiva entrando.

Os noivos lá, de costas. Eu conhecia um ou outro padrinho.

— Você sabia que o Almeida era padrinho?

— O Almeida?

— É… Olha ele lá.

— Puxa vida. Eu nem sabia que o Almeida conhecia os noivos…

O casal na frente da gente, além de ser o mais alto da igreja, não sentava nas horas que a cerimônia exigia.

Minha esposa e eu ficávamos olhando por entre os ombros deles.

— Quem é aquela, com o Ubiratam?

— O Ubiratam também é padrinho?

— Não. Olha ele ali, no terceiro banco. Quem é aquela com ele?

— Sei lá. Não é a esposa?

— Não. Deve ter separado.

— Separado? O Ubiratam?

As luzes das câmeras de vídeo atrapalhavam a visão. Ficavam atrás dos noivos, e não dava pra ver nada. O casal na nossa frente se abraçava. A gente tentava olhar em volta.

— Você viu o vestido da noiva?

— É. Eu sempre gostei de vestidos beges.

— Quem é que disse que é bege? É branco.

— Branco nada. Não tá vendo?

Os alto-falantes estavam com um pouco de microfonia, mas deu pra ouvir o sim dos dois.

— Você ouviu a voz dela? Deve estar chorando.

— É. Ela sempre fica emocionada nessas ocasiões. Imagine agora, no casamento…

— Olha lá… Aquela é a mãe dela?

— Sei lá… Eu não conheço… Mas deve ser…

— Nova, né?

As luzes das câmeras estavam mesmo insuportáveis. Ofuscavam tudo. Mas deu pra perceber que a cerimônia já estava acabando. Os padrinhos fizeram um círculo em torno dos noivos. Estavam descendo do altar.

— Vem cá. Vamos tentar ficar aqui perto, pra ela ver que a gente veio.

— Mas tem muita gente.

— Vem cá!

Os noivos desceram do altar. Todo mundo se aglomerou ao lado do corredor central, ornado com um tapete vermelho. Um homem me deu uma cotovelada, quando tentei passar à sua frente. Ficamos, minha mulher e eu, cercados por uma pequena multidão.

— Ela está passando! Ela está passando!

— Você viu o vestido? Eu falei que era bege!

— É branco. Não tá vendo?

Os noivos passaram. Atrás, os padrinhos. Deu pra ver o Almeida. Ele sorriu e fez um meneio com a cabeça. Eu sorri pra ele. Os ocupantes dos bancos foram se dispersando pela igreja. Começaram a chegar os convidados para o outro casamento. A coisa ficou meio tumultuada.

— Vamos embora, querida?

— Mas nós não vamos cumprimentar os noivos?

— Não. Vamos embora.

— Mas a gente precisa ver os noivos. Quer dizer, os noivos precisam ver a gente. Depois vão falar que a gente não veio.

— O Almeida me viu.

— Viu nada.

Saímos da igreja e fomos cumprimentar os noivos. Tinha fila. Uma confusão na frente da igreja. O outro casamento já ia começar. Ouvimos um sino. A nova noiva já estava entrando.

— Nossa.. Mas é um atrás do outro, hem?

— É. Parece fábrica.

Finalmente, chegou a nossa vez. A noiva estava de costas, cumprimentando o Ubiratam. Ela estava de branco, afinal de contas. Aí, a noiva se virou. Minha mulher arregalou os olhos. Eu disfarcei. Dei um beijo, desejei felicidades. Minha mulher fez o mesmo.

Saímos da fila e voltamos correndo para dentro da igreja. Minha mulher reclamou.

— Calma… Cuidado com o salto.

Entramos e olhamos para o altar. Os noivos já estavam lá, de costas.

— Caramba… Será que agora são eles?

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Alberto Moravia (O peru de Natal)

No dia de Natal, quando o comerciante Policarpi-Curcio ouviu no telefone a mulher pedindo-lhe que chegasse em casa pontualmente porque tinha peru, alegrou-se muito, visto que, com o passar dos anos, não lhe restara outra paixão a não ser a gula. Imensa porém foi sua surpresa quando, ao chegar em casa por volta de meio-dia, encontrou o peru não na cozinha, enfiado no espeto e girando lentamente sobre um fogo de carvão, mas na sala de visita. O peru, vestido com elegância antiquada, com um paletó preto com debruns de seda, calças em tecido xadrez preto e branco e colete cinza com botões de osso, conversava com a filha de Curcio. A surpresa de Curcio ao encontrar o peru numa atitude e num lugar tão insólitos foi tão grande que, após as apresentações, aproveitando um momento de silêncio, ele não pôde deixar de inclinar-se para frente e dizer com cortesia mas também com firmeza: “Com licença, senhor… não sei se estou enganado… mas… mas me parece que o seu lugar não deveria ser aqui… repito, não sei se estou enganado… mas… o seu lugar deveria ser…” ia dizer “na panela”, quando a mulher que, como ela mesma dizia, conhecia o seu rebanho, pisou-lhe no pé; e Curcio, que sabia por longa experiência o que significava aquele gesto, calou-se. A mulher, então, fez-lhe um sinal e, arrastando-o para fora da sala, disse-lhe em voz baixa e excitada que, pelo amor de Deus, não estragasse tudo. O peru era nobre, rico e influente; enfim, um excelente partido; e já demonstrava um interesse particular e evidentíssimo por Roseta; por acaso, com seus estúpidos comentários, ele queria acabar com o casamento que estava quase para se concretizar? Curcio desculpou-se com a mulher e jurou que não abriria mais a boca. Quanto ao peru, a pergunta do anfitrião desavisado teve apenas o efeito de fazê-lo pegar o monóculo e examinar o infeliz de cima a baixo. Logo depois voltou a conversar com a filha de Curcio.

“Não adianta falar”, pensava Curcio daí a pouco, sentado à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em cortesias com o peru, “com um tipo como este, mais que dar-lhe a filha em casamento, a gente gostaria de torcer-lhe o pescoço”. Curcio estava irritado sobretudo com o ar de superioridade e displicência que o peru assumia toda vez que lhe dirigia a palavra. Curcio sabia muito bem que vinha, como se costuma dizer, do nada, e que suas maneiras não eram tão elegantes como a mulher e a filha desejariam que fossem. Mas ele trabalhara a vida toda e ganhara muito dinheiro, era essa a razão pela qual não tinha tido tempo de cuidar da sua educação. O peru, ao contrário, com toda aquela empáfia, não poderia dizer o mesmo. Belas maneiras, sem dúvida, ares de grão-senhor, mas no final das contas, Curcio poderia jurar, pouca substância. Outra coisa que irritava Curcio era a maneira com a qual o peru, após ter dito alguma coisa espirituosa ou profunda, atirava a cabeça para trás, enfiando o bico e os barbilhões na gravata preta de plastrão e estufando o peito debaixo do colete. E finalmente o peru falava com a mulher de Curcio com a mesma escolha cuidadosa de palavras e a mesma modulada preciosidade de acento com que se dirigiria a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se porque lhe parecia perceber certa dose de ironia neste respeito excessivo. “Para a panela”, pensava, “para a panela…”

Contudo, essa antipatia de Curcio era mais do que compensada pela enfatuação das duas mulheres, mãe e filha, pelo peru. A mulher de Curcio e Roseta ficavam simplesmente suspensas aos lábios, ou melhor, aos barbilhões do peru, que as fascinava com seus relatos incríveis de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como aquele, que tinha intimidade com a alta sociedade, envaidecia a mãe. Quanto a Roseta, ela enrubescia, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares ora suplicantes, ora inflamados, ora lânguidos, ora assustados. Acontece que desde o início do almoço o pé do peru, calçado numa antiquada mas elegante bota de camurça cinza com botões de madrepérola, não parava um instante sequer de molestar a sapatilha da moça.

Depois que o peru foi embora, houve uma discussão violentíssima entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que, como todo mundo sabe, escondem sob a arrogância um monte de trapaças. Ele tinha trabalhado a vida toda e não se sentia inferior a nenhum peru deste mundo. A mulher respondia que este furor era inútil; o peru nunca afirmou que era superior a ele; que bicho o tinha mordido? Quanto a Roseta, tendo-se deitado como costumava fazer todo dia depois do almoço, já estava sonhando com o peru. Via-o inclinado sobre ela que estava deitada de costas, as asas em volta de seus ombros, o bico sobre seus lábios entreabertos. 0 peru olha para ela carrancudo, e começa a estufar-se, a estufar-se, enchendo o quarto com suas penas cinzentas; mas, embora seja imenso ele parece leve ao colo de Roseta que suspira no sono e murmura: “Querido peru”.

Nos dias seguintes apesar da crescente e visível antipatia de Curcio, o peru acabou se instalando na casa. Almoçava com eles; em seguida, ia para a sala de visita com a filha e lá ficava até a hora do jantar. Os dois, disse a mulher a Curcio, estavam praticamente noivos, embora o peru por motivos de família não quisesse que fosse feito, por enquanto, o anúncio oficial. “Belo genro”, resmungava Curcio, “aceito um homem trabalhador, simples, de bom coração, mas um peru…” Curcio, entrando em casa, podia ver, através dos vidros da porta da sala, a graciosa cabeça da filha ao lado da cabeça oca, feroz e estúpida do peru. Ele pensava que aquelas mãozinhas tão brancas e miúdas podiam estar acariciando aqueles barbilhões vermelhos e enrugados e sua antipatia aumentava.

Acontece que, mesmo continuando a cortejar Roseta, o peru não se decidia a pedi-la em casamento. Até a mãe começava a ficar preocupada. Se era um peru sério, disse ela um dia para a filha, devia apresentar-se aos pais e pedi-la em casamento. Roseta, ao ouvir essas palavras, olhou assustada para a mãe e não disse nada. Na realidade, o peru tinha conseguido desde os primeiros dias obter da moça os extremos favores. E agora ela, não menos que a mãe, estava ansiosa para que o peru regularizasse , por assim dizer, sua situação.

Um dia Roseta recebeu o peru na sala com um rio de lágrimas. Ela não podia viver daquela maneira, balbuciava entredentes, mentindo para si mesma e para os pais O peru percorria a sala com largas passadas, as penas desalinhadas fora do colete, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos injetados de sangue. Finalmente disse-lhe que ela podia tirar da cabeça a idéia de casamento. Em vez de casar, se ela quisesse, podia fugir com ele para o exterior. Naquela noite ou nunca mais. Após muitas hesitações, Roseta acabou concordando.

Naquela noite, Curcio, que sofria de insônia, levantou-se para ir tomar um pouco de ar na janela. Era uma noite de verão com a lua no auge de seu esplendor. Os Curcio moravam num palacete. Olhando pela janela, sem fazer barulho nem acender as luzes para não acordar a mulher, a primeira coisa que viu foi a sombra gigantesca do peru, com a cabeça erguida e o pescoço estufado, o bico verruguento virado para cima, refletida nitidamente na parede da casa inundada pela branca luz do luar. Ele baixou os olhos .e ainda teve tempo de ver a filha pular de uma janela do primeiro andar entre os braços do peru. Este, carregando-a nos braços como se fosse uma trouxa, com uma força de que ninguém suspeitaria, rapidamente levava a moça em direção ao portão. Curcio acordou a mulher, correu a buscar uma velha espingarda. Mas quando desceu não encontrou nenhum sinal dos fugitivos.

No dia seguinte, Curcio deu parte à policia do rapto. Mas nas delegacias ninguém acreditou. Um peru, diziam, como é possível que um peru tenha raptado sua filha. Os perus ficam nas gaiolas. Aliás a filha era maior de idade e não havia nada a fazer.

Mas as trapaças do peru foram descobertas assim mesmo. Descobriu-se que era casado, com filhos. Descobriu-se ainda que não era nem nobre nem rico, mas apenas um simples garçom expulso de vários lugares por furto. Curcio exultava, embora cheio de bílis. A mulher só chorava e chamava a filha.

Tudo acabou com o costumeiro pedido de resgate; e Curcio teve que desembolsar muitos daqueles “belos tostões” ganhos com tanto sacrifício para ter de volta em casa a filha desonrada. Isso aconteceu em dezembro. No dia de Natal, a mulher telefonou para Curcio pedindo que não demorasse a voltar para casa já que havia peru; para eliminar qualquer equívoco, acrescentou que se tratava de uma pessoa muito séria que demonstrava uma visível inclinação por Roseta. Não era, enfim, um peru como aquele do ano passado, quanto a isso podia confiar. “Eis como são as mulheres”, pensou Curcio. Mas desta vez ele jurou que abriria bem os olhos, e não se deixaria enganar pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de nenhum peru, fosse ele aristocrático ou plebeu.
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Sobre o autor
Alberto Moravia (1907-1990) nasceu em Roma, Itália. De origem judaica, é um dos grandes escritores do século XX. Romancista consagrado com títulos como Os Indiferentes, A Romana, As Ambições Frustradas, teve alguns de seus romances filmados por Bertolucci (O Conformista) e Godard (Le Mépris), entre outros. Moravia escreveu ainda centenas de contos, a maioria deles disponíveis em português: Contos Romanos, Novos Contos Romanos, A Casa de Praia das Sextas-feiras, A Coisa e outros contos e Contos Surrealistas e Satíricos.

Fonte:
Os cem melhores contos de humor da literatura universal. RJ: Ediouro, 2001
http://www.releituras.com
http://www.homolaicus.com/ (foto)

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Rubem Fonseca (1925 – )

“Neste momento estou desenvolvendo o começo da história que iniciei com o título que lhe deu o sopro inicial de vida. No quiosque de livros da praça li um poema no qual o autor (roubei dele o título da minha história) diz que o mundo é doloroso, os seres humanos não merecem existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação está de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a velha, não a crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato e não apenas da minha imaginação foi a impulsão que fará de mim um verdadeiro escritor. Tenho, agora, o começo, tenho o meio e o fim.” (Pequenas criaturas – “Começo”)

Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca é formado em Direito, tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 31 de dezembro de 1952 iniciou sua carreira na polícia, como comissário, no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Muitos dos fatos vividos naquela época e dos seus companheiros de trabalho estão imortalizados em seus livros. Aluno brilhante da Escola de Polícia, não demonstrava, então, pendores literários. Ficou pouco tempo nas ruas.

Foi, na maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado em 06 de fevereiro de 1958, um policial de gabinete. Cuidava do serviço de relações públicas da polícia. Em julho de 1954 recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas sobre esse assunto na Fundação Getúlio Vargas, no Rio.

Na Escola de Polícia destacou-se em Psicologia. Contemporâneos de Rubem Fonseca dizem que, naquela época, os policiais eram mais juízes de paz, apartadores de briga, do que autoridades. Zé Rubem via, debaixo das definições legais, as tragédias humanas e conseguia resolvê-las. Nesse aspecto, afirmam, ele era admirável. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre setembro de 1953 e março de 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas na New York University. Após sair da polícia, Rubem Fonseca trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É viúvo e tem três filhos.

Reconhecidamente uma pessoa que, como Dalton Trevisan, adora o anonimato (o único registro fotográfico que conseguimos foi feito há muitos anos), é descrito por amigos como pessoa simples, afável e de ótimo humor.

Foi, ao longo de sua carreira, agraciado com inúmeros prêmios literários, abaixo descritos.

Sendo profundamente interessado na arte cinematográfica, escreve também roteiros para filmes, muitos deles premiados:
– Coruja de ouro, roteiro Relatório de um homem casado, filme dirigido por Flávio Tambelini.
– Kikito de ouro do Festival de Gramado, roteiro de Stelinha, dirigido por Miguel Faria.
– Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, roteiro de A grande arte, filme dirigido por Walter Salles Jr.
Seus livros são publicado no Brasil e no exterior, com grande sucesso de crítica e de público:

LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL:
Os prisioneiros (contos, 1963),
A coleira do cão (contos, 1965)
Lúcia McCartney (contos, 1967)
O caso Morel (romance, 1973)
Feliz Ano Novo (contos, 1975)
O homem de fevereiro ou março (antologia, 1973)
O cobrador (contos, 1979)
A grande arte (romance, 1983)
Bufo & Spallanzani (romance, 1986)
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (romance, 1988)
Agosto (romance, 1990)
Romance negro e outras histórias (contos, 1992)
O selvagem da ópera (romance, 1994)
Contos reunidos (contos, 1994)
O Buraco na parede (contos, 1995)
Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996.
Histórias de Amor (contos, 1997)
Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (novela, 1997)
Confraria dos Espadas (contos, 1998)
O doente Molière (novela, 2000)
Secreções, excreções e desatinos (contos, 2001)
Pequenas criaturas (contos, 2002)
Diário de um Fescenino (contos, 2003)
64 Contos de Rubem Fonseca (contos, 2004)
Ela e outras mulheres (contos, 2006)
O romance morreu (crônicas, 2007)

Todos estes livros, com exceção de O homem de fevereiro ou março (editora Artenova), foram editados ou reeditados pela Companhia das Letras. Os romances O caso Morel e A grande arte foram publicados (em 1998) pela Record/Altaya, na coleção “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa”, para venda em bancas. O romance Agosto está na coleção “Mestres da Literatura Contemporânea” (1995) editora Record/Altaya, também para venda em bancas. Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, foi publicado pela Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996. Na antologia Onze em campo e um banco de primeira, da Editora Relume Dumará, Rio, 1998, foi inserido o conto Abril, no Rio, em 1970, originalmente editado no livro Feliz ano novo. Na antologia Trabalhadores do Brasil, da editora Geração Editorial, Rio, 1998, foi incluído o conto O agente, originalmente editado no livro Os prisioneiros. Na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, editora Objetiva, Rio, 2000, foram publicados os contos A força humana, Passeio noturno I, Passeio noturno II, Feliz ano novo e A confraria dos espadas. A antologia Contos para um Natal brasileiro, da Editora Relume Dumará, Rio, 2001, em companhia de C. D. Andrade, João Ubaldo Ribeiro, Lygia F. Telles e outros, traz conto sobre a data.

PRÊMIOS LITERÁRIOS:
– Pen Club do Brasil, A coleira do cão.
– Fundação Cultural do Paraná, Lucia McCartney
– Fundação Cultural de Brasília, Lucia McCartney
– Jabuti (Conto), da Câmara do Livro de São Paulo, A coleira do cão
– Associação Paulista de Críticos de Arte, O cobrador
– Prêmio Estácio de Sá, O cobrador
– Prêmio Goethe (Brasil), A grande arte
– Jabuti (Romance) A grande arte
– Prêmio Pedro Nava do Museu de Literatura, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
– Prêmio Giuseppe Acerbi (Mantova, Itália), Vaste emozione e pensie imperfeti
– Jabuti (Conto) O buraco na parede
– Prêmio Machado de Assis (Biblioteca Nacional), E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto
– Prêmio Eça de Queiroz (contos) da União Brasileira de Escritores, A confraria dos Espadas
– Prêmio de melhor romance do ano, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), para O doente Molière (2000)
– Prêmio Luis de Camões, considerado o “Nobel” da língua portuguesa, concedido pelos governos do Brasil e Portugal, pelo conjunto da obra, anunciado em 13/05/2003.
– 14º Prêmio de Literatura Latinoamericana e Caribe Juan Rulfo, concedido durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara – México, em 2003.

OBRAS PUBLICADAS NO EXTERIOR:

1 – ROMANCES
O caso Morel
A grande arte
Bufo & Spallanzani
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos
Agosto
O selvagem da ópera
E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto

2 – CONTOS
Os prisioneiros
A coleira do cão
Lúcia McCartney
Feliz ano novo
O cobrador
Romance negro
O buraco na parede
Histórias de amor
A confraria dos espadas
Secreções, excreções e desatinos
Coletâneas de contos

ADAPTAÇÕES POR TERCEIROS DE OBRAS DE RUBEM FONSECA:

PARA TEATRO
*O gravador (1977), adaptação e direção de Roberto Vignatti
*Os cavalos (1979), direção coletiva e adaptação Grupo Panapaná
* Lúcia McCartney (1987), adaptação de Geraldo Carneiro, direção de Miguel Falabella
*O cobrador (1990), adaptação coletiva, direção de Bete Lopes
*Idiotas que falam outra língua(1999), adaptação e direção de Fernando Guerreiro
*Agosto (2000), “construção de uma trama entre dança, música e cenografia”. Adaptação e direção de Eliana e Sofia Cavalcante

PARA TELEVISÃO
*Nau Catarineta,(1978) adaptação e direção de Antunes Filho, TV Cultura.
*Mandrake (1983) adaptação de Euclides Marinho, direção de Roberto Farias, TV Globo.
* Agosto (1993) adaptação de Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, direção de Paulo José, Denise Sarraceni e José Henrique Fonseca, TV Globo
*Lúcia McCartney (1994) adaptação de Geraldo Carneiro, direção Roberto Talma, TV Globo
*A coleira do cão (2001), adaptação de Antonio Calmon, direção de Roberto Farias, TV Globo

Fonte:
www.releituras.com

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Rubem Fonseca (O Vendedor de Seguros)

Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?

– Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.
– Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?
– Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro.
– Você não tem ganho muito ultimamente.
– A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa.
– Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias.

Quando eu estava na porta Renata disse, – as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha?
– Ainda não vi isso.
– Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece?
– Só você.
– Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo.

Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi.
– É você?
– Quem podia ser?, eu disse.
– Diz a senha.
– Cara, você anda vendo filmes demais.
– É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado.
– Foz do Iguaçu.
– Tenho um seguro para você.
– Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda.
– Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor?
– Isso não interessa.
– Quando acaba?
– Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar.
– Acho que você anda meio promíscuo.
– Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes.
– Que ruído é esse?
– Não ouvi nenhum ruído.
– Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente.
– Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes.
– Troca de celular.
– Estou com ele há menos de dois meses.
– É muito tempo. Eu troco todos os meses.
– Você é um corretor.
– O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico.
– Acabou?
– Te ligo daqui a dois dias.

Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa.

Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão.

– Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês?
– Está bem.
– Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa.
– Confesso que não gosto de comida chinesa.
– Você só gosta de bacalhau.
– Está tirando sarro comigo?
– Mais ou menos. Como foi o desfile de moda?
– Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha?
– Não conheço mulheres elegantes.
– Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora.
– Onde que isso acontece?
– Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você.
– Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante?
– Se aparecer, o que você faz?
– Não sei. Isso ainda não aconteceu.
– E você foi vender seguro numa joalheria hoje?
– Não.
– Mas levou o revólver.
– Virou hábito. É pistola.
– Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês.

Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo.

O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo.

Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal.

Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta.

Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.

Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.

– Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.
– Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.

Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.

– Me mostra o outro braço, pedi.

Também tinha o pulso cortado.

Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado.

Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente.

Ele viu quando entrei no banheiro.

– Voltou?
– Quanto tempo demora isso?, perguntei.
– Não sei. Mas não dói.

Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro.

– Não olha para mim, eu disse.

O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir.

Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete.

Liguei do carro para o corretor.

Fiz o serviço.

– Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou.

Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar.

Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.

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“A melhor coisa na obra de Rubem Fonseca é não saber aonde ela vai nos levar. Toda vez que começo um livro dele é como se atendesse um telefonema no meio da noite: “Oi, sou eu. Você não vai acreditar no que está acontecendo.” Bem, talvez não no começo, mas logo já estou acreditando em tudo. Sua escrita faz milagre, é misteriosa. Cada livro dele não é só uma viagem que vale a pena, é uma viagem de algum modo necessária.”
Esta é a opinião de Thomas Pynchon, um dos maiores mitos contemporâneos da literatura americana. Ele, como o autor, alcançou tal condição não à custa de uma sobreposição da imagem, mas exatamente pelo processo oposto, ou seja, o anonimato.
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Fonte:
FONSECA, Rubem. A Confraria dos Espadas. SP: Companhia das Letras , 1998.
http://www.releituras.com/

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Rubem Fonseca (Família)

Ernestino e Dora se casaram dispostos a dar ao mundo muitos filhos. Planejavam ter três meninos e duas meninas, mas não se incomodariam se fossem quatro meninas e um menino, desde que o primeiro a nascer fosse do sexo, masculino.

Dora morreu ao dar à luz uma menina, cujo nome veio a ser também Dora. Todos pensavam que Ernestino se casaria novamente, ele era um homem bonito, herdara do pai uma empresa e ampliara os negócios, um bom partido para qualquer mulher, mesmo tendo uma filha pequena para criar. Agindo como bons alcoviteiros, os casais amigos, convictos de que Ernestino devia se casar novamente, afinal a pequena Dora precisava de uma mãe e ele, cedo ou tarde, necessitaria do carinho de uma mulher, se revezavam apresentando ao viúvo jovens mulheres prendadas e virtuosas. Mas Ernestino não se interessava por nenhuma delas e o tempo foi passando até que os amigos, percebendo que Ernestino jamais se casaria novamente, desistiram de seus propósitos casamenteiros.

Quando Dora fez seis anos, Ernestino, assoberbado pelos seus negócios que não paravam de crescer, matriculou a menina num colégio interno de freiras. Dora se lembra do primeiro dia em que foi para o colégio. Eles subiram a serra de carro num dia de forte neblina, que escondia os morros e até mesmo as ruas por onde trafegavam. O pai comprara vários sacos de balas para ela e Dora fizera a viagem se deliciando com aquelas guloseimas. No carro o pai lhe mostrara uma pequena mala, dizendo que ali estava o seu enxoval, as roupas que usaria no colégio. Ernestino, apesar de fazer a viagem mais calado do que o seu normal, parou duas vezes no acostamento da estrada para abraçar e beijar a filha. Tudo isso a deixara muito feliz.

Quando chegaram, depois de uma hora e meia de viagem, Dora já havia chupado todas as balas. O colégio era um edifício, que lhe pareceu imenso, bonito e um pouco assustador. Foram recebidos por duas freiras uma a madre superiora, velha e de aspecto majestoso, e outra, mais jovem, que seria a orientadora e mestra de classe de Dora. A freira mais jovem convidou Dora para ir até a janela ver as arvores e os jardins. Enquanto ela contemplava o arvoredo coberto de neblina, o pai e as freiras conversaram em voz baixa. Em seguida, o pai depois de abraçá-la com tanta força que a deixou sem fôlego, disse que ia comprar mais balas, foi embora e não voltou. Era um domingo e Dora só o veria novamente no domingo seguinte.

Os primeiros dias foram terríveis. Dora se sentia abandonada e chorava sem parar. Ela dormia num grande salão com outras meninas da sua idade. Sua roupa intima — calcinhas largas de algodão, que com o tempo alargavam ainda mais, e camisolões de manga comprida fechados no pescoço (ela só usaria sutiã, também de algodão, anos depois) — era guardada numa mesinha alta de cabeceira, e os uniformes ficavam dependurados num cabide comprido numa das paredes. A freira orientadora reunia diariamente as meninas para uma preleção em que falava em Deus e na Caridade. Ela tratava Dora com muito carinho, ainda mais porque a menina sofria de asma, agravada pelo clima úmido da cidade. Depois de algum tempo, Dora parou de chorar diariamente. Chorava apenas aos domingos, quando o pai ia vê-la.

Mas ela não demorou muito a gostar do colégio. Na hora de dormir, sob os cobertores de lã que a aqueciam, Dona criava uma vida só dela, feita de fantasias inocentes. Até mesmo o carrilhão da torre da igreja, que soava a cada quinze minutos, era ouvido com prazer. Às quinze para as seis da manhã, a freira que pernoitava com elas no dormitório caminhava entre as camas tocando uma sineta de mão e dizendo, sursum corda e as meninas acordavam murmurando, habemus ad dominum. Dora, que fora criada sem qualquer disciplina por um pai ausente e babás displicentes, apreciava os cerimoniais do colégio. Vestidas em seus uniformes de saia azul-marinho presa por tiras largas cruzadas no, peito e nas costas, blusa azul-clara, sapatos pretos e meias brancas, as meninas, quando encontravam uma freira nos corredores, tinham que parar de pés juntos, unir as duas mãos e cumprimentar com a cabeça. Caso fosse a madre superiora ou a diretora do colégio deviam parar, se estivessem andando, ou levantar-se, se estivessem sentadas, e fazer uma reverência, que consistia em juntar os dois pés, encostar o calcanhar do pé direito no pé esquerdo, girar a ponta do pé direito, para o lado e. após colocar horizontalmente a palma da mão, direita sobre a palma da mão esquerda, flexionar ligeiramente os joelhos. Dora sentia-se bem fazendo essa mesura e ficava feliz quando, por qualquer motivo, encontrava uma dessas freiras graduadas. Os rituais do colégio — notadamente as orações em latim ou em francês, e os cantos gregorianos acompanhados pelo órgão, dos quais todas as alunas participavam nas missas dos domingos — possuíam um esplendor que deixava Dora encantada e fascinada. Mas sempre que pensava no pai, ela sentia muita saudade e ficava triste.

As alunas tomavam banho em boxes abertos, vestidas com uma camisola de algodão sem mangas e sem gola. Quando terminavam, uma freira colocava uma toalha aberta na frente do boxe para a aluna poder tirar a camisola e se enxugar sem que a sua nudez fosse vista; depois a aluna punha um roupão e subia para o dormitório, se curvava ao lado da sua cama e vestia meio escondida o uniforme. Era um procedimento trabalhoso e desconfortável que Dora e muitas meninas realizavam, porém, com boa vontade. Uma vez por semana, no dormitório, toda menina sentava-se num banco à frente de uma freira, que lhe passava meticulosamente pela cabeça um pente fino. Não havia piolhos naquele internato.

No colégio Dora conheceu Eunice, que se tornou a sua melhor amiga. E à medida que cresciam — as duas ficaram todo o primário e o ginásio no mesmo colégio interno — se tomaram mais íntimas. Sempre que possível ficavam de mãos dadas, cochichando e rindo. As freiras chamavam tal comportamento de bêtise e procuravam contê-las, mas sem recriminá-las por isso. Eunice era órfã, e quem a visitava nos domingos era um guardião que a tratava com um carinho artificial. Eunice e o seu guardião se agrupavam com Dora e o pai, nos domingos e também nos dias em que as alunas tinham permissão para sair do colégio, em companhia dos responsáveis, para passear em Petrópolis. Quando o curso ginasial terminou elas se abraçaram chorando e disseram que nunca deixariam de se amar.

Dora e Eunice cursaram o colegial em estabelecimentos de ensino diferentes. Vieram a se reencontrar na faculdade de direito, anos depois, e reataram com o mesmo vigor a amizade de antes. Abriram um escritório e advogavam juntas causas pertinentes ao direito da família. Dora às vezes ia dormir na casa de Eunice, ainda que Ernestino reclamasse carinhosamente do fato de a filha deixá-lo sozinho com a empregada. Ele sentia-se doente e planejava se afastar dos negócios. O seu sonho era ver a filha casar e lhe dar um neto homem, que com o tempo assumisse os negócios e continuasse a tradição da família.

Mas Dora, que se tornara uma mulher de grande beleza, recusava todos os seus pretendentes, que eram muitos. Saía com eles, ia jantar fora, ia ao cinema, mas, muito recatada, evitava qualquer intimidade com esses homens, nem mesmo permitia que a beijassem. Um dia o pai a chamou para ter com ela o que chamou de uma longa conversa. Ernestino disse à filha que estava indicando um dos seus antigos funcionários para assumir o comando dos negócios, pois estava se sentindo cada vez mais fraco e o seu médico, depois de um rigoroso exame, diagnosticara uma doença neurológica progressiva que dentro de alguns anos, não sabia quantos, o levaria à morte. E ele não queria morrer sem ver a sua filha casada e sem ter a suprema alegria de ter um neto. Ernestino disse isso com voz emocionada, segurando na mão da filha. Me promete, ele pediu, assim eu morrerei em paz. Dora prometeu, mas pediu algum tempo para realizar o desejo do pai.

Nesse dia Dora foi dormir com Eunice. A amiga mandara fazer calças largas de algodão iguais às que usavam no colégio de freiras, e que não existiam para ser compradas nas lojas. Vestidas apenas com essas calças, que apesar de toscas, ou talvez por isso, tornavam ainda mais atraentes os seus corpos delgados, as duas fizeram amor com um ardor muito intenso. Isso sim, é bêtise, disse Eunice, e as duas riram muito. Depois, Dora contou a Eunice a conversa que tivera com o pai, acrescentando que ele estava cada vez mais obstinado em seu desejo de vê-la casada e ter um neto. As duas permaneceram o resto da noite tomando vinho branco e falando desse assunto, e da frustração de não poder morar na mesma casa, acordar juntas, cozinhar, viajar, viver juntas o tempo todo das suas vidas, serem as duas uma família.

Ernestino agora precisava de uma cadeira de rodas para se locomover e um enfermeiro foi contratado para tomar conta dele. O médico disse que com cuidados adequados Ernestino poderia viver alguns anos, mas que a sua doença infelizmente não tinha cura, o que Dora podia fazer era lhe propiciar a melhor qualidade de vida possível, num ambiente tranqüilo de amor. O passatempo preferido de Ernestino, em casa ou quando ele saia com Dora em sua cadeira de rodas para passear na praça, era interrogar a filha sobre os seus pretendentes e escolher o nome que o neto teria. Dora participava dessas conversas tentando, manter a mesma paciência dos seus tempos de colégio interno, mas não conseguia deixar de se sentir exausta e infeliz, pois o pai sempre terminava a conversa dizendo que apenas esperava ela se casar e ter um filho para morrer em paz.

Após cada uma das suas cada vez mais raras noites de bêtise as duas amantes sempre voltavam a esse tema, como conseguir que Ernestino morresse em paz. E a maneira de resolver esse delicado e angustiante problema era sempre a mesma, uma solução final, por elas considerada um gesto de amor absoluto. A morte era sempre uma bênção para os doentes desenganados.

O enfermeiro, precisava tirar umas férias e em vez de contratar um outro Dora disse que ela mesma cuidaria do pai. Ernestino se emocionou com o desvelo da filha, que passava os dias e as noites ao seu lado. E também estava muito feliz, pois Dora prometera que assim que o pai melhorasse um pouco ela se casaria e teria um filho.

Transcorrido um mês, Ernestino morreu de uma súbita insuficiência respiratória. O médico confirmou que aquela era mesmo uma doença insidiosa de difícil prognóstico. No enterro Dora e Eunice choraram muito. O sofrimento de Dora foi tão grande que ela teve que ser internada num hospital para se recuperar.

Depois, Dora e Eunice foram morar juntas e adotaram um menino a quem deram o nome de Ernestino. O menino cresceu e as pessoas, os novos amigos que elas fizeram, diziam que ele era a cara da mãe.

Fonte:
FONSECA, Rubem. Histórias de Amor. SP: Cia. das Letras, 1997.
http://www.releituras.com/

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Rubem Braga (1913 – 1990)

“Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa: “Eu sou lá de Cachoeiro…”

Na noite de segunda-feira, 17 de dezembro de 1990, o escritor Rubem Braga reuniu um pequeno grupo de amigos, cada vez mais selecionados por ele, na sua cobertura em Ipanema. Foi uma visita silenciosa, mas claramente subentendida pelos amigos Moacyr Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote. Às 23h30 da noite de quarta-feira, sedado num quarto do Hospital Samaritano, Rubem Braga morreu, sozinho como desejara e pedira aos amigos.

A causa da morte foi uma parada respiratória em conseqüência de um tumor na laringe que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente.

Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913. Iniciou seus estudos naquela cidade, porém, quando fazia o ginásio, revoltou-se com um professor de matemática que o chamou de burro e pediu ao pai para sair da escola. Sua família o enviou para Niterói, onde moravam alguns parentes, para estudar no Colégio Salesiano. Iniciou a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, mas se formou em Belo Horizonte, MG, em 1932, depois de ter participado, como repórter dos Diários Associados, da cobertura da Revolução Constitucionalista, em Minas Gerais — no front da Mantiqueira conheceu Juscelino Kubitschek de Oliveira e Adhemar de Barros.

Na capital mineira se casou, em 1936, com Zora Seljan Braga, de quem posteriormente se desquitou, mãe de seu único filho Roberto Braga.

Foi correspondente de guerra do Diário Carioca na Itália, onde escreveu o livro “Com a FEB na Itália”, em 1945, sendo que lá fez amizade com Joel Silveira. De volta ao Brasil morou em Recife, Porto Alegre e São Paulo, antes de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, primeiro numa pensão do Catete, onde foi companheiro de Graciliano Ramos; depois, numa casa no Posto Seis, em Copacabana, e por fim num apartamento na Rua Barão da Torre, em Ipanema.

Sua vida no Brasil, no Estado Novo, não foi mais fácil do que a dos tempos de guerra. Foi preso algumas vezes, e em diversas ocasiões andou se escondendo da repressão.

Seu primeiro livro, “O Conde e o Passarinho”, foi publicado em 1936, quando o autor tinha 22 anos, pela Editora José Olympio. Na crônica-título, escreveu: “A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde.” De fato, quase tanto como pelos seus livros, o cronista ficou famoso pelo seu temperamento introspectivo e por gostar da solidão. Como escritor, Rubem Braga teve a característica singular de ser o único autor nacional de primeira linha a se tornar célebre exclusivamente através da crônica, um gênero que não é recomendável a quem almeja a posteridade. Certa vez, solicitado pelo amigo Fernando Sabino a fazer uma descrição de si mesmo, declarou: “Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento.”

Foi com Fernando Sabino e Otto Lara Resende que Rubem Braga fundou, em 1968, a editora Sabiá, responsável pelo lançamento no Brasil de escritores como Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges.

Segundo o crítico Afrânio Coutinho, a marca registrada dos textos de Rubem Braga é a “crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza.”

A chave para entendermos a popularidade de sua obra, toda ela composta de volumes de crônicas sucessivamente esgotados, foi dada pelo próprio escritor: ele gostava de declarar que um dos versos mais bonitos de Camões (“A grande dor das coisas que passaram”) fora escrito apenas com palavras corriqueiras do idioma. Da mesma forma, suas crônicas eram marcadas pela linguagem coloquial e pelas temáticas simples.

Como jornalista, Braga exerceu as funções de repórter, redator, editorialista e cronista em jornais e revistas do Rio, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Foi correspondente de “O Globo” em Paris, em 1947, e do “Correio da Manhã” em 1950. Amigo de Café Filho (vice-presidente e depois presidente do Brasil) foi nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile, em 1953. Em 1961, com os amigos Jânio Quadros na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador do Brasil no Marrocos. Mas Braga nunca se afastou do jornalismo. Fez reportagens sobre assuntos culturais, econômicos e políticos na Argentina, nos Estados Unidos, em Cuba, e em outros países.

Quando faleceu, era funcionário da TV Globo. Seu amigo Edvaldo Pacote, que o levou para lá, disse: “O Rubem era um turrão, com uma veia extraordinária de humor. Uma pessoa fechada, ao mesmo tempo poeta e poético. Era preciso ser muito seu amigo para que ele entreabrisse uma porta de sua alma. Ele só era menos contido com as mulheres. Quando não estava apaixonado por uma em particular, estava apaixonado por todas. Eu o levei para a Globo… Ele escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade e qualidade, e fazia isto mantendo um grande apelo popular.

Bibliografia:
CRÔNICAS:
– O Conde e o Passarinho, 1936
– O Morro do Isolamento, 1944
– Com a FEB na Itália, 1945
– Um Pé de Milho, 1948
– O Homem Rouco, 1949
– 50 Crônicas Escolhidas, 1951
– Três Primitivos, 1954
– A Borboleta Amarela, 1955
– A Cidade e a Roça, 1957
– 100 Crônicas Escolhidas, 1958
– Ai de ti, Copacabana, 1960
– O Conde e o Passarinho e O Morro do Isolamento, 1961
– Crônicas de Guerra – Com a FEB na Itália, 1964
– A Cidade e a Roça e Três Primitivos, 1964
– A Traição das Elegantes, 1967
– As Boas Coisas da Vida, 1988
– O Verão e as Mulheres, 1990
– 200 Crônicas Escolhidas
– Casa dos Braga: Memória de Infância (destinado ao público juvenil)
– Uma fada no front
– Histórias do Homem Rouco
– Os melhores contos de Rubem Braga (seleção Davi Arrigucci)
– O Menino e o Tuim
– Recado de Primavera
– Um Cartão de Paris
– Pequena Antologia do Braga

ROMANCES:
– Casa do Braga

No volume publicado, também de crônicas, “As Coisas Boas da Vida”, em 1988, Rubem Braga enumera, no texto que dá título ao livro “as dez coisas que fazem a vida valer a pena”. A última delas: “Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte — o assim chamado descanso eterno“.

Fonte:
http://www.releituras.com

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Rubem Braga (Aula de Inglês)

— Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:

— No, it’s not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:

— Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:

— No, it’s not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

— Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca… Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

— No, it’s not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.

— Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.

As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:

— Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:

— Very well! Very well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

— It’s not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945

Fonte:
BRAGA, Rubem. Um pé de milho. RJ: Editora do Autor, 1964.
http://www.releituras.com/

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Rubem Braga (A Viajante)

Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá.

Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.

Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio — você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou.

Apenas quero que dentro de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera e suave de não esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que a de alguns momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite, na poltrona de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternos e fatais e, de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é a grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada. E há também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que o das excitações e descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente, coisa sua.

Mas há também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde – torresmo, moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca, qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam com a gente, as ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria dos outros que passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como bofetadas injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da cabeceira e não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes desconhecidos com um tédio cruel.

Boa viagem, e passe bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por tanto lado, acompanha, pode estar certa, você.
Rio, abril de 1952.

Fonte:
“A Borboleta Amarela”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1963, pág. 145.
http://www.releituras.com/

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Nilto Maciel (1945)

SÍNTESE BIOBIBLIOGRÁFICA DE NILTO MACIEL

Nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará em 70. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77, tendo trabalhado na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Regressou a Fortaleza em 2002. Editor da revista Literatura desde 91.

Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais: Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1981, com o livro de contos Tempos de Mula Preta; Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1986, com o livro de contos Punhalzinho Cravado de Ódio; “Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A Rosa Gótica; VI Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 1996, Fundação Cultural de Fortaleza, CE, com o conto “Apontamentos Para Um Ensaio”; “Bolsa Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com o livro Pescoço de Girafa na Poeira; “Eça de Queiroz”, 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com o livro Vasto Abismo.

Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006).

Tem contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela (vídeo), pelo cineasta Clébio Ribeiro, em 1993.

LIVROS PUBLICADOS:
– Itinerário, contos, 1.ª ed. 1974, ed. do Autor, Fortaleza, CE; 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.
– Tempos de Mula Preta, contos, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ.
– A Guerra da Donzela, novela, l.ª ed. 1982, 2.ª ed. 1984, 3.ªed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS.
– Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.
– Estaca Zero, romance, 1987, Edicon, São Paulo, SP.
– Os Guerreiros de Monte-Mor, romance, 1988, Editora Contexto, São Paulo, SP.
– O Cabra que Virou Bode, romance, 1.ª ed. 1991, 2.ª ed. 1992, 3.ª ed. 1995, 4.ª ed. 1996, Editora Atual, São Paulo, SP.
– As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.
– Os Varões de Palma, romance, 1994, Editora Códice, Brasília.
– Navegador, poemas, 1996, Editora Códice, Brasília.
– Babel, contos, 1997, Editora Códice, Brasília.
– A Rosa Gótica, romance, 1.ª ed. 1997, Fundação Catarinense de Cultura, Florianópolis, SC (Prêmio Cruz e Sousa, 1996), 2.ª ed. 2002, Thesaurus Editora, Brasília, DF.
– Vasto Abismo, novelas, 1998, Ed. Códice, Brasília.
– Pescoço de Girafa na Poeira, contos, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília.
– A Última Noite de Helena, romance, 2003. Editora Komedi, Campinas, SP.
– Os Luzeiros do Mundo, romance, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.
– Panorama do Conto Cearense, ensaio, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.
– A Leste da Morte, contos, 2006. Editora Bestiário, Porto Alegre, RS.
– Carnavalha, romance, 2007. Bestiário, Porto Alegre, RS.

ORGANIZADOR:
Pele e Abismo na Escritura de Batista de Lima, ensaios, artigos e resenhas, 2006. Ed. UNIFOR, Fortaleza, CE.

PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS:
– Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal, seleção de Glauco Mattoso e Nilto Maciel. Clube dos Amigos do Marsaninho, Rio de Janeiro e Fortaleza, 1977. Contos: “As Fantásticas Narrações das Meninas do São Francisco” e “Sururus no Lupanar”.
– Conto Candango, coordenação de Salomão Sousa. Coordenada Editora de Brasília, 1980. Conto: “As Pequenas Testemunhas”.
– Horas Vagas (Coletânea 2), organizada por Joanyr de Oliveira. Coleção Machado de Assis, volume 42, Contos, Senado Federal, Brasília, 1981. Conto: “Detalhes Interessantes da Vida de Umzim”.
– O Prazer da Leitura, organizada por Jacinto Guerra, Ronaldo Cagiano, Nilce Coutinho e Cláudia Barbosa. Editora Thesaurus, Brasília, 1997. Conto: “Ícaro”.
– Almanaque de Contos Cearenses, organizado por Elisangela Matos, Pedro Rodrigues Salgueiro e Tércia Montenegro. Edições Bagaço, Recife, PE, 1997. Conto: “Apontamentos para um Ensaio”.
– Poesia de Brasília, organizada por Joanyr de Oliveira. Livraria Sette Letras, Rio de Janeiro, 1998. Poemas: “Odisséia Interior”, “Oferenda” e “Nem todo amor…”
– Poesía de Brasil – volumen 1, organizada por Aricy Curvello e traduzida para o espanhol por Gabriel Solis. Edição Proyecto Cultural Sur/Brasil, Bento Gonçalves, RS, 2000. Poemas: “Calvario”, “De Desapariciones y de Ruinas”, “Francisca” e “Arco Iris”.
– Reflexos da Poesia Contemporânea do Brasil, França, Itália e Portugal, organizada por Jean Paul Mestas. Universitária Editora, Lisboa, Portugal, 2000. Edição em francês e português. Poemas: “Lutin”/ “Duende”, “Avec les pieds par terre” / “Com os pés no chão”, “Auroral” / “Amanhança”, “Pro-phétique” / “Prof-ética”.
– Antologia de Haicais Brasileiros, organizada por Napoleão Valadares. André Quicé Editor, Brasília, 2003.
– Antologia de Contos Cearenses, organizada por Túlio Monteiro. Coleção Terra da Luz, tomo I, Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza, 2004. Conto: “Casa Mal-assombrada”.
– Antologia do Conto Brasiliense, seleção e organização por Ronaldo Cagiano. Projecto Editorial, Brasília, 2004. Conto: “Aníbal e os Livros”.
– Os Rumos do Vento/ Los Rumbos del Viento (Antologia de Poesia), coordenação de Alfredo Pérez Alencart e Pedro Salvado. Câmara Municipal de Fundão, Porotugal e Trilce Ediciones, Salamanca, Espanha, 2005. Poema: “Arco-íris”.
– Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa, org. Rinaldo de Fernandes. Rio de Janeiro, Ed. Garamond, 2006. Conto: “Águas de Badu”.
– Todas as Gerações – O Conto Brasiliense Contemporâneo, org. por Ronaldo Cagiano. Brasília, LGE Editora, 2006. Conto “Avisserger Megatnoc”.
– 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilingüe español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo. Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007. Conto “Ave-Marias”.

Fontes:

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Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense – Parte I)

1 – INTRODUÇÃO

É do conhecimento de estudiosos de Literatura, escritores, professores, estudantes, e quem quer que se interesse por livros, a existência de uma quantidade razoável de obras para pesquisa relativas à Literatura Cearense, de historiadores e críticos, como as de Araripe Júnior, Dolor Barreira, Mário Linhares, Abelardo Montenegro, Antônio Sales, Guilherme Studart, Otacílio Colares, Raimundo Girão, Braga Montenegro, Sânzio de Azevedo. Muitas delas escritas na primeira metade do século XX e nenhuma voltada exclusivamente para o conto. Já em 1947, na “Explicação Necessária” da História da Literatura Cearense, Dolor Barreira constatava que “os materiais para uma história das letras do Ceará foram sempre e continuam a ser lastimavelmente exíguos. Não só exíguos, mas – o que é pior – esparsos e desconjuntos, disseminados que estão, irregularmente, por folhetos, almanaques, revistas e jornais”.

Outros, como F. S. Nascimento, Francisco Carvalho, José Alcides Pinto, Dias da Silva, José Lemos Monteiro, Paulo de Tarso Pardal, Dimas Macedo, Batista de Lima, para citar uns poucos, têm divulgado livros de história e crítica literária da maior importância, porém voltados para a Literatura em geral. Nada específico sobre o conto, embora dediquem partes de seus livros a este gênero ou aos seus cultores. Sendo assim, nada mais necessário do que uma História do Conto Cearense, mesmo breve, ou, se não for História propriamente dita, um catálogo, um panorama.

Objetiva-se, pois, neste ensaio reunir o maior número possível de informações relativas aos contistas cearenses, partindo-se das primeiras publicações de narrativa curta, de autor do Ceará, até hoje. No entanto, como há inúmeros compêndios de História, dicionários e enciclopédias, onde se encontram biografias de escritores, as informações biográficas aqui dadas serão sucintas, dando-se ênfase, neste caso, aos anos de nascimento e morte, à naturalidade (como quase todos nasceram no Ceará, serão anotados somente os nomes das cidades ou dos municípios) e aos títulos dos livros de contos publicados e o ano da primeira edição de cada um. O mais importante, porém, será situar cada contista na época em que escreveu, dando-lhe relevância ou não, dependendo do grau de sua importância enquanto vivo e após a morte. Essa relevância será objetivada na apreciação crítica de suas obras e na transcrição de trechos de artigos e ensaios críticos de alguns estudiosos ou simples articulistas. No entanto, como os contistas do século 19 e começos do XX já constam de todas as obras de História e Crítica, até mesmo de abrangência nacional, dar-se-á mais atenção aos principais contistas surgidos com o Grupo Clã, os que surgiram logo depois, especialmente quando da criação da revista O Saco e do Grupo Siriará, e aqueles que despontaram no final do século XX. Considera-se aqui “contista cearense” o natural do Ceará ou aquele que, mesmo tendo nascido em outro Estado ou País, tenha vivido e escrito conto no Ceará e cujas narrativas apresentem como cenário a paisagem cearense. Da mesma forma, aquele que cedo se mudou do Estado e escreveu e publicou história curta onde fixou residência.

Para facilitar a leitura do estudo, as obras de referência mais citadas terão seus títulos abreviados (primeiras letras), no decorrer das páginas. Assim, Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Estudos, de F.S. Nascimento, a partir da segunda citação aparecerá apenas como (AAA), seguido dos números das páginas onde se acha o ensaio específico. E assim por diante. E também quanto a jornais, como Diário do Nordeste, que terá apenas as inicias DN. Nomes de concursos literários serão abreviados, como Festival Universitário de Cultura, reduzido para FUC. Nas referências à classificação de peças ficcionais breves em concursos (1º lugar, 2º lugar, etc), especialmente no capítulo dedicado aos novos contistas, constará apenas o número ordinal, para se evitar a repetição do vocábulo “lugar”.

2 – RETROSPECTO CONCISO

Um dos mais completos e, ao mesmo tempo, sintéticos estudos da narrativa breve no Ceará intitula-se “Evolução e natureza do conto cearense”, de Braga Montenegro, incluído na revista Clã n.º 12, de 1952, e reeditado como apresentação de Uma Antologia do Conto Cearense, em 1965. O ensaio contém 35 páginas e é composto de oito partes. Inicia-se assim: “A evolução do conto cearense, durante a fase romântica e naturalista, se processou com bastante lentidão. Poder-se-ia mesmo afirmar que nada realizamos, no curso desse longo período, relativamente à arte de contar, não fosse uma que outra manifestação de talento logo sepultada na poeira do tempo”.

Outro estudo valioso se intitula “O Conto Cearense, de Galeno ao Grupo Clã”, de Sânzio de Azevedo, do livro Dez Ensaios de Literatura Cearense, de 1985. Contido em 31 páginas, este ensaio se originou de uma aula proferida em 3 de junho de 1983, na Universidade de Fortaleza, no curso de análise literária “Panorama do Conto Brasileiro”.

O ensaio de Braga e o de Sânzio servirão de roteiro ou guia para a elaboração deste estudo histórico-crítico do conto cearense, especialmente até o período do Grupo Clã.

Os escritores cearenses se iniciaram na prática da história curta e da literatura em geral muito tardiamente, em relação aos escritores dos centros culturais mais importantes. Antônio Sales escreveu uma sintética “História da Literatura Cearense” (divulgada nas edições de 1939, 1945 e 1966 de O Ceará, de Raimundo Girão e Martins Filho, e depois no Dicionário da Literatura Cearense, de Raimundo Girão e Maria da Conceição Sousa), subdivida em cinco partes: 1 – De 1824 a 1869; 2 – De 1870 a 1896; 3 – De 1897 a 1920; 4 – Mulheres Escritoras; 5 – Poesia. Segundo o romancista de Aves de Arribação, o primeiro jornalista cearense teria sido o padre Mororó ou Gonçalo Inácio de Loiola de Albuquerque Melo, também “poeta, pregador, latinista, jurisconsulto, botânico e estilista brilhante”, fuzilado em 1825. Seguiram-se outros periódicos. No entanto, o primeiro estabelecimento de instrução secundária, o Liceu Cearense, somente se instalou em 1845. “Todos os estudos de humanidades se faziam antes disto nas capitais onde havia faculdades, e bem se pode avaliar que poucos pais de família podiam com tais dispêndios”, observa Antônio Sales. Como se vê, apenas a elite da elite conseguia alcançar o ensino superior. Ora, muito antes daqueles anos, na Bahia despontara Gregório de Matos, no Rio de Janeiro surgira Antônio José da Silva, em Minas Gerais a Escola Mineira (Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga) e muitos outros poetas em diversos Estados da Federação. Como anotou Antônio Sales, naquela época “a vida literária propriamente dita continuava, porém, em estado de nebulosa no espírito cearense”. Dolor Barreira acrescenta: “Cruz Filho é mais rigoroso quando afirma que só em 1872 é que se iniciou na Província a vida propriamente literária”.

Provavelmente muitos e muitos contos foram escritos e publicados em jornais durante o século 19 no Ceará. Como não se deve escrever História a partir de suposições, pode-se afirmar que o primeiro contista cearense é Juvenal Galeno.

Poeta antes de tudo, especialmente com Lendas e Canções Populares, Juvenal Galeno (Fortaleza, 1836-1931), com suas Cenas Populares, de 1871, é um dos primeiros cultores da narrativa curta no Ceará. Este livro deve figurar, segundo Sânzio, “como precursor, ou mesmo como iniciador do conto em nossa terra”. Mais adiante é categórico: “Com suas qualidades e defeitos, são as Cenas Populares o marco inicial do conto cearense, em pleno Romantismo”. E assinala, no ensaio mencionado linhas atrás: “Composto de oito narrativas, todas focalizando o povo simples das praias ou dos sertões, esse livro vem confirmar uma impressão que sentimos ao ler os poemas do autor: a presença de um escritor inegavelmente romântico, com fortes notas de sentimentalismo, usando o vocabulário típico da corrente, mas ao mesmo tempo um agudo observador da realidade circundante, a ponto de seus contos, como alguns poemas de seu livro máximo, poderem servir de segura fonte para o estudo dos costumes do povo ali retratado”.

Braga Montenegro acrescenta: “a despeito de sua profunda identificação com os mitos da terra, simplesmente concluiria uma obra subordinada às particularidades e assuntos do regionalismo anedótico”.

O segundo nome da história curta cearense, na ordem cronológica, é o de Araripe Júnior. Nascido em Fortaleza, em 1848, faleceu no Rio de Janeiro, em 1911. Sânzio assinala: “escreveu obras de ficção romântica, como os romances O Ninho do Beija-Flor (1874), Jacina, a Marabá (1875), Luizinha (1878)”. No entanto, sua vocação era a crítica literária. Teve editado Contos Brasileiros, em 1868. Sânzio acha “pouco provável que o indianismo desses textos tenha como cenário a paisagem cearense” e, assim, o exclui do rol dos primeiros contistas do Ceará.

Braga Montenegro dá a José de Alencar (1829-1877) o título de primeiro contista cearense: “O ponto inicial da evolução do conto cearense retrai a meados do século 19, se incluirmos os Cinco Minutos e A Viuvinha, reunidos num só volume em 1860 (o primeiro em plaqueta, fora do mercado, em 1856), a despeito da intenção do autor que os denomina romances, na categoria de contos; verdadeiros contos ou novelas que são pelo conteúdo estético, pela duração, pelo grau de poesia e símbolo que encerram”. Sânzio ensina: As duas narrativas de Alencar “nada têm a ver com as letras cearenses”, eis que o cenário de ambas é a então Capital do Império.

Montenegro considera como sendo o segundo contista cearense, na ordem cronológica, Franklin Távora (Baturité, 1842-1888). Autor de alguns romances, em 1861 deu a lume o livro Trindade Maldita, subintitulado “Contos no Botequim”. Sânzio não o considera escritor cearense, mas “nacional ou, quando muito, pernambucano”.

Já no final da penúltima década do século 19 surgem os verdadeiros primeiros cultores da história breve no Ceará, ligados ao Clube Literário (1887-1888): Oliveira Paiva, Francisca Clotilde, José Carlos Júnior e Rodolfo Teófilo. Divulgaram suas peças ficcionais no jornal A Quinzena, daquela agremiação.
***

Oliveira Paiva (Manuel de) nasceu em Fortaleza, em 12 de julho de 1861, e faleceu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1892. Filho de João Francisco de Oliveira e Maria Isabel de Paiva, cursou o seminário e viajou em seguida para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Escola Militar e ali esteve até que a tuberculose pulmonar o obrigou a abandonar os estudos. De volta ao Ceará, se envolveu nas lutas abolicionistas. Foi um dos fundadores do Clube Literário, em 1884. Na revista A Quinzena, órgão do grupo, colaborou assiduamente. Nela estão as ficções que em 1976 resultaram no livro Contos, por iniciativa da Academia Cearense de Letras, com prefácio de Sânzio de Azevedo, que, com Braga Montenegro, os tinha copiado. Na época do Clube escreveu o famoso romance Dona Guidinha do Poço e morreu sem conseguir publicá-lo. Em 1899 José Veríssimo iniciou a publicação, em capítulos, desse romance na Revista Brasileira. Mais tarde, Lúcia Miguel Pereira encontrou o manuscrito sob a guarda do poeta Américo Facó e promoveu a sua publicação pela Edição Saraiva, de São Paulo, em 1952. Era o início da reabilitação pública de Oliveira Paiva. Pouco antes de falecer, em 1889, o escritor publicou em folhetins do jornal Libertador o romance A Afilhada, editada em forma de livro em 1961. Oliveira Paiva escreveu ainda o drama Tal Filha, Tal Esposa, algumas crônicas e poemas.

Um dos mais argutos estudos dos contos de Oliveira Paiva é, sem dúvida, o livro de F. S. Nascimento Três Momentos da Ficção Menor, no qual analisa histórias de Paiva, Herman Lima e Eduardo Campos. A composição do autor de Dona Guidinha do Poço intitula-se “A Melhor Cartada”, impresso pela primeira vez em 1887, no jornal A Quinzena.

Reunidas no livro Contos, em 1976, edição patrocinada pela Academia Cearense de Letras, organizada por Braga Montenegro e com introdução de Sânzio de Azevedo, finalmente as narrativas curtas de Oliveira Paiva deixaram as folhas envelhecidas do jornal A Quinzena e, assim, se salvaram do olvido. As 12 peças coligidas são: “Corda Sensível”, “O Ar do Vento, Ave Maria”, “O Velho Vovô”, “A Melhor Cartada”, “Pobre Moisés que não o Foste!”, “O Ódio”, “A Barata e a Vela (Fábula)”, “Variação Sobre um Tema de Buffon”, “Ao Cair da Tarde”, “De Preto e de Vermelho”, “De Pena Atrás da Orelha” e “A Paixão”. Publicados em 1887 e 1888, podem ser considerados como exercícios para a elaboração dos romances A Afilhada e Dona Guidinha do Poço. Sânzio de Azevedo ensina: “Todos são unânimes em admitir que o escritor ainda não estava em pleno domínio de suas potencialidades criadoras ao compor os contos estampados n’A Quinzena”.

Muitos historiadores desconheciam essas obras de Oliveira Paiva, certamente porque não buscaram as fontes, isto é, não pesquisaram jornais e revistas, onde se iniciavam e se iniciam a maioria dos escritores. Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi, por exemplo, não se refere ao contista Oliveira Paiva, embora o considere “prosador terso, que sabia descrever e narrar com mão certeira e intervir no momento azado com talhos irônicos de inteligência fina e crítica”.

Sânzio de Azevedo, no estudo “Contos de Oliveira Paiva”, editado como apresentação do livro Contos e no livro Aspectos da Literatura Cearense, analisa um a um as 12 histórias do criador de A Afilhada e conclui: “Quer-nos parecer que “Corda Sensível”, “O Ar do Vento, Ave-Maria”, “A Melhor Cartada” e “O Ódio” são os melhores contos de quantos escreveu Oliveira Paiva, podendo mesmo redimir o autor de quaisquer falhas porventura encontradas nos demais”. Prossegue: “É interessante observar que nenhum de seus contos se ressente daquela linguagem cientificista que prejudica muita página de nosso Realismo-naturalismo. Seria o caso de se dizer que Oliveira Paiva fugia a esses tiques, tanto assim que tal característica não empana a grandeza de Dona Guidinha do Poço, seu derradeiro trabalho de ficção”.

Oliveira Paiva se vale de variadas técnicas na composição das obras, a partir do prisma dramático, como na montagem das três cenas da primeira história, no mesmo palco, como se fosse um drama teatral. Na primeira, uma sala e nela um fardão “enfiado sobre o espaldar de uma cadeira de balanço”. Ao fundo, a janela e parte da rua. Como personagens, a menina Maria (protagonista) e a “filha do cabo de ordens”. Na segunda cena, mais curta, no dia seguinte, a mesma sala, o mesmo fardão, e não mais as meninas, mas a criada, que se espanta diante do estrago feito pelos ratos na roupa do coronel. A última cena, a maior, dias depois, se dá em algum cômodo da casa, e nela as personagens das primeiras cenas aparecem de novo e, ao lado delas, outras, sobretudo os ratos, antes somente mencionados. Não se trata, porém, de conto composto de três células dramáticas. Talvez de drama em três atos.

Esta técnica, a de cenas estanques, separadas pelo tempo e pela substituição e apresentação de personagens, aparece em outras peças.

Nem sempre o espaço da ação em Oliveira Paiva se resume a uma sala, como no primeiro conto. No segundo, esse espaço se abre, se amplifica: um cabeço, a mata cavernosa, além do horizonte, o céu, a lua. Em outro, o mar, as embarcações, em perfeita descrição topográfica.

Uma das ferramentas de linguagem mais freqüentes nas composições de Oliveira Paiva é a descrição de ambientes, pessoas e coisas. Não a descrição enfadonha, desnecessária, detalhista, mas aquela capaz de dar ao leitor perfeita visão do objeto descrito. Veja-se a descrição do fardão do coronel, em “Corda Sensível”. Ora, a indumentária descrita será como que o objeto principal da composição, o alvo dos olhares, dos cuidados de todos, eis que os ratos – personagens fundamentais na história – dele se servirão como objeto de sua sanha.

Um dos pontos culminantes deste livro está em “O Ódio”, onde narração e descrição se mesclam harmoniosamente: a amurada do navio, a gaiola de paus, onde se mantinha aprisionado um tigre, a fera “movendo-se com pés de seda e garbo de mulher”, os marinheiros, o mar – tudo descrito com cores de tempestade, a prenunciar o desfecho trágico – e os homens em movimento, a fera a se debater na gaiola, e, súbito, o entrechoque de embarcações, o tumulto, os olhos do tigre a “bruxulear” nas ondas, a luta do homem com a fera, o fim.

Utiliza Oliveira Paiva, em algumas ocasiões, a narração simultânea de duas ações, como em “A Melhor Cartada”, onde narra uma procissão do Senhor Morto e, ao mesmo tempo, porque se dá no mesmo tempo, a movimentação de uns jogadores de baralho. O sacro e o profano em paralelas, como também em “A Paixão”, onde a cerimônia religiosa é narrada enquanto o narrador, apaixonado, se dilacera – drama psicológico – remoendo o seu amor profano.

O mesmo processo de elaboração narrativa se vê em “Variações sobre um Tema de Buffon”. E também alguns momentos de narração em estado de quase perfeição, como neste trecho, em que um capão sai em defesa de uns patinhos pela primeira vez em banho num açude: “Girava, acima e abaixo, já aflito, a percorrer a trincheira que isolava o abismo líquido. Agachava-se para entrar, recuando hidrófobo; olhava por baixo como galo a brigar; açoutava-se com as moles asas; eriçava a penaria do pescoço, ciscava nervosamente e penicava no chão, a chamar aqueles traquinas, cacarejando, gorgolejando, com a sua tocante responsabilidade de educador e aio”.

Talvez por se tratar de fábula, como a chamou o autor, em “A Barata e a Vela” a narração pura e simples ocorre durante toda a narrativa, não fosse o breve diálogo do narrador com a traça. Esta maneira de escrever não está presente nas demais ficções.

Paiva utiliza ora o ponto de vista da terceira pessoa, ora o da primeira. Às vezes esta aparece no plural. Em outras ocasiões a primeira pessoa se oculta na narração, e o leitor tem a impressão de estar lendo sob o foco onisciente. Veja-se “A Paixão”, onde durante quase toda a história a narração parece estar sendo conduzida por narrador onisciente: Uma moça numa varanda a assistir às cerimônias da Paixão de Cristo, a descrição do templo, do ambiente, a multidão de fiéis, as irmãs de caridade, os padres, suas indumentárias, as velas, o tapete, o incenso no ar, o cantochão etc. Durante toda esta narração-descrição não mais aparece a moça, apenas chamada de “ela”, e muito menos o narrador, embora sejam os dois os protagonistas. Somente no final o personagem-narrador ou narrador-testemunha, sem nome também, se apresenta: “Eu ajoelhava prostrado ante a divina figura do Mestre e o meu olhar trespassava-lhe também o coração fonte do amor”. A jovem reaparece furtivamente na narração: “E as duas almas, feitas uma para a outra…” E mais adiante: “E do sudário desaparecera o Jesus sanguinolento, para pintar-se ela com o seu vestidinho preto e as suas pulseiras de ouro, a olhar-me para meu coração soluçante”.

A utilização do ponto de vista em primeira pessoa, seja ela protagonista ou narrador-testemunha, faz de Oliveira Paiva um dos bons elaboradores de dramas psicológicos do seu tempo. Leia-se “Ao Cair da Tarde”: personagens sem nome (um cocheiro, um velho e um moço), uma carruagem a conduzi-los a um cemitério, a descrição minuciosa da estrada, breves diálogos, nada de tragédias, nada de mortes, apesar da visita ao campo santo. Na mesma linha está “De Preto e de Vermelho”, outro drama psicológico. Novamente a descrição se funde à narração, em exemplos de pura arte: “Um sapato pisava na mesa, revirado, entre os livros e os frascos”. O verbo (narração) na mesma frase dos substantivos (descrição). Um personagem sem nome descreve e narra, como se fosse apenas um observador. Ou, então, o narrador é onisciente, sendo o escritor: “Ele (o personagem) sentia atroar pelos salões a pancadaria da quadrilha pavorosa e danada e louca, vermelha como o sangue vivo, e negra como uns olhos que conheço”. Em “De Pena Atrás da Orelha”, que Sânzio de Azevedo analisa como sendo “a continuação do precedente”, também quase não se vislumbra um enredo, uma trama, e onde se percebem até pedaços de frases constantes do outro conto, como “uma capa de rei”, sem contar o tema: Numa quarta-feira de cinzas, um rapaz, entre dormido e acordado, rememora cenas do carnaval. Sem querer desmerecer esta composição, há um quê de crônica nela, mormente a partir do parágrafo assim iniciado: “Um belo dia que se alevantava na rua!”, até “… e cegos mendigos, com a mão no ombro dos guias de roupa suja e rota…”

Braga Montenegro vê nessas obras de Oliveira Paiva “originalidade sem alarde, a força sugestiva dos símbolos, o inesperado da expressão valorizando os temas, estes muitas vezes perigosos pelo abuso do cotidiano”.

A manipulação da linguagem nas histórias de Oliveira Paiva é admirável, mesmo não tendo alcançado ainda, naquele tempo, a maturidade de narrador que culminaria em Dona Guidinha do Poço. Observador atento, impassível, paciente e imparcial, feito a coruja que pousa no mais alto e firme galho da mais alta e robusta árvore, vê, capta as imagens, os movimentos, as falas, os gestos das personagens, a arquitetura do espaço e dos objetos e, sem olhos de julgador – o Bem o Mal à sua frente –, descreve e narra como artista.

***
Continua…

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=986

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Danilo Corci (O Romance Moderno)

Em “Reflexões do Romance Moderno”, Anatol Rosenfeld discursa sobre os mecanismos que compõem a temática e o estilo da obra literária no Século XX após a ruptura brutal com as formas determinadas por um passado clássico. E a primeira noção absoluta para criar uma discussão como esta, consiste em enxergar o romance e sua análise como ideais de uma cultura exclusivamente ocidental.

O mecanismo escolhido pelo autor foi uma comparação direta da literatura com a pintura. Ao partir deste esquema, Rosenfeld apresenta os fatores determinantes para a mudança das artes plásticas, que também podem ser encontradas nos textos literários. Uma delas é a “desrealização”, ou seja, a obra deixa de ser mimética por excelência e abandona por completo a idéia de cópia, na completa negação do realismo em forma e conteúdo.

Assim sendo, a perspectiva central é completamente limada de consideração primordial na composição do trabalho. Esta perspectiva, resultado direto da observação entre dois pólos, o do homem e o do mundo, foi forjada na Grécia Clássica, o que originou trabalhos tridimensionais e coesos. No romance moderno, a preocupação vai na direção contrária. Vai pela explosão desta perspectiva. Acontece a ruptura com a linearidade e com a cronologia. O espaço e a sucessão temporal são eliminados. Os exemplos cabais desta nova percepção estão nas obras de Proust, Joyce e Faulkner.

Tanto tempo e espaço deixam de ser entidades absolutas. Passam a serem vistos de maneira objetiva e relativa. Não existem mais certezas. A visão de uma realidade mais profunda, mais real do que o senso comum passa a ser a referência e é absorvida pela literatura. A expressão total disto vem com o romance de consciência, uma vez que não vivendo mais “no” tempo, o homem agora passa a ser o tempo, tempo este não cronológico, mas sim uma atualidade que engloba tanto o passado, o presente e o futuro, misturados e quase sem identificação. A consciência flutua entre estas referências de maneira completa. A narrativa fica sem fronteiras em seu contexto.

Portanto, a partir deste entendimento, Rosenfeld compreende que este fluxo de consciência caminha para a radicalização do monólogo interior, característica crucial do romance moderno. Some-se o narrador. A consciência da personagem se manifesta em sua atualidade. Acabam-se, então, as leis de causa e efeito, o começo, o meio e o fim. Porém, o autor observa que esta radicalização foi produzida com base no romance psicológico e realista do Século XIX. Ou seja, se perde a noção de personalidade total. O ser humano, no romance moderno, se fragmenta, se individualiza. Beckett seria um dos principais vetores deste estilo.

Assim, esta individualização facilita a busca dos mesmos padrões arquetípicos dos mitos, como em um eterno retorno já que o tempo mitológico é circular e não cronológico. “Ulisses”, de James Joyce faz esta fragmentação. Fragmentação esta que representa a busca da superação da realidade sensível numa procura incansável de algo por de trás da aparência em que vivemos.

Outras possibilidades apontadas pelo autor são o geometrismo, onde um Eu narrador se aproxima do mundo narrado para mostrar um novo mundo sem tempo algum. Proust seria um dos mestres disto. Ao mesmo tempo, este mesmo narrador se ironiza tanto por saber de tudo e busca a sua justificativa nos mecanismos psíquicos de todos os seres humanos, uma vez que o narrador também é um ser humano. É a cultura do relativismo, da transformação.

Uma outra forma encontrada no romance moderno é o Behavorism. Usado por Hemingway e por Camus, este estilo cria um estranhamento total. Não existe plano psicológico. Tudo é sem profundidade, sem mergulhos internos, um verdadeiro mundo estranho e indevassável. Um mundo de seres humanos sem alma, chapados, externos. Kafka, por sua vez, usava a espera como condição primordial. Seu tempo é a eterna espera.

Anatol Rosenfeld ainda identifica outra ruptura com a técnica clássica. Trata-se do tempo simultâneo, onde grandes espaços e o coletivo são as principais fontes da técnica. Ali, os indivíduos são lançados no fluxo de consciências e do mundo, num verdadeiro redemoinho urbano e caótico. Ao identificar os fatores de ruptura, o texto apresenta um panorama da complexidade estética e das questões filosóficas discutidas pelo romance moderno. O que não deixa de ser um ambicioso mergulho no espírito de nossa época.

Fontes:
07/09/2003
http://www.speculum.art.br/module.php?a_id=526#
http://l4mp3j05.blogspot.com/ (figura)

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Nathaniel Hawthorne (1804 – 1864)

(Salem, 4 de Julho de 1804 – Plymouth, 19 de Maio de 1864)

Descendente de uma família de tradição puritana, que se instalou nos Estados Unidos no século XVII, Nathaniel Hawthorne foi um dos mais importantes romancistas e contistas norte-americanos do século XIX.

Nasceu em Salem, estado de Massachusetts, a 4 de Julho de 1804, e cedo despertou para a literatura. Depois da morte do Pai, em 1808 na Guiana Holandesa (actual Suriname), vive na casa da família materna, sob influência de um ambiente típico da Nova Inglaterra.

Em 1821, ingressa na Universidade de Bowdoin, em Brunswick, onde trava amizade com o poeta H. W. Longfellow (1807-1882), e com Franklin Pierce, que viria a ser eleito 14.º Presidente dos Estados-Unidos. Formado, em 1825, decide editar, anonimamente, o seu primeiro romance Fanshawe: A Tale, mas rapidamente se arrepende do impulso e nos anos seguintes dedica-se a aperfeiçoar o seu método de escrita.

Após esta tentativa, consegue um emprego na alfândega de Boston e, em 1837, publica a primeira colectânea de contos Twice-Told Tales (contos narrados duas vezes) que viriam a ter continuação em 1842.

Casa-se com Sophia Peabody, de quem era noivo desde 1838, e com a qual virá a ter três filhos. Muda-se para Concord onde conhece os transcendentalistas: Henry David Thoreau (1817-1862) e R. W. Emerson (1803-1882), e, em 1846, de volta a Salem, Hawthorne emprega-se como alto funcionário da alfândega local. Três anos passados, é demitido, por razões políticas, e torna a mudar de residência, agora para Lenox, onde se dedica mais intensamente à literatura, que é o seu único rendimento. É nesta altura que conhece Herman Melville (1819-1891), o autor de Moby Dick (1851), que se pode considerar a sua mais importante amizade e influência literária.

Com a década de 50 vêm os anos produtivos e as suas grandes obras. Primeiro é A letra escarlate (1850), a sua obra-prima, depois A casa das sete empenas (1851). Em 1853, publica Tanglewood Tales, histórias clássicas contadas para crianças, e segue para Liverpool, na Inglaterra, para o lugar de cônsul dos Estados Unidos que desempenha até 1857, quando decide viajar, com a família, pela Europa (França e Itália). De volta a Concord, já doente, Hawthorne vive os últimos anos a começar romances que não consegue acabar e em 19 de Maio de 1864 morre, em Plymouth, durante uma viagem.

Com uma marca fortemente alegórica, fantasista e pessimista as narrativas de Hawthorne versam questões morais complexas e profundas, saídas de um espirito dominado pela permanente luta entre o bem e o mal, mas repudiando – sempre – a intolerância, o fanatismo, ou o dogmatismo religioso.

Nathaniel H. ficou na história como autor de grandes romances, mas também como mestre de numerosos e fascinantes contos, género que se pode considerar como o mais representativo da literatura norte-americana do século XIX, e para a qual ele muito contribui.

OUTRAS IMPORTANTES OBRAS:

Mosses from a old house (1846); The Snow-Image and other Twice-Told Tales (1851); The Blithedale Romance (1852); Marble Faun (1860); Our old home (1863).

Fonte:
http://www.redutoliterario.hpg.ig.com.br/prosa/nathaniel_hawthorne2.htm

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Nathaniel Hawthorne (A consoada do “quaker”)

Obs: Consoada = Ceia de Natal (segundo o Dicionário Caudas Aulete)

Era véspera de Natal e, terminada a ceia, o ferreiro quaker, John Inglefield, sentou-se no meio dos seus, na velha poltrona carcomida.

Como estava no centro do semi­círculo formado pelos membros de sua família, em torno da lareira, o clarão das chamas iluminava o seu corpo grosso e atarracado, espargindo um resplendor de cobre no seu rosto rude e dando-lhe o aspecto duma grosseira figura de ferro incandescente, boa para ser forjada na sua própria bigorna.

À direita de John Inglefield havia um lugar vago. As outras cadeiras, muito apertadas à volta do fogo, estavam ocupadas pelos membros da família, muito silenciosos, enquanto suas sombras se projetavam na parede que lhes ficava atrás e dançavam alegremente.

O filho do quaker, que seguira o curso superior e era então estudante de teologia em Andover, também estava presente, assim como a irmã, mocinha de dezesseis anos, que lembrava bem, a quantos a olhassem, um fresco botão de rosa entreaberto. Também estava Robert Moore, antigo aprendiz do ferreiro, agora seu sócio, cujos traços enérgicos e viris contrastavam com os do pálido e escanifrado estudante.

O lugar à direita do velho quaker tinha sido deixado vazio em memória de sua mulher, falecida na última véspera de Natal. Com uma delicadeza de sentimentos verdadeiramente inesperada na casa de um rude ferreiro, o marido, muito compungido, colocara a cadeira da falecida no lugar de sempre, a seu lado, e de quando em quando deitava-lhe um olhar triste e interrogativo, como se perguntasse a si mesmo como era possível que a tumba fria não devolvesse a amada figura da desaparecida para alegria daquelas chamas, naquela suave noite de Natal.

Dessa forma, o velho quaker pensava com saudade e dor naquela que tão recentemente o havia deixado. Outra dor, porém, o consumia, e bem quisera ele arranca-la do coração, ou pelo menos do pensamento: uma perda pela qual ele não queria nem podia sofrer como pela primeira. É que outra pessoa da família também abandonara o lar desde o último Natal, mas para essa ele não tinha reservado o lugar com amorosa lembrança . . . Todavia, ela não tinha morrido. Enquanto John Inglefield se achava cercado da família à beira do fogo, que projetava na parede sombras fantásticas, ouviu-se a porta abrir e leves passos soaram no corredor.

O abrir da porta e o som dos passos eram tão familiares que ninguém se moveu. Uma moça entrou na sala, tirou o capote, colocou-o sobre a mesa, debaixo do espelho, e aproximou-se do círculo familiar, sentando-se na cadeira vazia como se estivesse preparada para ela.

– Pai! Aqui estou. Vocês jantaram sem mim, mas venho cear com vocês.

Era Prudence Inglefield. Usava o mesmo vestido singelo e elegante que outrora costumava pôr, de tarde, ao terminar os trabalhos de casa. Os cabelos lisos, divididos por uma simples risca, à moda das quakers, assentavam-lhe muito bem. Estava um pouco mais pálida que antes, mas a luz da lareira emprestava-lhe um belo tom rosado e saudável. Mesmo que tivesse passado todo o tempo de sua ausência num ambiente dissoluto, sua beleza não parecia ter sofrido o menor arranhão. Mudara tão pouco como se tivesse ausentado apenas uma hora e voltasse à casa paterna antes de consumida a lenha posta na lareira.

Parecia-se extraordinariamente com a mãe. Portanto, ao se sentar à direita do pai, este julgou ver sua delicada esposa, tal como a tinha amado, apaixonadamente, num remoto dia em que festejavam juntos a noite de Natal. Assim, apesar de seu caráter áspero, quase brutal, não conseguiu encontrar as duras palavras com que sempre pensara receber a filha rebelde. Não a abraçou, porém. Disse apenas:

– Seja bem-vinda a esta casa, Prudence. Sua mãe teria tido imensa alegria em vê-Ia; infelizmente morreu há quatro meses.

– Bem sei, pai, eu sei; e contudo, ao entrar aqui, meus olhos ficaram tão deslumbrados pela luz destas chamas que imaginei vê-Ia sentada ao seu lado.

Nesse instante, os demais membros da família, refeitos da surpresa, compreenderam que aquela que entrara tão imprevistamente não era um fantasma, nem uma imagem dos seus desejos e das suas saudades, mas a própria Prudence em carne e osso. Foi seu irmão,quem primeiramente a saudou, dirigindo-se a ela afetuosamente, apertando-lhe a mão, sem todavia pôr nesse gesto todo o calor fraterno, porque, embora sendo um bom coração, era um pastor e sabia que diante de si tinha uma pecadora.

– Felicito-me, minha irmã, por ver que a misericordiosa Providência aqui a trouxe a tempo de eu me despedir de você. Dentro de poucos dias devo embarcar para as ilhas do Pacífico, como missionário. Não tenho, portanto, certeza de tornar a vê-Ia… Ah!, possa eu encontrá-la além da morte! . .

Uma sombra toldou a fisionomia da moça.

– A sepultura é muito escura, meu irmão – respondeu ela, retirando apressadamente a mão que ele apertara. – Você tem de me ver pela última vez aqui, à luz destas chamas.

Entretanto, a irmã gêmea de Prudence, que com ela sempre tinha compartilhado trabalhos, alegrias e sonhos, levantou-se impelida pelo violento desejo de apertá-la carinhosamente contra o peito. Mas resistiu a esse natural movimento, temendo, envergonhada, que Prudence tivesse mudado demais para corresponder a essa demonstração de afeto, ou que a sua própria pureza parecesse uma severa censura para a moça rebelde. Contudo, ouvindo sua voz familiar, fitando bem as delicadas feições de seu rosto e a graça de seus gestos, esqueceu-se de tudo para só se lembrar de que ela tinha voltado e se atirar nos seus braços. Porém, no mesmo momento, Prudence levantou-se e agitou as mãos para contê-la num sinal de advertência.

– Não, Mary! Não, minha irmã! Não me toque! Não podemos nos abraçar.

Mary parou, trêmula, sentindo uma sombra mais espessa e mais fria que a morte interpor-se entre ela e a irmã, apesar de seu inesperado regresso ao lar, onde tinham vivido juntas quase toda a vida.

Prudence, entretanto, olhava para um lado e para outro, procurando com o olhar a única pessoa que ainda não lhe tinha dirigido a palavra. Esta, abandonando o seu lugar, fora para perto da porta e ali ficara, com o rosto virado, de maneira que, das suas feições, só se podia ver a deformada sombra na parede. Prudence, não obstante, reconheceu-o e chamou-o com voz meiga e alegre.

– Venha cá, Robert. Não quer apertar a mão de sua velha amiga?

Robert Moore, ainda por um instante, ficou imóvel. Mas seu orgulho e sua mágoa por fim cederam, e, encaminhando-se para a moça, tomou-lhe a mão e beijou-a.

– Ah!, Robert! – disse ela com tristeza, retirando a mão com vivacidade. – Não é necessária tanta efusão…

Todos se sentaram novamente em volta do fogo, e Prudence ocupou o lugar à direita do pai. Seu caráter era vivaz, terno e geralmente muito alegre, mas sua atitude e sua voz tinha tido sempre qualquer coisa de dramático que se misturava a todos os seus gestos e palavras. Desde a infância tinha compreendido que possuía a rara faculdade de impor a todos os que se aproximavam dela o seu humor do momento, e de espalhar em torno de si, como por magia, o seu estado de alma, triste ou alegre.

Assim havia sido nos seus dias de inocência, e assim ainda foi naquela memorável noite de Natal. Seus parentes, surpresos e encantados pela sua volta, quase haviam se esquecido de que ela os tinha abandonado e perdido o direito ao seu afeto. Talvez, pela manhã, à luz do sol, a olhassem com outros olhos; mas naquela noite de festa, à luz do fogo familiar, não sabiam senão que a sua querida Prudence tinha voltado e que todos lhes deviam estar agradecidos por isso.

A dura fisionomia do ferreiro parecia então luminosa de íntima e funda alegria. Por uma ou duas vezes, riu com um riso tão forte que, como outrora, fez tremer os vidros das janelas. Sentia-se surpreso da sua própria alegria. O sisudo pastor também desenrugou as sobrancelhas e pôs-se a troçar com o estudante. E Mary, por sua vez, esqueceu-se de que sua irmã gêmea tinha perdido a inocência que por tanto tempo lhes fora comum. Robert Moore fitava Prudence com os olhos brilhantes e envergonhados, tal como um tímido namorado. E a moça sorria de tal modo que ao mesmo tempo o animava e desalentava.

Aquela hora foi uma dessas ocasiões em que a tristeza mortal que há no fundo de todas as vidas se desvanece como uma sombra importuna, e só brilha uma alegria tanto mais deslumbrante e forte como leve e rápida.

Ao soarem onze horas no velho relógio, Prudence, inclinando-se sobre a lareira, pegou a caneca onde fervia o chá que seu pai tomava todas as noites e nela pôs um torrão de açúcar, como sempre o fizera.

– Deus a abençoe, minha filha – disse John Inglefield, aceitando a xícara. – A felicidade voltou ao seu velho pai. Mas… como sua mãe nos faz falta neste momento! Ah!, Prudence, como ela nos faz falta!

E após um silêncio, ajuntou:

– E, contudo, tenho a ilusão de que ela voltou…

– Voltou. . . – respondeu Prudence.

Pouco antes da meia-noite, as conversas cessaram. Era a hora do culto da família. Mary foi buscar a velha Bíblia, onde o pai ia ler o capítulo do nascimento. Mas, enquanto cada um se preparava para um recolhimento íntimo, viram que Prudence se levantava, punha o chapéu e o capote e se encaminhava para a porta.

– Prudence! Prudence! Aonde você vai? – gritaram todos, quase ao mesmo tempo.

Com a porta já aberta, ela virou-se, fazendo com a mão um gesto de adeus. Naquele instante, porém, sua fisionomia pareceu-lhes tão mudada, que eles mal a reconheciam. Era como se uma força diabólica lhe houvesse repentinamente deformado as feições, que uma paixão terrível inflamava. Um sorriso de triunfo, doloroso de se ver, dilatava-lhe os lábios.

– Minha filha! – gritou John Inglefield, pondo-se de pé. – Fique para seu pai abençoá-la, ou vá-se com sua maldição!

Prudence ficou lívida e olhou em torno. Dançavam nas paredes as sombras dos reflexos do fogo. Por um momento, ela pareceu lutar contra uma força demoníaca que a impedia de ser ela mesma, força que só podia vencer dentro do honrado lar paterno… Mas o Demônio venceu. Prudence desapareceu na noite. Todos correram para a porta, mas já nada viram. Só ouviam o som dos guizos dos cavalos que, lá longe, levavam o trenó sobre a neve endurecida.

Nessa mesma noite, entre as belas moças que enchiam o café-concerto da cidade próxima, havia uma cuja perversa alegria parecia incompatível com a doce e pura alegria da vida familiar. Era Prudence Inglefield. Sua rápida aparição no lar paterno, naquela noite de Natal, não tinha sido mais do que a materialização de um desses sonhos de candura que por vezes assaltam as almas mais miseráveis. Mas o mal, ai!, sabe prender os seus escravos. Convoca-os nas horas mais sagradas, nos mais santos momentos, quando as inocentes lembranças de felicidade pura talvez os fizessem voltar ao bem. E eles lhe obedecem.

Fonte:
http://www.gargantadaserpente.com

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Curso de Redação em Português (Parte Final)

Erros de construção

De acordo com Melo (1980, p.87), quando se redige cometem-se alguns erros que comprometem a qualidade do texto. Por exemplo: justificar-se por fazer uma má redação; pela pobreza de nosso vocabulário, por não conseguir dar conta da expressividade, por ter falsa simplicidade; dizer que vamos expor o próprio ponto de vista, por enfatizar o tema dizendo que é importante e muito polêmico. Outro problema é justificar o fato de que não sabe escrever, comunicar que na figura a ser exposta ou o objeto a ser descrito descrever é difícil apontar suas características. Ou para concluir a essência, fazer uma novela, história com início, meio e fim.

Segundo o autor, é necessário evitar “historinhas”; escolher e seguir um planejamento de “pergunta/resposta” de conversa geralmente sem propósito; dirigir a escrita para uma desgraça, com muito sangue, desespero, dor, lances de melodrama; não tomar posição, ficar em cima do muro, querer agradar a todos, e temer a desaprovação; aceitar como verdadeiro uma atitude de moral e palavras em geral, sentenciando a totalidade das coisas e a todas as pessoas, sem deixar espaço para pensar, respirar, digerir, escolher.

Apresentar esses problemas ao construir o texto não acrescenta nada à hora de desenvolver a redação, pelo contrário: atrapalha no desenvolvimento do texto.

Erros de argumentação

Muitas vezes o aluno começa bem o texto, porém comete erros de argumentação; isto é, erros de raciocínio ou provas empregadas para apoiar ou negar uma afirmação.

O discente tem que colocar atenção a cada momento de argumentar antes de passar seu texto a limpo. Os erros produzem-se por ignorância ou inexperiência da pessoa que argumenta. Em ocasiões, recorre-se a uma argumentação incorreta de forma consciente, com a intenção de convencer ao destinatário da mensagem por meios racionais.

No livro, Redação Inquieta, Bernardo (2000, p.95-103) menciona falhas de argumentação como: a confusão causa-efeito; o círculo vicioso; a estatística tendenciosa; a fuga do assunto.

A confusão causa/efeito consiste em estabelecer como causa de um fato que aconteceu imediatamente antes do tempo. Por exemplo: Meu pai encerrou o cachorro. Depois de poucos dias, tinha raiva o animal. Portanto, o encerramento é o que causou a raiva. Analisando a frase, a raiva é posta como efeito da causa “cachorro”. Ora, é ilógico afirmar que a conseqüência de encerrar o cachorro dê raiva.

O círculo vicioso consiste em fazer uma afirmação e defendê-la apresentando razões que significam o mesmo que a afirmação original, ou seja, duas proposições que carecem igualmente de prova. Por exemplo: o sal se dissolve porque é solúvel. Ou provar a origem do homem pelo intelecto divino e o intelecto divino pela origem do homem.

A estatística tendenciosa acontece quando um determinado tema é pesquisado sob a forma de tabela, apoiado num levantamento apressado de fatos. Com esse tipo de redação, o aluno quer terminar rápido e faz uma conclusão mal feita. Por exemplo: Carolina é medica e não fuma; os médicos não fumam.

Algumas cobras são venenosas, logo, todas o são.

O argumento autoritário é quando se apela para as palavras de uma pessoa famosa ou autoridade, ou seja, dá-se opinião e impressiona-se o opositor. Usam-se adjetivos violentos e covardes. Por exemplo: Como vais pôr em dúvida minhas palavras (diretora), se eu fui votada pela maioria dos professores?

A fuga do assunto é quando o discente faz uma frase e na seguinte se desvia da idéia.Por exemplo: a ciência é muito importante para humanidade, a história estuda o passado. Ou: o amor é a ferramenta do ser humano, a paixão é dolorosa.

A seguinte citação também pode ajudar:

Muitas vezes, distraídos, incorremos em erros imperdoáveis ao argumentar. Tais enganos podem anular o que tínhamos dito anteriormente. Uma frase infeliz pode derrubar um império!

Chamamos a atenção para as seguintes incorreções:
1. Confundir causa com conseqüência ou vice-versa;
2. Deduzir algo que não pode ser retirado daquele fato;
3. Atribuir uma frase a alguém que não seja o seu autor;
4. Fazer referência a um fato histórico de modo incorreto e/ou absurdo;
5. Deixar uma frase incompleta, interrompendo o raciocínio e introduzindo outro assunto (trate-se da figura denominada “Anacoluto”) (Melo, 1980, p.98).

Esta citação ajuda a reforçar as palavras de Bernardo; portanto, uma frase ou idéia mal elaborada pode acabar com o texto.

A gramática na redação

Sabe-se que quando se fala de redação estamos falando de uma combinação de frases, uma combinação de classes de palavras, por isso, é bom conversar com os alunos sobre o porquê eles têm que aprender gramática na hora de redigir.

O professor é referência no momento de explicar a gramática na redação, pois a gramática é o caminho para escrever certo. A citação de Bernardo nos mostra isso:

O que importa é ter sempre muito claro que faz parte do escrever bem fazê-lo respeitando escrupulosamente o código. Isto deve ser lembrado aos alunos, o tempo todo, de muitas maneiras e por todos os professores. Se todos ensinamos a ler, a escrever e a raciocinar, parece óbvio que todos devemos ensinar a língua portuguesa, preocupando-nos em mostrar o certo e corrigir o errado […]. (BERNARDO, 2000, p.36)

Para escrever um texto, o aluno precisa saber a gramática e isso deve ser lembrado por todos os educadores.

A escola deve preparar o aluno para a “vida”, e se o educando pergunta “para que me serve aprender língua portuguesa?”, a resposta está em Almeida (1984, p.10) “se você não souber falar e escrever direito, corretamente, você não arranja um bom emprego, não consegue passar num concurso, nem uma boa colocação…“. A gramática serve sim, para elevar a auto-estima do aluno, e ele se sentirá bem com essa resposta.

Porém, se pensarmos na prática da produção de texto como uma forma criativa, quem tem a resposta é Possenti:

[…] Para se ter uma idéia do que significaria escrever como trabalho, ou significativamente, ou como se escreve de fato “na vida”. Basta que verifiquemos como escrevem os que escrevem: escritores, jornalistas. Eles não fazem redações. Eles pesquisam, vão à rua, ouvem os outros, e lêem arquivos, lêem outros livros. Só depois escrevem, e lêem e relêem, e depois reescrevem, e mostram para colegas ou chefes, ouvem suas opiniões, e depois reescrevem de novo. A escola pode muito bem agir dessa forma… […] (POSSENTI, 1996, p. 49)

O professor deve ser criativo na sala de aula, porque se os escritores e jornalistas fazem isso, por que os alunos não podem?

O professor e os alunos escolhem um tema para redigir, depois o professor pede a eles que pesquisem em livros, Internet, pessoas que possam ajudar no assunto. Só depois o mestre corrige. Isso seria fantástico!

Porém, apesar de a gramática dar um rumo importante para o estudante, a triste realidade muitas vezes é outra, pois muitos alunos passam fome e o educador, sem se importar com essa realidade, ensinam classes de palavras ou análise sintática, assuntos que não chamam a atenção de uma criança ou jovem que passa por dificuldades. Por isso, o educador precisa ser sensível e conhecer a turma e sua realidade antes dos alunos estudarem a língua portuguesa.

Agora, como se sabe que a gramática é o “conjunto de regras”, e que é preciso segui-las, caso o aluno não aprenda e erre no momento de escrever, o educador terá paciência, já que erro é quando se sai de tais regras. Como expressa Possenti (1996, p. 78), “erro é tudo aquilo que foge à variedade que foi eleita como exemplo de boa linguagem“. Para que não haja equívocos, o educando deve estar consciente de como corrigir, para não deixar o aluno constrangido.

Explicar para o estudante que errar é bom, mas acertar é melhor. Um exemplo de uma aula de português é a partir de uma frase, como escreve Possenti (1996, p.91), “uma aula de gramática seria partir de uma construção e dizer a mesma coisa de todas as formas que se puder obter, alterando o ponto de vista, ou seja, alterando a estrutura da frase sem alterar radicalmente seu sentido“. Essa é uma forma de como trabalhar a gramática através de estruturas de frases, da qual muitos alunos iriam gostar.

Para tanto, o mestre tem que ser criativo, por exemplo:

A noite, naquele fim de mundo, cai pesadamente.
Naquele fim de mundo, a noite cai pesadamente.
A noite, pesadamente, cai naquele fim de mundo.
Pesadamente, naquele fim de mundo, a noite cai.

O vento, em movimentos bruscos, assovia agressivamente.
Em movimentos bruscos, o vento assovia agressivamente.
O vento, agressivamente, assovia em movimentos bruscos.
Agressivamente, em movimentos bruscos, o vento assovia.

O guarda tratou o garoto com ironia.
O guarda tratou-o ironicamente.

Se Deus quiser, dará uma de suas bolas ao menino.
Se Deus quisesse, daria uma de suas bolas ao menino.

A mãe pensou: se eu o ameaçar, ele pára de chorar.
A mãe pensou que, se ela o ameaçasse, ele pararia de chorar.

Considerações Finais

Em virtude dos fatos mencionados, a construção de textos criativos e a pré-escrita ajudará o discente a ter confiança de que vai elaborar uma boa redação, pois o ato de escrever o fará pensar sobre si mesmo e também na construção de idéias.

É bom saber técnicas, mas o mais importante é elevar a auto-estima dos educandos, posto que se a pessoa se sente capaz de escrever, escreve.

O mestre precisa desenvolver um grau de motivação para despertar o interesse no gosto de redigir, explicando para o estudante todos os passos necessários para a construção de textos bem elaborados. Outro ponto a considerar é que para fazer uma produção textual não tem como escapar da gramática, porque ela torna compreensível o texto.

E se o aluno comete erros? Vimos que, segundo alguns lingüistas como Sírio Possenti e Gustavo Bernardo, que o papel do professor é ajudar a corrigir e reconstruir a expressão ou palavra em que o aluno se equivocou. Desse modo, o educando se sentirá realizado.

Se o aluno tem consciência de sua redação, ele faz uma revisão dos possíveis erros, o que auxiliará ao professor ter menos trabalho na hora de corrigir; o mestre se sentirá orgulhoso de seu aluno.

Espero que este trabalho sirva para os professores e estudantes, pois minha intenção foi colaborar com aqueles que se interessam pelo ensino da língua. Entretanto, deixo em aberto a possibilidade para novos questionamentos e propostas para novas pesquisas.

Fontes:
Autor: Gonzalo Pérez Publicação: 23/06/06
http://www.mailxmail.com/curso/idiomas/redaportugues/
http://gattors.blogspot.com/ (figura)

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Mika Waltari (1908 – 1979)

Mika Waltari (19 de Setembro de 1908 – 26 de agosto de 1979) foi um escritor da Finlândia.
Escreveu vários livros, dentre os quais “O egípcio”, que foi o mais conhecido (“Sinuhe egyptiläinen” em finlandês).

História

Waltari nasceu em Helsinki, capital da Finlândia e perdeu seu pai, um pastor luterano, quando tinha 5 anos. Na sua infância, presenciou a Guerra Civil Finlandesa na cidade. Na juventude, entrou na Universidade de Helsinki para estudar teologia, de acordo com os desejos da mãe, mas logo abandonou a teologia pela filosofia e literatura, graduando-se em 1929.

Enquanto estudava, contribuía para artigos em revistas e escrevia poesias e contos, sendo seu primeiro livro publicado em 1925.

Em 1927 foi para Parais onde escreveu um de seus maiores romances, “A grande ilusão”, uma história de vida boêmia. Esta obra, em termos de estilo, é considerada o equivalente finlandês de trabalhos de escritores norte-americanos da Geração Perdida.

Waltari também foi membro de um movimento liberal de literatura chamado Tulenkantajat, até que sua visão política e social mudou mais tarde para ultra-conservadora. Casou em 1931 e teve uma filha, Satu, que também se tornou escritora.

Durante as décadas de 1930 e 1940, Waltari trabalhou bastante como a jornalista e crítico, escrevendo por um grande número de jornais e revistas e viajando por toda a Europa. Também foi diretor da revista “Suomen Kuvalehti”.

Ao mesmo tempo, continuou escrevendo livros de vários gêneros, movendo-se facilmente de um estilo literário para outro.

Em 1945 foi publicada o seu primeiro e mais bem sucedido romance histórico, “O egípcio”, que falava sobre a corrupção e valores humanos num mundo materialista justamente depois da Segunda Guerra Mundial. O livro se tornou um best-seller internacional, servindo de base para um filme de Hollywood do mesmo nome.

Waltari escreveu outras sete obras históricas, ambientadas em várias culturas antias, como por exemplo “The dark angel”, ambientada durante a queda de Constantinopla em 1453 e provavelmente sua melhor obra.

Nestas obras, Waltari dava bastante destaque ao seu pessimismo e também em duas histórias ambientadas no Império Romano, à sua convicção cristã. Ele se tornou membro da Academia Finlandesa em 1957 e recebeu título de doutor honorável em 1970 pela Universidade de Turku.

Waltari foi um dos mais prolíficos escritores da Finlândia. Foi o mais conhecido escritor finlandês e seus trabalhos foram traduzidos para mais de 40 idiomas.

Principais Obras
• A Stranger Came to the Farm (Vieras mies tuli taloon, 1937)
• O egípcio (Sinuhe egyptiläinen, 1945)
• The Adventurer (Mikael Karvajalka, 1948)
• A Nail Merchant Nightfall (Neljä päivänlaskua, 1949)
• The Wanderer (Mikael Hakim, 1949)
• The Dark Angel (Johannes Angelos, 1952)
• The Etruscan (Turms kuolematon, 1955)
• The Secret of the Kingdom (Valtakunnan salaisuus, 1959)
• The Roman (Ihmiskunnan viholliset, 1964)
• Moonscape (Kuun maisema, 1953)
• The Tree of Dreams (Koiranheisipuu, 1961)

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mika_Waltari
http://www.aleksiskivi-kansalliskirjailija.fi

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Mika Waltari (O Egípcio)

“O egípcio” é o nome de um romance do finlandês Mika Waltari.

Escrito em 1945, o livro conta a jornada de um médico egípcio que. abandonado quando criança foi criado por pais adotivos.

Para compor o personagem central de seu romance, Mika Waltari valeu-se de uma das obras mais populares da literatura do Antigo Egito, “Aventuras de Sinué”, um funcionário da corte que teria vivido no tempo dos faraós da XII Dinastia, e cujos relatos de viagem nos fornecem a mais antiga descrição que possuímos sobre a Síria-Palestina. Mas tanto o romance quanto o filme, transferem o enredo para a XVIII Dinastia, particularmente para a época do Faraó Amenhotep IV.

Contada em flashback, a história do Sinhue começa com uma criança dentro de um cesto posto à deriva nas águas do Nilo, sendo encontrada e criada por um médico pobre (Senmut). Seguindo os passos do pai adotivo, Sinhue irá se tornar também um médico.

Anos mais tarde, o jovem, competente, idealista e pobre médico, esbarra em sua grande oportunidade: ele e seu atlético amigo, Horemheb, salvam a vida de um homem solitário, que contrito na adoração do sol, expunha-se ao ataque de um leão. O homem é nada mais, nada menos, do que o recém-entronizado faraó do Egito, Amenhotep IV. O sacrilégio de terem tocado com suas mãos o corpo do “deus-vivo”, poderia representar a morte para os dois amigos, mas, para sua surpresa, eles são recompensados pelo monarca agradecido: Sinhue torna-se médico da corte e Horemheb oficial dos exércitos reais.

É na boa vida palaciana que o médico conhece a babilônica Nefer – que gosta de ser chamada de “Nefer-Nefer-Nefer” (3 vezes bela) -, uma ardilosa cortesã de luxo, capaz de inspirar ardentes e desastrosas paixões nos homens a quem seduz. Para gozar de algumas poucas horas de prazer no leito de Nefer, Sinhue mendiga, rasteja e dissipa todos os bens que possui, incluindo a sepultura de seus pais (sem a qual, ao morrerem, não poderão ingressar na Eternidade). Negligencia de seus deveres médicos e acaba na sarjeta, quando já nada mais possui que possa oferecer à cortesã.

Sinhue deixa o Egito e passa anos vagando por terras estrangeiras, onde seu talento de médico é reconhecido e ele extrai, de culturas diferentes da sua, muitas e proveitosas experiências. Esse tempo no exterior (inclusive na Síria-Palestina) constitui a maior parte do romance de Waltari, mas o filme de Curtis lhe dedica apenas alguns escassos minutos de projeção.

De volta à terra natal, Sinhue encontra um Egito em pleno estado de Guerra Civil. O faraó Amenhotep IV, que agora se chama Akhenaton, promoveu uma revolução religiosa no país, implantando o culto monoteísta de veneração ao “disco solar” (Aton) e decretando a ilegalidade de todos os demais deuses. No meio desse conflito, o médico acaba perdendo a mulher que o ama, Merit, e seu filho, Toth, e acaba seus dias em uma ilha remota, exilado por ordem do ex-amigo, Horemheb, que se torna rei e sufoca o projeto monoteista.

Além disso, esse livro coloca fatos reais e fictícios interagindo juntos, por exemplo, a sucessão dos faraós é feita conforme a história, mas a aventura do personagem principal é fictícia.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org

http://www.planetanews.com

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Mary Shelley (1797 – 1851)

Mary Wollstonecraft Shelley (Londres, 30 de agosto de 1797 – idem, 1 de fevereiro de 1851), mais conhecida por Mary Shelley foi uma escritora britânica, filha do filósofo William Godwin e da pedagoga e escritora Mary Wollstonecraft. Casou-se com o poeta Percy Bysshe Shelley em 1816, depois do suicídio da primeira esposa.

Seu pai, William Godwin, influenciou toda a geração de 1790, com algumas idéias que pediu emprestado a Rousseau e que nunca se lembrou de devolver. Sua mãe, Mary Wollstonecraft (ou seja, a avó de Frankenstein), foi uma das primeiras feministas da História, autora de uma famosa Declaração dos direitos da mulher, e só não queimou espartilhos em praça pública porque tinha vergonha de sair exibindo suas peças íntimas pela rua. Ela morreu quando Mary nasceu, em 1797, e o velho Godwin, depois de percorrer em vão terras distantes em busca de uma noiva, acabou se casando com uma vizinha, a Sra. Clairmont, a qual o viu na janela e o laçou com a seguinte cantada: “Será possível que eu esteja a contemplar o imortal Godwin?” O que era apenas uma força de expressão porque, embora célebre, Godwin já estava naquele tempo mais para moribundo do que para imortal. Seja como for, ela ainda lhe deu outra filha, Jane, que viria a ser a amante de Lord Byron.

Em 1811, logo após ser expulso de Oxford, Shelley se casara com Harriet Westbrook, uma dondoca londrina. Ele com 19, ela com 16. O casamento foi um fracasso desde o começo, porque Harriet achava Shakespeare muito mais poeta do que Shelley, e escolhia os momentos mais impróprios para lhe dizer isto. Esta brincadeira durou três anos — até Shelley ser introduzido na casa de Godwin. As testemunhas afirmam que foi amor à primeira vista: Shelley olhou para Mary, que olhou para Shelley, que foi examinado dos pés à cabeça por Godwin, o qual não gostou nada da história. Mas Shelley puxou um revólver, e Godwin, que sempre pregara o primado da razão sobre todas as coisas, preferiu não discutir. Shelley e Mary zarparam em ilícita lua-de-mel para Paris, com a Sra. Godwin nos calcanhares. Despistaram-na na Suíça, onde Mary botou Frankenstein para dormir, e pularam grandes carnavais em Veneza, na companhia de Lord Byron, entre outros nudistas e vegetarianos. Já então Byron estava de amores com Jane Clairmont, a outra filha de Godwin — e este, mais do que nunca, sabia agora por que Platão não admitia poetas na sua República.

Dois anos depois, Harriet, a primeira mulher de Shelley, foi encontrada morta, boiando num rio. Shelley apresentou vários álibis diferentes, todos perfeitos, e pôde finalmente se casar com Mary, para grande satisfação de Godwin, que nunca aplicou na prática as suas teorias sobre o amor livre. E só não se pode dizer que foram felizes para sempre porque Shelley, que já havia driblado várias gripes (dessas mortais em poetas), acabou morrendo em 1822, aos 30 anos, naufragando nas costas da Itália a bordo de um veleiro chamado Don Juan. O corpo de Shelley foi jogado à praia, em Viareggio, ali ficando enterrado pelo vento e areia durante mais de um mês. Pouco antes, Aleggra, a filha de Byron e Jane, também morrera de tifo. E daí a dois anos seria a vez do próprio Byron. Mary ficou sozinha, com seus fantasmas, para contar a história. O que teve tempo de sobra para fazer, pois só morreu em 1851, aos 54 anos, e mesmo assim de tédio — um recorde, na época.

Mas não se pense que toda a vida de Mary Shelley tenha sido um romance gótico, com seqüestros, amantes no armário, acessos de tosse e baratos de ópio. Foi também muita cultura, muita filosofia. Frankenstein, apesar de todos os sustos, era um livro sério quando foi escrito, e só começou a perder a seriedade quando os leitores também começaram a perder a inocência. (Parece que agora começaram a recuperá-la.) Frankenstein é um coquetel das idéias de Rousseau, através de Godwin, da mitologia grega e de preocupações religiosas — tudo isto com uma cereja gótica por cima. Está cheio de implicações metafísicas sobre Deus e o homem, e, principalmente, daquelas conotações sociais vigentes em 1818 — como, por exemplo, se era mesmo o pecado original o responsável pelas mazelas humanas, ou se o homem nascia bom e era a sociedade que o corrompia. A segunda hipótese, na qual Mary apostava timidamente, já estava ganhando por vários corpos de frente, mas ninguém se atrevia a botar a mão no fogo.

O fogo que Prometeu roubou de Zeus para levar aos homens também é um dos motivos subjacentes em Frankenstein. Zeus, o profeta do óbvio, achava que os homens ainda não eram bastante sábios para possuir o fogo, porque do fogo se fundem os metais, e dos metais tanto pode surgir a civilização, como podem ser fabricadas as armas que significam a guerra e a destruição. No fundo, apenas uma maneira diferente de contestar a fábula do pecado original, e de insinuar que não há nada como uma boa sociedade injusta para estragar um produto perfeito na origem, ou seja, o homem. Esta é simplesmente a história de Frankenstein e, não por coincidência, o título completo do livro de Mary Shelley é Frankenstein, ou o moderno Prometeu. Eu só queria saber se ela estava pensando em tudo isto ao escrever a sua historinha de terror, ou se foram os críticos que, habituados a extrair sangue de pedra, descobriram essas implicações. Nenhuma dúvida. Se os críticos tivessem tanta imaginação, estariam escrevendo os romances que criticam.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
http://www.digestivocultural.com/

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Mary Shelley (Frankenstein)

Frankenstein ou o Moderno Prometeu (Frankenstein; or the Modern Prometheus, no original em inglês), mais conhecido simplesmente por Frankenstein, é um romance de terror gótico com inspirações do movimento romântico, de autoria de Mary Shelley, escritora britânica nascida em Londres. O romance relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório. Mary Shelley escreveu a história quando tinha apenas 19 anos, entre 1816 e 1817, e a obra foi primeiramente publicada em 1818, sem crédito para a autora na primeira edição. Atualmente costuma-se considerar a versão revisada da terceira edição do livro, publicada em 1831, como a definitiva.

O romance obteve grande sucesso e gerou todo um novo gênero de horror, tendo grande influência na literatura e cultura popular ocidental.

Enredo

Ao contrário de Drácula — aquele seu colega de repartição que vivia se gabando dos antepassados hunos, vikings, saxões e magiares —, o ser criado pelo cientista Victor Frankenstein num laboratório em Ingolstadt não tinha história. Sua dinastia começava com ele. Tudo teve início quando Frankenstein se decidiu a aplicar alguns conhecimentos teóricos de fisiologia e filosofia natural, a fim de descobrir se o princípio que animava a estrutura do corpo humano sobrevivia, depois que o indivíduo baixava os sete palmos. Revoltava-o a corrupção da matéria inanimada e o fato de que “o verme era o herdeiro das maravilhas de um olho ou de um cérebro”. Incentivado por uma série de pesquisas prévias, Frankenstein pôs-se enfim ao trabalho de criar um ente, a partir de materiais roubados em túmulos, casas funerárias e laboratórios de dissecação.

O trabalho não era fácil: ele teria não só que dar animação à matéria, como preparar toda uma estrutura para recebê-la, com seus complexos de fibras, músculos e veias. Para que o leitor não dormisse nos primeiros capítulos, Mary Shelley omitiu a maior parte dos processos científicos que Frankenstein teria usado para levar adiante o projeto. A própria necessidade de violar sepulturas e dissecar cadáveres é apenas sugerida pela narrativa: os mais mórbidos podem suspeitar da origem do material pelas constantes exclamações de asco do cientista ao lidar com ele.

Como a extrema minúcia da mais insignificante das partes do organismo lhe trazia grandes dificuldades, Frankenstein resolveu o problema criando um indivíduo de estatura gigantesca, cerca de dois metros e meio. O tempo gasto na criação é medido na narrativa pelas estações se alternando, enquanto Frankenstein trabalha em seu laboratório, isolado do resto da casa. Dois anos, a obra-prima fica pronta, e Frankenstein, encontrando os óculos que perdera no inverno passado, pode finalmente contemplar o resultado do seu trabalho. E, naturalmente, fica horrorizado com a aparência física da sua criação: olhos aquosos e amarelados, pele enrugada, beiços retos e negros, estatura descomunal, membros desproporcionados. (Pitanguy já deu jeito em coisa pior.) O insano entusiasmo com que Frankenstein se entregara ao trabalho é agora superado por um súbito acesso de náusea e lucidez. Seguem-se várias considerações filosóficas sobre o Direito da Criação, não faltando sequer uma carapuça para a criação divina. Enquanto isto, Frankenstein foge apavorado e o monstro se evade.

Em seu espontâneo exílio, Frankenstein pode finalmente se entregar às delícias de uma tensão nervosa e passa vários meses em recuperação. Nunca mais ouve falar no monstro. Anos depois, regressa a Genebra, onde vive sua família, e fica sabendo da morte de seu irmão caçula, William, estrangulado por mãos poderosas. Sua irmã de criação, Justine, é acusada do crime e executada. Frankenstein sabe que o monstro é o responsável e começa a se torturar por ter criado um ser que já lhe provocou duas mortes na família. Sai então à procura do monstro e o localiza escondido bem no finalzinho de um capítulo.

A partir daí, grande parte do relato é ocupado pelo ogro, que descreve ao cientista todo o seu itinerário, desde a fuga do laboratório. Conta como se refugiou nos arredores do casebre de uma família francesa refugiada e, pela constante observação, aprendera-lhe os costumes, além daquilo que para ele era o mais importante: a linguagem. Imitando os sons humanos e conferindo-lhes significado, exatamente como um personagem de Vila Sésamo, ele era agora capaz de se comunicar sem mais grilos. Narra então a clássica cena: ao mirar-se no regato, constatou que sua aparência era monstruosamente diferente dos demais seres que observara. Depois, aprenderia noções elementares sobre a propriedade, os direitos e o reconhecimento social. Progressivamente foi ganhando consciência de que era um pária, sem passado e sem futuro, sem posses e com uma aparência física que o tornaria rejeitado por quantos de quem se aproximasse. Um dia, aguardou que o velho cego ficasse a sós no casebre e apresentou-se a ele como um viajante em busca de acolhida. Mas, no exato momento em que o velho ia oferecer-lhe o cafezinho, os demais membros da família chegaram, agrediram-no e o expulsaram como se ele fosse um monstro. Completamente só e já sem esperanças de ser integrado ao convívio humano, a criatura passa a detestar seu criador e procura localizá-lo, o que consegue através dos documentos no bolso das calças de pescar siri que roubara no laboratório. Finalmente em Genebra, descobrira uma criança no bosque e, ao saber que se tratava do irmão caçula de Frankenstein, estrangulara-a.

Mary Shelley chega agora à melhor parte da história: o monstro exige que Frankenstein lhe construa uma fêmea, tão abominável na aparência quanto ele, a fim de não ficar sozinho. Promete retirar-se com ela para locais que o homem não possa alcançar, mas Frankenstein recusa-se a duplicar o mal que já havia cometido. Sob as ameaças de destruição de toda a sua família, no entanto, Frankenstein é obrigado a concordar. O monstro o adverte de que o seguirá o tempo todo, para acompanhar o trabalho e certificar-se de que não ficará um único parafuso solto na sua companheira.

De volta ao laboratório em Ingolstadt, Frankenstein ainda hesita em repetir o processo, pensando que também a fêmea poderia voltar-se contra o seu companheiro, repelindo um pacto anterior à sua criação e preferindo a beleza superior (não muito) do homem. Ou poderiam igualmente unir-se e começar a produzir ogres em série, como os da família Kennedy. Mas, sentindo o halo da presença da criatura, Frankenstein volta ao trabalho. Certa noite, com este já bastante adiantado, o cientista percebe o olhar do monstro espreitando pela vidraça, e, impulsivamente, destrói o material inanimado que viria a ser a fêmea. Não ficou uma costela inteira. Revoltado, o monstro lhe jura eterno ódio e a toda a humanidade.

O resto da narrativa é uma sucessão de mortes, com o monstro eliminando um por um todos os membros da família de Frankenstein, inclusive a sua noiva, em plena noite de núpcias. O clímax só acontece quando Frankenstein parte em perseguição à criatura, entre as geleiras do mar do Norte, aonde viria a morrer. O monstro lhe aparece pela última vez, mas já o encontra sem vida. Anuncia então que irá atingir a extremidade mais setentrional do globo para deitar-se numa pira funerária, cujas chamas destruirão de vez a carne de segunda com a qual foi criado. Mas atenção: nada faz garantir que ele tenha morrido, nem o leitor assiste ao seu fim. Mary Shelley esqueceu a porta aberta e deve ter sido por ela que saíram os monstros que andaram assombrando os críticos de cinema nos anos 50. Enfim, ainda sobrou muito material, não apenas para vários filmes em 3-D, como para diversas tragédias gregas e comédias de televisão.

Por falar em gregos, outro personagem da lenda de Prometeu capaz de ser localizado em Frankenstein é Pandora, aquela que Zeus teria enviado aos homens, depois que eles se apoderaram irreversivelmente do fogo. A idéia de Zeus era a de que Pandora, com a sua caixinha de maldades e armadilhas, seria “o preço do fogo”. Mais ou menos como o monstro, ao exigir que Frankenstein lhe construísse uma fêmea, como o preço pela sua própria existência. No fundo, o que Zeus queria era fornecer aos homens os motivos para se exterminarem, agora que tinham os meios para isso, e, depois de limpa a área, criar uma humanidade novinha em folha.

Frankenstein, que já havia lido Ésquilo e Hesíodo, não foi na conversa do monstro. Enfim, a se acreditar na história da pira funerária, o fogo de Prometeu até que acabou servindo para alguma coisa.

Claro que Frankenstein sempre foi um livro muito divertido. Por isso, até pouco tempo, ninguém tinha se interessado em levá-lo a sério. Mas, assim como há livros que são salvos pelos leitores, o de Mary Shelley foi salvo pelo cinema. Foram aquelas versões horrendas com Boris Karloff, Lon Chaney Jr. e outros que, por comparação, transformaram o livro numa obra de “arte”, e fizeram com que o público fosse procurar nele os sustos que os filmes transformaram em gargalhadas. (Vide, na versão de 1932, com Karloff, a seqüência à beira do lago, em que a garotinha oferece flores ao monstro e este fica sem saber se a afoga ou se lhe serve de baby-sitter.)

Aliás, o cinema tem sido responsável por vários desvios à interpretação correta do monstro. Para começar, não é verdade que ele tivesse um parafuso no pescoço. O parafuso só apareceu quando os maquiladores da Universal precisaram de alguma coisa para fixar a máscara sobre os ombros de Boris Karloff — cuja carantonha foi registrada sob copyright, certamente para impedir que José Mojica Marins viesse a lançar mão dela. Além disso, os filmes nunca deram a devida atenção aos bons sentimentos do monstro. Sempre o apresentaram como uma múmia ou vampiro vulgar, e nem levaram em conta a sua condição de underdog social, sem direito a greve ou sindicato.

Mary Shelley não foi a primeira a ter a idéia do boneco animado. O folclore judeu, algumas passagens da Bíblia e as lendas medievais estão cheios dessas histórias. Talvez ela tenha sido a primeira a usar o golem para fazer crítica social. A partir daí, as histórias de golens ficaram tão freqüentes na literatura gótica quanto as de fadas na literatura infantil. Os golens hoje andam tão fora de moda quanto as fadas, porque os romancistas descobriram bonecos de carne e osso mais adaptáveis à realidade — embora ainda não tenham achado substitutos para as bruxas.

Origens

Em 1815 o Monte Tambora na ilha de Sumbawa, na atual Indonésia, entrou em erupção. Como conseqüência, um milhão e meio de toneladas de poeira foram lançadas na atmosfera, bloqueando a luz solar, deixando o ano de 1816 sem verão no hemisfério norte.

Neste ano, Mary Shelley, então com 19 anos e ainda com o nome de solteira Mary Wollstonecraft Godwin, e seu futuro marido, Percy Bysshe Shelley, foram passar o verão a beira do Lago Léman, onde também se encontrava o amigo e escritor Lord Byron. Forçados a ficar confinados por vários dias em ambiente fechado pelo clima hostil anormal para a época e local, os três e mais outro hóspede, o também escritor John Polidori, passavam o tempo lendo uns para os outros historias de horror, principalmente histórias de fantasmas alemãs traduzidas para o francês.

Eventualmente Lord Byron propôs que os quatro escrevessem, cada um, uma história de fantasmas. Byron escreveu um conto que usaria em parte mais tarde na conclusão de seu poema Mazzepa. Inspirado por outro fragmento de história de Byron desta época, Polidori mais tarde escreveria o romance “O Vampiro”, que seria a primeira história ocidental contendo o vampiro como conhecemos hoje, e que décadas depois inspiraria Bram Stoker no seu Drácula. Porém, passados vários dias, Mary Shelley ainda não conseguira criar uma história. Eventualmente ela veio a ter uma visão sobre um estudante dando vida a uma criatura. Essa visão tornou-se a base da história de Frankenstein, a qual Mary Shelley veio a desenvolver em um romance, encorajada pelo seu futuro marido.

Desta forma, é curioso notar que o Frankenstein e o Vampiro vieram a ter sua gênese literária na mesma ocasião.

Shelley relatou sua versão da gênese da história no prefácio à terceira edição de seu romance.

O nome da criatura

Embora a cultura popular tenha associado o nome Frankenstein à criatura, esta não é nomeada por Mary Shelley. Ela é referida como “criatura”, “monstro”, “demônio”, “desgraçado” por seu criador. Após o lançamento do filme Frankenstein em 1933 o público passou a chamar assim a criatura. Isso foi adotado mais tarde em outros filmes. Alguns argumentam que o monstro é de certa forma, um “filho” de Victor, e, portanto pode ser chamado pelo mesmo sobrenome.

Frankenstein é o antigo nome de uma antiga cidade na Silésia, local de origem da família Frankenstein. Mary Shelley teria conhecido um membro desta família, o que possivelmente influenciou sua criação.

Edições

Mary Shelley completou o romance em 1817 e Frankenstein ou o moderno Prometeu foi publicado em 1 de janeiro de 1818 por uma pequena editora de Londres, a Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones, após ter sido rejeitada por duas outras editoras. A publicação não continha o nome da autora, somente um prefácio escrito por Percy Bysshe Shelley, seu noivo, e uma dedicatória a William Godwin, seu pai. A primeira edição foi feita em três volumes e teve impressas somente 500 cópias.

Apesar das críticas desfavoráveis, a edição teve um sucesso de público quase imediato. Ficou bastante conhecida, principalmente através de adaptações para o teatro e a obra foi traduzida para o francês. A segunda edição de Frankenstein foi publicada em 11 de agosto de 1823 em dois volumes, desta vez com o crédito como autora para Mary Shelley.

Em 31 de outubro a editora Henry Colburn & Richard Bentley lançou a primeira edição popular em um volume. Esta edição foi significativamente revisada por Mary Shelley, e continha um novo e longo prefácio escrito por ela, relatando a gênese da história. Esta edição é a mais conhecida e mais usada como base para traduções.

Temas

Frankenstein aborda diversos temas ao longo do texto, sendo o mais gritante a relação de criatura e criador, com óbvias implicações religiosas. Uma influência notável na obra é o poema Paraíso Perdido de John Milton, que aborda a criação do homem e sua subseqüente queda. A influência torna-se explícita tanto através da epígrafe que cita três versos do poema, quanto aparecendo diretamente em Frankenstein: é um dos livros que a criatura lê.

A queda, ou a ruína, está bastante presente no livro de Shelley, que traça a destruição física e moral de Victor Frankenstein, e é aludida não só nas citações de Paraíso Perdido, como no próprio título da obra: O Moderno Prometeu. Prometeu é um personagem da mitologia grega, um titã que, ao roubar o segredo do fogo, o qual era reservado aos deuses, para doá-lo a humanidade, é severamente punido por Zeus. O paralelo com a trajetória de Victor Frankenstein é direto, e o livro deixa claro que o segredo da criação da vida a partir de matéria inanimada é de natureza divina.

O poder exercido pela humanidade sobre a Natureza através da ciência e da tecnologia é outro tema principal da obra, e encaixa-se no espírito da época, o estágio inicial da Revolução Industrial.

Outros temas são abordados com menos ênfase. A amizade verdadeira é tratada, com o Capitão Walton desejando tornar-se amigo de Victor, e Victor elaborando sobre ela ao se referir a sua amizade com Clerval.

Preconceito, ingratidão e injustiça também estão presentes. A criatura é sempre julgada por sua aparência, e agredida antes de ter uma chance de se defender. Em um episódio, o monstro salva uma garotinha inconsciente e, ao tentar devolvê-la para seu pai, é baleado e acusado de tê-la agredido. A inveja também aparece, ao subverter os bons sentimentos iniciais do monstro.

A expressão do sublime através da grandiosidade da Natureza é um tema caro ao Romantismo, e aparece em Frankenstein nas descrições das grandes planícies de gelo e das paisagens da Europa.

Por fim, a inevitabilidade do destino, tema muito desenvolvido na literatura clássica, é constantemente aludida ao longo do romance, que é uma obra que se presta a múltiplas interpretações e leituras.

Adaptações

O romance foi primeiramente adaptado para o teatro, e posteriormente para um grande número de mídias, incluindo rádio, televisão e cinema, além de quadrinhos.

A primeira adaptação para o cinema foi feita pelos Edison Studios em 1910. Foi produzida por Thomas Edison e trazia Charles Ogle no papel da criatura. Uma das mais famosas transposições do romance para as telas é a realizada em 1931 pela Universal Pictures, dirigida por James Whale, com Boris Karloff como o Monstro (veja a entrada na IMDb). Esta adaptação deu a aparência mais conhecida do monstro, com uma cabeça chata, parafusos no pescoço e movimentos pesados e desajeitados (apesar do livro descrever a criatura como extremamente ágil). Este filme tornou-se um clássico do cinema. Um grande número de continuações seguiram-se, mas desta vez divergindo bastante da história narrada no romance.

Em 1994 foi lançada uma adaptação cinematográfica dirigida por Kenneth Branagh de nome Mary Shelley’s Frankenstein (veja a entrada IMDb), com o próprio Branagh no papel de Victor Frankenstein, Robert De Niro como a criatura e Helena Bonham Carter como Elizabeth. Apesar de o título sugerir uma adaptação fiel, o filme toma uma série de liberdades com a história original.

As representações do Monstro e sua história têm variado bastante, de uma simples máquina de matar sem capacidade de reflexão a uma criatura trágica e plenamente articulada, o que seria mais próximo do retratado no livro.

O romance Frankenstein ainda serviu como inspiração para o filme Edward Mãos de Tesoura (1990), de Tim Burton.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org
http://www.digestivocultural.com/

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Daniel Defoe (1660 – 1731)

Romancista inglês nascido em Londres, considerado um precursor do romance realista inglês e do jornalismo moderno. Filho de um pequeno comerciante e membro de uma família dissidente da Igreja Anglicana e, tentou preparar-se para seguir a carreira eclesiástica, mas devido a uma educação desordenada, desistindo da carreira religiosa. Decidiu estabeleceu-se como comerciante (1683) e viajou muito pela Europa com diversos empreendimentos comerciais, mas em nenhum deles teve pleno êxito.

Atraído pela política, estabeleceu-se em Londres (1700) e tentou viver como jornalista e libelista. Metido em intrigas políticas, começou a escrever numerosos panfletos, e foi encarcerado em numerosas ocasiões por dívidas e por motivos políticos.

Acusado de espionagem foi encarcerado mais uma vez e condenado ao pelourinho. Enquanto aguardava o cumprimento da pena, redigiu o célebre Hymn to the Pillory (1703), que transformou sua sentença em um retumbante triunfo para ele, embora ainda tenha permanecido preso por quase um ano, em Newgate. Em liberdade e falido, fundou (1704) o periódico The Review, de tendência conservadora, onde expressou finalmente as suas excepcionais qualidades como jornalista. Ganhou celebridade internacional como romancista com a publicação de sua obra mais conhecida Robinson Crusoe (1719) e, então, resolveu retirar-se da vida pública para se dedicar exclusivamente à literatura. Com Moll Flanders (1722) deu um passo decisivo na história do romance social. Apesar da sua vida turbulenta foi um escritor muito prolífico e morreu em Londres, mantendo em seus últimos anos de vida uma intensa atividade literária, publicando obras como A Journal of the Plague Year (1722) e Roxana (1724).

Fontes:
http://www.netsaber.com.br/

http://www.daviddarling.info

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Daniel Defoe (Robinson Crusoé)

A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoé (1719), romance célebre de Daniel Defoe (1660-1731).

Defoe inspirou-se na história verídica de um marinheiro escocês, Alexander Selkirk, abandonado, a seu pedido, numa ilha do arquipélago Juan Fernández, onde viveu só de 1704 a 1709. Robinson Crusoé herda desta história o mito da solidão, na medida em que, depois de um naufrágio de que é o único sobrevivente, vive sozinho durante vinte e oito anos, antes de encontrar a personagem Sexta-Feira. O romance simboliza a luta do homem só contra a natureza, a reconstituição dos primeiros rudimentos da civilização humana, testemunhada apenas por uma consciência e dependente de uma energia própria.

Robinson Crusoé constitui uma obra-prima dos alvores do realismo, distinguindo-se assim, desde logo na composição das personagens, de outros romances da época. De fato, era freqüente a narração da história amorosa e sentimental dos homens, mas não a sua vida prática. Daí que a criação de Crusoé seja francamente inovadora: com um espírito prático e positivo, alheio a todo o sentimentalismo e à debilidade poética, Crusoé é um homem para quem as coisas existem concretamente, sem possibilidade alguma de transformação fantástica. Não é uma personagem afetada e melindrosa, como as que, na época, eram importadas da literatura francesa, apenas compreensíveis nos círculos da corte. Crusoé é um ingênuo que não se deixa enganar facilmente, é ativo e tem plena confiança na força do homem e no seu destino vitorioso. Apesar de não possuir uma inteligência extraordinária, pertence ao grupo dos vencedores: é infatigável, tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivência e no seu desejo de se sobrepor à natureza.

Ao mesmo tempo, Crusoé é uma personagem perturbada por problemáticas espirituais, bem próprias do mundo inglês do seu tempo, que o colocam no limiar de certa modernidade, aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domínios: filosófico, político, econômico, etc.

O impacto internacional de Robinson Crusoé foi fortíssimo. Pouco tempo depois da sua publicação, surgiram numerosas imitações, denominadas geralmente robinsonnades, que compreendiam peças de teatro, melodramas, vaudevilles, operetas, romances, etc. Ao mesmo tempo, a obra afirmava-se como um dos elementos fundadores da tradição do romance moderno (de feição realista e centrada no indivíduo), enquanto a figura do protagonista alcançava a estatura de um mito ou símbolo da condição humana. No nosso tempo, a história de Crusoé foi objeto de várias adaptações cinematográficas, entre as quais a de Luis Buñuel, com Dan O’Herlihy e Jaime Fernandez nos papéis principais, datada de 1952.

Título original: Curiosamente o título completo dado pelo autor é
The Life and Strange Surprising Adventures of Robinson Crusoe of York, Mariner: who lived Eight and Twenty Years, all alone in an uninhabited Island on the coast of America, near the Mouth of the Great River of Oroonoque; Having been cast on Shore by Shipwreck, wherein all the Men perished but himself. With An Account how he was at last as strangely deliver’d by Pirates. Written by Himself.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Robinson_Crusoe

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Cláudio Fragata (Entrevista com David Almond)

Um escritor para jovens de qualquer idade

David Almond é um dos maiores autores infanto-juvenis da atualidade na Grã-Bretanha. Nasceu em Newcastle e cresceu numa família católica sempre sonhando em ser escritor, embora não revelasse isso a ninguém. Enquanto escreveu para adultos, sua carreira seguiu de forma regular e sem grande entusiasmo por parte da crítica e dos cadernos literários. Tudo mudou com a publicação de Skellig, em 1998. O livro transformou-se num sucesso imediato e arrebanhou prêmios importantes, entre eles o Carnegie Medal, um dos mais prestigiados da Inglaterra para a literatura infanto-juvenil. Depois de encantar os leitores ingleses, Skellig chegou às livrarias do mundo todo. Publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes — que já se prepara para lançar outro título do autor, My dad´s birdman, ainda sem tradução para o português —, o livro conta as aventuras do garoto Michael a partir do encontro com um estranho ser alado na garagem de sua nova casa. Um anjo, um vagabundo, um louco? Nem Almond sabe responder. Em entrevista exclusiva ao Cronópios, ele revela seu espanto com o sucesso de Skellig, “um livro que praticamente se escreveu sozinho”.

C: O senhor já disse em entrevistas que desde muito pequeno sabia que seria escritor. Em que momento teve certeza disso?

DA: Sempre quis ser escritor e cresci sem abandonar essa idéia, embora fosse um segredo que não revelava a ninguém. Penso que tive mesmo certeza de que isso seria possível quando, aos 20 anos, comecei a trabalhar como professor. Em minhas primeiras férias, enquanto meus colegas se divertiam, eu me trancava no quarto diante da máquina de escrever. Eles me chamavam para que me juntasse à turma, mas tudo o que eu queria era ficar ali escrevendo e criando histórias.

C: Além de professor, o senhor foi também carteiro e vendedor de escovas porta a porta. Em que medida esses “atalhos” profissionais ajudam o escritor? Ou só adiam a carreira?

DA: No meu caso, não atrapalhou em nada. Ao contrário, esses trabalhos fizeram com que eu tivesse outras visões do mundo, o que só me enriqueceu como escritor. Não vivi apenas no mundo encastelado das letras. Hoje sei que fiz parte do mundo real das pessoas

C: Com que idade publicou seu primeiro livro e qual foi?

DA: Comecei escrevendo histórias curtas para algumas revistas e programas de rádio. Aos 32 anos, publiquei Noites Insones, uma coletânea de contos para adultos. Depois escrevi uma novela chamada Seances, que foi recusada por todos os editores do país. Tudo mudou com a publicação de Skellig, em 1998, meu primeiro livro para jovens.

C: Há muita diferença entre escrever para adultos e jovens?

DA: Para mim, tudo é literatura. Considero meus livros dedicados às crianças como os mais profundos que já escrevi. Não acredito nessa separação. O que existe é a boa e a má literatura.

C: Ao citar versos de William Blake em Skellig o senhor parece mostrar que não há barreiras entre as chamadas literaturas adulta e infantil. Nem que existam faixas etárias rígidas para os leitores. Fale um pouco sobre isso.

DA: Penso que uma boa história é uma boa história. Uma boa linguagem é uma boa linguagem. Limitar a leitura por faixa etária é bobagem, pois leitores da mesma idade podem ter uma compreensão muito diferente do mundo. Os versos de William Blake são simples, embora escondam muita estranheza e profundidade. Mas isso possibilita que sejam entendidos por pessoas de qualquer idade, desde que o leitor esteja preparado para isso.

C: A que atribui o sucesso de Skellig?

DA: Acho que tem algo no livro que toca as pessoas do mundo inteiro. Não sei explicar exatamente o porquê. No fundo, Skellig tem pouco a ver comigo, foi um livro que aconteceu na minha vida. Foi uma experiência incrível escrevê-lo, pois às vezes tinha a impressão de que o livro se escrevia por si.. No entanto, a história repercute nas pessoas, elas descobrem, lendo o livro, que as coisas podem dar certo, que há espaço para o sonho.

C: Então o senhor não colocaria Skellig entre os preferidos que já escreveu?

DA: Gosto de Skellig, mas não diria que é o meu melhor livro. Como escritor, prefiro outros, que considero mais elaborados. Skellig foi fácil de escrever e é muito fácil de ser lido. Sempre me surpreendo, não sei como consegui realizar essa proeza. Mas é o meu novo o que está me deixando mais entusiasmado no momento. É um trabalho sofisticado, de texto e imagem muito juntos, estou trabalhando com um grande ilustrador. Como autor, gosto de olhar para trás e ficar satisfeito com o que fiz, mas sempre querendo produzir algo diferente no futuro.

C: Quem é exatamente Skellig? Um anjo, um vagabundo ou o quê?

DA: Não saberia dizer o que ou quem ele é. Não sei de onde veio e nem como foi parar na garagem de Michael. Para mim, Skellig é um ser misterioso, um mistério como muitos que existem na vida.

C: Histórias na primeira pessoa levam os leitores a confundir o narrador com o autor. Até que ponto Michael se parece com Almond?

DA: Enquanto escrevia o livro, não tinha a intenção de falar sobre mim. Depois do livro pronto, percebi que havia muito de mim ali, naqueles personagens. Também tive uma irmã bebê que ficou doente, uma garagem lotada de tralhas e várias outras semelhanças.

C: A escola forma leitores?

DA: É possível, desde que haja um comprometimento da escola com a cultura, um envolvimento de todos, dos professores aos bibliotecários, mas a leitura não pode ser vista como algo tão especial que não possa fazer parte do dia a dia. Ela pode e deve acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar.

C: Em Skellig o senhor faz uma crítica às escolas como únicas difusoras do conhecimento. Elas precisam ser renovadas?

DA: Não sei como são as escolas brasileiras, mas na Grã-Bretanha a tendência é achar que a única forma de se adquirir conhecimento é na escola. Isso não é verdade. É uma loucura pensar assim. O conhecimento está em toda parte. Quando era professor, me preocupava muito com isso. Nos anos 60 e 70, havia movimentos a favor do fim das escolas, acusadas então de desinformar os alunos, e me engajei em algumas dessas correntes. Como eu mesmo tive professores muito ruins, achei que havia alguma verdade nessas idéias e reivindicações.

C: Concorda com William Blake quando ele pergunta se toda sabedoria cabe numa vara de prata (Can Wisdom be put in a silver rod?)?

DA: Não afirmo que todo conhecimento cabe em algo pequeno, mas certamente as coisas pequenas podem ter grandes significados e relevância universal, principalmente sob a ótica da literatura e da arte.

C: A Grã Bretanha tem uma longa tradição em matéria de literatura infanto-juvenil: Lewis Carroll, Roald Dahl, J. M. Berrie, Edward Lear, sem falar no fenômeno J. K. Rowling. Há uma razão para isso?

DA: Penso que isso tem a ver com o fato de a Inglaterra ser uma ilha, de estar fisicamente separada do continente. Acredito que esse fato influencie a imaginação dos ingleses e faça com que ela seja diferente da dos demais povos da Europa. É um país pequeno e, ao mesmo tempo, repleto de complexidade.

C: Tatiana Belinky, uma das maiores escritoras infanto-juvenis brasileiras, diz que o humor é fundamental na literatura infanto-juvenil. O humour inglês é um clássico universal. Isso ajuda na hora de escrever para esse público?

DA: Isso é realmente verdade e ajuda muito. Nós, ingleses, somos assim, temos esse modo de olhar o mundo. Mesmo diante das coisas mais sérias, nós… ho, ho, ho…

C: O que acha do fenômeno Harry Potter? É literatura ou apenas um best-seller escrito com essa finalidade de ser um best-seller?

DA: Não acredito que tenha sido escrito para ser um best-seller. As crianças descobriram o livro antes do marketing e dos interesses das livrarias e editoras. Foi a partir disso que se criou todo um trabalho comercial sobre a série. Fiquei feliz vendo as próprias crianças lendo e recomendando o livro umas às outras.

C: O senhor parece gostar de gatos. Eles aparecem com freqüência em seus livros. O senhor convive com eles ou é só o retrato de uma mania inglesa?

DA: (Risos) Não tenho gatos, mas eles fazem mesmo parte da cultura inglesa. Enquanto escrevia Skellig, senti várias vezes algo roçando em minhas pernas como se fosse um gato. Era minha imaginação, outra das muitas sensações que fizeram parte da magia de escrever esse livro. Entretanto, isso ficou registrado nas aparições do gato Cochicho em várias cenas.
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Cláudio Fragata foi editor da revista Recreio e autor dos livros As Filhas da Gata de Alice Moram Aqui, Seis Tombos e Um Pulinho e O Vôo Supersônico da Galinha Galatéia, publicados pela editora Record; A Princesinha Boca-suja, pela editora Scipione, e Balaio de Bichos, pela Difusão Cultural do Livro.
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Fonte:
http://www.cronopios.com.br/

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Rinaldo de Fernandes

Rinaldo de Fernandes, nasceu em Chapadinha, MA, e morou por muitos anos em Fortaleza, CE. Graduou-se em Letras, na Universidade Federal do Ceará. Doutor em Letras pela UNICAMP, é professor de literatura na Universidade Federal da Paraíba.

Organizou os livros
– O Clarim e a Oração: cem anos de Os sertões (São Paulo: Geração Editorial, 2002),
– Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Biblioteca Nacional, 2004),
– Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e
– Quartas Histórias, contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Rio de Janeiro: Garamond, 2006).

Com o conto “Beleza”, conquistou o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos do Paraná de 2006.

Como pesquisador, fez os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século, organizada por José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001).

Já teve contos publicados, entre outros suplementos, pelo “Rascunho”, de Curitiba. Autor dos livros de contos “O Caçador” (1997) e “O perfume de Roberta” .

Fontes:
http://triplov.com/contos/rinaldo/index.html
http://argiladapalavra.softservice.info/

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Rinaldo de Fernandes (A Cor dos Laços)

Aos domingos, depois do almoço,
o pai em L vendo a TV,
a mãe provando a brisa boa
de uma bola de sorvete,
tudo se fazia torta fina.

Até que o pai rosnava para as portas
acusações de becos escusos
e esconderijos dos amantes da mãe.
Tudo então se fazia ferrolho
fechando os sorrisos nos porta-retratos.

A filha, brincando de sol na sacada,
desatava o laço laranja
feito da luz de um raio,
prestava atenção.

E começava a desconfiar
que, por trás de toda poltrona obtusa,
dos ventos de todo sorvete,
mora a sombra e a cor dos seus laços.

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Rinaldo de Fernandes (Chico Buarque: 60 anos)

Chico Buarque de Hollanda, que em 19 de junho último completou 60 anos, é um artista ímpar, o mais importante da cultura brasileira na contemporaneidade. E não só isso: trata-se de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. É plural – e de uma qualidade extraordinária em tudo o que faz. Como compositor, dramaturgo e, mais recentemente, romancista está entre os grandes artistas, não só do Brasil, mas do Ocidente. Para repetir o que disse o professor Antonio Candido em texto que me enviou para o livro Chico Buarque do Brasil, que organizei, eu diria, para começar, aos homens de bem deste país: “Louvemos Chico Buarque”.

Chico, logo no início de sua carreira, foi tido como a “única unanimidade nacional” (conforme frase famosa de Millôr Fernandes). Neste momento a imagem que fica dele é a do “bom moço”, o menino que toda família queria ter. Mas logo em seguida, já em 1968, essa imagem é rompida ao ser representada a peça Roda viva, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Depois, nos anos 70, ele se torna um emblema de resistência à ditadura. E passa a ser o artista mais perseguido pela censura do governo militar. Portanto, duas imagens fortes ficam dele – a do moço (quase) ingênuo, sereno, terno, que agrada sobretudo ao público feminino; e o artista participante, preso até a medula ao seu tempo, que se identifica com as minorias e denuncia a ditadura. Aqui ele agrada sobretudo à esquerda – mas vai muito além dela ao se tornar, por assim dizer, um centro, uma referência ética. Enfim, um artista de duplo engajamento – com a palavra e com a sociedade. A palavra de Chico é muito bem elaborada, como pouquíssimos na MPB e, mesmo, na nossa ficção. E sua visão de sociedade – sempre ao lado dos mais fracos, dos dominados e oprimidos – é profunda, penetrante.

Em 1973, num dos primeiros ensaios significativos sobre a poesia de Chico, intitulado “Chico Buarque: a música contra o silêncio”, Affonso Romano de Sant’Anna mostrava que as composições de Chico podiam, àquela altura, ser divididas em duas fases: “A primeira seria exemplificada por seus três primeiros long playings e a segunda pelo disco […] Construção. Entre uma fase e outra está a peça Roda viva, encenada em 1968, sinal de ruptura com a imagem de bom moço que o sistema publicitário queria impor ao poeta”. Na primeira fase, o poeta “se encontra em disponibilidade, à toa na vida, fazendo considerações líricas sobre os pequenos incidentes do dia-a-dia”. Na segunda fase, ele “já não se deixaria levar pelos instantes de festa e música da vida, arrebatado pela banda ou pelos cordões carnavalescos”. Aqui se manifesta “o profissional no exercício da construção musical, articulando tijolo com tijolo num desenho lógico”. O “lirismo de ‘A banda’ cede à dramaticidade do ‘Cotidiano’ e à tragédia da ‘Construção’”. Ainda no que se refere à primeira fase: a música é, em várias canções de Chico, uma atividade “destinada a romper o silêncio do cotidiano e a fazer falar as verdades que os homens querem calar”. A música é “possibilidade de comunhão”, “lembrança do paraíso perdido”. Daí aparecerem a banda, o carnaval (ou “um tempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade”) e o samba como metáforas da expansão ou “abertura para a vida”.

Em seguida a esse estudo de Affonso, o professor e ensaísta Anazildo Vasconcelos da Silva, em livro publicado em 1974 (A poética de Chico Buarque), irá caracterizar a poesia de Chico como “universal” e não “circunstancial”. Diz Anazildo: “[…] Enquadrar a poesia de Chico Buarque a uma circunstância, qualquer que seja a natureza desta circunstância, é negar-lhe a validade poética e reduzi-la a coisa nenhuma. Acreditamos […] que a poesia de Chico Buarque não se prende a um contexto circunstancial, mas a um contexto humano existencial do século XX. Sua poesia, como a poesia de um Fernando Pessoa, de um Carlos Drummond de Andrade ou de um João Cabral de Melo Neto, pretende significar o homem do século XX inserido na trajetória da humanidade”.

No início dos 80, o crítico musical Tárik de Souza, fazendo um balanço da atividade do compositor, chamaria a atenção para a versatilidade de Chico. Tratava-se de um compositor bastante diverso, que, até aquele instante, já teria incursionado por vários ritmos e gêneros: tango, marchinha, samba (de preferência), quadrilha sertaneja, vários tipos de valsa… Por sua vez, a professora Adélia Bezerra de Meneses, no livro Desenho mágico – poesia e política em Chico Buarque (1982), vai dizer que a produção de Chico assumiria “aquelas modalidades que restaram à poesia do nosso tempo”, ou seja, o “lirismo nostálgico” (“A banda”, “Maninha”, “Realejo”), a “variante utópica” (“Bom tempo”, “Primeiro de maio”, “O que será”) e a “vertente crítica” (“Pedro pedreiro”, “Construção”, “Vence na vida quem diz sim”, “Sabiá”, “Bom conselho”). As três modalidades seriam “uma forma de resistência”. No “lirismo nostálgico”, segundo a professora, se manifestaria o “desejo de um retorno, a ânsia dolorida por uma volta a uma situação ou a um espaço que não fazem parte da realidade atual” – e isso, conforme a ensaísta, “é nostalgia (de nostos = volta e algos = dor), no seu sentido primeiro e etimológico: a dor do retorno”. Na “variante utópica”, o elemento principal seria a proposta de um tempo/espaço outro, “em que o homem pode ser livre, e onde não se verifica o reino da alienação e da mercadoria”. Haveria aqui uma crítica “à negatividade da sociedade” feita através da “apresentação de algo que é radicalmente negado por essa sociedade”. Por fim, na “vertente crítica”, se expressaria uma denúncia – “ora configurada através da mera apresentação de uma situação cotidiana dramática ou trágica (como é o caso de ‘Pedro pedreiro’ e ‘Construção’), ora através das ricas modulações de que se reveste [a] ironia (satírica, no falso adesismo de ‘Vence na vida quem diz sim’, paródica tal como em ‘Sabiá’, em ‘Bom conselho’ e na maior parte das canções da Ópera do malandro; alegórica em Fazenda modelo), ora através desse ‘processo de deslocamento’ que consiste no tratamento de temas candentes da temática nacional, projetada num tempo passado da história brasileira, como em Calabar”.

É ainda Adélia Bezerra de Meneses que, discutindo os personagens da canção de Chico, afirma: “Já se tornou um lugar-comum dizer-se que a canção de Chico Buarque privilegia o marginal como protagonista, pondo a nu, assim, a negatividade da sociedade. Desde o primeiro disco, com ‘Pedro pedreiro’, passando por ‘Meu guri’, ‘Pivete’, ‘Iracema’, ‘Levantados do chão’, ‘Assentamento’, os despossuídos têm voz e vez. Malandros, sambistas, pedreiros, pivetes, prostitutas, pequenos funcionários, sem-terra, mulheres abandonadas. Todo um povo que será reunido, por exemplo, num grande ‘Carnaval’, e que engrossará o enorme ‘Cordão’ – daqueles que ‘não têm nada pra perder’. Ele os torna ‘protagonistas da História’, dá voz àqueles que em geral não têm voz. É assim que em ‘O que será’, a grande canção utópica, é com essa gente – os desvalidos e oprimidos – que a grande Utopia acontecerá”. Adélia dirá também que Chico teve de quem herdar a sua “radicalidade”. E explica o sentido de “radical”: “[…] A gente pode dizer que Chico é um ‘radical’, filho de um historiador, Sérgio Buarque de Hollanda, que é um dos mais significativos representantes daquilo que Antonio Candido chama de ‘pensamento radical’, que se caracteriza por uma oposição fundamental ao pensamento conservador. E consiste, fundamentalmente, nesta sociedade de tão fundas sobrevivências oligárquicas, na atitude de tirar o foco das classes dominantes e abordar o ‘dominado’ – mirar antes a senzala do que a Casa Grande”.

Chico é também identificado como o cantor da mulher. As canções de Chico que tematizam a mulher, segundo analisei em 1995 em meu trabalho de mestrado (ainda mantido inédito), podem ser divididas em 3 vertentes temáticas: 1) as conformadas (“Cotidiano” e “Mulheres de Atenas”; 2) as prostitutas (“Mambordel”, “Las muchachas de Copacabana”, em que é enfatizado o aluguel do corpo por questões de sobrevivência; “A mulher de cada porto” e “Tango de Nancy”, em que são tratados os desencontros amorosos, decorrentes, em grande medida, da própria condição e/ou do próprio ofício de prostituta); e 3) as desejosas (“Ela e sua janela”, “Bárbara”, “O que será (Abertura)”, “Mar e lua” e “O meu amor” – canções que dão voz ao desejo sexual feminino, mas é um desejo interditado, que não se realiza com o seu objeto, refletindo uma questão cultural, já que a sociedade tende a identificar a agência sexual ao homem; caso único em Chico em que o desejo feminino se realiza plenamente é o de “O meu amor”). Há ainda uma outra vertente que identifiquei e que chamei de “A saída por cima”, na qual, no desencontro amoroso com o homem, a mulher sai sempre “por cima” (exemplo é “A Rita”).

Por conta da profunda admiração que tenho pelo artista, resolvi organizar um livro sobre sua obra – Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Biblioteca Nacional, 2004). A idéia foi fazer um livro que abordasse a obra de Chico na sua diversidade. Ou seja, textos sobre as canções, o teatro e a ficção do autor. O livro é um balanço interpretativo – o primeiro feito no Brasil – da obra desse, repito, artista ímpar. E, como digo no texto de apresentação, muitos dos significados da obra de Chico são revelados no livro. Aspectos muito importantes são abordados, como a leitura que Leonardo Boff faz de “Gente humilde” e de “Deus lhe pague” à luz do humanismo cristão; como a reflexão sobre o ritmo e o tempo empreendida por Adélia Bezerra de Meneses a partir da letra da canção “Tempo e artista”; como a discussão de Anazildo Vasconcelos da Silva sobre o protesto em Chico; como a abordagem que Mário Chamie faz de “Construção” em diálogo com os postulados da Poesia Práxis (mostrando, portanto, as relações do letrista Chico com a vanguarda poética); como a interpretação que Luiz Tatit faz de “Pedaço de mim”; como a avaliação do problema do duplo e/ou do jogo de imagens que José Castello faz tendo como base o, como ele mesmo diz, “estupendo romance” Benjamim; como a análise que Sônia Ramalho faz de Budapeste, etc. Acho que a importância do livro reside no valor dos colaboradores (acadêmicos, artistas, jornalistas e escritores ilustres) e no próprio valor do homenageado.

E foi, para concluir, minha forma de louvar Chico Buarque..

Fonte:
http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/
http://www.midiaindependente.org/ (foto)

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Nilto Maciel (O maduro fruto da solidão)

O primeiro livro de contos de Rinaldo de Fernandes, O Caçador, é de 1997. Meticuloso, sem pressa, em 2005 apresentou o segundo volume, O Perfume de Roberta (Rio de Janeiro, Editora Gamamond), juntando cinco daquelas narrativas a treze inéditas.

Os narradores de Rinaldo ora são protagonistas, ora meros observadores. Ou principiam como espectadores e terminam como protagonistas. De alguns o leitor conhece duas ou três características ou traços fisionômicos, físicos, socioculturais. Muitas vezes não sabe sequer o nome.

Em “Ilhado”, um homem toma uísque numa praia de uma cidade onde não mora. E pouco mais se sabe dele: (“Cheguei ontem aqui na cidade. Vim fazer uma conferência, vai ser na segunda. Estou num hotel mais adiante.”). O narrador de “O cavalo” apenas espreita, de longe, do alto, da varanda do apartamento, as cenas que constituem a peça ficcional. Quase nada diz de si mesmo: “moro aqui já tem três anos, após me aposentar como advogado”; “Dia seguinte, viajei para o Rio de Janeiro, fui visitar meu neto.” Em “A morta”, o ser fictício também não se exibe com clareza, porque não passa de testemunha dos fatos. O protagonista de “Oferta” apenas se diz “velho vendedor” e revela ter 48 anos. O de “A poeira azul” se mostra o tempo todo: “Já dez anos que eu vendo camisas!”, “já estou com trinta e quatro anos”, “já fui garçom”, não é casado, não tem filhos, embora não diga o próprio nome. Em “O perfume de Roberta”, cabe relatar os fatos ao pai da personagem Roberta, mera figurante na trama. Esquisito, tudo faz para se esconder, não se revelar, sobretudo porque age de madrugada, às escondidas de todos: “eu falei pra ela que me chamo Pedro”. Entretanto, não oculta outros dados importantes: “Sou funcionário da prefeitura e advogado”; “Eu sou um homem de quarenta e seis anos.” Em “Confidências de um amante quase idiota” – no outro livro, “Eu não sou um idiota” –, o protagonista nada diz de si mesmo. Roberto faz a narração de “Pássaros”. E é neste tipo de narrativa que o escritor declara ao leitor, desde o início da narrativa, quem é o vencedor do duelo final, o sobrevivente da tragédia. É como se o narrador dissesse ao leitor, desde a primeira linha: “Veja, eu vou narrar uma tragédia, da qual sou protagonista. Eu sou o vencedor do duelo final, porque sou o narrador”. O perdedor (ou a perdedora) é o outro (ou a outra), a que morreu no último ato. O vencedor, porém, é também perdedor. Talvez um perdedor menor, porque lhe restou a vida. Ora, é o narrador, mas não narra a História dos outros. Não é historiador, mas protagonista de uma narrativa.

Em “Borboleta” – outra história da coleção de estréia de Rinaldo –, o narrador é obscuro e a peça de feição rara. Também já publicado é “A tragédia prima de Sílvia Andrade”, no qual o narrador se diz escritor e relata fatos (o conto) a um delegado.

São poucas as histórias contadas por mulheres. A narradora de “O mar é bem ali” confidencia: “Sou uma velha poeta”, moradora de uma quitinete. Em “Duas margens” uma mulher narra no presente: bebe cerveja no “mais pobre dos bares”, é casada com Marcos e tem uma filha de nome Juliana. Ao mesmo tempo em que conta a própria história (o desenlace amoroso), que julga catastrófica, observa (vê e ouve) personagens de outra narrativa há muito iniciada e que em breve terá desfecho trágico.

“Rita e o cachorro” (o título – que não faz parte da narração – revela o nome da narradora) apresenta “Uma mulher vivendo só, sem emprego certo, pedindo a um e outro para fazer revisões de todo tipo de texto, teses, artigos, dissertações, o diabo.”

A narradora de “Sariema” – recriação de “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa – se desvela desde o título. Pode-se falar em clonagem literária. De um ser (composição) se extrai uma célula-tronco e dela se cria novo ser, semelhante ao original. Ou remeter ao mito bíblico da criação da mulher: de uma costela de Adão se fez Eva. Neste conto se repete o esquema do vencedor e do perdedor. Se a história é contada por Sariema e se dá o embate entre ela e Nhô Augusto, logicamente (mas poderia não ser lógico) ela é a vencedora e ele o morto.

Nas demais peças não há personagens narradores. O primeiro é “Negro”, conto reproduzido da primeira obra. Em “O último segredo”, o narrador, pode-se dizer, é semi-onisciente. “Passarinho” se assemelha àquele também neste aspecto, além de serem curtos e de tratarem de problemas sociais ou de relações sociais. Em outras composições pode-se ver a preocupação de Rinaldo com os dramas sociais, pessoais e domésticos. O narrador de “Procurando o carnaval” – também da primeira coleção – é espécie de alter ego do protagonista sem nome explícito, sua sombra.

Um dos temas predominantes em Rinaldo é a solidão. Enquanto as pessoas se debatem entre a vida e a morte, há sempre alguém (o narrador, no mais das vezes) em plena solidão, embora por alguns instantes ou momentos se envolva num turbilhão de fatos alheios à sua vontade ou expectativa. É o caso do narrador de “Ilhado”: tomava uísque numa barraca de praia, certamente para espairecer, quando se viu envolvido numa tragédia. Em “O Cavalo”, o narrador é um solitário observador (“com a insônia, me levantei, fui à cozinha”). Parecida com ele é a narradora de “O mar é bem ali”: uma moradora solitária de uma quitinete, que termina imaginando um diálogo com um suposto visitante. Em solidão também está o protagonista de “Oferta”, assim como os demais personagens, que mal conseguem se comunicar. A solidão da protagonista de “Duas margens” se mistura à angústia de ter sido traída no amor. A narradora está só, bebe cerveja num bar, enquanto outra mulher desesperada se debate também na solidão, após ter sido abandonada pelo marido.

Algumas obras de Rinaldo têm desfecho trágico. A carnificina em “Ilhado” vai num crescendo. O leitor nem percebe a lenta transformação do lirismo dos namorados à beira-mar em tragédia. A tragédia de “A morta” se dá de forma inesperada, porque nenhum conflito se manifesta no decorrer na narração, a não ser de forma sutil: “Não tem ninguém aí, não é possível!” (os três visitantes acreditavam encontrar o casal à sua espera); “E, quase que ao mesmo tempo, algo tombou na estrada. Não sei se tombo ou o tropeço de alguém.” Em “Duas margens” a morte da criança é algo escabroso. A mãe enterra o filho vivo, com a ajuda da narradora, que acreditou na afirmação da outra: “– Ele está morto”. Na última tragédia, Sariema, mulher de Osório, esfaqueia Nhô Augusto, após este matar aquele.

O mar é uma constante nas peças ficcionais de Rinaldo. Não exatamente o mar. Na verdade, não se vêem pescadores, banhistas ou surfistas. O mar é muito mais referência de ambiente, às vezes pano-de-fundo (“O mar espuma, adiante, nos arrecifes.”), mas sempre presente. Toda a tragédia de “Ilhado” se inicia à beira-mar e termina em pleno mar, num barco. Em “O mar é bem ali”, o próprio título diz tudo. Na verdade, a trama se dá num apartamento à beira-mar. A tragédia de “A morta” também não se dá no mar. Entretanto, o mar está muito presente: “A lâmina do mar apareceu lá embaixo, depois do descampado e de uma ponta de duna.” Veja-se “Oferta”, que se passa num boteco de beira de estrada no sertão. Entretanto, o narrador lembra uma propaganda de televisão em que um rapaz se aproxima de um casebre à beira-mar. O narrador olha em volta “procurando o mar”, que muito longe dele está. “Não há mar, mas uma paisagem rubra, de pedras pretas e raros arbustos, paisagem seca, de muitos gravetos.” Logo no início de “A poeira azul” se lê: “Só foi possível ver a faixa verde de mar depois da curva.” Em “Rita e o cachorro” o mar também está presente: “Ontem o mar estava todo esmeralda”.

Entretanto, nem só de paisagens marinhas vivem os personagens de Rinaldo. Alguns estão no sertão, em estradas poeirentas, outros na cidade grande, em apartamentos, ruas.

A estrutura das narrativas de O Perfume de Roberta é, quase sempre, linear no tempo. Nada de retrospectos, a não ser em elucubrações ou monólogos. Ou quando dois tempos se fundem: o presente da narração e o passado narrado, como se vê em “Sariema”. Isto é, quando o narrador está contando (presente) uma história (passado) para um ouvinte. Na maioria dos contos, o narrador conta uma história, sem se dirigir ao leitor ou a um ouvinte. Algumas obras de Rinaldo, constituídos de breves quadros, lembram roteiros de cinema. Divididos em blocos, geralmente em razão da mudança de tempo. Assim, em “Ilhado”, cortado em três segmentos, se pode ver claramente que no primeiro a cena é quase parada, com pouca movimentação dos seres: o narrador, a mulher sentada num banco, a chegada do homem num barco, a cozinheira do bar e o garçom. No segundo segmento surge o mendigo, que será o personagem central da trama. E, por último, a cena do ataque do mendigo ao narrador, à mulher e ao homem do barco. Tudo em alguns minutos.

Em outros contos, embora a ação principal se dê em poucos minutos ou horas, há referências às conseqüências dele na vida dos seres fictícios num tempo futuro, como em “O cavalo”: o narrador, numa noite, vê do alto da varanda de seu apartamento um cavalo solto na rua, a chegada de um homem num carro à casa vizinha, a briga do homem com uma mulher, etc. Tudo em poucos minutos. Após isso, refere-se ao dia seguinte e, no último parágrafo, a alguns meses depois.

A linguagem de Rinaldo é simples, próxima da oralidade, porém sem uso de gírias urbanas ou expressões regionais. A estrutura dos composições também é singela, exceto em “Borboleta”, pleno de ousadia formal. As narrações, sejam de personagens, sejam do narrador onisciente ou do escritor, não se amarram a pormenores. Os diálogos e as falas são curtos. As narrações elidem a necessidade deles. Também nada de descrições minuciosas de seres fictícios ou paisagens. Essa economia verbal dá aos contos de O Perfume de Roberta um ar de novidade, apesar da simplicidade estrutural e de linguagem. Um quê de cheiro de fruta madura.

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/site/resenhas.asp?id=1079

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Raul Pompéia (Tragédia No Amazonas)

Uma tragédia no Amazonas é uma historia envolvente que narra como o ódio e o desejo de vingança pode arruinar muitas vidas, e como uma pessoa pode ser odiada e amada ao mesmo tempo. O conto é cheio de detalhes faz a pessoa sentir o clima selvagem e hostil vivido por pessoas que vivem na região do Amazonas, onde a lei raramente chega, e onde as pessoas muitas vezes fazem suas próprias leis.

Com maestria o autor narra a historia de Eustáquio, sua esposa Branca, e a enteada Rosalina, que passaram a ser vitimas de perseguição, que incluíam tanto danos à propriedade da família, que ficava no vilarejo de São João do Príncipe no Amazonas, como tentativas de matar Branca e Rosalina; Curiosamente em duas tentativas contra as mulheres um misterioso protetor da cabo dos agressores, o que não acontece com um escravo e um soldado contratados para defender a casa do subdelegado.

Começa por parte de Eustáquio uma caça aos agressores, aos poucos o editor trás a lume fatos que culminam com a identificação dos mesmos como sendo um grupo de negros que após assassinarem seu feitor e o dono da fazenda, saqueiam a sede e fogem, sendo capturados e presos pelo subdelegado, no entanto pouco depois eles fogem da improvisada cadeia, para a floresta, e começam a maquinar a vingança; A morte de um dos escravos pelo misterioso defensor da família faz com que eles acuem um pouco, e passam dois anos sem fazer novas ameaças, no entanto a chegada ao vilarejo de salteadores espanhóis interessados em roubar a Eustáquio porque foram informados que ele possuía uma grande riqueza, reacendeu nos escravos fugitivos a chama da vingança, encorajados pelos espanhóis voltaram a tramar contra a família.

Nesta ocasião Eustáquio, que já não é mais subdelegado, passa a espionar o bando, descobrindo que tramavam atacar a casa no dia seguinte, recorre à ajuda do padre que no afã de proteger a casa indica quatro lavradores da cidade para reforçar a segurança, Eustáquio os contrata, sem saber na verdade que eles faziam parte dos seus inimigos, num plano do líder espanhol de infiltrá-los na residência de Eustáquio fato que o padre também desconhecia.

Enquanto aguardavam o ataque protegendo a casa, o padre revela que o misterioso protetor que por vezes defendeu a família, era na verdade um jovem que teve sua vida salva pelo pai de Rosalina, a enteada da família, só que embora salvasse o garoto o homem não sobreviveu ao acidente, em retribuição a isso o garoto vigiava a casa para proteger seus moradores.

Neste mesmo dia os vingadores conseguem invadir a casa matam Branca, Eustáquio, bem como outros que ali estavam, incluindo uma criança que ainda a pouco havia nascido, filho de branca com Eustáquio; Quando o jovem que protegia a família chega já é tarde e o malfeitor lhes tira a vida , como ultima vitima Rosalina é barbaramente torturada e morta. Finalizando o conto o pai do jovem chega de uma viaje mas já encontra todos mortos e o fim é dramático com o pai ao lado do corpo do filho lamentando sua morte.

O conto é cheio de detalhes faz a pessoa sentir o clima selvagem e hostil vivido por pessoas que vivem na região do Amazonas, onde a lei raramente chega, e onde as pessoas muitas vezes fazem suas próprias leis.
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Biografia do Autor postada 11 de abril de 2008
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Fonte:
http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo.php?c=1275

http://virtualbooks.terra.com.br/ (imagem)

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Nicholas Sparks (1965 – )

Nicholas Sparks (n. 31 de Dezembro de 1965, Omaha, Nebraska) é um romancista norte-americano.

Nicholas Sparks viveu a sua juventude em Fair Oaks, na Califórnia e vive actualmente na Carolina do Norte com a família. Foi premiado com uma bolsa de estudos da Universidade de Notre Dame pelos seus excelentes resultados e, em 1988, licencia-se em Economia. Curiosamente, o seu sonho era tornar-se atleta de alta competição, sonho de que teria de abdicar devido a um grave acidente. Iniciou-se a escrever enquanto trabalhava como delegado de informação médica e, mais tarde, surge Theresa Park, agente literária, que se propôs representá-lo, vendendo os direitos do seu primeiro romance, «O Diário da Nossa Paixão», à Warner Books.

Bibliografia
O Diário da Nossa Paixão — The Notebook, 11-01-1999, adaptado para filme lançado em 2004 com James Garner e Gena Rowlands no presente, e na narrativa com Ryan Gosling e Rachel McAdams

As Palavras Que Nunca Te Direi — título original: Message in a Bottle
O filme foi gravado no Maine, Chicago e Wilmington na Carolina do Norte, em 1999 foi interpretado por Kevin Costner ;

Um Momento Inesquecível — A Walk to Remember, 02-11-1999, filmado em 2002, estrelando Mandy Moore e Shane West; adaptação para filme em 2002, com Mandy Moore e Shane West.

Corações em Silêncio — The Rescue, 15-11-2000

Uma Viagem Espiritual (01.03.2001)

Uma Promessa Para Toda a Vida (A bend in the road) — 31-10-2001

O Sorriso das Estrelas — 05-11.2002

Laços Que Perduram — 06-05-2004

A Alquimia do Amor — 14-10-2003

Três Semanas Com O Meu Irmão — Three Weeks With My Brother, 06-07-2004

Quem Ama Acredita — True Believer, 05-07-2005

À Primeira Vista; “At First Sight”; Março-2006; ISBN 972-23-3525-1 (sequencia do Romance “Quem Ama Acredita”)

Juntos ao Luar; “Dear John”; Outubro-2006

Uma Escolha por Amor; The Choice; Setembro-2007

Fonte:
http://pt.wikipedia.org

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Rabindranath Tagore (1861 – 1941)

“No dia em que a flor de lótus desabrochou / A minha mente vagava, e eu não a percebi. / Minha cesta estava vazia e a flor ficou esquecida. / Somente agora e novamente, uma tristeza caiu sobre mim. / Acordei do meu sonho sentindo o doce rastro / De um perfume no vento sul. / Essa vaga doçura fez o meu coração doer de saudade. / Pareceu-me ser o sopro ardente no verão, procurando completar-se. / Eu não sabia então que a flor estava tão perto de mim, / Que ela era minha, e que essa perfeita doçura / Tinha desabrochado no fundo do meu coração.”

Esse poema mostra o lirismo suave e contido de Tagore; seu nome é “Flor de Lótus”.

Rabindranath Tagore nasceu em 7 de maio de 1861, em Calcutá, Índia, então sob domínio britânico. Tagore era filho do reformador religioso hindu chamado Devendranath Tagore, que se encarregou de sua educação por não concordar com as coerções do ensino clássico. Entre 1878 e 1880, o escritor esteve na Inglaterra e conheceu a literatura e a música européias. O gênio prolífico e criativo do escritor se traduziu ao longo da vida numa vasta obra que abrangeu todos os gêneros e estimulou a renovação da literatura em língua bengali.

Poeta, contista, dramaturgo e crítico de arte hindu, seu pensamento abre novos caminhos a interpretação do misticismo, procurando atualizar as antigas doutrinas religiosas nacionais.

As atividades literárias e educativas do poeta e místico bengali Rabindranath Tagore contribuíram de maneira significativa para o melhor conhecimento mútuo das culturas indiana e ocidental.

Filho de uma família de reformadores religiosos e sociais, que a todo custo procurou libertar a Índia dos preconceitos milenares que esmagavam o povo.

Tagore é uma ocidentalização do nome que em sânscrito quer dizer “homem nobre”, “senhor”. Em casa era chamado de Rabi que no idioma dos seus quer dizer “o Sol”.
Bem cedo se revelou artista profundamente identificado com a natureza, apaixonado pelo povo e, sobretudo aberto para o INFINITO. Com 8 anos de idade já fazia versos, aos 12 teve a satisfação de ver a sua poesia aprovada pelo seu venerando pai que exclamou: “Se o rei conhecesse a língua da nossa terra e pudesse apreciar-lhe a literatura, recompensaria por certo o poeta”.

Com 15 anos foi para a Inglaterra estudar Direito, 3 anos após regressou à pátria a chamado da família. Ao regressar recebeu do pai a incumbência de administrar a propriedade da família.

Casou-se aos 23 anos. E, nesta época, já havia publicado 2 livros de poemas: Canções da Noite e Canções da manhã, com destaque para o poema O Despertar de uma Fonte.Bem como a novela para crianças O Sábio Real, que mais tarde serviu de tema à peça intitulada O Sacrifício..

Em 1891 Tagore estabeleceu-se em Shilaidah para administrar a fazenda paterna. Viveu então em contato direto com o meio rural de Bengala, cuja influência se expressou nos dramas líricos Chitrangada (1892) e Malini (1895) e numa série de coletâneas poéticas, como Citra (1896), Kalpana (1900; Sonhos) e Naibedya (1901; Sacrifício), obras nas quais a comunhão com a natureza é realçada pela linguagem cristalina e emotiva. Em 1901 Tagore criou em Santiniketan uma instituição educativa denominada A Voz Universal, na qual combinava elementos da cultura hindu e ocidental. Em clima de liberdade, com aulas ao ar livre, a escola logo se converteu em centro de difusão do panteísmo espiritualista, relacionado com as doutrinas védicas, e dos ideais de solidariedade humana preconizados pelo fundador.

Em 1901, com a venda de uma casa e das jóias da esposa, fundou uma escola superior de filosofia em Santiniketan (que depois foi transformada em Universidade, em 1921).

As preocupações sociais do escritor, o levaram a defender a independência da Índia em diversos ensaios, embora sempre tenha considerado que a mudança individual deve preceder a social. A dor pela morte da esposa e de dois de seus filhos, entre 1902 e 1907, inspirou a Tagore alguns dos mais profundos poemas místicos, entre os quais os incluídos em Gitañjali (1910; A oferenda lírica). A repercussão internacional dessa última obra influiu na decisão da academia sueca em conceder ao escritor o Prêmio Nobel de literatura de 1913. Tagore recebeu também o título de cavaleiro britânico em 1915, ao qual renunciou quatro anos depois em protesto contra o massacre de Amritsar.

A partir de então, Tagore desenvolveu intensa atividade como conferencista em diversos países e em 1921 passou a dedicar grande parte de seus esforços na promoção da universidade internacional Visva-Bharati, que fundou nesse mesmo ano no centro de Santiniketan.

Recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1913 e tornou-se mundialmente famoso graças ao seu livro de poemas Gitanjali (Oferenda Lírica).

Isso não o impediu de continuar a literatura, além da pintura e da música, atividades nas quais também obteve prestígio nacional.

Tagore faleceu em Santiniketan, Bengala, 1941, em 7 de agosto de 1941. Aclamado por Gandhi como “o grande mestre” e reconhecido por todos os indianos como “o sol da Índia”.

Principais Obras
Poesia:

Manasi (1890) [The Ideal One]
Sonar Tari (1894) [The Golden Boat]
Gitanjali (1910) [Song Offerings]
Raja (1910) [The King of the Dark Chamber]
Dakghar (1912) [The Post Office]
Gitimalya (1914) [Wreath of Songs]
Achalayatan (1912) [The Immovable]
Gardener (1913)
Balaka (1916) [The Flight of Cranes]
Fruit-Gathering (1916)
The Fugitive (1921)
Muktadhara (1922) [The Waterfall]
Raktakaravi (1926) [Red Oleanders]
.

Contos e Romances:
Gora (1910)
Ghare-Baire (1916) [The Home and the World]
Yogayog (1929) [Crosscurrents]

Peças Teatrais:
O Rei no Seu Quarto Escuro
O Carteiro do Rei
Sacrifício
Chitangrada
Balka
A Corrente Livre

Quando me ordenas cantar,
parece que o meu coração vai arrebentar-se
de orgulho. Então contemplo a tua face e as
lágrimas me vêm aos olhos.

Tudo o que é duro e dissonante em
minha vida se dissolve em única e doce
harmonia, e a minha adoração abre as
suas asas, como um pássaro alegre voando
sobre o mar.

Sei que tens prazer no meu canto.
Sei que posso chegar à tua presença apenas
como um cantor.

Com a ponta da asa imensamente
aberta do meu canto eu roço os teus pés,
que eu jamais poderia querer alcançar.

Embriagado pela alegria de cantar,
esqueço a mim mesmo e te chamo amigo,
tu que és o meu Senhor.

Fontes:

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Rabindranath Tagore (Nas Margens do Ganges)

Se gostas de ouvir narrações dos tempos passados, então senta-te nesse degrau e presta atenção ao chapinhar da água.

Estávamos nas proximidades do mês de Ashwin (Setembro). A ribeira ia cheia. Da escadaria que descia, somente quatro degraus estavam fora da água. Na margem da ribeira cresciam tufos de plantas compactos sob os ramos dos bosques de mangueiras, onde a corrente formava um ângulo e deixava a descoberto três grandes montões de tijolo As barcas de pesca, amarradas aos troncos de babilas, balouçavam-se indolentemente. Os grandes caniços que cobriam o banco de areia captavam os primeiros raios de sol e começavam a florir antes de atingir o seu pleno desenvolvimento.

Os barcos abriam as suas velas sobre a ribeira cheia de sol. O sacerdote, com os seus vasos rituais, dispunha-se a tomar o banho. As mulheres, em grupos, vinham buscar água. Era a hora em que Kusum tinha o costume de aparecer no alto da escadaria e tomar banho.
Mas naquela manhã não a vi chegar. Diante do ghât (Escadaria onde se toma banho), Bhudan e Swarno lamentavam-se. A sua amiga – diziam – tinha sido levada para casa do marido, uma localidade muito afastada da ribeira, e que se distinguia por uma população estranha, casas estranhas e caminhos estranhos.

Entretanto ela quase desapareceu da minha memória. Passou um ano. As mulheres que vinham tomar banho falavam novamente de Kusum. Uma tarde, porém, estremeci ao reconhecer dois pés familiares. Mas ai, eles não traziam anéis e tinham perdido o seu tilintar musical de outrora!

Kusum estava viúva. Dizia-se que o marido fora chamado a uma cidade longínqua e que ela apenas o vira uma ou duas vezes. O correio trouxera-lhe a notícia da sua morte. Viúva aos oito anos, apagara na fronte o sinal vermelho de casada, despojara-se dos seus braceletes e voltara para a velha casa à beira do Ganges. Mas encontrou poucas amigas dos tempos de solteira. Bhudan, Swarno e Amala tinham casado e partido; só Sarat ficara; mas afirmavam que se dispunha a casar em Dezembro.

Da mesma forma que o Ganges, na estação das chuvas aumenta gradualmente de volume e transborda, assim Kusum se aproximava, dia a dia, da plena floração de beleza. Mas com vestes brancas e sem enfeites, de rosto pensativo e atitude calma, lançavam-lhe um véu sobre a juventude e ocultavam-na, como uma bruma, aos olhos dos homens. Dez anos tinham decorrido sem que ninguém reparasse que Kusum se desenvolvia.

Uma manhã, há muitos anos e por esta mesma temperatura de fim de Setembro, um sannyasi (Asceta ou monge) jovem e de pele clara, chegado não se sabe donde, veio abrigar-se no templo de Sivá, na minha frente. A notícia da sua chegada em breve se espalhou por toda a aldeia. Abandonando as bilhas, as mulheres acorriam ao templo para saudar o santo homem.
A multidão aumentava de dia para dia. A fama do sannyasi depressa se espalhou entre as mulheres. Ele, ora recitava o Bhagvat ora comentava o Gita (Bagvat-gita: obra filosófica que faz parte do Ramugana), ou pregava no templo acerca do tema que escolhiam num livro santo. Uns pediam-lhe conselhos, outros os seus sortilégios ou a sua ciência de curar.

Passaram-se meses. Em Abril, na época do eclipse solar, os banhos do Ganges atraíam uma multidão considerável. Uma feira se organizou sob as árvores de babla. Entre os numerosos peregrinos, acorridos para saudar o sannyasi, vinha um grupo de mulheres da aldeia onde Kusum fora casada.

Era uma manhã. O sannyasi, sentado num degrau, rezava, quando, de súbito, entre os peregrinos, uma mulher fazendo sinal a uma das suas companheiras, murmurava:

– Mas é o esposo de Kusum!

A companheira, afastando um pouco o véu exclamou:

– Palavra, é bem ele! É o filho mais novo dos Chattergi, que habita na minha aldeia!

Uma terceira, disse por sua vez:

– Ele tem exatamente a mesma testa, o mesmo nariz e os mesmos olhos.

Enquanto uma outra, sem mesmo olhar para o sannyasi, agitava a sua bilha na água, suspirando:

– Ai! Ele não é nem será o que foi! Pobre da Kusum!
Uma delas objectou então: «Ele não tinha uma barba tão grande»; e outra: «Ele não era tão magro»; uma outra ainda: «Parecia-me mais alto». E a discussão ficou por aí.
Uma noite de lua cheia, Kusum veio sentar-se perto da água, no mais alto dos meus degraus.

A sua sombra projetava-se sobre mim.
Estávamos sós junto do ghât. Os grilos cantavam à nossa volta. O tanger dos gongos e das sinetas do templo tinham cessado e o murmúrio da água era cada vez mais fraco, para se perder em breve, como a saudade dum som, nos bosques indistintos da margem oposta. Um raio da lua brilhava nas águas escuras do Ganges. Ao montante do rio, sob as sebes e arbustos, sob o pórtico do templo e sob os bosques das palmeiras, perfilavam-se sombras de formas fantásticas. Os morcegos balouçavam-se nos ramos de chatuns. Na proximidade das habitações, os chacais soltavam uivos arrepiantes e prolongados.

O sannyasi saiu do templo com o seu passo lento. Desceu alguns degraus ghât e viu uma mulher só. Ia afastar-se quando de súbito Kusum ergueu a cabeça; voltou-se. O véu caiu e a lua iluminou-lhe o rosto.

Um mocho voou por cima da sua cabeça. Ao ouvir o pio da ave ela estremeceu, ajustou o véu e prosternou-se aos pés do sannyasi.

O Sannyasi deu-lhe a bênção e perguntou:

– Quem sois?

Ela respondeu:

– O meu nome é Kusum.

Nessa noite não trocaram mais palavra. Kusum voltou para casa, lentamente, e o sannyasi permaneceu durante longas horas nos degraus do ghât. Quando, enfim, a lua emigrou do este para o oeste, o Sannyasi levantou-se e entrou no templo.

Vi todos os dias Kusum vir prosternar-se aos pés do sannyasi. Quando ele comentava os livros sagrados, permanecia a um canto e escutava-o; quando acabava as suas orações da manhã, ele chamava-a para junto de si e conversava com ela sobre assuntos religiosos. Kusum não podia compreender tudo, mas escutava-o com atenção e fazia esforços para o compreender. Ele dirigia-a e ela obedecia-lhe escrupulosamente. Kusum ajudava o serviço, sempre pronta à adoração de Deus, colhendo flores para a oferenda e indo buscar água ao Ganges para lavar o chão do templo.
O inverno ia terminar. Os ventos eram ainda frios, por vezes; à noite, a brisa quente da primavera soprava bruscamente do sul e o céu tornava-se azulado; depois dum longo silêncio ouvia-se novamente o som das flautas e a música da aldeia. Os barqueiros deixavam ir os barcos ao sabor da corrente, paravam de remar e entoavam cânticos a Krishna. Era a primavera.
Nesta altura, perdi Kusum de vista. Havia alguns dias que ela deixara de aparecer no templo, no ghât ou diante do sannyasi.

Ignoro o que se passou então, mas, pouco depois, os dois encontraram-se de novo, uma noite, nas escadarias.

Com os olhos baixos, Kusum perguntou:

– Senhor, chamou-me?

– Sim, porque não vinhas? Porque esqueceste, há algum tempo, o serviço de Deus?

Ela ficou silenciosa.

– Diz-me o teu pensamento, sem receio.

Voltando o rosto, ela respondeu:

– Senhor, eu sou uma pecadora, faltei ao meu dever de adoração.

O sannyasi disse-lhe:

– Kusum, eu sei que a tua alma está perturbada.

Ela estremeceu ligeiramente; depois, cobrindo o rosto com o Sari, sentou-se no degrau aos pés do sannyasi e começou a chorar.

Ele recuou um pouco e continuou:

– Diz-me o que tens no coração; eu te mostrarei o caminho da paz.

Ela respondeu com fé e palavras entrecortadas:

– Se me ordena, falarei. Mas receio que não possa exprimir-me com clareza. Mestre, certamente adivinhou tudo. Eu adorei um ser humano como a um Deus, venerei-o, e, ao render-lhe este culto, o meu coração transbordou de felicidade. Mas uma noite, eu sonhei que o Senhor da minha alma estava sentado num jardim, estreitando a minha mão direita na sua mão esquerda e murmurava palavras de amor. A cena não parecia de forma alguma estranha. O sonho desfez-se, mas a sua impressão ficou. No dia seguinte, quando os meus olhos se levantaram para ele, pareceu-me diferente. A imagem que me apareceu no sonho continuava a perseguir-me. Atemorizada tentei fugir para longe, mas a imagem não saía do meu espírito. Desde então, a minha alma não conhece a paz, e tudo em mim se tornou sombrio!
Enquanto enxugava as lágrimas ao mesmo tempo que falava, o Sannyasi martelava convulsivamente, com o pé, o degrau de pedra.

Quando ela acabou de contar, o Sannyasi perguntou:

– Diz-me: quem viste no teu sonho?

Com as mãos juntas, ela suplicou:

– Não posso.

Ele insistiu:

– Deves dizer-me tudo.

Ela contorceu as mãos e interrogou:

– Assim o deseja?

– É teu dever! – respondeu o sannyasi.

Então ela exclamou:

– Senhor, fostes vós que eu vi!
E deixando-se cair no degrau, começou a soluçar profundamente.

Quando sossegou e pôde levantar-se, o Sannyasi disse numa voz meiga:

– Deixarei este lugar esta mesma noite e não me verás mais. Sabes que sou um sannyasi e que não pertenço a este mundo. Deves esquecer-me.
Kusum respondeu em voz baixa:

– Assim farei, Senhor!

O sannyasi murmurou:

– Digo-te adeus…

Sem dizer palavra, Kusum inclinou-se e tocou os pés do sannyasi com a fronte.
E o santo homem deixou a aldeia.

A lua desaparecera; a noite tornou-se escura. Ouvia-se o chapinhar da água. O vento soprava furiosamente nas trevas, como se quisesse varrer as estrelas do céu.

Fontes:
http://www.beatrix.pro.br/
http://www.starnews2001.com.br (imagem)

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Rabinbdranath Tagore (Mãe)

Obrigado pelos sorrisos que deste
mesmo quando preocupada.
Obrigado por chorares por mim
quando te fiz sofrer tanto.

Obrigado por seres valente,
defendendo-me dos dardos ardentes do Diabo.
Jamais faltaste durante o meu medo
e clamaste Deus como minha fortaleza também.

Entreteceste memórias felizes, reunidas para nós,
Partilhando meus pensamentos, meus abraços
e meus sonhos.
Escutando os meus receios e secando
minhas lágrimas;
Preocupando, esperando e rezando por mim.

Devido à força que recebi
graças ao teu amor e devoção,
Houve esperança para mim,
Houve um caminho a seguir.

Quão abençoado sou
por te conhecer, ter-te para mim.
Quão mais abençoado sou
por me erguer e chamar-te minha mãe.

Fonte:
http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo.php?c=4048

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Rachel de Queiroz (1910 – 2003)

“[…] tento, com a maior insistência, embora com tão
precário resultado (como se tornou evidente), incorporar
a linguagem que falo e escuto no meu ambiente nativo à
língua com que ganho a vida nas folhas impressas. Não
que o faça por novidade, apenas por necessidade.
Meu parente José de Alencar quase um século atrás vivia
brigando por isso e fez escola.”

Rachel de Queiroz, nasceu em Fortaleza – CE, no dia 17 de novembro de 1910, filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz, descendendo, pelo lado materno, da estirpe dos Alencar (sua bisavó materna — “dona Miliquinha” — era prima José de Alencar, autor de “O Guarani”), e, pelo lado paterno, dos Queiroz, família de raízes profundamente lançadas em Quixadá, onde residiam e seu pai era Juiz de Direito nessa época.

Em 1913, voltam a Fortaleza, face à nomeação de seu pai para o cargo de promotor. Após um ano no cargo, ele pede demissão e vai lecionar Geografia no Liceu. Dedica-se pessoalmente à educação de Rachel, ensinando-a a ler, cavalgar e a nadar. As cinco anos a escritora leu “Ubirajara”, de José de Alencar, “obviamente sem entender nada”, como gosta de frisar.

Fugindo dos horrores da seca de 1915, em julho de 1917 transfere-se com sua família para o Rio de Janeiro, fato esse que seria mais tarde aproveitado pela escritora como tema de seu livro de estréia, “O Quinze”.

Logo depois da chegada, em novembro, mudam-se para Belém do Pará, onde residem por dois anos. Retornam ao Ceará, inicialmente para Guaramiranga e depois Quixadá, onde Rachel é matriculada no curso normal, como interna do Colégio Imaculada Conceição, formando-se professora em 1925, aos 15 anos de idade. Sua formação escolar pára aí.

Rachel retorna à fazenda dos pais, em Quixadá. Dedica-se inteiramente à leitura, orientada por sua mãe, sempre atualizada com lançamento nacionais e estrangeiros, em especial os franceses. O constante ler estimula os primeiros escritos. Envergonhada, não mostrava seus textos a ninguém.

Em 1926, nasce sua irmã caçula, Maria Luiza. Os outros irmãos eram Roberto, Flávio e Luciano, já falecidos).

Com o pseudônimo de “Rita de Queluz” ela envia ao jornal “O Ceará”, em 1927, uma carta ironizando o concurso “Rainha dos Estudantes”, promovido por aquela publicação. O diretor do jornal, Júlio Ibiapina, amigo de seu pai, diante do sucesso da carta a convida para colaborar com o veículo. Três anos depois, ironicamente, quando exercia as funções de professora substituta de História no colégio onde havia se formado, Rachel foi eleita a “Rainha dos Estudantes”. Com a presença do Governador do Estado, a festa da coroação tinha andamento quando chega a notícia do assassinato de João Pessoa. Joga a coroa no chão e deixa às pressas o local, com uma única explicação “Sou repórter”.

Seu pai adquire o Sítio do Pici, perto de Fortaleza, para onde a família se transfere. Sua colaboração em “O Ceará” torna-se regular. Publica o folhetim “História de um nome” — sobre as várias encarnações de uma tal Rachel — e organiza a página de literatura do jornal.

Submetida a rígido tratamento de saúde, em 1930, face a uma congestão pulmonar e suspeita de tuberculose, a autora se vê obrigada a fazer repouso e resolve escrever “um livro sobre a seca”. “O Quinze” — romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca — é mostrado aos pais, que decidem “emprestar” o dinheiro para sua edição, que é publicada em agosto com uma tiragem de mil exemplares. Diante da reação reticente dos críticos cearenses, remete o livro para o Rio de Janeiro e São Paulo, sendo elogiado por Augusto Frederico Schmidt e Mário de Andrade. O livro logo transformaria Rachel numa personalidade literária. Com o dinheiro da venda dos exemplares, a escritora “paga” o empréstimo dos pais.

Em março de 1931, recebe no Rio de Janeiro o prêmio de romance da Fundação Graça Aranha, mantida pelo escritor, em companhia de Murilo Mendes (poesia) e Cícero Dias (pintura). Conhece integrantes do Partido Comunista; de volta a Fortaleza ajuda a fundar o PC cearense.

Casa-se com o poeta bissexto José Auto da Cruz Oliveira, em 1932. É fichada como “agitadora comunista” pela polícia política de Pernambuco. Seu segundo romance, “João Miguel”, estava pronto para ser levado ao editor quando a autora é informada de que deveria submetê-lo a um comitê antes de publicá-lo. Semanas depois, em uma reunião no cais do porto do Rio de Janeiro, é informada de que seu livro não fora aprovado pelo PC, porque nele um operário mata outro. Fingindo concordar, Rachel pega os originais de volta e, depois de dizer que não via no partido autoridade para censurar sua obra, foge do local “em desabalada carreira”, rompendo com o Partido Comunista.

Publica o livro pela editora Schmidt, do Rio, e muda-se para São Paulo, onde se aproxima do grupo trotskista.

Nasce, em Fortaleza, no ano de 1933, sua filha Clotilde.

Muda-se para Maceió, em 1935, onde faz amizade com Jorge de Lima, Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Aproxima-se, também, do jornalista Arnon de Mello (pai do futuro presidente da República, Fernando Collor, que a agraciou com a Ordem Nacional do Mérito). Sua filha morre aos 18 meses, vítima de septicemia.

O lançamento do romance “Caminho de Pedras”, pela José Olympio – Rio, se dá em 1937, que seria sua editora até 1992. Com a decretação do Estado Novo, seus livros são queimados em Salvador – BA, juntamente com os de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, sob a acusação de subversivos. Permanece detida, por três meses, na sala de cinema do quartel do Corpo de Bombeiros de Fortaleza.

Em 1939, separa-se de seu marido e muda-se para o Rio, onde publica seu quarto romance, “As Três Marias”.

Por intermédio de seu primo, o médico e escritor Pedro Nava, em 1940 conhece o também médico Oyama de Macedo, com quem passa a viver. O casamento duraria até à morte do marido, em 1982. A notícia de que uma picareta de quebrar gelo, por ordem de Stalin, havia esmigalhado o crânio de Trótski faz com que ela se afaste da esquerda.

Deixa de colaborar, em 1944, com os jornais “Correio da Manhã”, “O Jornal” e “Diário da Tarde”, passando a ser cronista exclusiva da revista “O Cruzeiro”, onde permanece até 1975.

Estabelece residência na Ilha do Governador, em 1945.

Seu pai vem a falecer em 1948, ano em que publica “A Donzela e a Moura Torta”. No ano de 1950, escreve em quarenta edições da revista “O Cruzeiro” o folhetim “O Galo de Ouro”.

Sua primeira peça para o teatro, “Lampião”, é montada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e no Teatro Leopoldo Fróes, em São Paulo, no ano de 1953. É agraciada, pela montagem paulista, com o Prêmio Saci, conferido pelo jornal “O Estado de São Paulo”.

Recebe, da Academia Brasileira de Letras, em 1957, o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra.

Em 1958, publica a peça “A beata Maria do Egito”, montada no Teatro Serrador, no Rio, tendo no papel-título a atriz Glauce Rocha.

O presidente da República, Jânio Quadros, a convida para ocupar o cargo de ministra da Educação, que é recusado. Na época, justificando sua decisão, teria dito: “Sou apenas jornalista e gostaria de continuar sendo apenas jornalista.”

O livro “As Três Marias”, com ilustrações de Aldemir Martins, em tradução inglesa, é lançado pela University of Texas Press, em 1964.

O golpe militar de 1964 teve em Rachel uma colaboradora, que “conspirou” a favor da deposição do presidente João Goulart.

O presidente general Humberto de Alencar Castelo Branco, seu conterrâneo e aparentado, no ano de 1966 a nomeia para ser delegada do Brasil na 21ª. Sessão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, junto à Comissão dos Direitos do Homem.

Passa a integrar o Conselho Federal de Cultura, em 1967, e lá ficaria até 1985. Depois de visitar a escritora na Fazenda Não me Deixes, em Quixadá, o presidente Castelo Branco morre em desastre aéreo.

Estréia na literatura infanto-juvenil, em 1969, com “O Menino Mágico”, em 1969.

No ano de 1975, publica o romance “Dôra, Doralina”.

Em 1977, por 23 votos a 15, e um em branco, Rachel de Queiroz vence o jurista Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda e torna-se a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. A eleição acontece no dia 04 de agosto e a posse, em 04 de novembro. Ocupa a cadeira número 5, fundada por Raimundo Correia, tendo como patrono Bernardo Guimarães e ocupada sucessivamente pelo médico Oswaldo Cruz, o poeta Aluísio de Castro e o jurista, crítico e jornalista Cândido Mota Filho.

Seu livro, “O Quinze”, é publicado no Japão pela editora Shinsekaisha e na Alemanha pela Suhrkamp, em 1978.

Em 1980, a editora francesa Stock lança “Dôra, Doralina”. Estréia da Rede Globo de Televisão a novela “As Três Marias”, baseada no romance homônimo da escritora.

Com direção de Perry Salles, estréia no cinema a adaptação de “Dôra, Doralina”, em 1981.

Em 1985, é inaugurada em Ramat-Gau, Tel Aviv (Israel), a creche “Casa de Rachel de Queiroz”. “O Galo de Ouro” é publicado em livro.

Retorna à literatura infantil, em 1986, com “Cafute & Perna-de-Pau”.

A José Olympio Editora lança, em 1989, sua “Obra Reunida”, em cinco volumes, com todos os livros que Rachel publicara até então destinados ao público adulto.

Segundo notícia que circulou em 1991, a Editora Siciliano, de São Paulo, pagou US$150.000,00 pelos direitos de publicação da obra completa de Rachel.

Já na nova editora, lança em 1992 o romance “Memorial de Maria Moura”.

Em 1993, recebe dos governos do Brasil e de Portugal, o Prêmio Camões e da União Brasileira de Escritores, o Juca Pato. A Siciliano inicia o relançamento de sua obra completa.

1994 marca a estréia, na Rede Globo de Televisão, da minissérie “Memorial de Maria Moura”, adaptada da obra da escritora. Tendo no papel principal a atriz Glória Pires, notícias dão conta que Rachel recebeu a quantia de US$50.000,00 de direitos autorais.

Inicia seu livro de memórias, em 1995, escrito em colaboração com a irmã Maria Luiza, que é publicado posteriormente com o título “Tantos anos”.

Pelo conjunto de sua obra, em 1996, recebe o Prêmio Moinho Santista.

Em 2000, é publicado “Não me Deixes — Suas histórias e sua cozinha”, em colaboração com sua irmã, Maria Luiza.

Em novembro deste ano, quando a escritora completou 90 anos de idade, foi inaugurada, na Academia Brasileira de Letras, a exposição “Viva Rachel”. São 17 painéis e um ensaio fotográfico de Eduardo Simões resumindo o que os organizadores da mostra chamam de “geografia interior de Rachel, suas lembranças e a paisagem que inspirou a sua obra”.

Rachel de Queiroz chega aos 90 anos afirmando que não gosta de escrever e o faz para se sustentar. Ela lembra que começou a escrever para jornais aos 19 anos e nunca mais parou, embora considere pequeno o número de livros que publicou. “Para mim, foram só cinco, (além de O Quinze, As Três Marias, Dôra, Doralina, O Galo de Ouro e Memorial de Maria Moura), pois os outros eram compilações de crônicas que fiz para a imprensa, sem muito prazer de escrever, mas porque precisava sustentar-me”, recorda ela. “Na verdade, eu não gosto de escrever e se eu morrer agora, não vão encontrar nada inédito na minha casa”.

Recebe, em 06-12-2000, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Em 2003, é inaugurado em Quixadá (CE), o Centro Cultural Rachel de Queiroz.

Faleceu, dormindo em sua rede, no dia 04-11-2003, na cidade do Rio de Janeiro. Deixou, aguardando publicação, o livro “Visões: Maurício Albano e Rachel de Queiroz”, uma fusão de imagens do Ceará fotografadas por Maurício com textos de Rachel de Queiroz.

Obras Individuais:
– Romances:

– O quinze (1930)
– João Miguel (1932)
– Caminho de pedras (1937)
– As três Marias (1939)
– Dôra, Doralina (1975)
– O galo de ouro (1985) – folhetim na revista ” O Cruzeiro”, (1950)
– Obra reunida (1989)
– Memorial de Maria Moura (1992)

Literatura Infanto-Juvenil:
– O menino mágico (1969)
– Cafute & Pena-de-Prata (1986)
– Andira (1992)
– Cenas brasileiras – Para gostar de ler 17.

Teatro:
– Lampião (1953)
– A beata Maria do Egito (1958)
– Teatro (1995)
– O padrezinho santo (inédita)
– A sereia voadora (inédita)

Crônica:
– A donzela e a moura torta (1948);
– 100 Crônicas escolhidas (1958)
– O brasileiro perplexo (1964)
– O caçador de tatu (1967)
– As menininhas e outras crônicas (1976)
– O jogador de sinuca e mais historinhas (1980)
– Mapinguari (1964)
– As terras ásperas (1993)
– O homem e o tempo (74 crônicas escolhidas}
– A longa vida que já vivemos
– Um alpendre, uma rede, um açude: 100 crônicas escolhidas
– Cenas brasileiras
– Xerimbabo (ilustrações de Graça Lima)
– Falso mar, falso mundo – 89 crônicas escolhidas (2002)

Antologias:
– Três romances (1948)
– Quatro romances (1960) (O Quinze, João Miguel, Caminho de Pedras,
As três Marias)
– Seleta (1973) – organização de Paulo Rónai

Livros em parceria:

– Brandão entre o mar e o amor (romance – 1942) – com José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Jorge Amado.

– O mistério dos MMM (romance policial – 1962) – Com Viriato Corrêa, Dinah Silveira de Queiroz, Lúcio Cardoso, Herberto Sales, Jorge Amado, José Condé, Guimarães Rosa, Antônio Callado e Orígines Lessa.

– Luís e Maria (cartilha de alfabetização de adultos – 1971) – Com Marion Vilas Boas Sá Rego.

– Meu livro de Brasil (Educação Moral e Cívica – 1º. Grau, Volumes 3, 4 e 5 – 1971) – Com Nilda Bethlem.

– O nosso Ceará (com sua irmã, Maria Luiza de Queiroz Salek), relato, 1994.

– Tantos anos (com sua irmã, Maria Luiza de Queiroz Salek), auto-biografia, 1998.

– O Não Me Deixes – Suas Histórias e Sua Cozinha (com sua irmã, Maria Luiza de Queiroz Salek), 2000.

Fonte:
http://www.releituras.com/racheldequeiroz_bio.asp

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Rachel de Queiroz (Um caso obscuro)

Não quero fazer campanha contra quem acredita em espíritos, quem tem visões ou ouve “avisos”. Espiritismo é religião tão respeitável quanto qualquer outra. Quero apenas prevenir meu amigo leitor contra alguma conversão apressada, porque o fato é que as forças da terra muitas vezes se misturam com as forças do céu.

O caso que passo a contar como exemplo, naturalmente que e verídico. Se fosse a cronista inventar um conto, teria que apurar muito mais o enredo e os personagens, dar-lhes veracidade e complexidade. E, aliás, como ficção ele não teria importância nem sentido. O seu valor único e a autenticidade.

Certa professora de grupo, minha conhecida, tem uma empregada, senhora cinqüentona, de cara séria e jeito discreto, natural de Suruí, no Estado do Rio, de onde veio há poucos meses. E lá em Suruí deixou a mãe cega e enferma, da qual não tinha notícias desde que viera para a cidade. Analfabeta, não escrevia nem recebia cartas. Essa gente da roça não acredita muito em correspondência senão para notícias capitais.

Mas um belo dia acordou a empregada, que se chama Joana, chorando, abaladíssima, queixando-se de estranhas visões. Dizia que passara toda a noite acordada; mas não pudera chamar ninguém porque com o medo ficara sem fala. Sentira uns assopros no ouvido, depois lhe sacudiam a cama, como se fosse um terremoto. Por fim vira a mãe, a velhinha cega, estirada num caixão, metida numa mortalha preta. Toda a manhã a mulher chorou e lamentou-se. A patroa, penalizada, ofereceu-se para mandar um telegrama pedindo noticias. Joana, porém, tinha medo de telegramas:

— E mais medo tem minha mãe. Chegando telegrama lá, se ela ainda estiver viva morre só de susto.

Estavam nisso as coisas quando ao meio-dia aparece na casa da professora um filho homem de Joana, que também reside na cidade. Trazia na mão um envelope fechado, sem carimbo nem selo. Era uma carta vinda em mão própria da sua terra, explicou o moço. E como ele também não sabia ler, pediram à patroa que abrisse e lesse a missiva — aliás curta e comovente.

“Minha irmã como vai esta tem por fim de lhe dizer que a nossa mãe está às portas da morte já de vela na mão. Joana se apresse sinão não vê mais nossa mãe adeus do seu irmão Basílio.”

Chegando assim aquela carta, após a série de visões noturnas, era impressionante. E a própria patroa a abrira, excluindo-se assim a possibilidade de conhecimento prévio do conteúdo. Era uma dessas bofetadas que o mundo dos invisíveis atira aos pobres humanos, deixando-os cheios de susto e dúvida. Com seus próprios ouvidos escutara a patroa pela manhã a história do assopro, das sacudidelas na cama, da figura amortalhada no caixão. Com suas mãos recebera a carta, com seus olhos lera o endereço tremido e oblíquo, e depois a lacônica má nova. Naturalmente deu imediata licença a Joana para a viagem. Grande falta lhe faria em casa, mas quem pode pensar em impedir um filho de despedir-se da mãe, à hora da morte? E deu-lhe mais dinheiro, deu-lhe um vestido preto quase novo, consultou o horário dos trens, forneceu provisões para a viagem. Não era só caridade de burguesa progressista que a animava, mas principalmente o interesse do profano por uma criatura feita instrumento das forças do Incognoscível. E Joana partiu. A patroa ficou contando a história aos conhecidos; contou por boca e por telefone. Chegou a contar por carta. Não a repetiu às crianças no grupo só de medo de assustá-las com essas coisas misteriosas que ficam entre o céu e a terra. O caso era tão simples, tão líquido: resumia-se apenas a fatos dos quais ela própria era testemunha. E fazia cálculos: a carta deve ter partido de Suruí na antevéspera, de modo que a velha bem podia estar mesmo morrendo na hora das visões noturnas de Joana. Ficou a esperar impaciente a volta da viajante. Sim, porque Joana pediu que o seu lugar fosse conservado, que, consumado tudo, voltaria. “Nem espero a semana de nojo, patroa. Venho logo depois do enterro.”

E, falando em enterro, rompeu em pranto.

Passados oito dias, chegou Joana, mas ainda com a saia estampadinha de encarnado com a qual partira, em vez do vestido de seda preta que lhe dera a patroa, prevendo o luto. Sim, a velha continuava viva. Contou que a mãe estivera de fato muito ruim, vai-não-vai, mas de repente melhorara. Por isso Joana se demorara mais, até que a melhora parecesse segura. E voltou a trabalhar como dantes.

Aquela quase ressurreição desorientou a patroa. Afinal, a velha aparecera de mortalha, e dera o assopro, e sacudira a cama… Mas consultando sobre o assunto os amigos espíritas, eles lhe explicaram que era assim mesmo, e tanto o espírito encarnado como o desencarnado poderia mandar “avisos”. Falaram mesmo em corpo astral, e a professora se impressionou muito.

Nesse estado moral ficou, meio abalada, meio crente, até que um dia sucedeu dessas incríveis, dessas raras coincidências que só acontecem na vida real e nos romances de fancaria: recebeu a visita de uma amiga a quem também contara a história da visão. A amiga vinha de propósito lhe narrar a tal coincidência inaudita. Imagine-se que o filho de Joana por acaso fora trabalhar em sua casa, consertando-lhe o jardim. Lá estava fazia uma quinzena quando inexplicavelmente desapareceu por uma semana. Passados os oito dias, voltou, e alegou motivo de moléstia para a ausência.

No jardim, revolvendo os canteiros, podando o fícus, estabeleceu-se entre jardineiro e patroa esse entendimento normal entre companheiros de trabalho, Ela explicava como queria o serviço, ele dizia que na casa do Dr. Fulano fazia assim e assim, que enxerto de mergulha só é bom com lua tal etc. Afinal, ela lhe perguntou que doença fora a sua, dias antes. O rapaz, que enterrava umas batatas de dália, ficou encabulado. Depois, teve assim como um assomo de consciência, e explicou:

— Patroa, falar a verdade é preciso. Não estive doente não. Mas o caso é que minha mãe meteu na idéia ir em casa, com vontade de assistir umas ladainhas que rezam lá no mês de agosto. Como estava num emprego bom, teve medo que a dona-de-casa se zangasse com uma viagem assim à-toa e não guardasse o lugar para ela, de volta. Então se combinou comigo, só por causa de não fazer a moça se zangar. Pegou a ter uns sonhos com a minha avó, enfiava os olhos na fumaça do fogo para sair chorando. Ai eu mandei um companheiro fazer uma carta chamando, dizendo que a velha estava morrendo, lá no Suruí. A patroa consentiu logo, naturalmente. Tive que fazer companhia a minha mãe, assistimos as ladainhas e agora estamos os dois de volta à nossa obrigação…

A moça ficou espantadíssima:

— Mas, criatura, como é que sua mãe teve a coragem de chamar assim morte para cima de sua avó? Vocês não tiveram medo do agouro?

— Qual, dona! Uma velha daquela, cega, doente, em cima duma cama, dando trabalho e consumição a todo mundo, chamar a morte para ela não é agouro; chamar a morte para ela é mais uma obra de caridade. E dai, agouro que fosse, vê-se bem que não pegou…

Fonte:
Queiroz, Rachel de.Quatro Vozes. Ed. Record, 1998.
http://www.releituras.com/racheldequeiroz_umcaso.asp

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Rachel de Queirós (O Quinze)

O título se refere a grande seca de 1915, vivida pela escritora em sua infância. O romance se dá em dois planos, um enfocando o vaqueiro Chico Bento e sua família, o outro a relação afetiva de Vicente, rude proprietário e criador de gado, e Conceição, sua prima culta e professora.

Conceição é apresentada como uma moça que gosta de ler vários livros, inclusive de tendências feministas e socialistas o que estranha a sua avó, Mãe Nácia – representante das velhas tradições. No período de férias, Conceição passava na fazenda da família, no Logradouro, perto do Quixadá. Apesar de ter 22 anos, não dizia pensar em casar, mas sempre se engraçava à seu primo Vicente. Ele era o proprietário que cuidava do gado, era rude e até mesmo selvagem.

Com o advento da seca, a família de Mãe Nácia decide ir para cidade e deixar Vicente cuidando de tudo, resistindo. Trabalhava incessantemente para manter os animais vivos. Conceição trabalhava agora no campo de concentração onde ficavam alojados os retirantes, e descobre que seu primo estava de caso com uma caboclinha qualquer.

Vicente se encontra com Conceição e sem perceber confessa as temerosidades dela. Ela começa a tratá-lo de modo indiferente. Vicente se ressente disso e não consegue entender a razão. As irmãs de Vicente armam um namoro entre ele e uma amiga, a Mariinha Garcia. Ele, porém, se espanta ao saber que estava namorando, dizendo que apenas era solícito para com ela e não tinha a menor intenção de comprometimento.

Conceição percebe a diferença de vida entre ela e seu primo e a quase impossibilidade de comunicação. A seca termina e eles voltam para o Logradouro.

Esta é a parte mais importante do livro. Apresenta a marcha trágica e penosa do vaqueiro Chico Bento com sua mulher e seus 5 filhos, representando os retirantes. Ele é forçado a abandonar a fazenda onde trabalhara. Junta algum dinheiro, compra mantimentos e uma burra para atravessar o sertão. Tinham o intuito de trabalhar no Norte, extraindo borracha.

No percurso, em momento de grande fome, Josias, o filho mais novo, come mandioca crua, envenenando-se. Agonizou até a morte.

Uma cena marcante na vida do vaqueiro foi a de matar uma cabra e depois descobrir que tinha dono. Este o chamou de ladrão, e levou o resto da cabra para sua casa, dando-lhes apenas as tripas para saciarem. Léguas após, Chico Bento dá falta do seu filho mais velho Pedro. Chegando ao Aracape, lugar onde supunha que ele pudesse ser encontrado, avista um compadre que era o delegado. Recebem alguns mantimentos, mas não é possível encontrar o filho. Ficam sabendo que o menino tinha fugido com comboeiros de cachaça.

Ao chegarem no campo de concentração, são reconhecidos por Conceição, sua comadre. Ela arranja um emprego para Chico Bento e passa a viver com um de seus filhos. Conseguem também uma passagem de trem e viajam para São Paulo, desistindo de trabalhar com a borracha.

Fontes:
http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo.php?c=2777
http://www.pipaproducoes.com.br/ (imagem)

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Raul Pompéia (1863 – 1895)

Raul Pompéia (R. de Ávila P.), jornalista, contista, cronista, novelista e romancista, nasceu em Jacuecanga, Angra dos Reis, RJ, em 12 de abril de 1863, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 25 de dezembro de 1895. É o patrono da Cadeira n. 33, por escolha do fundador Domício da Gama.

Era filho de Antônio de Ávila Pompéia, homem de recursos e advogado, e de Rosa Teixeira Pompéia. Transferiu-se cedo, com a família, para a Corte e foi internado no Colégio Abílio, dirigido pelo educador Abílio César Borges, o barão de Macaúbas, estabelecimento de ensino que adquirira grande nomeada. Passando do ambiente familiar austero e fechado para a vida no internato, recebeu Raul Pompéia um choque profundo no contato com estranhos. Logo se distingue como aluno aplicado, com o gosto dos estudos e leituras, bom desenhista e caricaturista, que redigia e ilustrava do próprio punho o jornalzinho O Archote. Em 1879, transferiu-se para o Colégio Pedro II, para fazer os preparatórios, e onde se projetou como orador e publicou o seu primeiro livro, Uma tragédia no Amazonas (1880).

Em 1881 começou o curso de Direito em São Paulo, entrando em contato com o ambiente literário e as idéias reformistas da época. Engajou-se nas campanhas abolicionista e republicana, tanto nas atividades acadêmicas como na imprensa. Tornou-se amigo de Luís Gama, o famoso abolicionista. Escreveu em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, freqüentemente sob o pseudônimo “Rapp”, um dentre os muitos que depois adotaria: Pompeu Stell, Um moço do povo, Y, Niomey e Hygdard, R., ?, Lauro, Fabricius, Raul D., Raulino Palma. Ainda em São Paulo publicou, no Jornal do Commercio, as “Canções sem metro”, poemas em prosa, parte das quais foi reunida em volume, de edição póstuma. Também, em folhetins da Gazeta de Notícias, publicou a novela As jóias da Coroa.

Reprovado no 3º ano (1883), seguiu com 93 acadêmicos para o Recife e ali concluiu o curso de Direito, mas não exerceu a advocacia. De volta ao Rio de Janeiro, em 1885, dedicou-se ao jornalismo, escrevendo crônicas, folhetins, artigos, contos e participando da vida boêmia das rodas intelectuais. Nos momentos de folga, escreveu O Ateneu, “crônica de saudades”, romance de cunho autobiográfico, narrado em primeira pessoa, contando o drama de um menino que, arrancado ao lar, é colocado num internato da época. Publicou-o em 1888, primeiro em folhetins, na Gazeta de Notícias, e, logo a seguir, em livro, que o consagra definitivamente como escritor.

Decretada a abolição, em que se empenhara, passou a dedicar-se à campanha favorável à implantação da República. Em 1889, colaborou em A Rua, de Pardal Mallet, e no Jornal do Commercio. Proclamada a República, foi nomeado professor de mitologia da Escola de Belas Artes e, logo a seguir, diretor da Biblioteca Nacional. No jornalismo, revelou-se um florianista exaltado, em oposição a intelectuais do seu grupo, como Pardal Mallet e Olavo Bilac. Numa das discussões, surgiu um duelo entre Bilac e Pompéia. Combatia o cosmopolitismo, achando que o militarismo, encarnado por Floriano Peixoto, constituía a defesa da pátria em perigo. Referindo-se à luta entre portugueses e ingleses, desenhou uma de suas melhores charges: “O Brasil crucificado entre dois ladrões”. Com a morte de Floriano, em 1895, foi demitido da direção da Biblioteca Nacional, acusado de desacatar a pessoa do Presidente no explosivo discurso pronunciado em seu enterro. Rompido com amigos, caluniado em artigo de Luís Murat, sentindo-se desdenhado por toda parte, inclusive dentro do jornal A Notícia, que não publicara o segundo artigo de sua colaboração, pôs fim à vida no dia de Natal de 1895.

A posição de Raul Pompéia na literatura brasileira é controvertida. A princípio a crítica o julgou pertencente ao Naturalismo, mas as qualidades artísticas presentes em sua obra fazem-no aproximar-se do Simbolismo, ficando a sua arte como a expressão típica, na literatura brasileira, do estilo impressionista.

Bibliografia
Obras: Uma tragédia no Amazonas, novela (1880); As jóias da coroa, novela (1882); Canções sem metro (1883); O Ateneu, romance (1888). A obra completa de Raul Pompéia está reunida em Obras, org. de Afrânio Coutinho, 10 vols. (1981-1984).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras.
www.academia.org.br

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Raul Pompéia (As Canções Sem Metro)

VIBRAÇÕES

Comme des longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se repondent.
C. BAUDELAIRE

Vibrar, viver. Vibra o abismo etéreo à música das esferas; vibra a convulsão do verme, no segredo subterrâneo dos túmulos. Vive a luz, vive o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à semelhança os ânimos.

A harpa do sentimento canta no peito, ora o entusiasmo, um hino, ora o adágio oscilante da cisma. A cada nota, uma cor, tal qual nas vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das paixões. Eleva-se a gradação cromática até à suprema intensidade rutilante; baixa à profunda e escura vibração das elegias.

Sonoridade, colorido: eis o sentimento.

Daí o simbolismo popular das cores.

VERDE, ESPERANÇA.

A impetuosa alegria da terra, à passagem de Flora, a primavera verde, compromisso maternal do outono e da opulência.

Náufragos no mar.

Sem pão, sem rumo. Em roda, o gume afiado do horizonte, a reverberação do sol nas águas e o silêncio solene da calmaria. A vela do barco, flácida, pendente — imagem do abatimento. Ligeira viração depois; denso nevoeiro… quatro dias! sudário de brumas que envolve o barco, elimina o céu. Vão acabar assim, amortalhados na bruma. Um ramo, apenas, sobre as águas, um ramo cor da esperança. Salvos! Adivinha-se o continente salvador através da névoa e o panorama verde das florestas.

AMARELO, DESESPERO.

Ouro e sol; ouro, o desespero da cobiça, sol, o desespero da contemplação: a cor dos ideais perdidos.

Sobre o leito, o cheiro mau das chagas era como uma antecipação da morte. Descamava-se a pele em crostas ásperas sobre o grude do pus. Ela morria, alcançada pelo sorteio inexorável da Peste. À porta, o anjo negro da maldição; longe, a espavorida caridade.

Ali, na parede, havia flores adornando um retrato de moço. Simples lembrança da Páscoa, flores da aleluia, colhidas numa escapada de amantes. Amor não faz quaresma… Cobertas de ouro as árvores… Ela também triunfante: ouro sobre o esplendor adorado do sexo… Agora fitava as flores secas. Junto dela, o filho, pequeno animal sem vontade, sem vida, que lhe chegava aos lábios um copo d’água.

Sobrara-lhe um filho nos desperdícios do passado, para vigiar-lhe a agonia. Ninguém mais, ninguém mais, nem Deus com ela: apenas as flores do desespero e aquele copo d’água de vez em quando, que ela sorvia como uma medicina amarga de lágrimas…

AZUL, CIÚME.

Céu e oceano, a soledade sem fim. O ciúme é isolamento, queixa sem ecos do coração solitário.

Ao despertar, estava só na triste câmara. Enferma e abandonada! Calcadas aos pés as juras de ontem, como destroços de um ídolo quebrado. Fronteira ao leito, a janela parecia alargar-se mais e mais para mostrar o firmamento. Sob o reflexo azul sonhara Rosita o abandono, eles felizes numa concha de safira, levados à flor do grande lago, docemente, cantando, docemente, se a barcarola os levasse. Morreu, fechando na pálpebra a estampa diurna daquele azul fundo, deserto.

ROXO, TRISTEZA.

Tinta tomada à palheta do ocaso e às flores da morte.

Alegre, ela. Muita luz no espaço; bailava no ar o cântico sereno da manhã; na relva os arbustos orvalhados tinham um pequenino sol em cada folha. Somente as violetas sofriam, pungidas pelo dia.

Outra manhã, tudo mudado. Na atmosfera, um torpor gélido e sombrio. Os extremos da paisagem gastam-se na cerração como as orlas de uma pintura velha: nem sol nem pássaros na relva.

Agora, órfã.

As violetas revivem, as melancólicas, desabrochando em suspiros, sob as lágrimas da chuva.

VERMELHO, GUERRA.

Sangue, cólera, vingança, os hinos marciais, golpes, o incêndio, vermelho o manto dos tiranos e Marte, o astro dos combates.

Da casinha à beira-mar, olhos em febre, a velha mãe argüía a distância. Lá, mergulhara o vapor que lhe roubava o filho para a guerra. A tarde passa e a noite; a velha, imóvel, marmorizada na dor, como uma escultura do Stabat Mater. E vem a aurora, uma aurora brutal de chama e sangue. A mãe do soldado caiu como morta.

Ouvira, das bandas da aurora, um grito de morte e a voz perdida do agonizante era a voz do filho.

BRANCO, PAZ.

Arminho imaculado e virginais capelas, o sagrado leito das mães, o rosto calmo dos mortos, os tranqüilos fantasmas.

“Terminada a luta, minha boa Irene. Torno a ver-te enfim e aos queridinhos. Ver-me-ás também. Como se fica velho neste ambiente de pólvora queimada!”

Dizia assim a carta, datada do acampamento. Irene ergueu os olhos para a tarde, os olhos rasos de pranto. Expirava o crepúsculo na ditosa agonia dos patriarcas, lenta e mansa; errava no ocidente a neblina lúcida da última hora, saudade apenas no dia extinto. A estrela plácida das tardes parecia olhar a terra; em frente alava-se a lua e o luar noctâmbulo ia, pelos caminhos, semeando a difusão suavíssima da paz.

Irene abandonou-se ao êxtase contemplativo, gozando o crepúsculo, como se lhe invadisse o sentimento a letargia edênica do anoitecer.

NEGRO, MORTE.

O contraste da luz é a noite negra.

Sente-se na epiderme a carícia do calefrio; envolve-nos um clima glacial; estranha brisa penetra-nos, feita de agulhas de gelo. Em vão flameja o sol a pino. Sente-se dentro na altura a noite negra, invernosa, polar; sofre-se o contato da Sombra. Tudo trevas, sinistramente trevas. O dia, resplandecente na alvura dos edifícios, produz o efeito da prata nos catafalcos. Vemos as flores, o prado. Monstros! Reclamam a carne do pé que os pisa; o verme sôfrego espreita-nos através da terra… Rir?! Mas o riso tem a cruel vantagem de acentuar, sob a pele, a caveira…

Há destas escuras noites no espírito.

ROSA, AMOR.

O sorrir das virgens, e o adorável pudor, e a primeira luz da manhã.

Esta criança pensativa. Acompanha com a vista o revoar dos pombos; escuta o misterioso segredo dos casais pousados. Vive-lhe ainda no semblante a candura da infância e nos formosos cabelos o cálido aroma do berço. Súbito, duas pombas partem. Vão. Longe, são como pontos brancos no azul; o bater das asas imita cintilações: vão, espaço a fora, estrelas enamoradas.

A cismadora criança experimenta a vertigem do azul e a alma escapa, sedenta de amplidão, e voa ao encalço das estrelas.

Há noites de pavor nas almas, há belos dias igualmente e gratas expansões matinais, auroras de rosa como em Homero.

Há também nas almas o incolor diáfano do vidro.

Dinheiro, amor, honraria, sucesso, nada me falta. O programa das ambições tracei, realizei. Tive a meu serviço a inteligência estudiosa do Ocidente e a sensualidade amestrada do Levante. Tive por mim as mulheres como deusas e os homens como cães. Nada me falta e disto padeço. Todos dizem: aspiração! e eu não aspiro. Todos sentem a música do universo e a harmonia colorida dos aspectos. Para mim só, vítima da saciedade! tudo é vazio, escancarado, nulo como um bocejo.

E os dias passam, que vou contando lento, lento torturado pela implacável cor de vidro que me persegue.

Há, enfim, a coloração indistinta dos sentimentos, nas almas deformadas.

Veio de longe, muito longe, mísero! Teve outrora um céu, uma pátria, muitas afeições, a cabana da aldeia. Agora só tem o ódio. O ódio mora-lhe no peito, como um tigre na furna. Tiraram-lhe a pátria, a companheira, votaram-lhe à morte os filhos, as filhas à torpeza; deram-lhe em compensação… Mostrava a face preta, o sangue a correr. Quem são os teus algozes?

— Os homens brancos.

Ela odeia os homens brancos; odeia a torre aguda, ao longe, como um punhal voltado contra os céus: odeia o trem medonho de fogo e ferro, que muge e passa, troando, escândalo do ermo.

Fonte:
Academia Brasileira de Letras. http://www.academia.org.br/

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Raul Pompéia (As Jóias da Coroa)

Manuel Pavia é um malandro que tenta roubar as jóias pertencentes ao duque de Bragança, no inicio parecia que tudo ida dar certo até que…, Mas vejamos esta trama desde do inicio, Paiva era amigo pessoal do duque de Bragança Sardanapolo a ponto de secretamente conseguir programar encontros, às escondidas, para o duque com garotas para fins sexuais inclusive estava negociando com o avo de uma garota de 14 anos certa soma em dinheiro para que ela se deitasse com o duque.

Ao combinar o assalto Pavia solicita a ajuda do criado da casa, Inácio, passando para ele detalhes do plano arquitetado, embora de princípio ficasse temeroso Inácio acaba aceitando participar, ao mesmo tempo em que planejam o assalto Paiva programa o encontro do duque com a garota que desconhece a má intenção de seu avo e o senhor Paiva.

De inicio o assalto é bem sucedido, roubando o senhor Paiva, muitas jóias e um caríssimo anel que pertencia à esposa do arquiduque; O cenário vem bem montado até uma corda na janela simulava a forma que os ladrões entraram, mas na verdade o criado foi quem facilitou a entrada do ladrão das jóias. No dia seguinte ao assalto há uma grande comoção na mansão do duque e toda vizinhança fica sabendo do ocorrido, a policia chega e mal sabe por onde começar a investigação, no entanto o duque de Bragança se mantém calmo todo o tempo.

Chamando o senhor Pavia ao seu gabinete acusa-o veemente de ser o ladrão apresentando enes evidencias para pensar assim, de inicio Pavia nega tentando se escusar mas acaba admitindo, e ameaça contar tudo que sabe da vida errada do duque se for entregue a policia; Os dois conversam algo não revelado pelo autor, voltando para sala o duque entrega Pavia a policia, no entanto o esperto Pavia consegue se livrar da prisão, num acordo onde devolve todas as jóias roubadas.

Há, quanto ao encontro do duque com a garota ele é frustrado por Emilia que revela ser a mãe da garota, e que ela é fruto de um estupro cometido pelo próprio duque há 14 anos atrás.

Fonte:
http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo.php?c=1217
http://raul-pompeia.comprar-livro.com.br/ (imagem)

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Nicholas Sparks (O Sorriso das Estrelas)

Existe algo numa lua cheia misteriosa num céu vagamente iluminado pela noite, levando o seu enevoado reflexo sobre o horizonte e sobre as aguas tranquilas de uma costa rochosa, que evoca um sentido profundo de desejo e nostalgia e que nos faz querer apaixonar. À primeira vista, estava à espera de ser uma história comovente sim, mas também uma história de amor previsível. Mas á medida que a história se foi desenrolando, fui descobrindo uma história de amor e sacrifício mais sensível e inspiradora do que alguma coisa que eu já tenha lido. O Sorriso das Estrelas é sem duvida um clássico dentro deste gênero. A protagonista, Adrienne Willis, é uma mulher perto dos sessenta anos e mãe divorciada de três adolescentes. A tragédia abate-se sobre eles quando, a filha de Adrienne perde o marido devido a um cancro e na sua depressão começa a negligenciar os seus dois filhos. Agora, Adrienne chega á conclusão de que está na altura de confidenciar á sua filha um segredo seu que esta escondido há mais de 14 anos. Sendo assim, um dia, durante um chá, Adrienne narrou a história do homem que lhe fez recuperar a esperança e a coragem de viver que ela pensava ter perdido para sempre… o homem que lhe mostrou o verdadeiro significado do amor e que se tornou no seu anjo da guarda para sempre….o homem chamado Paul Flanner.

Três anos depois do seu marido a ter trocado por uma mulher mais nova, Adrienne batalhou como uma bibliotecária em part-time para sobreviver e cuidar do seu pai doente, que exigia assistência médica 24 horas por dia. Então, quando questionada por uma amiga, para ficar á frente de uma estalagem em Rodanthe por um fim de semana, Adrienne aceitou prontamente, esperando alcançar a paz e o relaxamento que ela tanto desejava. Mal ela sabia que um encontro crucial com um completo estranho a esperavam em Rodanthe. Uma terrível tempestade, estava prevista para o dia em que o Dr. Paul Flanner chegou a Rodanthe, para visitar o marido de uma das suas pacientes falecidas. A par de um divórcio complicado e esperando fazer as pazes com o seu distante filho, Paul, assim como Adrienne também estava a tentar curar o seu coração partido. Por isso não foi novidade nenhuma que estas duas almas perdidas procurassem consolação (e amor) uma na outra.Enquanto os dois lutavam para que os seus sentimentos se mantivessem sem serem notados, o ambiente da pequena cidade adormecida, o calor e o acolhimento da estalagem e a intensidade das suas emoções levou a melhor e os dois acabaram nos braços um do outro, alterando assim a vida um do outro para sempre. Mas apesar do desabrochar do amor deles, nem Paul nem Adrienne podiam esquecer as suas responsabilidades perante os seus filhos e foram levados a fazer uma jura de amor de que iriam ficar juntos…um dia. E durante a sua separação, eles mantiveram esta promessa viva, até que um deles acabou por ser levado a cometer um ato menos altruísta que os separou para sempre

Sorriso das Estrelas não é apenas uma historia de amor. É sobre morrer por aquele que amamos e perdoar aquele que morre por nós. É sobre o amor que sobrevive á morte por toda a eternidade. Confirma que o sacrifício é a essência do amor e assim como o Nicholas Sparks diz, mostra que o amor pode acontecer a qualquer um, em qualquer altura e em qualquer idade. Apesar do romance ter sito criticado por ser um dos menos exigentes do Nicholas Sparks e ter sido visto por alguns como uma mera variação do romance As pontes de Madison County, definitivamente tem o seu toque de unicidade e originalidade e o seu próprio charme, distinto de uma outra criação literária. Eu recomendo este livro a todos os que gostem de ler uma pequena mas poderosa obra de ficção. Apesar de poder gostar ou não de historias de amor, tenho a certeza de que irá gostar deste livro, por causa da união de vários elementos que foram utilizados nesta obra. O Sorriso das Estrelas é tudo ele sobre o amor, sacrifício, perdão, esperança e claro, a força para continuar, e estas são emoções que falam uma língua universal. Prepare-se para lagrimas, suspiros e pena….mas principalmente prepare-se para se inspirar para viver…

Fonte:
http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo.php?c=168

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Adalberto Chiavenato (Diretrizes Para Leitura, Análise E Interpretação De Textos)

Já no primeiro parágrafo do texto o autor passa a dificuldade de compreensão dos textos filosóficos, mostrando que temos, mas facilidade para entender os textos teóricos, ou seja, no texto literário os leitores defrontam com textos científicos ou filosóficos, o qual os levam ao desanimo, mas deixa claro que são superáveis, não tem a mesma facilidade dos textos literários, cuja leitura revela uma seqüência de raciocínio e o enredo é apresentado dentro dos quadros referenciais e fornecidos pela imaginação.

No caso dos textos de pesquisa positiva, o raciocínio é mais rigoroso, e preciso ter técnica especificas para levantar os dados, no qual deve se acompanhar o encadeamento lógico destes fatos.

Nos textos filosóficos e teóricos o que conta é a razão flexiva, o que exige muita disciplina intelectual para que a mensagem possa ser compreendida.

2. Antes de abordar as diretrizes para leitura e analise de textos, recomenda se atentar para a função dos mesmos em termos de uma teoria geral da comunicação, estabelencendo-se algumas justificativas psicológicas e epistemológicas fundamentais para a adoção destas normas metodológicas e técnicas, tanto para leitura como para redação e textos.

O esquema da teoria geral apresentando pela teoria da comunicação seria uma mensagem entre um emissor e receptor, assim fornecera mais elementos para a compreensão da origem da finalidade de um texto, no entanto para ser transmitida, deve ser medializada, já que a comunicação entre as consciências não pode ser feita diretamente, sendo assim o texto linguagem é o código que cifra a mensagem.

Quando o autor (emissor) escreve um texto ele já havia pensado por tanto o leitor (receptor) ao ler o texto decodifica a mensagem, para então pensá-la e personalizá-la, compreendendo-a: assim se completa a comunicação.
O homem sofre uma série de interferências pessoais e culturais que põem em risco a objetividade da comunicação.

3. As diretrizes metodológicas que são apresentadas a seguir têm apenas objetivos práticos;

DELIMITAÇÃO DA UNIDADE DE LEITURA

Unidade é um setor do texto que forma uma totalidade de sentido, de acordo com esta orientação, a leitura de um texto, quando feita para fins de estudo, deve ser feita por etapas, ou seja, apenas terminada a análise, de uma unidade é que se passará à seguinte.

O estudo da unidade deve ser feito de maneira continua, evitando ? se intervalos de tempo muito grandes entre várias etapas da análise.

ANÁLISE TEXTUAL

Primeira abordagem do texto com vistas á preparação da leitura. Trata-se de uma leitura atenta, mas corrida, sem buscar esgotar toda a compreensão do texto. Deve buscar a visão panorâmica, fazer levantamentos básicos, assinalar todos os pontos possíveis de dúvida.

Primeiro buscar dados sobre o Autor do texto, a seguir o vocabulário, trata se de fazer um levantamento dos conceitos e dos termos que seja fundamental para compreensão do texto ou que sejam desconhecidos do leitor, por outro lado o texto pode fazer referências a fatos históricos, a autores e especialmente a outras doutrinas, cujo o sentido no texto é pressuposto pelo autor mas nem sempre conhecido pelo leitor.

Os esclarecimentos são encontrados em dicionários, textos de história, manuais didáticos, ou monografias especializadas.A analise textual pode ser terminada com uma esquematização do texto cuja finalidade é apresentar uma visão de conjunto da unidade. Toda unidade comporta de três momento: Introdução, desenvolvimento e conclusão.

ANALISE TEMATICA

A analise temática procura ouvir o autor, apreender, sem intervir nele, o conteúdo de sua mensagem. Em primeiro lugar busca-se saber do que fala o texto. A resposta a esta questão revela o tema ou assunto da unidade, Nem sempre ottítulo da unidade da uma idéia fiel do tema.
Avançando um pouco mais na tentativa da apreensão d mensagem do autor, capta se a problematização do tema, não tem como falar de alguma coisa sem apresentar como um problema para aquele que discorre sobre ele.

Na explicação da tese sempre deve ser usada uma proposição, uma oração, um juízo completo e nunca apenas uma expressão, como ocorre no caso do tema.

Associadas ás idéias secundárias, de conteúdo próprio e independentes, completam o pensamento do autor: subtemas e subteses.

Quando se pede resumo de um texto, o que se tem em vista é a síntese das idéias do raciocino e não a mera redução dos parágrafos. O resumo fica melhor se conseguirmos falar com outras palavras desde que não mude a idéia do texto.

A ANÁLISE INTERPRETATIVA

A análise interpretativa é a terceira abordagem do texto com vistas à sua interpretação, mediante a situação das idéias do autor. Interpretar em sentido restrito, é tomar uma posiçõ própria a respeito das idéias enunciadas, é superar a estrita mensagem do texto, é forçar o autor a um dialogoe explorar toda a fecundidade das idéias expostas.

A PROBLEMATIZAÇÃO

Na problematização você tem que retomar todo o texto, tendo em vista o levantamento dos problemas relevates para a reflexão pessoal e principalmente discussão em grupo.

A SINTESE PESSOAL

O leitor tem que fazer uma síntese pessoal do texto, trata se de uma etapa ligada antes à construção lógica de uma redação do que à leitura como tal.

CONCLUSÃO

A leitura analítica ajuda o leitor na formação tanto na sua área especifica de estudo quanto na sua formação filosófica em geral.

Fonte:

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Capitão João Brotas (Uma linda manhã)

Ouvimos, vindo lá de fora, o gotejar dos pingos d água. São sons harmoniosos, semelhantes aos acordes de uma magistral orquestra em que não podemos visualizar o regente, mas, apesar de tudo, sentimos a sua presença. Qual maestro, no mundo, teria a bondade de nos abençoar enquanto estivessemos dormindo, para nos proporcionar um despertar maravilhoso?

Esse maestro parece nos dizer, com voz maviosa ressonante nos pingos da chuva: “Bom dia, meu filho, acorde para este novo dia que preparei para você. Ele renova suas esperanças e permite que levante, para enfrentar nova jornada”. Entretanto, é lamentável, mas nem todos ouvem, porque poucos estão preparados para desfrutar a beleza e os benefícios da Natureza. Muitos jovens que adoram curtir a praia em dias de sol quente não entendem a natureza, nem a importância da manhã chuvosa. Talvez apenas o homem do campo agradeça, porque semanas antes, sob o sol escaldante que o jovem desperdiçou inutilmente na praia, ele arou a terra, plantou a semente… Agora, a força extraordinária da Natureza se encarrega de regar e complementar o árduo trabalho do lavrador. Quanto tempo de seu trabalho será necessário ainda, até que venha a colher os frutos do seu plantio?

Normalmente, esperamos resultados imediatos dos nossos esforços, esquecendo que um edifício, por mais alto e luxuoso que seja, teve seu início na construção de uma base sólida. Igualmente, muitas vezes queremos compreender certos fatos da nossa existência, sem ao menos nos deter no esforço de procurar saber quem somos, de onde viemos e para onde iremos. Isto não acontecia com Sócrates, filósofo grego que viveu de 470 a 399 anos antes de Cristo, que se ocupou na tarefa árdua de se conhecer melhor, de descobrir os mistérios da natureza humana e ensinar o que aprendeu a outros. Ainda hoje, também podemos colher os ensinamentos maravilhosos deixados pelo plantio de Jesus Cristo, que há mais de 2.000 anos regou o solo com o sangue do seu sacrifício. E Ele dizia: “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Referia-se à libertação das falsidades que impedem o homem de conhecer a si próprio e ao semelhante.

Dessa maneira, podemos concluir que uma manhã chuvosa pode ser o prenúncio de um solo fértil que germinará bons frutos, alimentos necessários ao nosso sustento material. Podemos concluir ainda que, esforçando-nos para nos conhecer, podemos aproveitar melhor as energias emanadas da luz dos ensinamentos dos mais sábios. Portanto, nosso fortalecimento espiritual depende dos nossos atos, de nossas posturas e de nossos esforços, em nos tornarmos menos vaidosos, menos egoístas e cada vez mais úteis aos semelhantes.

Que a próxima manhã seja calma, serena, ensolarada ou até mesmo chuvosa, mas nos faça refletir no passado, a viver no presente e a planejar o futuro, pois determinados atos antes praticados não devem ser esquecidos e sim analisados, tomados como ensinamentos para que desfrutemos hoje da sabedoria que nos permite planejar um futuro melhor, mais promissor a nós mesmos e a todos que nos cercam.

Oxalá, possam todos desfrutar das bênçãos da Natureza, como fiéis lavradores, esforçados no amor e na conquista da sabedoria, para que também possamos agradecer, em harmonia de uma só voz afinada, ao grande maestro do Universo, nosso Deus, pela bela e maravilhosa manhã, seja ela como for…

O capitão João Brotas é integrante da 14ª CSM (Circunscrição do Serviço Militar) de Sorocaba e da Nupep Cultural

Fonte:
http://www.diariodesorocaba.com.br/noticias/not.php?id=6359
Colaboração de Douglas Lara
http://www.sorocaba.com.br/acontece

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Geary Hobson (A literatura nativa norte-americana: recordações e renovação)

Em 1969, o comitê de ficção do prestigioso Prêmio Pulitzer de Literatura concedeu a sua distinção anual a N. Scott Momaday, jovem professor de inglês da Universidade Stanford na Califórnia, pelo seu livro intitulado House Made of Dawn.

O fato de que o romance de Momaday lidou quase que exclusivamente com nativos americanos não escapou à atenção dos meios de comunicação ou dos leitores e estudiosos da literatura contemporânea, nem os antecedentes indígenas kiowa do autor. Conforme ressaltaram os artigos dos jornais, desde que Oliver LaFarge recebeu o mesmo prêmio por Laughing Boy, exatamente 40 anos antes, um romance dos chamados “indígenas” não recebia tal distinção. No entanto, enquanto LaFarge era um homem branco escrevendo sobre os índios, Momaday era um índio; o primeiro nativo americano laureado com o Pulitzer.

Naquele mesmo ano, 1969, outro jovem escritor, um advogado sioux de nome Vine Deloria Jr., publicou Custer Died for Your Sins, cujo subtítulo era “An Indian Manifesto“. Ele examinou de forma incisiva as atitudes norte-americanas da época em relação aos assuntos nativos americanos, surgindo quase simultaneamente com American Indian Speaks, uma antologia literária de vários jovens e promissores índios americanos, dentre eles Simon J. Ortiz, James Welch, Phil George, Janet Campbell e Grey Cohoe, todos os quais haviam sido publicados apenas vagamente até então.

Esses desenvolvimentos que estimularam interesse novo ou renovado pela literatura nativa americana contemporânea foram acompanhados pelo surgimento naquela época de duas obras de conhecimento geral sobre o assunto, Man’s Rise to Civilization (1968), de Peter Farb, e Bury My Heart at Wounded Knee (1970) de Dee Brown. Cada qual atingiu uma corrente receptiva no gosto popular norte-americano e as estatísticas demonstram que, ainda hoje, cerca de 30 anos depois, sua popularidade permanece.

Serenamente, surgiram outros livros e outros autores. “Ceremony, de Leslie Marmon, A Winter in the Blood, de Welch, as ficções pós-modernas de Gerald Vizenor e a poesia de Paula Gunn Allen, Simon J. Ortiz e Linda Hogan deram lugar, ao longo dos anos, a escritores mais novos, como os romancistas Sherman Alexie, Greg Sarris e Thomas King e os poetas Kimberly Blaeser, Janice Gould e Janet McAdams.

Em 1992, um grupo de acadêmicos e ativistas norte-americanos criou um festival internacional de escritores, que reúne 360 artistas de nove países, principalmente dos Estados Unidos. Cerca de metade desse número já publicou pelo menos um livro: ficção, drama, autobiografia ou até livros de culinária. A partir dessa convocação, surgiram duas organizações: o Círculo de Escritores Nativos das Américas e um grupo mentor, Wordcraft Circle, que reúne os escritores nativos americanos estabelecidos com talentosos aprendizes.

A cada ano desde 1992, o Círculo dos Escritores Nativos apresentou prêmios para “primeiros livros” de poesia e de ficção. Para aqueles que imaginam qual será o futuro da literatura nativa americana, esses livros premiados oferecem resposta ampla e positiva. Observe-se, por exemplo, um jovem artista como o poeta chippewa Blaeser, cuja evocativa coletânea inicial de versos, Trailing You (1995), seguiu-se por uma obra apreciada de conhecimento, um estudo da prosa complexa e até surpreendente do colega escritor nativo americano, o satírico pós-mordernista Gerald Vizenor.

De fato, a expansão da criatividade e do interesse na literatura nativa americana é muito mais que uma explosão. Ela representa, coletivamente, um renascimento. Mais de uma geração após o seu início, ela é uma parte da literatura norte-americana como renovação, ou continuação. Ela traz reminiscências.

Pode-se melhor ilustrar o fenômeno do renascimento através da experiência de uma sala de aula voltando muitos anos no tempo. Meus alunos leram cópias de poemas de índios mohawk da parte setentrional do Estado de Nova Iorque e o tema voltou-se para os diversos escritores nativos americanos em outras partes do país. Um estudante, provavelmente refletindo o pensamento de diversos na sala, espantou-se: “não é maravilhoso como a literatura nativa americana emergiu tão repentinamente no cenário?”

A questão soou atordoante na época e assim permanece na minha memória. Porque a literatura nativa americana não “emergiu” simplesmente. Como a vida e a cultura da qual é parte, ela tem séculos de idade. Suas raízes são profundas na nossa terra; profundas demais para que meros cinco séculos de influência de outras civilizações modifiquem-na de forma duradoura, completa e irrevogável.

Reminiscências, continuidade, renovação. Os nativos americanos se acostumaram a contar suas histórias e suas formas de vida através de processos intrincados de contar histórias comprovados pelo tempo. Somente nas últimas décadas, os acadêmicos identificaram essas formas de contar histórias como “tradição oral”. Por milênios, os nativos americanos carregaram suas tradições desta forma. Para nada mais que uma geração antes da extinção, como escreveu Momaday, há sempre mais a ser lembrado pelas pessoas devido a essa ligação tênue. Ao relembrar, tem havido força, continuidade e renovação ao longo das gerações.

Nas palavras do poeta do povo acoma Simon J. Ortiz, “os índios estão em toda parte”. Desde o Refúgio Savala de Sonora, no México, até a Montanha Mary Tall, da tribo koyukon do Alasca; do país navajo de Geraldine Keams e Larry Emerson até o nordeste do Maine de Joseph Bruchac, os nativos americanos estão escrevendo sobre si próprios e sobre seu povo. Seus escritos são baseados em terra firme, nutridos por raízes fortes e têm flores crescentes invencíveis.

É interessante notar que, mesmo na forma escrita, em inglês, a literatura nativa americana é bastante venerável na estrutura da própria literatura norte-americana, remontando ao início do século XIX, quando os primeiros escritores (dentre eles, William Apess, da tribo pequod, George Copway (ojibway) e o chefe Elias Johnson (tuscarora) publicaram livros relacionados às suas culturas tribais. Há também evidências de que muitas tribos possuíam variantes de linguagem escrita muito antes de Sequoyah alfabetizar a nação cherokee virtualmente do dia para a noite. Ainda que os livros dos índios delaware e da Confederação iroquois fossem repassados oralmente por muitas gerações, no início eles foram reproduzidos em diversas formas escritas. Ironicamente, mesmo quando escritores norte-americanos como James Fenimore Cooper e Henry Wadsworth Longfellow apresentaram o índio americano a partir das suas perspectivas, os nativos americanos estavam escrevendo seus próprios livros e, nesse processo, desenvolvendo literatura.

Se, no começo, a literatura nativa americana consistia em contar histórias (ou, como definiríamos, ficção), uma ampla mudança teve lugar na segunda metade do século XIX, principalmente com o desenvolvimento do sistema de reservas indígenas nos anos 1870 e 1880. A biografia e a auto-biografia tornaram-se a forma mais popular e permaneceram dominantes até o século XX.

Essas biografias eram muitas vezes escritas por outros; antropólogos ou poetas registravam e editavam as histórias de vida de nativos americanos que eram encontrados nas estradas dos séculos XIX e XX. Talvez o mais famoso deles seja Black Elk Speaks (1932), de John G. Neihardt. De acordo com Neihardt, Alce Negro contou a história ao seu filho no idioma oglala lakota. O filho então a traduziu para inglês para Neihardt, que então a reescreveu. Era uma prática comum, com muitos exemplos em meados do século passado, presentes entre tribos desde crows e cheyenne no extremo norte dos Estados Unidos até os apaches e navajos no sudoeste.

Naturalmente, nem todos os relatos pessoais eram “contados” a outra pessoa. Apareceram alguns escritores individuais, dentre eles Charles A. Eastman, um médico santee sioux treinado em universidade que escreveu livros como Indian Boyhood (1902) e The Soul of the Indian (1911), e o Chefe Luther Urso em Pé, autor de My People The Sioux (1928) e Land of the Spotted Eagle (1933). O livro de Momaday The Names, de 1975, foi parte dessa tradição.

À medida que decorria o século XX, a literatura nativa americana ampliou-se para além da biografia e relatos para a ficção, jornalismo e até dramaturgia. D’Arcy McNickle foi o melhor escritor de ficção do período da década de 1930 a 1970, com livros como The Surrounded (1936) e Runner in the Sun (1954). Ele foi também extremamente ativo como proponente de assuntos indígenas. Will Rogers, o popular colunista de jornais norte-americanos que se tornou humorista, cujo período áureo foram os anos 1920 e 1930, foi um índio cherokee, bem como o dramaturgo Lynn Riggs, cujo drama mais famoso, Green Grow the Lilacs (1931), foi transformado no clássico musical da Broadway dos anos 1940, Oklahoma!

Nas primeiras décadas da segunda metade do século, principalmente a partir dos anos 1960, o desenvolvimento da literatura nativa americana deveu-se a diversos periódicos, que incluem publicações mais estabelecidas, como o South Dakota Review e Cimarron Review, e diversas publicações, revistas e editoras menores, dentre elas “Sun Tracks”, “Blue Cloud Quarterly” e “Strawberry Press”. Os poemas de Hogan, Joy Harjo, William Oandasan e muitos outros apareceram primeiramente nessas e em outras publicações.

Muitos escritores e acadêmicos nativos americanos fizeram suas primeiras aparições escrevendo sobre temas não-indígenas. A primeira empreitada de Momaday foi uma coletânea das obras de Frederick Goddard Tuckerman, um poeta menos conhecido do círculo de Emerson na Massachusetts de meados do século XIX. Louis Owens, que reconsiderou e afirmou extensamente sua herança choctaw/cherokee em seus últimos escritos, começou com estudos sobre as obras de John Steinbeck. (Como parêntese, eu comecei minha carreira na educação, poesia e literatura como especialista em Emerson, Henry David Thoreau e Herman Melville.)

Quem são os escritores nativos americanos? Esta questão preocupou-me por anos, mesmo antes de compilar minha antologia de 1979, The Remembered Earth. Para aquele livro, decidi manter o mais amplo espectro de definição possível. Incluí, por exemplo, Dana Naone, uma jovem e talentosa escritora havaiana nativa, pois nós, nativos americanos do continente, estamos nos tornando cada vez mais conscientes de que, embora os havaianos não sejam índios americanos propriamente falando, eles são, entretanto, nativos americanos em sentido real. De forma não surpreendente, os versos de Naone continham temas e preocupações similares aos de Allen e Silko.

Os antropólogos e historiadores postularam que a inclusão como nativos americanos depende de três critérios essenciais: genéticos, culturais e sociais. A distinção genética é “sangue total”, “meio sangue”, “um quarto” e assim por diante. Culturalmente, uma pessoa é caracterizada em termos do local de onde ele ou ela é proveniente e suas formas distintas de vida, religião e idioma. Socialmente, alguém é considerado nativo americano devido à forma com que ele ou ela vê o mundo, terra, lar, família e outros aspectos da vida.

Mas, à medida que os anos passam, a identidade torna-se fator menos motivador entre os temas literários que a soberania e, como parte dela, a reivindicação do passado. Os nativos americanos estão preocupados sobre quem são eles enquanto povo e escrevem de perspectiva comunitária (seja o ambiente urbano ou rural) e esse senso de comunidade reafirma e ampara a soberania.

Os romancistas Louise Erdrich e Sherman Alexie e poetas como Linda Hogan e Ray Urso Jovem são exemplos de escritores que, na verdade, estão fazendo o que Charles Dickens fez em Londres há mais de um século. Ou seja, eles estão criando um senso local. A literatura emerge invariavelmente disso e, embora os melhores escritores lutem para serem universais, é o senso local com que estão profundamente imbuídos. Erdrich, poetisa e escritora de ficção, é mais conhecida pela sua tetralogia nativa americana: Love Medicine (1984), The Beet Queen (1986), Tracks (1988) e The Bingo Palace (1994). Ela recentemente trouxe à tona suas raízes ojibwa em The Antelope Wife (1999), um retrato de duas famílias nativas americanas urbanas contemporâneas em comparação com um mosaico de cem anos de história. Os versos da poetisa chickasaw Linda Hogan (ligados ao sul e centro de Oklahoma) concentraram-se na paisagem e na história. Mais recentemente, entretanto, à medida que cresceu e se desenvolveu, ela vem lidando com questões como preservação animal e feminismo.

Alexie, uma das melhores jovens escritoras a misturar realismo e humor sarcástico com forte lirismo ao escrever ficção, poesia e dramaturgia, é mais conhecida por Indian Killer (1996), um romance trágico sobre a busca de um assassino em série em ambiente urbano contemporâneo. Greg Sarris, um escritor californiano nativo de raízes miwok e pomo, atingiu ampla quantidade de leitores com seu primeiro livro Grand Avenue (1994), uma coletânea de contos passados na sua vizinhança multicultural nativa na urbana Santa Rosa, na Califórnia, povoada por gerações de índios pomo, bem como portugueses, mexicanos e afro-americanos. Seu primeiro romance, Watermelon Nights (1998), é uma visão urgente da tradição, crise e renovação em uma família nativa americana. Nos últimos tempos, ele moveu-se também para a dramaturgia.

Em análise final, entretanto, a preocupação mais importante não é se alguém é mais ou menos índio que o seu companheiro índio americano. É muito mais importante que ambos reconheçam sua herança comum e lutem juntos pela melhoria dos nativos americanos no seu todo. Ao final, a literatura que deixamos para a posteridade estará disponível para as pessoas que vieram depois de nós. E, ainda assim, é dever do escritor individual comentar sobre coisas que ele ou ela acredita serem importantes, independentemente do tema da literatura lidar ou não exclusivamente com preocupações nativas americanas. Se não tivéssemos os escritos de Momaday sobre a Rússia, os curtos poemas de Aaron Carr sobre o espaço exterior ou os contos de ficção científica e roteiros de televisão de Russel Bates, a literatura nativa americana seria mais pobre pela sua ausência.

(À medida que os índios escrevem sobre temas diferentes da sua comunidade, diversos escritores não-nativos, antes e depois de Laughing Boy, de Oliver LaFarge, investigaram a vida nativa americana, alguns com muito sucesso. Mais de meio século atrás, Frank Waters elaborou o que pode ser seu melhor romance, The Man Who Killed the Deer (1942), um estudo dos conflitos culturais entre os índios taos do norte do Novo México. Atualmente, ao escrever sua série de romances “best-sellers” centralizados na polícia tribal navajo, Tony Hillerman esforçou-se para aprender a cultura e tradições para criar suas histórias.)

Por fim, os escritores nativos americanos são aqueles de sangue e antecedentes nativos americanos que afirmam sua herança de formas individuais, da mesma forma que os escritores de qualquer cultura. Alguns escrevem sobre a vida reservada, outros descrevem ambientes urbanos. Alguns investigam a história, outros são ferozmente contemporâneos. Joseph Bruchac, que teve enorme influência sobre uma geração de escritores mais jovens como mentor e capacitador, é conhecido hoje como escritor de histórias infantis, tais como Between Earth and Sky (1996) e The Arrow Over the Door (1998), que apresentam lendas tribais em contexto moderno para novas audiências.

A literatura é uma faceta de uma cultura“, escreve Paula Gunn Allen, e, como tal, oferece algo de valor ao povo do qual é parte.

Herança é povo. Povo é terra. Terra é herança. Ao relembrar esses relacionamentos (com o povo, o passado e a terra), renovamos a força de nossa continuidade como povo. A literatura, em todas as suas formas, é nossa forma mais durável de conduzir essa continuidade. Ao fazer literatura, como os cantores e contadores de histórias de antigamente, servimos ao povo bem como a nós mesmos em um duradouro senso de recordação.

Nunca devemos esquecer esses relacionamentos. Nossa terra é nossa força e nosso povo é a terra, uma e única, como sempre foi e sempre será.

A memória é tudo.
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Geary Hobson, poeta e ensaísta de herança cherokee/quapaw, é membro do corpo docente do Departamento de Inglês da Universidade do Oklahoma. Este artigo é uma expansão da introdução do professor Hobson a uma antologia, The Remembered Earth, publicada originalmente por Red Earth Press, Albuquerque, Novo México, 1979, e reimpresso pela Imprensa da Universidade do Novo México em 1981. Ele foi utilizado com permissão do autor.
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Fonte:
http://usinfo.state.gov/journals/itsv/0200/ijsp/ijsp0210.htm

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Moacir Scliar (A Majestade do Xingú)

O romance inicia com o narrador, que está na UTI, contando ao doutor a vida de Noel Nutels, que conhecera quando criança em um navio que os trouxe ao Brasil no ano de 1921.

A narrativa transcorre em tom humorístico, apesar do sofrimento do paciente. Protagonista inominado, cultivou uma profunda admiração por Noel, o defensor dos índios, durante toda a sua vida. Começa relembrando o episódio em que Noel, internado num hospital no Rio de Janeiro, no ano de 1973, vítima de câncer na bexiga, pouco antes de sua morte, recebe a visita de quatro generais. …era a época da ditadura, visitar o Noel, que era uma figura tão respeitada, principalmente na esquerda, poderia repercutir bem na opinião pública, e ao abrir os olhos e ver aqueles quatro generais à sua volta (…) olhou todos, um por um, com aquele olhar debochado dele. Um dos generais perguntou como ele estava. E o Noel que, mesmo morrendo, continuava o gozador de sempre, respondeu: estou como o Brasil, na merda e cercado de generais.

O médico vai fazendo anotações enquanto o narrador pergunta-lhe se ele próprio também encontra-se na merda. Estou na merda, doutor? Não? Não estou na merda? O senhor tem certeza? Na merda, não? Não estou? Que bom, doutor. Não estou na merda, que bom. Prossegue contando-lhe que a vida de Noel Nutels, ele, o narrador, tem toda guardada numa pasta através de reportagens em jornais, fotografias, artigos, publicações. Pede ao doutor para escutá-lo. …não é por mim, não. É pelo Noel. Não: é pelo senhor. O senhor deve ourvir a história do Noel, doutor. Acho que alguma coisa mudará no senhor depois que ouvir esta história. O navio que os trouxera ao Brasil chamava-se Madeira. Era um cargueiro adaptado para o transporte de imigrantes. Estavam fugindo da Rússia. Vinham do sul da Rússia, da Bessarábia, na fronteira com a Romênia. A região pertencia ao Império Tzarista. Os judeus não podiam sair dali a não ser que fossem ricos. Mas eles não eram ricos. Moravam numa pequena aldeia, num shtetl, de gente pobre: agricultores, artesãos, pequenos comerciantes. Seu pai, sapateiro, mal ganhava para sustentar a família, embora pequena, pois só tinha uma irmã. Seu pai consertava os finos sapatos do conde Alexei. Venerava-lhes os sapatos e as botas, confeccionados em couros macios e raros.

O protagonista lembra-se de que começou a ter pesadelos em que, à noite, um cossaco debochado surgia e calçava de uma bota as botinhas minúsculas que o pai havia feito com as sobras da reforma do conde Alexei. Calçava-as e galopava numa ratazana, rindo deles. O primogênito morrera um mês antes do seu nascimento. O irmão morto tornara-se-lhe um fantasma que vivia por todos os lados. O pogrom, massacre organizado no Império Tzarista, estava por toda parte. Os cossacos surgiam à noite, matando homens, violentando mulheres, queimando casas. Os judeus eram perseguidos. Um dia apareceu na aldeia um homem de Kiev. Trabalhava para uma companhia de colonização agrícola, a Jewish Colonization Association, JCA ou ICA, fundada por filântropos judeus da outra metade da Europa. Poderiam levá-los para a América do Sul, onde as terras eram promissoras. Poderiam ir para o Brasil trabalhar como agricultores. Receberiam todo o apoio. Por essa época o pai de Nutels decidira ir para a Argentina. Buenos Aires prosperava. Mas Salomão Nutels resolveu voltar para a Rússia. Pegou o navio que fazia escala no Recife, acabou vendedor de sapatos.

Em 1917, ele, justo no dia em que o Brasil declarou guerra à Alemanha do kaiser, tomou uma surra, depois de ter sido perseguido ao desembarcar, e perdeu o navio. Fixou-se no Brasil, em Laje do Canhoto, pequena vila de Alagoas, e lá abriu uma loja que vendia de tudo, desde alpiste até penicos de ágata. Em pouco tempo tinha conseguido economizar o suficiente para trazer a mulher e o filho de Ananiev.

Durante a guerra civil, após a Revolução de 1917, a Rússia ficou isolada do resto do mundo. Berta, mulher de Salomão, e o filho ficaram sem ter notícias suas até 1920, quando Salomão Nutels comunicou-lhes que partissem imediatamente para o Brasil. Por essa época, sair da Rússia era muito arriscado, mas mesmo assim partiram. As ameaças do pogrom continuavam. Porém, num certo momento, apareceu um homem na aldeia, chamado Semyon Budyonny, comandante de um esquadrão da cavalaria bolchevique. Imponente, usava um vasto bigode e tinha um olhar feroz. Budyonny apareceu com seus homens e anunciou que a aldeia havia sido libertada pela Revolução. Era o início do socialismo. Um dos homens de Budyonny, Isaac Babel, que ficara hospedado na casa do narrador, indagado sobre o que pensara a respeito de partirem para a América, revelou-se indignado com tal idéia e fez um discurso arrebatado em que defendia o governo bolchevista, pois finalmente todos os oprimidos teriam uma vida decente, enquanto que na América só existiam exploradores.

Anos depois Babel foi preso e veio a morrer num campo de concentração stalinista. A partida da família do narrador para o Brasil foi tranqüila. Em Hamburgo pegaram o navio Madeira rumo ao Brasil. No navio o narrador tornou-se amigo de Noel e assim que o conheceu teve a certeza de que seria seu amigo para o resto da vida. Noel era expansivo, seguro de si. Fazia amizade com todos. Logo tornou-se amigo de um marinheiro russo, homem de esquerda que vivera no Brasil e anos mais tarde continuava defendendo suas idéias com o mesmo fervor. A viagem fora longa e insalubre. O cheiro de urina e vômito no porão, onde passavam as noites, era insuportável. Todos no navio sentiam-se inseguros quanto à nova vida no Brasil. Porém, ao chegarem em Recife, a diversidade de cores, a vegetação tropical e a população alegre deslumbrou-os.

Salomão Nutels apareceu e Berta, ao vê-lo, abraçou-o e chorou, assim como Noel. Todos os demais emigrantes também choraram. Ao perceber o entusiamo de Noel pelos pretinhos brasileiros, de súbito nosso pobre protagonista percebeu que já não o encantara mais. Agora o encantava o Brasil. Salomão convidou a família do narrador para morar em sua casa. Seu pai poderia ajudar-lhe na loja. Seguiram para Laje do Canhoto. Ao conhecer a loja de Salomão, o pai do protagonista recusou-se a trabalhar lá. Não venderia penicos. Decidiu que iriam para São Paulo.

Em São Paulo, fixaram-se em Bom Retiro, bairro de judeus. Seu pai sofreu um acidente e teve de amputar o braço direito. Impossibilitado de continuar no ofício de sapateiro, passou a vender gravatas. Seu pai queria que ele tivesse se formado em Medicina como Noel Nutels. Freqüentou o colégio José de Anchieta. Em três anos sabia tudo sobre o padre José de Anchieta, sobretudo que amava muito os índios, diferentemente da maioria dos colonizadores que os menosprezavam, considerando-os inferiores, especialmente por serem canibais.

O narrador possuía uma imaginação muito fértil e suja. Numa das histórias que imaginava, o braço de seu pai era jantado por antropófagos devido ao ancestral parentesco destes com índios canibais. Imaginava também o padre Anchieta sendo seduzido por uma indiazinha moribunda. Sua mente era povoada por seres descomunais que devoravam profetas e sacerdotes. Sua mente sórdida elocubrava fabulações doentias. Sentia saudade de Noel. Podia escrever-lhe, mas não tinha coragem, então escrevia-lhe só na imaginação.

Seu pai veio a falecer de infarto do miocárdio, sendo-lhe imposto o sustento da família. Precisou largar os estudos e trabalhar o dia inteiro. Trabalhava na pequena loja do seu Isaac. Chamava-se A Majestade, conhecida por loja Não Tem. Vendia miudezas em geral: carretéis de linha, agulhas de crochê, etc. Não soube mais nada de Noel a não ser bem mais tarde quando tornou-se famoso e escreviam sobre ele. Noel foi estudar Medicina em Recife. Os pais também mudaram para lá. A casa onde moravam, dona Berta transformou em pensão. Lá moravam também amigos, como Ariano Suassuna, Capiba e Rubem Braga. Houve um momento em que o narrador tomou consciência da sua ignorância e envergou-se. Começou então a ler.

Lia muito e de tudo, inclusive dicionários. Levava uma vida pacata, não se metia em política. Quanto às mulheres, freqüentava um bordel barato e só. Era muito tímido. Sua vida tornou-se uma rotina. Ia para a loja, que aliás havia comprado do seu Isaac por uma bagatela, espanava o pó, sentava-se atrás do balcão e lia. Vez por outra aparecia um freguês. Em 1937 Noel foi para O Rio com a mãe, já formado em Medicina. Salomão havia falecido. O Brasil vivia a ditadura de Vargas. Noel participou na produção da revista Diretrizes, da qual faziam parte José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Por aquela época, em 1938, os intelectuais eram todos comunistas. Os comunistas manifestavam-se com cartazes de protesto. Sarita, uma fervorosa comunista do Bom Retiro, atirou-se cegamente na causa do Comintern, órgão central dos partidos comunistas na Rússia, que apresentou um documento a ser divulgado na sociedade brasileira que dizia que o conflito final seria a oposição entre índios e brancos. O movimento não vingou por falta de adeptos.

Em 1940 Noel casou com uma prima, Elisa. Um ano depois o narrador casou também, com Paulina, filha do vizinho. Através de Sarita, que ia periodicamente ao Rio, ele tinha notícias de Noel. Noel estava trabalhando com saúde pública; queria combater a malária e se envolver em campanhas. A guerra tinha começado. Hitler invadia a União Soviética. Noel e Sarita ouviam a Pirineus, rádio clandestina que os mantinha informados sobre os campos de concentração e outros acontecimentos. O narrador nunca ouviu a Pirineus. Preferia se manter alheio, mergulhado nos livros. Noel ia para as ruas, carregava cartazes de protesto. Em 1935 foi preso como comunista na ditadura Vargas. Nosso narrador não ia para as ruas fazer protesto, porque não tinha coragem.

Por volta de 1944, Noel e a mulher estavam trabalhando na Fundação Brasil Central, fundada pelo ministro João Alberto. Tinham sido contratados para trabalhar com os índios em regiões como o Alto Xingu e o Alto Araguaia, que seriam desbravadas e colonizadas. Noel fora contratado como especialista em malária. O narrador tornou-se pai de um menino: Ezequiel. No Xingu, Noel trabalha como especialista em malária e cuida dos índios. É aceito pela tribo dos Kalapalo após salvar a vida de uma indiazinha que estava quase à morte. Os índios lhe tem afeto e respeito.

Em 1951 Noel ingressa num curso para a campanha nacional contra A Tuberculose. Resolve trabalhar na região dos grandes rios: Tocantins, Xingu e Tapajós. Consegue transporte aéreo e em pouco tempo está dirigindo o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas, para os problemas dos índios. Dedica-se inteiramente a esta missão. João Mortalha, um tipo mau-caráter com passado de assassino, vai para o Xingu disposto a tornar-se proprietário das terras dos índios. Noel, descobrindo-lhe as intenções, expulsa-o da região. Eu podia entender o padre Anchieta cuidando dos índios; o Noel Nutels não. Pela simples razão de que não podia imaginar a mim próprio cuidando dos índios. (…) Eu, o covarde, imóvel; Noel, o corajoso, em movimento. Em constante e dinâmico movimento. O Noel estava virando índio. Índio inquieto a percorrer sem cessar as trilhas do Brasil central. Trilhas que poderiam levar a qualquer lugar, mas nunca passariam por uma loja chamada A Majestade. Nossos caminhos se haviam afastado para sempre.

Nosso protagonista começou a ter problemas em casa: desentendimentos com a mulher, além do Zequi, que se mostrava rebelde. Sarita mudara-se para O Rio e às vezes vinha visitá-los. Percebeu que Ezequiel estava apaixonado por ela. Zequi lia Marx, Lenin e Stalin. Entrou para a célula da Juventude Comunista no Bom Retiro, a célula Zumbi dos Palmares. Os jovens membros da célula, sabendo da amizade do protagonista com Noel, o doutor dos índios, pediram-lhe para que conseguisse um encontro entre eles. O narrador, depois de entrar em pânico, teve uma brilhante idéia: sugeriu-lhes que se correspondessem com Noel. Na loja, deu início à correspondência que Noel supostamente estaria lhes enviando.

Escreveu cartas e mais cartas para a célula Zumbi. Os rapazes extasiavam-se. Aconteceu, porém, que Sarita descobriu a farsa e ameaçou contar tudo a não ser que dali em diante ela mesma passasse a assumir a correspondência. Entraram em acordo. As cartas de Sarita eram chatíssimas, doutrinárias, o que fez com que os rapazes logo se entendiassem. Em pouco tempo, a correspondência encerrou-se. Em 1961 Zequi entrou para a faculdade de Ciências Sociais. Envolvendo-se completamente com política estudantil, tornou-se membro da UNE. Logo passou a fazer parte de um grupo de radicais. Os folhetos clandestinos falavam de guerrilha e luta armada.

E então veio o golpe de 64. Com o golpe militar, mandaram Ezequiel esconder-se no sítio de uma amiga de Paulina. Quanto a Noel, naquele Período dirigia o Serviço de Proteção ao Índio; fora indicado por Darcy Ribeiro. Os militares não acharam nada contra ele. Havia um major anticomunista, major Azevedo, que por motivos particulares estava atrás de Noel. O narrador teve um caso com Iracema, um tipo vulgar, apesar de bonita, que apareceu na loja como representante de tecidos. Foi sua primeira e única paixão. Um dia o narrador sentiu falta da última carta de Noel, que escrevera e não enviara. Iracema confidenciou-lhe, arrependida, ter sido ela a pegar A Carta a pedido do irmão Mortalha, o mesmo Sujeito que Noel havia expulsado do Xingu.

Mortalha queria incriminá-lo e, de posse da carta entregou-a ao major Azevedo que, estranhamente, rasgou-a e jogou fora. Ezequiel foi para a França. Fez mestrado, depois doutorado, e tornou-se professor em Limoges. Não voltou mais. Casou-se com uma francesa e teve dois filhos. A mãe foi para um asilo, completamente esclerosada, e lá faleceu. A irmã Ana tornou-se uma competente psicóloga e enriqueceu. Paulina quis ir embora para Israel. Não voltaria mais.

O narrador levou-a ao aeroporto não sem antes tentar persuadi-la a ficar. Despediram-se e nunca mais a viu. O narrador passou a viver sozinho. Ezequiel quase não escrevia, ao contrário de Paulina que escrevia longas cartas deixando-o a par de suas experiências no Kibutz. Vendeu a loja, que não ia nada bem, além do que, ele imaginava espectros de bugres sob o solo. Vendida a loja, mudou-se para um pequeno apartamento e seus problemas financeiros terminaram.

Certa ocasião escutou no noticiário que Noel estava internado num hospital em estado grave. A notícia deixou-o de tal forma abalado que imediatamente resolveu ir até O Rio visitá-lo. Chegando lá debruçou-se sobre Noel e implorou-lhe que não o abandonasse. Noel estava morrendo. O narrador retirou-se e cinco generais teceram comentários sobre o doente. De volta à casa, imaginou-se abrindo uma loja no Xingu. Iria se chamar A Majestade do Xingu.

Na Majestade do Xingu haveria lugar para o real e para o imaginário. A conjugação perfeira do prático e do mítico. Cansado da viagem, o narrador adormeceu e sonhou que um cossaco, um pogrom, enterrou o salto de sua bota em seu peito. Josiléia, sua empregada, socorreu-o quando acordou sentindo a horrível dor, levando-o para o hospital. Finaliza dizendo que esta é a sua história e que só tem importância porque é um pouquinho a história de Noel Nutels.

Fonte:
http://www.trabalhonota10.com/resumo-de-livros

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Música e Literatura (Cancioneiro)

Livro onde estão compiladas peças líricas, acompanhadas ou não de notações musicais, segundo um determinado critério unificador. O termo e conceito são já conhecidos na Antiguidade, no entanto, é na Idade Média que se verifica o grande desenvolvimento deste tipo de antologias. Nos diversos cancioneiros conhecidos é possível encontrar obras que se situam entre os finais dos séculos XIII e XV.

No universo galego-português, são conhecidas três antologias profanas e uma sacra. Do primeiro grupo fazem parte: o Cancioneiro da Ajuda, o mais antigo, assim denominado por se encontrar na biblioteca do Palácio da Ajuda, para onde transitou no principio do século XIX; o Cancioneiro da Vaticana, encontrado em Roma, na biblioteca do Vaticano, durante o reinado de D. João III e, finalmente, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, o mais completo, que anteriormente era conhecido por Cancioneiro Colocci-Brancuti por ter pertencido ao humanista italiano, Ângelo Colocci, e ter sido encontrado, no século XIX, na biblioteca do Conde Brancuti. Os dois últimos são apógrafos, ou seja, cópias posteriores de originais perdidos. O cancioneiro sacro, da autoria de Afonso X, o Sábio, é conhecido por Cantigas de Santa Maria. Nele, o seu autor transforma o amor trovadoresco em devoção à Virgem.

Os cancioneiros, embora fontes parciais já que a produção era superior, são documentos únicos e insubstituíveis que, no entanto, não deixam de colocar alguns problemas aos investigadores, nomeadamente no que respeita aos critérios de compilação. De fato, o princípio de seleção revela-se fundamental, chegando mesmo a ser normativo, já que, é este principio o responsável pela transmissão de uma cultura, de uma estética, de uma escola poética ou mesmo de uma época, como acontece com os cancioneiros provençais e galego-portugueses.

O termo cancioneiro pode ter diversas acepções: para a mais restrita, é uma coleção de textos poéticos selecionados, organizados e ordenados pelo próprio autor que é também o responsável pelas lições do texto. Uma outra, já não tão restrita, considera que cancioneiro diz respeito, também a uma coleção individual, que, no entanto, não teve o autor como responsável pela sua organização. A terceira e mais ampla acepção fala de uma compilação de textos em verso, de vários autores, selecionados e ordenados por um compilador.

No que respeita à ordenação dos textos, esta obedece, geralmente, a critérios cronológicos e de gênero, sendo os segundos mais importantes, já que há uma tentativa de agrupar os textos segundo esses mesmos gêneros. Além destes, nos cancioneiros coletivos, poderá surgir um terceiro critério ligado à importância dos autores: os trovadores maiores em primeiro lugar e os trovadores menores em segundo lugar. Alguns casos há em que o livro fecha com a produção poética do próprio compilador.

Partindo do sentido etimológico, o cancioneiro perfeito é todo aquele que tem um princípio e um fim bem marcados: o princípio por uma rubrica ou título com o nome do autor e o conteúdo do livro, e um epílogo que marca o final. Os cancioneiros coletivos não apresentam uma estrutura muito diferente dos individuais. A única diferença parece ser nos cancioneiros provençais, a apresentação, em prosa, da vida do trovador, antes da apresentação da sua obra. Algumas composições são ainda introduzidas por uma razó, em prosa, que informa quais os fatos que levaram à sua composição. Os cancioneiros galego-portugueses apresentam unicamente o nome e, algumas vezes, a origem e condição social do trovador, no entanto falam da razó, pelo menos no gênero satírico.

Consoante os fins para que se destinam, as características externas dos cancioneiros variam: podem ser grandes ou pequenos; decorados, ou não, com ricas miniaturas; copiados para pergaminho ou, mais tardiamente, para papel; com ou sem notações musicais. Também o número de colunas em que são escritos pode variar.

Fonte:
Maria do Rosário Rosa. Cancioneiro
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/

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Guimarães Rosa (1908 – 1967)

Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens.”

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908 e teve como pia batismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária – uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné. Era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por “seu Fulô” – comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias.

O nome do pai, de origem germânica – frod (prudente) e hard (forte) –, e o nome da cidade natal, o “burgo do coração” – do latim cordis, genitivo de cor, coração, mais o sufixo anglo-saxônico burgo –, por sua sonoridade, sua força sugestiva e sua origem podem desde cedo ter despertado a curiosidade do menino do interior, introvertido e calado, mas observador de tudo, estimulando-o a se preocupar com a formação das palavras e com seu significado. Esses nomes de quente semântica poderiam ter sido invenção do próprio Guimarães Rosa. Outro aspecto notável de sua obra foi sua preocupação com o ritmo do discurso, desde cedo manifestada, que o ajudaria a compor, mais tarde, juntamente com outros atributos, a magistral prosa-poética rosiana.

A venda do “seu Fulô” era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e descansavam. Mais tarde, porém, “seu Fulô” – homem de minguados estudos mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável – em muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas, quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas e ouvidas na roça.

Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.”

Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, LES FEMMES QUI AIMMENT. Aos dez anos, vai para Belo Horizonte, morar com o avô. Está no ginasial, e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond, o futuro amigo.

Segundo seu tio Vicente Guimarães:

Sua posição predileta para leitura era sentado no chão, de pernas cruzadas, a modos de BUDA, com o livro aberto sobre as pernas, curvado até bem próximo deste e com dois pauzinhos nas mãos, batendo sobre as páginas, ora um, depois o outro, compassadamente, em ritmo variado, ligeiro ou mais lento, conforme na leitura se movesse o pensamento.

A miopia – “vista curta” –, que o obrigava a cerrar as pálpebras para melhor ver, somente foi descoberta por acaso pelo Dr. José Lourenço (Dr. Juca), médico do Curvelo, numa visita de amizade que fez à família de Joãozito. A alegria e o deslumbramento do menino usando os óculos do doutor, colega em miopia, foram mais tarde registrados pelo escritor em memorável cena do conto Campo Geral (do livro Manuelzão e Miguilim), quase toda verdadeira, exceção feita para alguns nomes. No real, o Dr. José Lourenço sugeriu aos pais que levassem a criança ao oculista, explicando que ela enxergava tudo fora de foco e recomendando que “por ora era preciso ler o menos possível para não agravar a moléstia”. Desde então aumentaram as dificuldades de Joãozito, que precisava se esconder mais e mais para não ser surpreendido, principalmente pelo pai. Só em Belo Horizonte, aos 9 anos, passou a usar óculos.

Aos 7 anos incompletos, Joãozito começou a estudar francês, por conta própria. Em março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual o menino fez amizade imediata. Em companhia do frade, iniciou-se no holandês e deu prosseguimento aos estudos de francês, que iniciara sozinho. Aos 9 anos incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre Candinho, em Cordisburgo. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se – não suportava a comida, retornando a Belo Horizonte matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e, desde logo, para não perder a oportunidade, tendo se dedicado ao estudo da língua de Goethe, a qual aprendeu em pouco tempo. Sobre seus conhecimentos lingüísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G., com apenas 16 anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor, recentemente falecido, quando cursavam o 2º ano, em 1926, ocorreu a morte de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela. O corpo do estudante foi velado no anfiteatro da Faculdade. Estando Ismael de Faria junto ao ataúde do desventurado Oseas, em companhia de João Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação: “As pessoas não morrem, ficam encantadas“, que seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Sua estréia nas letras se deu em 1929, ainda como estudante. Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930, alcançando o autor seu objetivo, que era o de ganhar a recompensa nada desprezível de cem contos de réis. Chegou a confessar, depois, que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a modelos alheios. Seja como for, essa primeira experiência literária de Guimarães Rosa não poderia dar uma idéia, ainda que pálida, de sua produção futura, confirmando suas próprias palavras em um dos prefácios de Tutaméia:

Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois.”

Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes. Dura pouco seu primeiro casamento, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G., tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro Passos. O fac-símile do quadro de formatura encontra-se atualmente na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, da Faculdade de Medicina da U.F.M.G. No referido quadro de formatura está estampada a clássica legenda, em latim, com os dizeres “FAC QUOD IN TE EST”; figura, também, a reprodução de uma tela do pintor holandês Rembrandt Van Rijn em que é mostrada uma aula de anatomia (A lição de anatomia do Dr. Tulp, datada de 1632).

O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23 de dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse lingüístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa sua oração argumentando com uma “licção da natureza”:

Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de troncos alheios logra ella chegar á altura – faltando-lhe as raízes, que somente os annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas.

Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha bocca a discussão de um thema scientifico, nem ponha nesta despedida these alguma de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem incolor dos semidoutos e o plagio ingenuo dos compiladores.

Em seguida, evoca a origem medieval das solenidades universitárias:

Venho tão unicamente pedir a palavra de senha ao nosso Paranympho, nesta hora plena de emoção para nós outros, quando o incenso das bellas cousas velhas, desabrochando em nossa alma a flor do tradicionalismo, nos evoca Iena, a douta, e Salamanca, a inesquecível, emquanto o anel symbolico faz-nos sonhar com uma leva de Cavalleiros da Ordem da Esmeralda, que recebessem a investidura ante magica frontaria gothica, fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitraes.

Dando continuidade ao discurso refere-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio pelos problemas da gente brasileira:

E a sua sabia eloquencia discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e as condições do nosso meio infectante.

Mais adiante, continua:

Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a servir de pasto.

Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘…et sans amour…’

Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista, humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna, bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos actos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da expressão, homens no meio dos homens.

Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘… como a ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo.

Também, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor collaboradora dos clinicos avisados.

De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os companheiros o abanassem. E a um deles, que se offerecera trazer-lhe modernissimo ventilador electrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento, respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘ – Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas sim a solicita solidariedade dos meus amigos…’

Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o medico da familia?

Ao lado dos sacerdotes e dos estrangeiros, os medicos sempre alcançaram o record indesejavel de principaes personagens do anecdotario mundial.

Satiras, comedias e bufonices não os pouparam.

Era fatal. As anecdotas representam a maneira mais commoda das massas apedrejarem, no escuro do anonymato, os tabus que as constrangem com sua real ou pretensa superioridade.

E Molière, hostilizando durante toda a vida medicos e medicina com tremenda guerra de epigramas, não passou de um speaker genial e corajoso da vox populi do seu tempo.

Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.
A causa? Parece-me simples.

É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’, arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!

Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico, ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o humano, naquelle que soffre!…

E terminando:

Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento, mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:

‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero, é que o socorro já vem perto!).

E, quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as despedidas dos meus collegas, eu lamento não poderem falar-vos todos elles a um tempo, para que sentisseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.

Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos. Relaciona-se com a comunidade, até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por “seu Nequinha”, que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi. Seu Nequinha era adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem do Grande Sertão: Veredas. Ademais, consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha de percorrer. No conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério – comum entre os médicos que exerciam seu ofício na zona rural – de condicionar o montante da remuneração a ser recebida à distância percorrida para visitar o doente.

Cassiano perguntou:
– Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?
– Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!… Como é que eu, que não sou dono de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua pr’a ele querer vir até cá?!… Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica…

Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto – Uai, eu?, de Tutaméia.

Assim a gente vinha, e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me pagava mais, gratificado, por léguas daquelas, às-usadas. Ele, desarmado, a não ser as antes idéias. Eu – a prumo. Mais meu revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço, um homem pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não precisa de estar prevenido?”

Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina.

Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma – que lançou na década de 80 o livro RELEMBRAMENTOS, GUIMARÃES ROSA, MEU PAI, uma coletânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor -, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordamento de sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas.

Aliás, foi justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz elétrica, que o futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, Antônio Augusto de Lima Coutinho, chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já estava resolvido. É ainda Vilma quem relata que sua mãe chegou a se esquecer das contrações para apenas se preocupar com o marido – um médico que chorava convulsivamente!

Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos àquela cidade. Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha; uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em conversa com os “calões” na “língua disgramada que eles falam”, como diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de Sagarana, que resolveu “viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles”. Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia, Guimarães Rosa refere-se com especial carinho a essa gente errante, com seu peculiar modus vivendi, seu temperamento artístico, sua magia, suas artimanhas e negociatas.

Do conto Zingaresca, recolhe-se um fragmento exemplar, falando dos ciganos:

Sobrando por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o Re-curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de contrários lados, iam acudir àquela parte.

A boiada, do norte.

Antes, porém, os ciganos, de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a tropa cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam licença, o ciganão Vai-e-Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo sitiante. Tinham alugado ali uma árvore! – o que confirmou o preto Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti um deles, só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em espíritos e nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana, verter goles de vinho na cova.

Guimarães Rosa, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, trabalha como voluntário na Força Pública. Posteriormente, efetiva-se, por concurso. Em 1933, vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – “quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação”. Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco.

Um amigo do escritor, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de “vocação” para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:

Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre ‘après avoir couché avec…’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.

Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de “Viator”, concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado Contos, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.

Diga-se de passagem que em entrevista concedida a Günter Lorenz (veja a entrevista após a biografia), Guimarães Rosa lança alguma luz sobre o provável motivo de seu comportamento em relação ao livro em questão, ao lhe dizer em tom confidencial:

Meu começo, foram poesias (…) escrevi um volume nada pequeno de poesias que foram até elogiadas, e que me proporcionaram louvor. Mas aí, eu, quase diria felizmente, comecei a ser absorvido pela minha profissão: eu viajei no mundo, conheci muita coisa, aprendi línguas, acolhi tudo isso em mim, mas não pude mais escrever. Assim se passaram 10 anos até eu poder dedicar-me de novo à literatura. E quando eu revi, então, meus exercícios líricos, achei-os na verdade não ruins de todo, mas também não particularmente convincentes. Sobretudo descobri que a poesia profissional que a gente tem de lançar mão nos poemas pode ser a morte da verdadeira poesia. Por isso eu me voltei para a lenda heróica, o conto fabuloso, a estória simples. Por que isso são coisas que a vida escreve, não a legalidade das chamadas regras poéticas. Então, eu me sentei e comecei a escrever Sagarana.

Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar.

Embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém. Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial.

Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: “Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência.” A concessão da homenagem foi precedida por pesquisas rigorosas com tomada de depoimentos dos mais distantes cantos do mundo onde existem sobreviventes do Holocausto.

Com efeito, Guimarães Rosa, na qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes dos judeus, facilitando sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo governo brasileiro e pelas autoridades nazistas, exceto quando o passaporte mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor, D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de Davi que os nazistas pregavam nos documentos para identificar os judeus. Nos arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa.

Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de “morte parcial” vivida pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas). Sobre a constrangedora impressão que lhe causava a capital andina, o escritor assim se expressa:

Aconteceu que um homem, ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai em muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo. Lá, no hostil espaço, o ar era extenuado e raro, os sinos marcavam as horas no abismático, como falsas paradas do tempo, para abrir lástimas, e os discordiosos rumores humanos apenas realçavam o grande silêncio, um silêncio também morto como se mesmo feito da matéria desmedida das montanhas.

Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios. Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais, com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos, móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos, em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.

Em dezembro de 1945 o escritor retornou à terra natal depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina. Nessa oportunidade esteve na casa do Cel. Geraldino Rocha, chefe político e comerciante em Cordisburgo, jogou uma partida de xadrez com o dono da casa (como a partida demorasse muito propôs, diplomaticamente, que fosse decretado o empate), saboreou um licor de jabuticaba e proseou longamente com Cristóvão Rocha, um dos filhos do Cel. Geraldino, que também manifestava pendores literários e que escrevera um belo poema intitulado Gruta de Maquiné. Na crônica-reminiscência intitulada Dois soldadinhos mineiros, contida no livro póstumo Ave, Palavra, o escritor se refere a sua estada na fazenda Três Barras, numa manhã chuvosa do mês de dezembro de 1945. E relembra:

Sob céu diferente, para mim, acha-se neste mundo a das Três Barras, fazenda que foi dos meus…

… a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita fábrica. Para o convés – que é a varanda – sobem-se os degraus de pau de alta escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.

Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.

Em 1948, o escritor está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951, de volta ao Brasil, é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador). Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.

Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: Com o vaqueiro Mariano. Segundo depoimento do próprio Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava “ele perguntava mais que padre” –, tendo consumido “mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes”, com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias…

Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus “gerais” e participa, juntamente com um grupo de vaqueiros, de uma longa viagem pelo sertão; o objetivo da viagem era levar uma boiada da Fazenda da Sirga (município de Três Marias), de propriedade de Chico Moreira, amigo do escritor, até a Fazenda São Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40 léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias, dela participando Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim. Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava – “ele perguntava mais que padre” –, tendo consumido “mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes”, com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja – usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias… A curiosidade inesgotável demonstrada pelo escritor durante essa famosa viagem, aproxima-o dos naturalistas europeus que percorreram o Brasil no século passado e o redescobriram, como é o caso, p. ex., do dinamarquês Peter Wilhelm Lund – “o pai da paleontologia brasileira” – e do extraordinário botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. A propósito, o próprio Guimarães Rosa prestou carinhosa homenagem a esses estudiosos ao criar a figura ímpar de “seu Alquiste”, ou “Olquiste”, que aparece no conto O recado do morro, cuja trama se desenrola, toda ela, em Cordisburgo e arredores:

Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessoa. Um, de fora, a quem tratavam por seu Alquiste ou Olquiste – espigo, alemão-rana, com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu-de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho a tôa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos.”

Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.

Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.

Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço?

Em ensaio crítico sobre Corpo de Baile, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada Campo Geral, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.

CORPO DE BAILE, a partir da 3ª edição desdobra-se em 3 volumes independentes. A imagem é sugestão de capa preparada pelo próprio Rosa, com um curioso recado: “dois meninos, um deles de 7 e o outro de 8 anos, e uma cachorra“. Desistiu disso depois, bem como cortou a indicação de duas novelas Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 51. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: COM O VAQUEIRO MARIANO. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas CORPO DE BAILE, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa – autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro – adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão Veredas, lançado em maio de 56. Em ensaio crítico sobre CORPO DE BAILE, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada CAMPO GERAL, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.

“Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d’água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. ‘Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?”

Dez anos depois da publicação de Sagarana, Guimarães Rosa comparece novamente no cenário da literatura brasileira com as novelas de Corpo de Baile – longos poemas em prosa, de feição barroca –, 13 em dois volumes (824 páginas). A partir da 3ª edição o livro se desdobra em três volumes autônomos, figurando Corpo de Baile como subtítulo; os três volumes são, respectivamente, Manuelzão e Miguilim, no Urubùquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Nesse mesmo ano é lançada a 4ª edição de Sagarana (em sua versão definitiva), com ilustrações de Poty. Para surpresa geral, ainda em 1956, no mês de maio, Guimarães Rosa apresenta o romance Grande Sertão: Veredas, causando enorme impacto; devido, sobretudo, às inovações formais, a crítica e os leitores se dividem entre louvações apaixonadas e ataques ferozes. O fato é que ninguém lhe fica indiferente.

Enquanto alguns colocam o livro no pináculo da criação literária nacional, outros não conseguem ir além das primeiras páginas, considerando-o “um matagal indevassável“. Em matéria publicada na revista Leitura (outubro, 1958) e intitulada Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas, o poeta Ferreira Gullar alegou que não conseguira ir além das 70 primeiras páginas do romance o qual, a essa altura, começou a lhe parecer “uma história de cangaço contada para lingüistas”. Por sua vez o escritor baiano Adonias Filho, também ouvido na ocasião, afirmou: “A obra de Guimarães Rosa, apesar do interesse que possa oferecer, constitui um equívoco literário que necessita ser imediatamente desfeito.” Passadas quatro décadas da publicação do livro, a razão parecia estar mesmo com Afonso Arinos de Melo Franco que, já em 1957, “no calor da hora”, sentindo o cheiro de obra-prima, advertia, mineiramente:

Cuidado com este livro, pois Grande Sertão: Veredas é como certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombras. No princípio a gente entra e não vê nada. Só contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos, não é luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se chocar inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas.

A partir de o Corpo de Baile, a obra de Rosa – autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro – adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de 56. O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que se estende por 600 páginas, focaliza numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflete um autor de extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa. Para Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.

O lançamento de Grande Sertão: Veredas causa grande impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes. Torna-se um sucesso comercial, além de receber três prêmios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se um “caso” nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da terceira geração modernista brasileira.

Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve para os pais:

Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos”… “Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

A partir de 1958, Guimarães Rosa começa a apresentar problemas de saúde e estes seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:

… também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.

É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a matéria – “… the nothingness of matter and the allness of spirit” –, negando categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte.

Ainda que não publicasse nada até 1962, o interesse e o respeito pela obra rosiana só aumentavam, em relação à crítica e ao público. Unanimidade, o escritor recebe, em 1961, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Ele começa a obter reconhecimento no exterior.

Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.

Após outro longo período de silêncio, Guimarães Rosa reaparece em 1962 justamente com Primeiras Estórias, uma coletânea de 21 pequenos contos. É um livro sem a vastidão e o caráter sinfônico de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, embora estejam presentes, e talvez em grau até mais acentuado, aquelas surpreendentes pesquisas formais. Em carta dirigida ao tradutor J. J. Villard, assim se expressa o escritor a respeito do novo livro (o qual chamava, carinhosamente, de “o amarelinho”, numa referência à cor da capa da edição da Livraria José Olympio Editora):

Só aparentemente e enganosamente é que ele se finge de simples e livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias místicas, Primeiras Estórias é, e pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra nele assume pluralidade de direções e sentidos. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.

Acredita-se que o autor tenha escolhido tanto o formato quanto a temática do novo livro após os distúrbios cardiovasculares de que foi vítima a partir de 1958 e a inevitável crise existencial que se seguiu. Assim, 1958 seria um marco, um divisor de águas; teria havido, a partir de então, uma mudança de perspectiva por parte do escritor que, vendo a saúde periclitar, não mais se permitiu elaborar projetos tão arrojados quanto Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.

Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967.

Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes. Durante a realização do referido congresso, Guimarães Rosa, contrariando seus hábitos, concede uma longa entrevista ao alemão Günter Lorenz, durante a qual fala longamente sobre sua obra, sua relação com a língua, sua visão-de-mundo. Até então, sempre que era instado a prestar depoimentos ou conceder entrevistas, remetia o interlocutor a seus textos, à “conversa manuscrita”. A entrevista foi publicada como parte de um livro de Lorenz – Dialog mit Lateinamerika, Tubingen e Basiléia, 1970 –, sendo posteriormente traduzida para o português e transcrita no Suplemento Literário do Minas Gerais de 23/3/1974. A linguagem da entrevista (ou melhor, da conversa, como queria Rosa) é rica em paradoxos e imagens e cheia de humor e ironia: o escritor se compara, por exemplo, a certa altura, com um jacaré do Rio São Francisco… Na opinião de Willi Bolle (Guimarães Rosa – artigo de exportação. Humboldt 30:93-99, 1974), o ficcionista:

atrai o interlocutor ao terreno das metáforas, dos paradoxos e das ambigüidades, que conhece como poucos e que lhe servem de camuflagem e proteção. Pode ser considerado então uma pessoa estranha, e alimenta tal imagem, na medida em que isso seja equivalente a ‘profundo’, ‘misterioso’, ‘insondável’. Não quer fornecer esclarecimentos – o que, de fato, é um trabalho que a crítica tem que fazer –, mas indica a perspectiva em que ela deve vê-lo: como feiticeiro da linguagem, como autor metafísico ou como a esfinge da literatura brasileira, diante da qual se reúnem os críticos para solucionar enigmas.

Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do país.

No meio do ano, publica seu último livro, também uma coletânea de contos, Tutaméia. Nova efervescência no meio literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como “a bomba atômica da literatura brasileira”; outros consideram que em suas páginas encontra-se a “chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua criação”.

Logo após a publicação de Tutaméia, Guimarães Rosa concede uma entrevista a alunos do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, permitindo que a mesma seja gravada. Mostra-se descontraído e inteiramente à vontade, dá risadas e faz os jovens rirem muito mercê de seu inegável senso de humor. Durante a entrevista, tece comentários a respeito dos assuntos os mais diversos, variando da mini-saia, que considerava “uma gracinha”, à bomba atômica. Diz-se torcedor do Fluminense F. C., no Rio de Janeiro, e afirma “adorar” música de carnaval, chegando mesmo a cantarolar um verso do samba Não tenho lágrimas, de autoria de Max Bulhões e Milton de Oliveira (gravação original de Patrício Teixeira), gravado para o carnaval de 1938; ademais, confidencia aos estudantes que cultivava o hábito de manter o rádio ligado enquanto escrevia e que o referido samba era muito tocado enquanto preparava a versão primeira de Sagarana. Perguntado a respeito do comportamento atual da mulher e se esse comportamento estaria em desacordo com a condição feminina, admite que não, afirmando que “antigamente havia um exagero, o homem era homem demais e a mulher era mulher demais”.15 Indagado se já teria tido muitas desilusões, responde que não e completa: “Acho que a verdade é mais deslumbrante e feérica que qualquer ilusão. Cada porta que se fecha é outra melhor que se abre. É imediato. Sempre tive a capacidade de sentir o valor da pele nova debaixo da pele velha que cai.” Instado a emitir um conceito sobre a vida, lembra que seus livros estão cheios desses conceitos, destacando uma frase do conto Lá, nas campinas, de Tutaméia, que diz: “Viver é obrigação sempre imediata”. Elogia as gerações jovens, que considerava cada vez mais vivas e inteligentes, confessando que ficava particularmente feliz quando os jovens gostavam de seus livros. Depois de afirmar que “estamos entrando na era da sinceridade”, referindo-se às gerações moças, termina a entrevista contando, a pedido dos estudantes, uma piada que julgou apropriada para a ocasião e que pode ser assim resumida: três grandes sábios discutiam os assuntos mais importantes sobre a vida, a realidade, a metafísica etc.; estavam todos dentro de um barril grande, o maior que acharam; de repente, aproximou-se um garoto rolando um arco de barril, veio correndo, esbarrou e virou o barril, e os sábios ficaram inteiramente atordoados e perdidos, sem saber o que estava acontecendo…

Três dias antes da morte o autor decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: “…a gente morre é para provar que viveu.”

Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. O autor, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo.

A posse na Academia Brasileira de Letras ocorreu na noite de 16 de novembro de 1967.

No início de sua oração, o novo acadêmico refere-se com grande ternura à terra natal e ao fato de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por “Cordisburgo”:

Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: ‘Os pastos de Vista Alegre’. Santo, um ‘Padre-Mestre’, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha sido talvez seu único gesto desengajado, gratuito. Tomada da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou ‘O Burgo do Coração’. Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.

Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz Cordisburgo…’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do Sul’.

Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de pungente beleza, em que fala sobre a fé e a amizade:

João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: – ‘A vida é inimiga da fé…’ – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a ação é um enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim…’ Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento.

E Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, “impregnado de hinduísmo”; repetindo a frase “as pessoas não morrem, ficam encantadas”, que pronunciara pela primeira vez em 1926, diante do ataúde do desventurado estudante Oseas, vitimado pela febre amarela; referindo-se ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem em sua obra, o majestoso habitante das veredas – cognominado “a palmeira de Deus” –, hoje em processo de extinção mercê do instinto predatório de inescrupulosos que visam o lucro a qualquer preço; e, finalmente, apresentando-se a João Neves como “Cordisburgo”, última palavra pública que pronunciou:

Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.

Mas – o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?

‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: João Neves da Fontoura.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O mundo é mágico.

— Ministro, está aqui Cordisburgo.

Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa nota-se, claramente, ao final do mesmo, sua voz embargada pela emoção – era como se chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena consciência de que chegara sua HORA e sua VEZ. Com efeito, três dias após a posse, em 19-XI-1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro. Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo, estamparia em sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres: “MORRE O MAIOR ESCRITOR”.

Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. (Guimarães Rosa)

Em 1985, milhões de telespectadores, em todo o Brasil, tiveram acesso a um seriado baseado no livro, levado ao ar pela Rede Globo de Televisão entre 18 de novembro e 20 de dezembro, num total de 25 capítulos; a direção foi de Walter Avancini que, sem dúvida, deu uma demonstração de coragem e obstinação ao enfrentar tamanho desafio. O seriado foi considerado por muitos como o momento mais elevado da teledramaturgia brasileira. Outros limitaram-se a considerá-lo um marco, ainda que debatível. Numa análise dentro do possível desapaixonada conclui-se que o saldo do empreendimento foi positivo, com passagens de grande força dramática e de rara beleza cênica, destacando-se, à guisa de exemplo, a travessia do arraial do Sucruiú dizimado pela bexiga preta (capítulo 17) – uma travessia que, nas palavras de Riobaldo, durou “só um instantezinho enorme” –, vendo-se as fogueiras ardendo em frente às casas, os doentes desfigurados, os ratos, os jagunços a recitar contritos o Pai-Nosso para exorcizar o mal e, sobretudo, a mulher ensandecida a entoar rezas no meio da rua. Não obstante, o seriado mostrou pontos criticáveis a começar pelo vestuário de cangaceiro nordestino exibido pelos jagunços e pela pronúncia (por vezes ridícula, caricata) de boa parte dos personagens (incluídos muitos dos personagens principais e o próprio narrador) que tentaram mas não conseguiram falar ao modo dos homens e mulheres dos gerais. Pelo contrário, o que se ouviu foi, não raramente, uma fala de caipira paulista entrecortada, vez por outra (e o caso de Otacília, representada pela atriz Ana Helena Berenguer, é exemplar), por pitadas de fala carioca (palatalização da fricativa alveolar surda /s/ que adquire o som de /j/ ou de /x/). Talvez por isso mesmo, muitos dos momentos de maior autenticidade do seriado correram por conta dos coadjuvantes, representados por gente da terra; a propósito, ao saber que muitos deles não eram atores, o diretor de teatro Amir Haddad surpreendeu-se e afirmou: “Então fico com o Pasolini, que preferia os não-atores…” Acrescente-se, ainda, o grave equívoco da cena final quando, coincidindo com a derradeira menção do manuelzinho-da-crôa, surge a atriz Bruna Lombardi (que fez o papel de Diadorim) dando liberdade a um passarinho inteiramente diverso, da ordem Passeriformes.

Ora, o manuelzinho-da-crôa (Charadrius collaris), ave não-Passeriforme da família Charadriidae, vive sempre em casal e pode ser visto como um símbolo da fidelidade conjugal, donde sua importância no contexto do romance dada a forte relação afetiva existente entre Diadorim e Riobaldo, relação essa que pelas emoções que mobiliza tem muitas das características de uma verdadeira relação conjugal, a começar pela exigência de exclusividade por parte de Diadorim. É preciso não esquecer que, na obra rosiana, os menores detalhes são fortemente carregados de significação como, aliás, adverte o próprio Riobaldo-Rosa no Grande Sertão: Veredas: “Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa.”

BIBLIOGRAFIA:
– Magma (1936), poemas. Não chegou a publicá-los.
– Sagarana (1946), contos e novelas regionalistas. Livro de estréia.
– Com o vaqueiro Mariano (1947)
– Corpo de Baile (1956), novelas. (Atualmente publicado em três partes:
– Manuelzão e Miguilim, – No Urubuquaquá, no Pinhém e – Noites do sertão.)
– Grande Sertão: Veredas (1956), romance.
– Primeiras estórias (1962), contos.
– Tutaméia:Terceiras estórias (1967), contos.
– Estas estórias (1969), contos. Obra póstuma.
– Ave, palavra (1970) diversos. Obra póstuma.

Bibliografia sobre o Autor:
Bosi, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
Faraco, C.E. & Moura, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.
Holzemayr, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996. (Roteiro de Leitura).
Macedo, Tânia. Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).
Perez, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
Rosa, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Santo, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996.
Sperber, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1996. (Ensaio).
Zilberman, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.
Acervo:
– Os arquivos do autor, abrangendo o período de 1908 a 1971, com aproximadamente 12.000 documentos, foram adquiridos pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).
Homenagem ao Autor:
Museu Guimarães Rosa
Av. Padre João, 744
Cordisburgo – MG – Brasil
Fone: (0 XX 31) 3715-1378

Adaptações:
1969 – Publicação do livro “A João Guimarães Rosa” – (Gráficos Brunner), ensaio fotográfico de Maureen Bisilliat, com trechos de “Grande Sertão: Veredas”. Curta de 09 minutos – Filmoteca da ECA/ USP, direção de Roberto Santos – São Paulo (SP).

1975 – Adaptação dos contos “Corpo Fechado” (do livro “Sagarana”), direção de Lima Duarte, e “Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha” (do livro “Primeiras Estórias”), direção de Kiko Jaess, para o programa Teatro 2, da TV Cultura – São Paulo (SP)

1975 – Adaptação do conto “Sarapalha” (do livro “Sagarana”), direção de Roberto Santos, para Caso Especial, da Rede Globo – Rio de Janeiro (RJ).

1984 – Adaptação de “Noites do Sertão”, direção de Carlos Alberto Prates Corrêa – Rio de Janeiro (RJ).

1985 – Adaptação de “Grande Sertão: Veredas” para minissérie da Rede Globo, direção de Walter Avancini – Rio de Janeiro (RJ).

1994 – Rio de Janeiro RJ – Adaptação para o teatro de “Grande Sertão: Veredas”, direção de Regina Bertola, no Centro Cultural Banco do Brasil

1994 – Filme “A Terceira Margem do Rio”, direção e roteiro de Nelson Pereira dos Santos, baseado em cinco contos do livro “Primeiras Estórias”: “A Terceira Margem do Rio”, “A Menina de Lá”, “Os Irmãos Dagobé”, “Seqüência” e “Fatalidade” – Rio de Janeiro (RJ).]

Fontes:
ROCHA, Luiz Otávio Savassi. João Guimarães Rosa: sua hora e sua vez. Cadernos da Pró- Reitoria de Extensão da PUC-MG; v.3, n.Especial; p.45-68, set.1993. Disponível em http://www.medicina.ufmg.br/cememor/rosa.htm
http://www.releituras.com/guimarosa_bio_imp.asp
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/index.htm
http://www.vermelho.org.br/ (foto)

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Gunter Lorenz (Entrevista com Guimarães Rosa)

Trechos da entrevista concedida a Günter Lorenz em 1965, em Gênova*

(…) Lorenz: (…) Gostaria de falar com você sobre o escritor Guimarães Rosa, o romancista, o mágico do idioma, baseando-nos em seus livros que fazem parte, penso eu, do tema “o homem do sertão”.

Guimarães Rosa – Sim, acho que se quiséssemos dizer sobre estes três ou quatro pontos tudo o que temos de dizer, daqui a um ano ainda estaríamos conversando. E nem você nem eu temos tanto tempo. Suponho que esta enumeração das coisas que lhe interessam a meu respeito não tem uma seqüência estrita…

Lorenz: Apenas uma seqüência improvisada, intercambiável.

Guimarães Rosa – Precisamente. E por isso gostaria que começássemos pelo que você mencionou como tema final. Chamou-me “o homem do sertão”. Nada tenho em contrário, pois sou um sertanejo e acho maravilhoso que deduzisse isso lendo meus livros, porque significa que você os entendeu. Se você me chama de “o homem do sertão” (e eu realmente me considero como tal), e queremos conversar sobre esse homem, já estão tocados no fundo os outros pontos. É que eu sou, antes de mais nada, este “homem do sertão”; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também – e nisto pelo menos acredito tão firmemente como você – que ele, esse “homem do sertão”, esta presente como ponto de partida mais do que qualquer coisa.

Lorenz: Fixemos este ponto de partida; e para encaminhar nossa conversa, queria propor-lhe um início convencional: biográfico, embora ele já não seja tão convencional, se minhas conclusões sobre o que disse há pouco estiverem certas. Nasceu no sertão, aquela estepe quase mística do interior de seu país, encarnada como um mito de consciência brasileira…

Guimarães Rosa – Sim, mas para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais. Sou mineiro. E isto, sim, é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo. Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também, que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome sueco que na época das migrações era Guimarães, nome que também designava a capital de um estado sueco na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suecos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele…

Lorenz: Você está se referindo a seu “caráter literário” que inclui no importante grupo de literatos brasileiros denominados regionalistas?

Guimarães Rosa – Sim e não. É necessário salientar pelo menos que entre nós o “regionalismo” tem um significado diferente do europeu, e por isso a referência que você fez a esse respeito em sua resenha de Grande Sertão é muito importante. Naturalmente não gostaria que na Alemanha me considerassem um Heimatschriftsteller. Seria horrível, uma vez que é para você o que corresponderia ao conceito de “regionalista”. Ah, a dualidade das palavras! Naturalmente, não se deve supor que quase toda a literatura brasileira esteja orientada para o “regionalismo”, ou seja, para o sertão ou para a Bahia. Portanto, estou plenamente de acordo, quando você me situa como representante da literatura regionalista; e aqui começa o que eu já havia dito antes: é impossível separar minha biografia de minha obra. Veja, sou regionalista porque o pequeno mundo do sertão…

Lorenz: Pequeno talvez para o Brasil, não para os europeus…

Guimarães Rosa – Para a Europa, é sem dúvida um mundo muito grande, para nós, apenas um mundo pequeno medido segundo nossos conceitos geográficos. E este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo modelo de meu universo. Assim, o Cordisburgo germânico, fundado por alemães, é o coração do meu império sueco-latino. Creio que esta genealogia haverá de lhe agradar.

Lorenz: O que importa é que, além disso, ela é exata. Mas voltemos à sua biografia…

Guimarães Rosa – Creio que minha biografia não é muito rica em acontecimentos. Uma vida completamente normal.

Lorenz: Acho que não é bem assim. Em sua vida você passou por sua série de etapas muito interessantes, até mesmo instrutivas. Estudou medicina e foi médico, participou de uma guerra civil, chegou a ser oficial, depois diplomata. Deve haver ainda outros fatos, pois estou apenas citando de memória.

Guimarães Rosa – Chegamos novamente ao ponto que indica o momento em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte…

Lorenz: Deve-se considerar isto como uma escala de valores?

Guimarães Rosa – Exato, é uma escala de valores.

Lorenz: E estes conhecimentos não constituíram, no fundo, a espinha dorsal de seu romance Grande Sertão?

Guimarães Rosa – E são. Mas devemos acrescentar alguns outros sobre os quais ainda temos de falar. Mas estas três experiências formaram até agora meu mundo interior; e, para que isto não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas.

Lorenz: Parece uma sucessão e uma combinação um tanto quanto curiosas de motivos.

Guimarães Rosa – Bem, tudo isto é curioso, mas o que não é curioso na vida? Não devemos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de insetos contempla os seus escaravelhos.

(…) Lorenz: Atrevo-me a apostar que a maioria de seus leitores alemães, antes de ler seu livro, nem sequer sabia que o sertão existe. Provavelmente ainda o considera uma invenção sua.

Guimarães Rosa – Também acho. Recentemente, durante minha viagem à Alemanha, convenci-me disso. Um crítico que me foi apresentado como homem famoso – prefiro não dizer seu nome – felicitou-me por eu haver “inventado uma nova paisagem literária”, tão “magnífica”, assim entre aspas. Coisas semelhantes me aconteceram na Itália, na França e até na Espanha. Mas é preciso aceitar essas coisas, não se pode evitá-las. Quando escrevo, não posso estar constantemente acrescentando notas de rodapé para assinalar que se trata de realidade.

(…) Lorenz: E o seu Riobaldo? Acho que você ainda não acabou de caracterizá-lo.

Guimarães Rosa – Eu sei. Gostaria de acrescentar que Riobaldo é algo assim como Raskolnikov, mas um Raskolnikov sem culpa, e que, entretanto, deve expiá-la. Mas creio que Riobaldo também não é isso. Melhor, é apenas o Brasil.

(…) Lorenz: Novamente um paradoxo magnífico: “eu tento o impossível”. Entretanto, deveríamos ser ainda mais concretos. Temos essa questão do compromisso, que talvez pudéssemos utilizar nesse sentido. Como você definiria, por exemplo, sua concepção do dever de um autor, diferenciando-a de Astúrias ou, naturalmente, de Jorge Amado?

Guimarães Rosa – Gosto de Astúrias porque se parece tão pouco comigo. Este homem é um vulcão genial, uma exceção, segue suas próprias leis. Nós nos entendemos e nos admiramos, porque somos muito diferentes um do outro. Mas ele vive de um modo que gera perigo: ele pensa ideologicamente.

Lorenz: E Jorge Amado? Você não acha que este grandioso fabulista e amigo dos homens também pensa ideologicamente?

Guimarães Rosa – Sem dúvida, ele também é um ideólogo; mas sua ideologia me é mais simpática que Astúrias. Astúrias tem algo do distanciamento incorruptível de um sumo-sacerdote; sempre enuncia novos dez mandamentos. Isto é admirável, mas não encanta. As palavras de Astúrias são palavras de um pai, de um patriarca que emite sentenças no sentido do Antigo testamento. Amado é um sonhador, e sem dúvida alguma um ideólogo, mas adota a ideologia do conto de fadas com suas normas de justiça e expiação. Amado é um menino que ainda crê no Bem, na vitória do Bem; defende a ideologia menos ideológica e mais amável que já conheci. Astúrias é a poderosa voz do juízo final. Amado vai dando pinceladas a mais não poder, e certamente quer mandar ao diabo muitas coisas, mas o faz de forma tão encantadora que nos convence com maior razão. Astúrias se expressa com palavras de ferro.

(…) Lorenz: Ainda tenho uma última pergunta, a cuja resposta dou muita importância. Não ria, vou lhe perguntar em que está trabalhando agora. Sei que isso não levaria a nada. Mas gostaria que me dissesse o que pensa do futuro da América Latina.

Guimarães Rosa – Realmente, pensei que você estava querendo me comprometer agora e depois me perguntar todo ano quando ficaria pronto o livro anunciado. Prefiro que não tenha sido assim. Sou um homem que viu muitas coisas no mundo, que entende muito de literatura mundial. Não quero pecar por presunção, mas comparando quantitativamente o que se escreve, por exemplo, na Europa, com o que se escreve entre nós, sinto-me um tanto orgulhoso. É claro que também entre nós se imprime muita coisa medíocre que nada tem a ver com literatura. Mas isso existe sempre e em toda parte. Entre nós, não só no Brasil e não só entre os escritores velhos e os de minha geração, há muitos que justificam as maiores esperanças e permitem que encaremos tranqüilamente o futuro. A América Latina se tornou no terreno literário e artístico, digamos em alemão, Weltfähig (“apta para o mundo”). O mundo terá de contar. Olhe, Lorenz, não seria tão errado reduzir todas as ciências a uma lei básica, como fizeram os escolásticos e cientistas medievais. Não, eu não quis evocar a teologia. Mas quero pintar um panorama que, no fundo, delineia todos os problemas intelectuais da atualidade. Olhe, o futuro da Europa e de toda humanidade é como uma equação com várias incógnitas. A Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor uma grande tradição. E, entretanto, os europeus não têm qualquer influência sobre essas incógnitas que determinam o futuro de seu continente. O “x” e o “y” desta equação decidirão o amanhã, tanto assim que quase já se pode dizer hoje. A América Latina talvez não seja a incógnita principal, o “x”, mas provavelmente será o “y”, uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se que uma equação não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada. Suponhamos agora que a América Latina seja a tal incógnita “y”. Com isso a Europa está em um ponto culminante para o seu futuro. E não estou falando apenas das necessidades e do potencial econômico de meu continente. Você sabe que nós, os latino-americanos, nos sentimos muito ligados à Europa. Para mim, Cordisburgo foi sempre uma Europa em miniatura. Amamos a Europa como, por exemplo, se ama uma avó. Por isso espero que a Europa reconheça a equação e leve em conta o “y”. Isso não lhe traria nenhum prejuízo. Por nós e conosco talvez a Europa tenha um futuro não só no campo econômico, não só no campo político, mas também como fator de poder espiritual. No final das contas, somos parentes espirituais: avó e netos. A Europa é um pedaço de nós; somos sua neta adulta e pensamos com preocupação no destino, na enfermidade de nossa avó. Se a Europa morresse, com ela morreria um pedaço de nós. Seria triste, se em vez de vivermos juntos, tivéssemos de dizer uma oração fúnebre pela Europa. Estou firmemente convencido, e por isso estou aqui falando com você, de que em 2000 a literatura mundial estará orientada para a América Latina; o papel que um dia desempenharam Berlim, Paris, Madri ou Roma, também Petersburgo ou Viena, será desempenhado por Rio, Bahia, Buenos Aires e México. O século do colonialismo terminou definitivamente. A América Latina inicia agora seu futuro. Acredito que será um futuro muito interessante, e espero que seja um futuro humano.

Fontes:
LORENZ, Günter. Entrevista com Guimarães Rosa. Gênova, 1965. Disponível em
http://maldemontano.wordpress.com/2006/12/18/entrevista-com-guimaraes-rosa

http://publique.rdc.puc-rio.br (imagem)

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Guimarães Rosa (Campo Geral)

A narrativa de Campo geral começa quando Miguilim é levado por Tio Terez para ser crismado. O menino tem 8 anos e nunca saiu do Mutum, afora pequenas mudanças que fez quando ainda muito pequeno. Desta viagem, a lembrança mais nítida será de um comentário ouvido sobre a beleza de Mutum. Profundamente impressionado com esta referência, Miguilim não vê a hora de contá-la à mãe, Nhanina, sempre triste de ali viver.

Ao chegar em casa, vai tão aflito procurar a mãe, que acaba desgostando a seu pai e recebe castigo: não o acompanha juntamente com os irmãos na pescaria de domingo. Em contrapartida, aprende a fazer arapuca para pegar passarinho com o Tio Terez.

A rotina da casa inclui os brinquedos de Miguilim com seus irmãos por ordem de idade, Drelina, Dito, Chica, Tomezinho. Há também outro irmão, Liovaldo, mais velho que Miguilim, o único que não mora com a família. Na cozinha, a mãe e as empregadas, Rosa, Maria Pretinha e Mãitina, preparam as comidas. Nas cercanias, vivem os diversos cachorros da família. Havia uma cadela, a Pingo-de-Ouro, a que Miguilim era especialmente apegado, mas que foi dada pelo pai a tropeiros de pernoite no Mutum.

A descoberta de que Nhanina e Tio Terez tinham um caso causa grande confusão. O pai bate na mãe, Miguilim tenta interrompê-lo e termina sendo castigado _ . Vovó Izidra, sua tia-avó, é quem toma a iniciativa de expulsar Tio Terez de casa, xingando-o de Caim. Nesta noite, uma grande tempestade faz Dito e Miguilim conversarem sobre o medo da morte. Para acalmar a todos, Vovó Izidra puxa uma reza.

No dia seguinte, Seo Deográcias, entendido de remédios, foi com o filho, Patori, visitá-los. Queria, na verdade, pegar emprestado alguns mantimentos e cobrar um dinheiro, mas aproveita para aconselhar sobre a saúde de Miguilim, que a todos parecia frágil.

Aos poucos, Miguilim começa a cismar que vai morrer. Faz uma promessa a Deus: se ele não morresse nos próximos dias, não morreria mais. Enquanto isso, se compromete a rezar uma novena. Contudo, os dias passam, ele não principia a novena e vai ficando cada vez mais ansioso. Começa então a rever vários momentos e se recorda da habilidade de Dito em se comportar de modo que não desagrade o Pai, da curiosidade que Patori lhe despertou sobre sexo, do aconchego que sentia em criança de ficar nos braços de Mãitina. No derradeiro dia, nem da cama ele quer sair. E até Seo Aristeu, outro curandeiro da região, vir vê-lo, Miguilim não pode acreditar em outra coisa que não fosse a morte chegando. Temia estar tísico, mas Seo Aristeu logo foi explicando no seu jeito alegre de falar que essa doença não dava por aquela parte dos Gerais.

O pai então toma uma decisão: a partir do próximo dia, Miguilim irá levar-lhe comida na roça onde trabalhava. O menino fica muito feliz de se sentir útil. Quando foi cumprir a tarefa pela primeira vez, Tio Terez aparece no caminho e pede ao sobrinho um favor: entregar um bilhete a Nhanina. O pedaço de papel no bolso põe Miguilim num grande embate interior: o que seria mais certo fazer? Sem contar o motivo, consulta todos sobre o que é certo ou errado. Como sempre, é com Dito que Miguilim vai se orientar, tentando pedir explicações que o irmão, apesar de menor, parece sempre conhecer.

Depois de uma tarde e de uma noite de dúvidas, Miguilim só resolve em frente ao Tio Terez o que fazer: diz a verdade e devolve o bilhete. O Tio então se dá conta em que horrível posição colocara o sobrinho e se desculpa. Ainda atordoado, Miguilim deixa que os macacos roubem a comida do tabuleiro. O pai se diverte com a história, dando a sensação em Miguilim de ser amado.

Com a chegada de Luisaltino, novo parceiro de trabalho de Nhô Bero, vem a notícia de que Patori assassinou um rapaz e está foragido. Patori acaba morrendo de fome, e Nhô Bero larga tudo para prestar solidariedade a Seo Deográcias, que se desesperava com a perda do filho. Mas o que mais agradou a Miguilim foi que Luisaltino traz consigo um papagaio, o Papaco-o-Paco.

Uma manhã, depois de ter ido espiar uma coruja, Dito pisa num caco de pote e corta o pé. O tétano toma conta do menino e, em poucos dias, ele morre. Miguilim se desespera e esse intenso sofrimento parece não passar nunca. Mãitina tem uma idéia que o ajuda a enfrentar a dor: juntou roupas e brinquedos de Dito e alguns guardados seus e enterrou tudo no quintal, marcando depois o lugar com pedrinhas lavadas do rio.

Para tirá-lo dessa tristeza, Nhô Bero resolve pô-lo para trabalhar: começa a debulhar milho, capinar a horta, buscar cavalo no pasto. Miguilim não acha ruim trabalhar, mas não vê alegria em nada. Para complicar, dias depois chegam Tio Osmundo e o irmão Liovaldo.

O Tio não simpatiza com Miguilim e Liovaldo começa a provocá-lo. Até que Liovaldo faz pequenas maldades com o menino Grivo e Miguilim, indignado, acaba partindo para a briga. Nhô Bero fica tão furioso que dá uma sova de correia no menino. Miguilim sente tanto ódio do pai que nem chora: só pensa em crescer e matá-lo. Nhanina, para abrandar a situação, manda Miguilim se hospedar na casa do vaqueiro Saluz por três dias. Na volta, Miguilim não pede a bênção ao pai, que então se vinga, soltando os passarinhos de Miguilim e despedaçando as gaiolas. Miguilim por sua vez extravasa sua raiva, quebrando os próprios brinquedos.

Quando o Tio e o irmão vão embora, Miguilim pela primeira vez se alegra com a possibilidade de um dia ser ele a partir. Com esta idéia na cabeça começa a se reanimar, a repassar tudo que aprendera com Dito, mas termina por adoecer, o que desespera Nhô Bero. Durante a sua convalescença, uma tragédia se precipita: Nhô Bero descobre que Luisaltino o traía com sua mulher; mata o ajudante e, em seguida, se suicida.

Seo Aristeu tenta animar Miguilim. Nhanina conta sua intenção de casar com Tio Terez, que a esta altura já está de volta. Miguilim, ainda abatido com a doença e com todos os acontecimentos, vê chegar dois homens a cavalo. Um deles logo repara no jeito de Miguilim olhar, com os olhos apertados. O grupo vai para a casa e Miguilim é examinado até que o homem, doutor José Lourenço, do Curvelo, chega a um diagnóstico: vista curta. Tira os próprios óculos e empresta ao menino, que nem pode acreditar em tudo que se revelou a sua frente.

O doutor se oferece para levar Miguilim para a cidade: providenciaria os óculos e poria Miguilim para estudar. Miguilim aceita o convite e se prepara para ir embora na manhã seguinte. Mas, antes de partir, pede de novo os óculos. Quer levar consigo uma imagem nítida da família e do Mutum, que, agora ele via, era realmente bonito.

Fontes:
www.trabalhonota10.com/resumo-de-livros/campo-geral.html

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Antonio Callado (1917 – 1997)

Antonio Callado, jornalista, romancista, biógrafo e teatrólogo, nasceu em Niterói, RJ, em 26 de janeiro de 1917, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de janeiro de 1997. Eleito em 17 de março de 1994 para a Cadeira n. 8, na sucessão de Austregésilo de Athayde, foi recebido em 12 de julho de 1994 pelo acadêmico Antonio Houaiss.

Ingressou na Faculdade de Direito em 1936 e, no ano seguinte, começou a trabalhar, como repórter e cronista, em O Correio da Manhã. Iniciava aí uma carreira jornalística que lhe proporcionou muitas viagens e contato com alguns dos temas de sua obra.

Diplomou-se em Direito em 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, foi contratado pela BBC de Londres como redator, lá trabalhando até maio de 1947. Em um período intermediário, de novembro de 1944 a outubro de 1945, trabalhou também no serviço brasileiro da Radio-Diffusion Française, em Paris (a sede do Serviço ficava nos Champs-Elysées e seu chefe era o escritor Roger Breuil). Em 1943, casou-se com a inglesa Jean M. Watson, com quem teve três filhos. Casou-se, em 1977, com a professora e jornalista Ana Arruda Callado.

Ao retornar ao Brasil voltou a trabalhar no Correio da Manhã e também passou a colaborar em O Globo. Foi redator-chefe do Correio da Manhã de 1954 a 1960, quando foi contratado pela Enciclopédia Britânica para chefiar a seção de uma nova enciclopédia, a Barsa, publicada em 1963. Foi em seguida redator do Jornal do Brasil, que o enviou, em 1968, ao Vietnã em guerra. Em 1974 esteve como Visiting Scholar em Corpus Christi College, Universidade de Cambridge, Inglaterra. Passou o segundo semestre de 1981 lecionando, como Visiting Professor, na Columbia University, Nova York. Aposentou-se como jornalista em 1975, mas continuou a colaborar na imprensa. Em abril de 1992 tornou-se colunista da Folha de S. Paulo.

Além das atividades jornalísticas, dedicou-se sempre à literatura. Ainda jovem pôde ler, na biblioteca do pai, os autores europeus que mais tarde marcariam seu trabalho, sobretudo franceses e ingleses, como Proust e Joyce, ao lado de alguns brasileiros, como Machado de Assis e José de Alencar. Nos seus dois primeiros romances, Assunção de Salviano (1954) e A madona de cedro (1957), persiste uma nítida preocupação religiosa a informar e até mesmo a condicionar o transcurso da aventura e a temática. Mas o encontro entre o escritor e os principais temas de sua obra deu-se através do jornalismo, que o levou, além dos anos passados na Europa, a lugares como Bogotá, Washington, Xingu e Havana, que enriqueceram a sua bibliografia com livros de reportagem e obras literárias engajadas com as grandes questões de seu tempo. Entre os mais importantes, estão Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do baile (1976), Sempreviva (1981), que apresentam um retrato do Brasil durante o regime militar, do ponto de vista dos opositores. Seu engajamento lhe custou duas prisões: uma em 1964, logo após o golpe militar, e outra em 1968, após o fechamento do Congresso com o AI-5.

Teatrólogo, reuniu quatro de suas peças no volume A Revolta da Cachaça, em 1983. Uma delas, Pedro Mico, encenada em muitas ocasiões, foi transformada em filme que teve como ator principal o ex-jogador de futebol Pelé. Em março de 1987 participou, em Paris, do Salon du Livre, a convite do Ministério da Cultura da França. Em novembro de 1990 representou o Brasil na semana “De Gaulle en son siècle”, comemorativa do centenário do General Charles de Gaulle.

Em 1958 recebeu, na Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, a medalha da Ordem do Mérito da República Italiana. Em 1982 foi à Alemanha, como vencedor do Prêmio Goethe, do Goethe Institut do Rio de Janeiro, com o romance Sempreviva. Em setembro de 1985 recebeu, pelo conjunto de suas obras, o Prêmio Brasília de Literatura, da Fundação Cultural do Distrito Federal. Em outubro de 1985 recebeu, na Embaixada da França em Brasília, a Medalha das Artes e das Letras, das mãos do Ministro da Cultura Jack Lang; em maio de 1986, o prêmio Golfinho de Ouro, de Literatura, outorgado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro; em 1989, o troféu Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores, por ter sido eleito “Intelectual do Ano”.

Era membro da ABL e da The Corpus Association, do Corpus Christi College, Cambridge (Inglaterra).

Obras: Esqueleto na lagoa Verde, reportagem (1953); A assunção de Salviano, romance (1954); A cidade assassinada, teatro (1954); Frankel, teatro (1955); A madona de cedro, romance (1957); Retrato de Portinari, biografia (1957); Pedro Mico, teatro (1957); Colar de coral, teatro (1957); Os industriais da seca, reportagem (1960); O tesouro de Chica da Silva, teatro (1962); Forró no engenho cananéia, teatro (1964); Tempo de Arraes, reportagem (1965); Quarup, romance (1967); Vietnã do Norte, reportagem (1969); Bar Don Juan, romance (1971); Reflexos do baile, romance (1976); Sempreviva, romance (1981); A expedição Montaigne, romance (1982); A revolta da cachaça, teatro, reunião de 4 peças (1983); Entre o deus e a vasilha, reportagem (1985); Concerto carioca, romance (1985); Memórias de Aldenham House, romance (1989); O homem cordial e outras histórias, contos (1993).

Fonte:
http://www.academia.org.br/

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Andrey do Amaral (O máximo e as máximas de Machado de Assis)

O Autor
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Andrey do Amaral dos Santos nasceu em Brasília (Distrito Federal) a 25 de março de 1976. É filho da professora aposentada Leila do Amaral e do Coronel (RR), PMDF, Agnaldo Vieira dos Santos. Tem duas irmãs: Érika e Evelyn. Estudou o ensino fundamental em escola particular até a 5ª série, concluindo seus estudos na rede de ensino público. Cursou Letras na Universidade Católica de Brasília e tem duas especializações lato sensu, uma em Língua Portuguesa e outra em Sexologia. Escreve desde a adolescência e usa Andrey do Amaral como nome literário. É saxofonista amador e ex-míope. É bibliófilo e tem uma coleção de revistas antigas. Faz fichas literárias para algumas editoras e agencias de livros de novos autores e amigos.

Já foi livreiro e trabalhou com educação indígena. Escreve humor e contos. Teve seus livros publicados pelas editoras Best Seller, Ao Livro Técnico e Projecto Editorial. Andrey do Amaral é autor do sucesso Como Enlouquecer Sua Sogra… (Editora Best Seller, São Paulo, 1999, humor, 108 páginas) e de Eu, multívolo!?!… (Thesaurus, Brasília, 1997, poesia, 103 páginas).

Blog e site do autor estão nas fontes

O Livro
Neste livro você encontra uma seleção dos principais textos do Bruxo do Cosme Velho. Indispensável para professores e estudantes. Os melhores poemas, trechos de romances, antologia de contos, documentos inéditos, iconografia, crônicas, reportagens, cartas, manuscritos, filmografia completa e as melhores máximas de Machado de Assis. O prefácio é de Ubiratan Machado.
Editora: Projecto Editorial
Medida : 16cm X 23cm
Páginas: 162

Livraria Saraiva e Livraria Cultura = R$ 25,00 (pesquisa em 8/4/2008)

Fontes:
http://www.solute.com.br/brasilialiteraria/
www.andreydoamaral.com
http://andreydoamaral.blogspot.com/

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Edgar Allan Poe (O Coração Delator)

É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição. Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.

É impossível saber como a idéia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal. Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso! Um de seus olhos parecia o de um abutre – um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.

Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra! Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza! E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava. Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto? E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre. E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite. Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.

Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos. Cheguei a rir com essa idéia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não. Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.

Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingüeta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando:

— Quem está aí?

Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos relógios fúnebres na parede.

Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som. Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro. Eu sabia que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira. Dissera consigo mesmo: “Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão”, ou “É só um grilo cricrilando um pouco”. É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão. Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto.

Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.

Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza – todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.

E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão. Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado.

Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto. O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo. E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel. Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir. E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só. Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais.

Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue. Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo – ha! ha!

Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.

Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.

Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável. No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.

Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que se fossem. Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia – e o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer. Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam. Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! – Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto!

— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!
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Biografia sobre o autor em 12 de março
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Fonte:
POE, Edgar Allan. O Coração Delator. Tradução: Celina Portocarrero.In COSTA, Flávio Moreira da (org.). Os melhores contos de loucura. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007
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