Arquivo do mês: janeiro 2008

André Carneiro (Conto: Do Outro Lado da Janela)

Ele notava o defeito bem tarde, quando já passava horas vendo os programas. Era uma pequena mancha que mudava de lugar e às vezes desaparecia, para voltar depois. A televisão era nova, não devia dar defeito.

Mandou consertá-la. No primeiro dia foi tudo bem. No segundo, lá estava a mancha de novo. Nos programas da tarde a imagem era boa. Alguém o lembrou de que talvez fossem os olhos cansados… Não eram. Sentia-os perfeitos, mesmo quando passava da meia-noite. Alguns filmes terminavam por volta das três horas da manhã. O técnico foi chamado de novo, e tudo se repetiu, até que ele resolveu vender o aparelho por qualquer preço e comprar outro, com sacrifício, o melhor e o mais caro nos anúncios.

Até a meia-noite a imagem estava nítida, mas meia hora depois apareceu a sombra, vaga e móvel, como se fosse parte de outra transmissão. A mancha não era estática, tinha movimento, suas bordas modificavam-se, dissolviam-se como algo em crescimento, em evolução. É isso, em evolução. Ele notou que a mancha era uma coisa viva, às vezes tinha tanto interesse quanto os filmes. Ele se perturbava olhando para aquilo, tentando descobrir o que era, o que significava, enquanto se esforçava para não perder o que estava acontecendo atrás, no filme que acompanhava. Atrás? Por que atrás? A mancha não estava na frente, misturava-se à imagem do programa transmitido.

Ele já mudara a televisão de lugar, comprara filtros especiais, inutilmente. Embora não falasse com ninguém do prédio, um dia, no elevador, quando conversavam sobre novelas, criou coragem, perguntou se eles notaram um defeito, uma leve mancha na imagem. Não, ninguém vira nada parecido.

Aos poucos, desistiu de lutar contra a mancha. Não chamaria mais os técnicos, não tentaria eliminar o defeito. Estava aprendendo a conviver com ela. Entretanto, a mancha não era somente algo que tapava o que estava atrás. Ela vibrava e se mexia com tal sutileza que parecia um pequeno programa dentro do outro que ele via. Surpreeendeu-se, um dia, ao perceber que a mancha estava também aparecendo à tarde, nem se lembrava há quanto tempo. Agora, quando o programa não era de seu especial interesse, ele olhava para a mancha, acompanhava as suas bordas, tentava calcular quanto ela tinha crescido e até onde ia chegar.

Bem tarde da noite, ela parecia bem maior e mais forte. Ele ficava no sofá, quase deitado, olhando fixo, horas seguidas. Um dia, surpreeendeu-se com o vídeo luminoso e branco, o zumbido do aparelho ligado, sem nenhuma imagem. Eram cinco horas da manhã, a estação tinha encerrado a transmissão. Ficou olhando por algum tempo ainda o retângulo mágico, depois deitou-se e custou a dormir.

Ficou algumas horas na cama, levantou-se e ligou o aparelho.

A mancha estava lá. Agora bem maior.

Quando se deu conta que a mancha já ocupava metade da imagem , percebeu que só via também os programas pela metade. A mancha crescia do centro para as bordas. Fazia estas reflexões para si próprio, de maneira fria e estatística, pois também ele aumentava as horas em que permanecia em frente ao aparelho, prestando a maior atenção. A mancha não era um borrão. Era uma cena, personagens, gestos, que ele identificava como em um sonho.

Só saia do quarto para pegar algo, um sanduíche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa. Comia coisas frugais, olhando para o vídeo. Já não importava selecionar canais, procurar programas. A mancha estava ali e fixando-a com atenção revelava coisas, fisionomias que ele não identificava, mas lhe pareciam importantes. Não se esforçava para entender nem reconhecer o que via. Era algo que o fascinava e o prendia, que talvez acabasse saindo do aparelho e invadindo toda a casa. Sim, havia personagens na mancha, e um, mais especial, que o emocionava, não sabia por quê.

Assistia aos programas até o fim. Quais programas? Não saberia descrever ou dar o título de nenhum. Ele via televisão e a mancha não existia mais. Era o próprio programa. O personagem principal foi adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar, sua fisionomia marcada eram impressionantes.

Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia amanhecer. Não a desligou, também. Sem quase tirar os olhos dela, bebeu apenas um copo de leite. Pestanejava e olhava o aparelho zumbindo, e de repente teve uma sensação estranha. O quarto parecia menor, mais quente, as paredes não eram mais paredes, mas tinham encaixes, fios, eram curvas, eram… o aparelho de televisão em sua frente parecia imenso agora, mas… não era um aparelho, era como se fosse uma janela retangular, enorme, do tamanho da parede do quarto. Do outro lado da janela, não, não era janela, era o próprio vídeo que ele reconhecia, as paredes do quarto eram de vidro. Ele estava dentro do tubo, dentro do próprio aparelho, e lá fora, sentado em uma cadeira, com os olhos fixos em sua direção, um homem cansado, mas atento. Podia reconhecê-lo facilmente. Era ele próprio.

Fonte:
CARNEIRO, André. A máquina de Hyerónimus e outras histórias. São Carlos: EDUFSCar, 1997. p.21-23.

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Miguel de Cervantes (Resenha: Dom Quixote)

Candido Portinari (Dom Quixote e Sancho Pança)
A questão fundamental que se coloca quando nos encontramos frente a frente com a figura de D. Quixote é se estamos diante de um homem sensato ou de um louco. Da nossa resposta dependerá todo o relacionamento que, a partir de então, teremos com a imortal obra de Cervantes.

Cervantes dará sua resposta ao longo de duas Partes, a primeira com 52 capítulos e a segunda, com 74. Entre uma e outra, o próprio autor se encarrega de avisar que já anda correndo “pelo orbe” uma Segunda Parte que não foi escrita por ele. De fato, há muitas formas de ler o Quixote…

Logo no Cap. I ficamos sabendo o que aconteceu com o famoso fidalgo que “afinal, rematado já de todo juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu louco algum do mundo, e foi: parecer-lhe conveniente e necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras(…) desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama” (p. 30).

Daí, e do que já conhecemos do Quixote, sem precisar sequer dar-nos ao trabalho de lê-lo, podemos concluir que possivelmente se trata de um louco, manso, mas louco. Porém, procuremos analisar essa conclusão com algo mais de vagar. Há muitas formas de se encarar a vida e a realidade. Há aqueles que olham para a vida e não vêem nada além do que seus olhos retém. Homens como os descritos por Dickens em “Tempos Difíceis”, que não querem decorar a casa com um papel de parede com desenhos floridos pura e simplesmente porque nunca ninguém viu flores nas paredes. Nada mais lógico: as flores encontram-se no campo ou nos vasos, mas nunca num papel de parede.

Homens assim estão feitos para serem práticos, pragmáticos. Sua vida se resolve numa única pergunta: isso serve para quê? Talvez o melhor representante desse tipo de pessoa seja a própria sobrinha de D. Quixote, Antonia Quijana, que no começo da II Parte (Cap. VI) aconselha o tio para que se deixe de bobagens e tenha em conta a idade que tem e não caia no ridículo de andar por aí “endireitando a vida de todos“…

Para esses homens e mulheres, D. Quixote só pode ser um louco. Aliás, o próprio D. Quixote sabe muito bem disso e explica claramente que há duas formas de entender e duas formas de olhar para o mundo. Há uma forma chã, terra a terra, e há uma outra forma, a forma daqueles que estão possuídos por um projeto.

O capítulo XXXI, Parte I é a chave para entender quem é D. Quixote. Sancho fora levar ao Toboso, terra da “sem par Dulcinéia” a carta que D. Quixote escrevera em Sierra Morena para a sua amada. Como Sancho era um homem prático e via que tudo não passava de uma bobagem, nem se preocupou em entregar a carta. Deu uma olhada em Dulcinéia, comprovou que, de fato, era mesmo uma loucura do seu amo, e voltou disposto a fazer ver a D. Quixote que Dulcinéia não era Dulcinéia, mas simplesmente Aldonza Lorenzo.

Sancho diz que Aldonza não leu a carta porque estava atarefada moendo o trigo…

– Discreta senhora -responde D. Quixote-. Isso deve ser para poder lê-la depois mais devagar e saboreá-la melhor.

Sancho não entende como seu amo pode estar tão cego e dá um sinal contundente: Dulcinéia cheira mal. Pior, tem cheiro de homem, e de homem suado…

– Não é bem assim. Deve ser que você mesmo estava ……, ou então, que você se cheirou a si próprio, porque bem sei eu como cheira aquela rosa entre espinhos, aquele lírio do campo, aquele âmbar precioso.



Mesmo assim, Sancho insiste e diz a D. Quixote que sua amada não lhe deu sequer uma jóia de lembrança; que o único que lhe deu foi um pedaço de queijo e outro de pão. D. Quixote sabe ver a grandeza.

– Generosa é em extremo. E se não te deu uma jóia de ouro, é sem dúvida porque não a tinha à mão… (p. 182).

Quem está louco? Quem tem razão o cavaleiro ou o escudeiro? Não se pode esquecer que D. Quixote é um homem com um projeto a realizar, enquanto Sancho não tem projeto algum. E só o homem com projetos é que consegue captar que a realidade é sempre muito maior do que se vê.

Depende do sentido que a vida tiver. E só o homem com projetos é capaz de descobrir e atualizar o sentido e significado da vida.

Escrever é, do começo ao fim, reproduzir a vida ao meu redor através do meu interior, o qual o absorve tudo, o combina tudo, o recria de novo, o amassa e o reproduz em formas e matérias próprias. A criação não é criar e descobrir do nada, mas infundir o entusiasmo do espírito na matéria. (Thomas Mann).

Esse texto de Mann diz tudo: trata-se de infundir entusiasmo em toda a realidade. A realidade não é um bloco monolítico, isolado, à margem da minha vida. Pelo contrário, a realidade está à espera de que nos relacionemos com ela. E essa relação é que é a vida ou, pelo menos, a trama da minha vida. Como muito bem explica Marina, citando a Husserl e Zubiri, é falso afirmar que “vejo o que vejo“, como diria Sancho enfaticamente, pensando estar afirmando a verdade mais óbvia do mundo.

Todos temos as mesmas sensações, mas percebemos de acordo com nossos conhecimentos, planos e intenções. Enganamo-nos se pensamos que olhamos para a realidade como se fôssemos um espelho; como se, de certa forma, nossos sentidos e nossa inteligência se comportassem como uma máquina fotográfica, que refletiria a realidade: vejo o que vejo.

Não deveríamos esquecer que o que observamos não é a própria natureza, mas a natureza determinada pelo teor das nossas questões (Heisenberg).

A realidade é colocada em xeque; é submetida a intervenções; é analisada, entrevistada, recortada por nós e, dessa forma, é que é transformada em vida nossa. A minha vida real é a vida que sou capaz de viver dentro da realidade assim trabalhada. E, nesse sentido, D. Quixote não é louco, é apenas um homem apaixonado, um homem disposto a viver a vida com um projeto.

Por isso, quando depois de ter sofrido vilipêndios e desgraças, se encaminham pela Mancha à procura de um lugar de repouso e as suas coisas iam encaminhando de bem a melhor, [porque]ainda não tinham andado uma pequena légua, quando lhes deparou o caminho e nele descobriram uma venda que, a pesar seu [de Sancho], e a contento de D. Quixote, devia ser um castelo. Sancho porfiava que era venda e seu amo que não, porém castelo…(Parte I, Cap. XV, p. 88).

Enquanto que todos olhavam para a Maritornes -que era o nome da moça que “atendia” à venda- como “moça para se refocilar juntos”, D. Quixote enxergava uma princesa, que veio ver o malferido cavaleiro, vencido de amores, com todos os adornos que aqui se declaram. Tamanha era a cegueira do pobre fidalgo, que nem o tato, nem o cheiro, nem outras coisas, que em si trazia a boa donzela, o desenganavam, com serem tais, que fariam vomitar a quem quer que não fosse arrieiro; antes lhe parecia que tinha nos braços a deusa da formosura…(Idem, p. 90).

D. Quixote não está louco, simplesmente passou a ser visto como louco ou visionário por todos aqueles que, sensata e racionalmente, acham que a vida é para ser apenas vivida. D. Quixote pertence à categoria de homens que não aceitam curvar-se à facticidade do acontecer humano. Há uma irrealidade, extremamente poderosa, que não é ficcional nem fantástica. É a irrealidade do projeto, do sonho, da utopia, que envolve e entusiasma o homem, extraindo dele o máximo de si e carregando-o de felicidade. É por isso que o Quixote vê o famoso elmo de Mambrino, enquanto Sancho vê apenas uma bacia carregada por um barbeiro:

Como no caminho lhe começou a chover, receoso [o barbeiro] de que lhe estragasse o chapéu, que naturalmente seria novo, pôs-lhe por cima a bacia, que, por estar areada de pouco tempo, resplandecia a meia légua de distância. Vinha montado num asno pardo, como Sancho dissera, e esse é que ao fidalgo se figurou cavalo ruço rodado; o mestre, cavaleiro; e a bacia elmo de ouro (Parte I, Cap. XXI, p. 115).

Cervantes é consciente de que a decisão do Quixote de tornar-se um “cavaleiro andante” -o seu projeto: é mister andar pelo mundo buscando as aventuras como escola prática, para que, saindo algum grande monarca, já o cavaleiro seja conhecido pelas suas obras…(Parte I, Cap. XXI, p. 118).- configura a sua forma de ver as coisas. Por isso afirma, a continuação da história do elmo de Mambrino: “Tinha isso de si: quantas coisas via, logo pelo ar as acomodava às suas desvairadas cavalarias e descaminhados sonhos” (Idem).

O projeto é algo pensado, escolhido, deliberado, “ao qual entrego o controle da minha conduta. É precisamente essa característica projetiva -Marías dirá futuriça – que amplia e enriquece o campo de ação do homem e lhe permite sair dos estreitos limites do mundo racional e formal. Passa-se a viver criativamente. O enamorado de um ideal é muito mais normal do que todos aqueles que não são capazes de compreendê-lo. O projeto, ao colocar-se como meta a ser realizada, consegue ampliar o campo de liberdade do homem. A partir desse momento a sua vida dá-se além da estatística e da lógica. A lógica formal, o método matemático são tentativas de apreender a realidade, mas a realidade é muito mais do que o método compreensivo e vai muito mais além do que um simples modelo explicativo. Pode acontecer que o homem, quando completamente entusiasmado pelo seu projeto, não saiba bem para onde está indo, como acontecia com D. Quixote. Pode até não resolver muitos problemas que irão surgindo na sua frente, como também acontecia com D. Quixote, mas é sem dúvida alguma a melhor maneira de viver criativamente. Tudo o que hoje é permanente na história foi, nos seus começos, puro quixotismo.

É evidente que esta forma de viver está em rota de colisão com o padrão racionalizado, funcional e tecnologizado da sociedade contemporânea, mais preocupada com os “meios” do que com os “fins”. A técnica tem em si a sua própria razão de ser: não importa o para quê; não se discute se os meios tecnológicos serão bem ou mal utilizados. A eficácia é o único critério de verificação. Pode-se criticar D. Quixote de não preocupar-se se os seus esforços davam ou não davam resultados. E, de fato, nunca se preocupou da eficácia das suas ações. Não era esse o padrão comportamental do cavaleiro da Mancha. A sua eficácia consistia na sua entrega entusiasmada ao seu projeto. Num mundo dominado pela razão técnica, o homem é obrigado a pautar-se pela eficácia e pela produção. Tudo o mais é sonho, utopia inútil. Parece-me oportuno lembrar aqui umas palavras de Marías:

Quando o trabalho é demasiado impessoal, quando se realiza por acumulação de materiais e informações, quando interessa mais o resultado e o sucesso do que a própria realização da tarefa, a ilusión desaparece; acredito que isso afeta decisivamente à qualidade, e ainda mais à personalidade da obra, que acaba por ser em muitos casos intercambiável, em lugar de estar ligada à mais profunda realidade do autor.

Quando D. Quixote realiza qualquer aventura está olhando para a própria tarefa a ser realizada. Tem uma dimensão imanente, ou seja, sabe que a perfeição da ação não está propriamente na eficácia do agir, mas na qualidade da própria ação. O homem aperfeiçoa-se no ato, através do agir.

Esse é o ensinamento da tradição clássica grega: o agir segue o ser. Por isso, enquanto o fidalgo liberta os presos no capítulo XXII da Parte I, vai dizendo ao mesmo tempo:se bem vos castigaram por vossas culpas, as penas que ides padecer nem por isso vos dão muito gosto, e que ides para elas muito a vosso pesar e contra a vontade, e que bem poderia ser que o pouco ânimo daquele nos tratos, a falta de dinheiro neste, os poucos padrinhos daqueloutro, e finalmente que o juízo torto do magistrado fossem causa de vossa perdição, e de se vos não ter feito a justiça que vos era devida. Tudo isto se me representa agora no ânimo, de maneira que me está dizendo, persuadindo e até forçando, que mostre em favor de vós outros o para que o céu me arrojou ao mundo, e me fez nele professar a ordem de cavalaria que professo, e o voto que nela fiz de favorecer os necessitados, e aos oprimidos pelos maiores que eles…(Parte I, Cap. XXII, p. 125).

O Quixote age conforme ao seu projeto, mesmo que depois os próprios libertados nem lhe agradeçam e mesmo que acabem por apredejá-lo. O Quixote age de acordo com a sua utopia: realizar a justiça e ganhar a fama; quanto ao resto…que cada um se veja com o seu pecado: há Deus nos céus, que não descura de castigar o mau e premiar o bom. (Idem).

A utopia cria um espaço entre as possibilidades e a realidade. E dentro desse espaço é que o homem age e se realiza. De certa forma, o homem começa a ver diferente a partir da utopia e do projeto que o entusiasmam.

As coisas não se apresentam da mesma forma para um espectador, para um lavrador ou para um compositor. O projeto altera o significado das coisas: as coisas mais singelas e insignificantes podem passar a ter um enorme significado ou, então, podem continuar carecendo dele.

Era isso que acontecia com o cura e o barbeiro e a sobrinha. Para eles, o que realizava D. Quixote carecia de sentido e é por isso que vão à sua procura e conseguem fazê-lo voltar para sua casa, começando a Segunda Parte com um D. Quixote convalescente na cama, repondo-se do “mal da cavalaria” e tendo uma conversa com a sua sobrinha que Cervantes intitula “Capítulo dos mais importantes desta história toda” (Parte II, Cap. VI, p. 334) onde deixa transparecer uma outra forma de olhar para os mesmos fatos, um olhar sem projetos:

Ah! Senhor meu -acudiu a sobrinha- repare Vossa Mercê que tudo isso que diz dos cavaleiros andantes é fábula e mentira, e as suas histórias, a não serem queimadas, mereciam que se lhe pusesse a cada uma um sambenito, ou algum outro sinal, para que fosse conhecida por infame e destruidora dos bons costumes (…) Valha-me Deus! Saber Vossa Mercê tanto, que, se fosse mister, podia numa urgência subir ao púlpito ou ir a pregar por essas ruas, e com tudo isso cair numa insensatez tão óbvia, que dê a entender que é valente, sendo velho, que tem forças, estando enfermo, e que endireita tortos, estando derreado pela idade, e sobretudo que é cavaleiro, não o sendo, porque, ainda que o possam ser os fidalgos, nunca o são os pobres!



Quando D. Quixote volta a sair da sua cidade, ainda carrega o “desencanto” do olhar da sobrinha e, por isso, quando, de repente, na entrada de El Toboso se encontram com Dulcinéia e duas aldeãs amigas, o próprio D. Quixote vê apenas, como ele mesmo diz: “três lavradeiras montadas em três burricos(…) é tão verdade o serem burricos ou burricas como ser eu Dom Quixote e tu Sancho Pança. Pelo menos assim me parecem“. Como Sancho quisesse divertir-se, fingiu que Dulcinéia fosse uma princesa e passou a ajoelhar-se perante ela e a tratá-la como tal. D. Quixote, então, voltou a ser o que era e, mesmo continuando a ver três aldeãs, pensou de maneira diferente e disse dirigindo-se à sua Dulcinéia:

E tu, extremo de perfeição, último termo da gentileza humana, remédio único deste aflito coração que te adora. Já que um maligno nigromante pôs nuvens e cataratas nos meus olhos, e só para eles e não para outros mudou e transformou o teu rosto formoso no de uma pobre lavradeira…. (Parte II, Cap. X, p. 350).

Volta dessa maneira D. Quixote a olhar para o mundo desde a sua utopia. E vão transcorrendo os capítulos e o próprio Sancho, feito governador de uma ilha, vai compartilhando da utopia de D. Quixote. A estratégia para trazer D. Quixote de volta é transfigurar-se de cavaleiro da Branca Lua e desafiá-lo em combate. Mesmo derrotado, o fidalgo não deixa de expressar sua devoção por Dulcinéia:

Dulcinéia de El Toboso é a mais formosa mulher do mundo e eu o mais infeliz cavaleiro da terra, e não estaria certo que a minha fraqueza defraudasse esta verdade; aperta, cavaleiro, a tua lança e tira-me a vida, já que me tiraste a honra (Parte II, Cap. LXIV, p. 572).

Era loucura? Parece mais um sonho descontrolado. O projeto a ser realizado, quando é bom, sempre coloca o homem além dos seus próprios limites. O homem entrega-se à tarefa sem ter tudo definido previamente, sem saber exaustivamente o que vai acontecer e, então, sem que estivesse previsto, consegue-se o fruto que nos ultrapassa.

Quando D. Quixote está à beira da morte mostra-se completamente lúcido. Não tomara nenhum remédio. Está querendo que todos escutem suas últimas palavras. Dá a impressão de estar respondendo a Maquiavel e a todos os renacentistas que tanto acreditaram no papel da deusa fortuna.

O que te posso dizer é que não há fortuna no mundo, nem as coisas que sucedem, boas ou más, sucedem por acaso, mas sim por especial providência dos céus



Qual foi o erro de D. Quixote? Por isso costuma-se dizer que cada um é artífice da sua ventura, e eu o fui da minha, mas não com a prudência necessária (…) Atrevi-me, fiz o que pude, derribaram-me, e, ainda que perdi a honra, não perdi nem posso perder a virtude de cumprir a minha palavra (Parte II, Cap. LXVI, p. 576).

O sonho realiza-se além dos nossos sonhos. É só nessa altura que conseguimos ousar, atrever-nos, correr o risco do fracasso. Mas é só assim que o homem tem a possibilidade de entusiasmar-se. O entusiasmo é exatamente o oposto do auto-controle e do auto-domínio.

Etimologicamente, significa estar no controle e nas mãos de Deus, estar fora de si, absorvido no que se está realizando. Mas isso não é a condição dos loucos e, sim, dos apaixonados.

O que mais pode descobrir aos nossos próprios olhos quem somos de verdade, isto é, quem pretendemos ser, é o balanço insubornável do nosso entusiasmo. Onde estão colocados nossos sonhos, e com que força? Que empresa ou trabalho preenche a nossa vida e nos faz sentir que, por um momento, somos nós próprios? Que presença orienta a nossa expectativa, que antecipação nos polariza, estende o arco do nosso projeto e se converte no alvo involuntário e irremediável do mesmo?



Fontes:

RUIZ, Rafael. Resenha do livro Dom Quixote. Disponível em
http://www.portrasdasletras.com.br

Pintura =
http://www.proa.org/

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Eça de Queiróz (Resumo e Análise: O Crime do Padre Amaro)

EÇA DE QUEIRÓZ

Nasceu em Portugal, em 1845, e morreu em Paris, em 1900.

Eça é considerado o melhor ficcionista do Realismo português e, também, enquadrado como naturalista pela ênfase às teses cientificistas da época.

Sua ficção fecunda procurou fazer um verdadeiro estudo da sociedade portuguesa de seu tempo. Adotou o Realismo no que este tem de análise da sociedade. Sem sair dessa orientação, demonstrou desencanto com a civilização técnica que evoluía. Foi quando criou o personagem Fradique Mendes, um gozador da vida, completamente desligado de preocupações coletivas.

À medida que foi amadurecendo em sua arte literária, Eça se aperfeiçoou na apresentação de tipos e grupos típicos, exatamente linha de Flaubert, realista, e Zola, naturalista.

O denominador comum de toda a sua ficção foi a crítica dos princípios burgueses que dominavam seu país. A família e a Igreja, por exemplo, foram duramente atacadas por ele, não por si mesmas, mas pela mentalidade burguesa que as dominava. Para isso, serviu-se dos fatos observados tanto no relacionamento diário dos compatriotas, quanto nos acontecimentos nacionais e internacionais que ele soube interpretar com lucidez.

Além de descomplicar a sintaxe, tornou os diálogos bem naturais, recorrendo a termos populares. Muitas vezes usou o discurso indireto livre, no qual o autor reproduz a fala dos personagens com fidelidade, sem a forma do diálogo direto.

Para quebrar a monotonia do estilo documental, introduziu situações meio fantásticas, caricaturas de tipos, personagens com ar de aparições, cenas melodramáticas, mas sempre com moderação.

Além de tudo isso, sua ficção se revela não propriamente como realidade, mas como humor, como subjetividade desmascarada. É o toque da ironia.

Principais romances: Os Maias – O crime do Padre Amaro – O Primo Basílio – A Capital – A ilustre Casa de Ramires – A Cidade e as Serras – Correspondência de Fradique Mendes.

PERSONAGENS

PADRE AMARO VIEIRA: de origem pobre, aos 6 anos órfão de pai e de mãe, foi educado na casa de uma marquesa viúva, de quem seus pais tinham sido empregados domésticos; como padre muito jovem, nomearam-no vigário de Leiria, sede de bispado, por ser protegido do Ministro da Justiça.

CÔNEGO DIAS: padre idoso, rico, influente, morador de Leiria, conselheiro e confidente do Pe. Amaro, de quem tinha sido professor de Moral no seminário; amante não declarado de D. Augusta Caminha, conhecida como S. Joaneira.

S. JOANEIRA: viúva pobre, cuja residência era um ponto de encontro de padres para se divertirem; alugava quartos de sua casa para hóspedes.

AMÉLIA: filha única da S. Joaneira, bonita, solteira, morava com a mãe; desde menina era muito ligada aos padres freqüentadores da sua casa.

JOÃO EDUARDO: rapaz humilde, solteiro, escrevente de tabelião, apaixonado por Amélia, de quem chegou a ser noivo.

D. JOSEFA: solteirona, irmã do Côn. Dias, com quem morava.

D. MARIA ASSUNÇÃO: beata rica.

CONDE DE RIBAMAR: pessoa influente junto ao governo, casado com uma das filhas da marquesa que criou Amaro.

LIBANINHO: beato fofoqueiro, efeminado.

ENREDO

Por decisão da marquesa que o educara na infância, Amaro seria padre.

Dois anos antes de ir para o seminário, ele passou a morar na casa de um tio pobre, que o punha para trabalhar. Não desagradava àquele adolescente de educação desfibrada a idéia de vir a se tornar padre, embora não tivesse sido consultado. O período sofrido na casa do tio o animou a ingressar no seminário, ainda que fosse somente para ficar livre daquela vida.

Às vésperas, porém, de mudar-se para o seminário, já não estimava tanto a idéia: tinha vontade de estar com as mulheres, de abraçar alguém, de não se sentir só. Julgava-se infeliz e pensava em matar-se. Às escondidas, na companhia de colegas, fumava cigarros. Emagrecia, andava meio amarelo. Começava a sentir desânimo pela vida de padre, porque não poderia casar-se.

No seminário, isolados da cidade e da convivência com estranhos, Amaro e seus colegas, na maioria não vocacionados para o sacerdócio, viviam tristemente. Como se fossem prisioneiros, eles invejavam os que viviam fora, com a imaginação aguçada pela diligência que viam passar todas as tardes numa curva da estrada.

Amaro não deixara muita lembrança boa para trás. Mesmo assim, tinha saudades dos passeios, da volta da escola, das vitrines das lojas, onde parava para apreciar a nudez das bonecas.

Lentamente, com sua personalidade fraca, adaptou-se ao seminário como uma ovelha conformada do rebanho. Os colegas eram de vários tipos, todos com o ideal de, saindo do seminário como padres ou não, comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.

Amaro não desejava nada, mas, influenciado pelos que queriam até fugir do seminário, ficava nervoso, perdia o sono e desejava as mulheres. Na imagem de Nossa Senhora que havia em sua cela via apenas uma linda moça loura, desejada sexualmente, pecado que ele nunca contou no confessionário. A disciplina do seminário deu-lhe hábitos maquinais; interiormente, porém, os desejos sensuais moviam-se como um ninho de serpentes imperturbadas. Ele quase invejava os colegas estudiosos: ao menos eles estavam contentes e eram respeitados. No entanto, nunca conseguiu ser um deles. Era piedoso, rezava, tinha fé ilimitada em certos santos e um terror angustioso de Deus; mas odiava a clausura do seminário.

Logo depois de ordenado padre, Amaro ficou sabendo que a marquesa havia morrido e não deixara herança nenhuma para ele.

O novo padre foi nomeado para Feirão, região muito pobre, de pastores, quase desabitada. Ficou lá um tempo, cheio de tédio. Indo a Lisboa, procurou a Condessa de Ribamar, uma das filhas da marquesa que o educara. Ela lhe prometeu interceder por ele junto a ministro amigo do conde, seu marido. Uma semana depois, Amaro estava nomeado para Leiria, sede de bispado, apesar de ser padre novo – o ministro intercedera junto ao bispo.

Orientado pelo Côn. Dias, o novo pároco foi morar na casa da S. Joaneira, contrariando a opinião do coadjutor – padre auxiliar, pessoa de respeito, mas sem influência – o qual havia ponderado que isso seria imprudente por causa de Amélia, poderia haver comentários maliciosos. O quarto do Pe. Amaro ficava no térreo, exatamente embaixo do quarto de Amélia, cuja movimentação ele podia ouvir nitidamente.

Na noite do primeiro dia de Amaro na casa da S.Joaneira, ela reuniu algumas velhas, João Eduardo e o Cônego Dias. Jogaram o lote. Por coincidência, Amaro e Amélia, sentados lado a lado, quinaram. O jovem padre ficou impressionado com a moça. Depois que todos saíram e os de casa se deitaram, Amaro foi buscar água na cozinha e viu Amélia de camisola. Ela se escondeu, mas não o censurou. No quarto, nervoso, atormentado pela visão de Amélia, Amaro não conseguiu rezar nem dormir.

Amélia também não dormiu logo e ficou recordando sua vida. Não chegou a conhecer o pai, militar, que morreu novo. Com 15 anos de idade, ela teve a primeira experiência de ser amada e de amar, quando passou umas férias na praia. Na véspera de o rapaz partir, ele a beijou sofregamente, às escondidas. Algum tempo depois, já em Leiria, ela soube que ele ia se casar com outra. Triste e acreditando não voltar mais a ter alegria, Amélia tornou-se uma beata e pensou em se fazer freira. Por esse tempo, o Côn. Dias e sua irmã Josefa começaram a freqüentar a casa em que Amélia morava. Falava-se muito da ligação do cônego com a mãe dela. Aos 23 anos, a moça conheceu João Eduardo, que chegou a falar em casamento, mas ela quis esperar até que o rapaz obtivesse o lugar de amanuense, a ele prometido.

Amaro estava se sentindo bem em sua rotina: celebrava a missa cedo para um grupo de devotas; à tarde e à noite deliciava-se na companhia doméstica da S. Joaneira e, sobretudo, de Amélia. Atraídos um pelo outro, estavam liberando os sentimentos. Na presença do noivo, porém, a moça nem olhava para o padre, o que lhe causava ciúmes.

Numa tarde, Amaro chegou sem ser esperado e flagrou o Cônego Dias na cama com a S. Joaneira. Ficou surpreso e saiu sem ser notado. Em contato com outros padres, ficou sabendo que eles tinham casos com mulheres.

Aos poucos, Amaro e Amélia começaram a demonstrar, um para o outro, seu envolvimento emocional. Ela se tornou totalmente apaixonada: acompanhava-o com os olhos sempre e, quando ele não estava em casa, ia ao quarto dele, colecionava os fios de cabelo que tinham ficado no pente, beijava o travesseiro. Tinha ciúmes dele ao saber que alguma mulher o escolhera como confessor.

Amedrontado com a evolução de seus sentimentos e temendo se deixar dominar pela paixão, Amaro pediu ao Cônego Dias que lhe arrumasse outra moradia, onde vivesse sozinho. Assim se fez. Sua vida solitária era muito monótona. Não visitava ninguém e só recebia a visita do coadjutor, servil, sem assunto. Sentia-se muito pouco padre, longe da “panelinha” eclesiástica.

Por sua vez, Amélia se sentia desconsolada pelo afastamento de Amaro. Depois de algum tempo, ele voltou a freqüentar a casa da S. Joaneira. Os dois não estavam conseguindo mais esconder a paixão recíproca. Enciumado, João Eduardo tentou apressar o casamento. Amélia estava enfastiada dele, mas tentou fingir-se apaixonada, para evitar escândalo. Mesmo assim, a paixão pelo padre falava mais forte.

Certa noite, indignado por ver Amaro segredar algo no ouvido de Amélia, João Eduardo redigiu e fez publicar no jornal de Leiria um artigo: “Os modernos fariseus”, no qual ele contava as imoralidades de alguns padres da cidade, inclusive do Côn. Dias e do Pe. Amaro, a quem chamou de sedutor de donzelas inexperientes. O artigo saiu como um comunicado e assinado por “um liberal”. Os padres mencionados se enfureceram e passaram a investigar quem seria o autor.

Abalada com as possíveis repercussões do artigo e magoada com o que ela achou covardia de Amaro (depois do artigo ele sumiu da casa dela), Amélia aceitou marcar o casamento com João Eduardo.

De fato, Amaro se retraíra. Seus sentimentos estavam confusos; não teria mesmo coragem de assumir o amor de Amélia e abandonar o sacerdócio, mas crescia sua raiva contra João Eduardo.

Através da confissão da mulher do responsável pelo jornal, os padres vieram a saber quem havia redigido o artigo maldito. A vingança foi cruel: João Eduardo perdeu o emprego, por influência deles. Ao contar para Amélia quem fora o articulista, Amaro afirmou que não deixaria, em nome de Deus, que ela se casasse com um ateu. Ao dizer isso, pela primeira vez os dois se beijaram com paixão.

Com aprovação da família, Amaro se tornou o confessor de Amélia, a fim de orientá-la melhor.

A moça desfez o noivado. Desolado, João Eduardo procurou apoio e não recebeu: ninguém queria manifestar-se claramente contra o clero. Certa noite, completamente embriagado, o rapaz passou por Amaro na rua e deu-lhe um soco, sem feri-lo gravemente. Armou-se uma enorme confusão. A polícia levou João Eduardo para a Administração. No entanto, atendendo a um pedido do Pe. Amaro, o administrador retirou a ocorrência. Na reunião da noite na casa da S. Joaneira, o jovem padre foi considerado um santo. A atração de Amélia por ele aumentou e o desejo de Amaro por ela também.

A empregada do Pe. Amaro ficou doente e foi substituída pela irmã, Dionísia, famosa por ser alcoviteira. Essa contratação contrariou a opinião das beatas que achavam conveniente o padre voltar para a casa da S. Joaneira. Ele quis continuar só, sem deixar, é claro, de freqüentar as reuniões noturnas junto de Amélia.

Um dia, voltando os dois sozinhos, sob forte chuva, da casa do Côn. Dias, que passara mal, Amaro levou Amélia para a casa dele, enquanto esperavam o tempo melhorar. Por meia hora, o padre dispensou Dionísia. Naquele momento, os dois apaixonados tiveram sua primeira relação sexual.

No dia seguinte, Dionísia falou ao padre que era perigoso a moça ir lá daquele jeito. Insinuando-se como protetora da união dos dois, sugeriu que se encontrassem na casa do sineiro, o tio Esguelhas, ao lado da igreja. Relutante a princípio, Amaro aceitou e até gratificou a empregada com meia libra. Tio Esguelhas, viúvo e sem uma perna, morava naquela casa com uma filha paralítica, Antônia, que ele chamava de Totó.
Inteligentemente, o padre convenceu o sineiro da seguinte história: Amélia queria ser freira – o que devia ser mantido em segredo – e aquela casa era o lugar ideal para ele conversar com a moça, orientá-la espiritualmente, longe dos olhos de todos.

Amélia concordou com o plano. Para a família e para os amigos, contudo, ela iria uma ou duas vezes por semana à casa do sineiro para ensinar leitura e religião à Totó. Isso seria sigiloso por se tratar de um ato de caridade, que não deveria ser divulgado para não favorecer a vaidade.

Assim, Amaro e Amélia passaram a se encontrar regularmente na maior discrição. A paralítica, sentindo-se alvo de atenções, apaixonou-se pelo padre, sem o declarar, evidentemente; com a mesma intensidade, odiava Amélia. Esta dava um pouquinho de atenção à doente e depois ia se deitar com o padre no quarto de cima, do pai, que naquela hora sagrada saía de casa. Amaro ia direto para o quarto, nem olhava para Totó.

Aquele foi o período mais feliz da vida de Amaro. Ele se achava na graça de Deus. Tudo dava certo. Amélia cada vez mais se tornava cativa dele. Nada lhe interessava a não ser Amaro. Ele, por sua vez, afirmava crescentemente sua dominação. Compensava com ela toda a subserviência do passado. Ciumento, procurava controlar até os pensamentos da moça. Amélia se entregava inteiramente a esse domínio. E ninguém parecia estar notando tudo isso; pelo menos, não havia qualquer insinuação.

Uma circunstância inesperada veio estragar aquelas manhãs na casa do sineiro: Totó agora não suportava Amélia. Quando ela chegava, Totó parecia ter um surto de fúria. Tanto que Amélia deixou de vê-la, subia direto para o quarto com Amaro. Mas foi pior; assim que a doente percebia que os dois haviam passado, começava a gritar: “Estão a pegar-se os cães!” A partir de então, Amélia começou a ter crises de remorso. Nos braços de Amaro, esquecia tudo; mas, depois, a crise lhe vinha. A perturbação atingiu o máximo de intensidade na ocasião em que Amaro, na sacristia, experimentou nela um manto rico que haviam doado para a imagem de Nossa Senhora. Nesse dia, não conseguiu se encontrar com Amaro de tão desnorteada.

A S. Joaneira pediu que o cônego verificasse o que estava acontecendo com a filha que, à noite principalmente, tinha surtos de nervosismo, empalidecia, gritava… Dias ficou de espreita e acompanhou Amélia, sem se fazer notar, até a casa do sineiro. Pelas palavras de Totó, percebeu o que estava acontecendo. Depois que Amélia saiu, conversou com a paralítica e se certificou de tudo. Indignado, procurou Amaro na sacristia e o censurou com violência. O outro revidou e quase bateu no velho. Mas depois acalmaram-se quando Amaro declarou saber que o cônego se encontrava com a S.Joaneira. No final, reconciliados, fizeram um pacto de silêncio. O cônego chegou a elogiar Amaro pela escolha da devota mais bonita de Leiria. Os dois concordaram: “é o melhor que se leva desta vida!”

A partir de então, Amaro ficou tranqüilo. Chegava a chamar o cônego de sogro. Insistia em que Amélia andasse bonita, para saborear intimamente o prazer da conquista. A moça, entretanto, depois de um início de total submissão, passou a ter consciência crítica: era concubina de um padre! Temia, então, o castigo de Deus. Amaro se enervava com estes escrúpulos e a censurava. Ele estava mais seguro porque o médico fora ver Totó e lhe dera pouco tempo de vida.

Amélia ficou grávida. Já no primeiro mês, a gravidez foi detectada. Amaro entrou em pânico. Foi pedir a ajuda do Cônego Dias. A solução seria casar a moça com João Eduardo o mais depressa possível. Amaro convenceu Amélia a casar-se com o ex-noivo. Ela, a princípio, revoltou-se com ele, vendo-se objeto na sua mão. Mas acabou aceitando a idéia; Amaro é que ficou enciumado com a situação que ele próprio criara. Os dois combinaram que continuariam amantes após o casamento, o que acalmou os ciúmes do padre.

Tudo daria certo se João Eduardo, depois de tudo o que aconteceu, não tivesse ido para o Brasil, em lugar ignorado. Ele só foi descoberto quando a gravidez atingiu o terceiro mês! E nada estava resolvido, para desespero dos padres.

As piores semanas da vida de Amélia foram aquelas em que se aguardavam notícias do ex-noivo. Os encontros na casa do sineiro se espaçavam. Amaro a considerava agora uma “beata histérica”, porque ela se julgava castigada por Deus e tinha crises constantes.

Nessa ocasião, D. Josefa ficou doente. Para se restabelecer, aconselharam-na a ir passar uma temporada na roça. Amaro teve, então, uma idéia brilhante.
Enquanto o Côn. Dias e a S. Joaneira iriam para a praia, Amélia ficaria na propriedade rural do Côn. Dias, na Ricoça, região vizinha a Leiria, acompanhando D. Josefa em sua convalescença. Para que a irmã do cônego aceitasse a moça com ela, Pe. Amaro lhe segredou – e pediu sigilo – que Amélia fora engravidada por um homem casado. Para evitar escândalo, a moça daria à luz no período em que estivesse na roça sob a proteção de D. Josefa. A velha senhora acreditou na história e resolveu cooperar. Amélia se sentiu infeliz de ir para a roça, pois gostava muito da praia. Sua mãe sofreu por separar-se da filha.

Nesse ínterim, Totó morreu. Tio Esguelhas lamentou o fato de Amaro não ter chegado a tempo para a Unção dos Enfermos, pois a filha tinha pedido muito a presença dele.

Amaro, solitário em Leiria, se enfastiava da monotonia. Ocioso, as ocupações do sacerdócio o aborreciam ainda mais. Abandonou todas as orações e meditações pessoais. Amélia na Ricoça sofria muito. D. Josefa a desprezava por ser uma pecadora. Atormentada, a pobre infeliz passou a ouvir, à noite, vozes de condenação. O que a confortava eram as visitas que o abade Ferrão lhes fazia. Homem esclarecido na fé, preferia conversar com Amélia, desgastado com os escrúpulos absurdos da velha doente. Ele disse à desorientada grávida que suas perturbações não vinham de Deus, que Ele não fica a falar para as pessoas; o problema dela estava na consciência. Se ela quisesse, a confessaria para aliviar-se. Animada, a moça procurou-o para a confissão.

Amaro foi visitá-la algumas vezes. Sabendo da confissão que Amélia fizera com o abade, enciumou-se, ficou furioso e evitava conversar com ela. Arrependido e mais apaixonado ainda, escreveu-lhe uma carta. A resposta da moça, entregue por um rapazinho, foi: “Peço-lhe que me deixe em paz com meus pecados.” Amaro chegou a desconfiar de que ela estivesse de “homem novo”. Mas não desistiu, continuou as visitas freqüentes; a moça evitava vê-lo.

Quem reapareceu morando perto da Ricoça foi João Eduardo. Permanecia apaixonado por Amélia. Ficou conhecido do abade Ferrão, que simpatizou com ele e teve a idéia de fazê-lo casar-se com Amélia, a qual também o via com bons olhos. O abade tinha pensado em induzir Amélia a ser freira. Desistiu, todavia, porque percebeu que, embora a paixão por Amaro houvesse acabado, o desejo do prazer sexual ainda existia nela.

Amaro resolveu “dar um gelo” em Amélia: foi passar um tempo na praia. Ela se enfureceu com a frieza dele, pois a época do parto estava se aproximando e ele não tomava nenhuma providência. Por orgulho, ela não quis escrever-lhe pedindo ajuda. Na verdade, essa viagem de Amaro era estratégica. Ele aprendera que, se fugirmos da mulher que nos interessa, ela nos procura. Várias vezes, quando retornou da praia, visitou D. Josefa e se retirou sem nem olhar para Amélia. Numa dessas visitas, ela não agüentou mais: cercou-o, impediu-o de sair sem lhe dar satisfação. Estavam sós e acabaram indo para a cama. Combinaram encontrar-se à noite. Amaro foi, mas os cães latiram e o afugentaram.

O padre sondou de Dionísia a indicação de uma ama para ficar com a criança logo após o nascimento. Havia duas possíveis: uma seria a aconselhável pelo bom senso; a outra, Carlota, era uma “tecedeira de anjos”, pois matava os recém-nascidos. Ele saiu para procurar a primeira; como dispunha de tempo, contudo, foi conhecer Carlota e resolveu optar por esta (seria mais conveniente que a criança desaparecesse).

Amélia estava em permanente sobressalto, à medida que se aproximava o dia do parto: às vezes, queria o filho; outras vezes, se horrorizava, tinha pressentimentos ruins. Uma idéia passou a animá-la: casar-se com João Eduardo e, quem sabe, conseguir que ele aceitasse a criança. Pediu ao abade Ferrão que realizasse esse seu desejo.

Chegou o momento do parto. Amélia foi assistida por Dionísia e pelo Dr. Gouveia, velho e discreto médico, que cuidava de D. Josefa. O menino nasceu bem. Dionísia o entregou ao Pe.Amaro, que aguardava fora de casa e o levou para Carlota, recomendando que o mantivesse vivo, já arrependido de não ter contratado a outra ama. Em seguida, o padre voltou para Leiria, certo de que tudo correra bem com a amante. Na verdade, entretanto, Amélia, depois de dar à luz, teve convulsões e, apesar do esforço intenso do médico e de Dionísia para salvá-la, não resistiu, morreu, deixando desolado o abade Ferrão.

Na manhã seguinte, Amaro teve um choque enorme ao saber da morte através de Dionísia. Passado o primeiro impacto, partiu imediatamente em busca de Carlota, na esperança de tirar o filho da guarda dela e levá-lo para a outra ama. Infelizmente, a criança já havia morrido.

Completamente desnorteado, o Pe. Amaro resolveu sair de Leiria. Sob o pretexto de que sua irmã estava doente em Lisboa, conseguiu licença e viajou.

Amélia foi enterrada na Ricoça, enterro oficiado pelo abade Ferrão, com acompanhamento de algumas pessoas do lugar e de João Eduardo, que chorou muito aquela morte.

Pe. Amaro foi removido de Leiria e passou muito tempo sem ver ninguém de lá. Certa feita, encontraram-se casualmente no Largo do Loreto, em Lisboa, junto à estátua de Camões, o Côn. Dias e o Pe. Amaro. Este estava procurando transferência para uma boa paróquia e procurava a influência do Conde de Ribamar.

Os dois padres conversaram sobre Leiria, onde o cônego ainda morava. Amaro lhe disse que as primeiras sensações após a morte de Amélia – remorso, tristeza, depressão… – estavam superadas definitivamente. “Tudo passa”, disse e o cônego confirmou: “Tudo passa”.

A eles juntou-se o Conde de Ribamar. Os três comentaram o horror da situação: estava-se nos fins de maio de 1872 e em Lisboa havia alvoroço com as notícias vindas da França, do massacre da Comuna de Paris, quando foram mortos pelo governo francês, em uma semana, cerca de 25.000 operários rebeldes. O Conde de Ribamar deu uma lição de política aos dois padres que ouviam e apoiavam seu discurso inflamado contra os rebeldes e elogioso a Portugal que mantinha a ordem e a paz.

“Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!
E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta essa certeza gloriosa da grandeza do seu país – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopéia sobre o coração, a espada firme, cercado de cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida!”

COMENTÁRIO

Paralelamente ao enredo, Eça de Queirós desenvolveu algumas idéias, por exemplo:

Política e clero

No diálogo do Conde de Ribamar com um ministro do Governo, ficou patenteado que os homens públicos contavam com os padres para influenciarem o povo na aceitação pacífica das medidas que as autoridades impusessem, sempre tomadas a favor dos interesses dos poderosos, inclusive fazendo estes ganharem as eleições.
O autor fez menção de explicitar a subserviência dos membros do clero às autoridades governamentais como forma de ser mantida uma situação que era confortável para ambos.

A confissão

Num almoço que reuniu vários padres na casa de um deles, mostrou-se a confissão como sendo um recurso que usavam para manipular as consciências e tirar proveito pessoal. Na verdade, os padres não acreditavam que Deus estivesse perdoando através deles.

Está clara a intenção do autor de dessacralizar o sagrado: nem os próprios padres acreditavam no poder sacramental.

O celibato dos padres

Impaciente por não poder ter uma vida sexual como a das pessoas comuns, Pe. Amaro se revoltava interiormente, dizendo para si mesmo que não abrira mão de sua virilidade: “Tinham-no impelido para o sacerdócio como um boi para o curral!” Nesses momentos, ele repassava na memória o que lhe haviam ensinado no seminário a favor do celibato, que quem o abraçasse evitaria o assédio dos três inimigos da alma: o Mundo, o Diabo, a Carne: o diabo ele nunca tinha visto; como evitaria o mundo (riquezas, cavalos, palacete…) e a carne (uma mulher bonita que o amava e era a consolação de sua vida)? Só se fugisse para o deserto! Então, ele justificava seu amor com exemplos da Bíblia que se referiam a casamentos. O celibato, afirmava o Pe. Amaro em seu íntimo, foi inventado por um concílio de bispos velhos, inúteis como eunucos! Ele concluía que o seu amor era apenas uma infração ao Direito Canônico, isto é, às normas da Igreja, mas não uma ofensa a Deus.

O autor, ao propor essa situação de conflito interior em um padre não vocacionado para o sacerdócio, evidenciava forte questionamento quanto à formação do clero burguês, a quem não se dava formação convincente, mas se impunham regulamentos sob a forma repressora.

A opinião da “ciência” sobre a Igreja

Carlos, personagem secundário e ridículo, dono de uma farmácia, se dizia liberal e adepto da ciência; não era um homem de Igreja, é claro. Contudo ficou indignado com o artigo de João Eduardo contra os padres. Afirmava o “adepto da ciência” que a religião é a base da sociedade. Ele não considerava os padres uns santos, mas os ateus republicanos deveriam ser eliminados do convívio social sadio.

Eça mostrou, nesse episódio, a visão reacionária dos falsos cientistas, pessoas medíocres, defensores de uma tradição conservadora e radical.

Redigido em terceira pessoa, o foco narrativo do livro é a visão onisciente do autor-narrador, que analisa os fatos de fora deles.

Publicado em 1876, foi o primeiro romance português de expressão que questionou o Romantismo feito de sonhos e idealizações.

O estilo descritivo não pára na pura descrição, mas mostra o que está por trás dos fatos da realidade provinciana de Portugal. O clero, desvirtuado por uma defeituosa educação do seminário, serve à ordem estabelecida pelos poderosos dirigentes, representados pelo Conde de Ribamar.

Tendo como motivo inspirador uma história de sedução, Eça de Queirós pretendeu mostrar um clero decadente em Portugal. Aliás, essa mesma motivação o levou a documentar a decadência da família portuguesa em “O Primo Basílio”.

Como pano de fundo dessas obras, portanto, há uma constante: os indivíduos são vítimas de um sistema social degenerado – no caso, a burguesia.

Especificamente em “O Crime do Pe. Amaro”, o sistema social burguês formou uma religiosidade hipócrita, de aparência virtuosa e de realidade viciada. Era sintomático que o Côn. Dias – um homem conscientemente sem escrúpulos para manipular as pessoas – tivesse sido professor de Moral dos futuros padres. As beatas, orientadas pelos próprios sacerdotes a bajulá-los e a respeitá-los como “homens de Deus”, tornaram-se vítimas dos detentores do poder através da religão. Amélia foi a sacrificada; as mais velhas, porém, embora não houvessem sido levadas à morte física, tinham suas vidas tolhidas pelos padres egoístas e ilimitados na consecução de sus objetivos interesseiros.

O Pe. Amaro – representante maior do grupo de vilões da história – saiu ileso no final. O mesmo aconteceu com Basílio em “O Primo Basílio”. Eça delineia, assim, uma situação de clara ironia: é a sociedade burguesa a verdadeira vilã e ela está viva em sua trajetória deformadora de uns – as beatas – e destruidora de outros – Amélia. Algumas pessoas escapam dessa avalanche, como é o caso do abade Ferrão e do Dr. Gouveia, figuras positivas que se apresentam como exceções não afetadas pela podridão.

Trata-se de um romance de tese, em que o Determinismo sobressai: o momento histórico, o meio social e os instintos atuam nos indivíduos, que passam a agir impulsionados por essas forças irresistíveis. Amaro e Amélia são os protagonistas dessa situação: ele, padre sem vocação, incapaz de uma reação pessoal que demonstrasse personalidade forte; ela, totalmente identificada com a hipocrisia em que crescera; ambos se deixam arrastar, sem reagir, pela pura paixão carnal.

Portanto, o livro expressa a documentação crítica do Realismo e o avanço destrutivo das paixões, característica do Naturalismo.

Como é do feitio de Eça de Queirós, a cena final contém a dose definitiva de ironia: o olhar frio de Camões sobre os representantes do clero e da política estabelece o contraste entre o heroísmo ideal (o épico renascentista) e a cega mediocridade real (os três interlocutores), incapazes estes últimos de perceber que seu país estava decadente, pois, a seus olhos, a Europa invejava Portugal por sua paz e prosperidade! Essa “estabilidade” portuguesa era construída pelos hipócritas líderes da monarquia liberal conservadora e assimilada pelas pessoas simples, absolutamente desprovidas de visão crítica.

Apesar do aparente ceticismo do autor ao documentar a derrota do bem pelo mal, o livro é moralista, porque dá ao leitor a visão clara de que os vencedores aparentes são os vencidos na realidade, no sentido de se constituírem as pessoas erradas, os imorais dominadores.

É uma literatura que visa a contribuir para a transformação da sociedade, ao mostrar suas falhas.

Fonte:

Digerati. CEC 0004. (CD-Rom)

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Érico Veríssimo (Resumo: Olhai os Lírios do Campo)

Olhai os lírios do campo é um dos romances mais famosos de Érico Veríssimo. Um verdadeiro best-seller que resultou até em novela na Argentina. A narrativa da primeira parte é feita em flashback. Eugênio vai lembrando de momentos da sua vida enquanto se dirige ao hospital onde está Olívia.

Eugênio era um menino tímido e medroso. Teve uma infância pobre, era ridicularizado na escola e tinha como objetivo máximo a ascensão social, faria de tudo para um dia vencer na vida. Achava que o que tinha era feio e sem graça, das roupas até o seu próprio corpo. Não se entrosava com os demais colegas de classe e por isso devotava todo o seu tempo aos estudos. Sonhava em deixar de ser simplesmente o Genoca para ser o Dr. Eugênio Fontes.

Tinha pena do pai, o alfaiate Ângelo, com quem não conseguia se comunicar facilmente. O seu irmão, Ernesto, não esmerava-se na educação e acabou perdido na vida. Com muito esforço, Eugênio consegue cursar Medicina. Na Faculdade conhece Olívia – única mulher da turma. Na festa de formatura os dois se aproximam e fazem sonhos e confissões juntos, sobre o futuro. Tornam-se grandes amigos.

Durante a revolução de 30, após uma operação mal sucedida no hospital militar, Olívia convida Eugênio a sua casa e passam uma noite de amor. Dias depois, Olívia recebe uma proposta para trabalhar em Nova Itália, e novamente se entrega aos braços de Eugênio.

Durante um atendimento médico, Eugênio conhece Eunice Cintra – filha de um riquíssimo proprietário. Eugênio casa-se com Eunice com objetivo único de ascender socialmente. O sogro trata de arranjar um emprego de fachada (“assinar documentos”) numa de suas fábricas. Eugênio começa a freqüentar a alta sociedade, mas não se sente parte dela. O seu complexo de inferioridade aumenta ao ver os contrastes desse outro mundo, de emoções contidas, de meias-palavras. Conhece pessoas como Filipe Lobo, construtor obstinado a construir o “Megatério”, um arranha-céu, mas não se importava com a família. Infeliz e perturbado, Eugênio reencontra Olívia que lhe apresenta a sua filha, fruto do último encontro dos dois, Anamaria. Ao chegar no Hospital onde estava Olívia, recebe a notícias de sua morte.

A segunda parte passa-se após a morte de Olívia e é intercalada com a leitura das cartas que ela escreveu para Eugênio sem nunca ter enviado. Eugênio toma coragem e separa-se de Eunice – apesar de todos os incovenientes sociais. Vai além, passa a ser um médico popular, com idéias de socializar a medicina. Trabalha com o Dr Seixas, um velho médico que sempre atendeu aos pobres. A memória de Olívia, nas cartas, nas fotos ou no olhar de Anamaria, o fortalece quando pensa nas dificuldades.

O original da obra, com correções a mão feitas por Érico Veríssimo, encontra-se hoje na gigantesca biblioteca de José Midlin.

Fonte:
Renato Lima, in Digerati. CEC 0004 (CD Rom)

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José de Alencar (Resumo: A Pata da Gazela)

O romance “A Pata da Gazela” foi escrito baseado no conto “A Cinderela”. O autor aproveita-se do enredo, no qual uma jovem, ao entrar apressada dentro de uma carruagem, perde um par de seu sapato, que é encontrado por um rapaz. Inquietado pelo calçado, ele sai à procura da dona do objeto, não desistindo até encontrá-la. À partir daí, o romancista desenvolve seu enredo, um texto irônico e crítico sobre a sociedade brasileira do século XIX.

Em resumo, a história se passa na cidade do Rio de Janeiro, em pleno século “burguês”. Após o descuido de um lacaio ao carregar um pacote, um dos sapatos que estava dentro do embrulho, pertencentes a duas jovens (Amélia e Laura) que esperavam em um carro pelo servo, caiu no chão. Horácio, um vistoso rapaz que andava por ali naquele momento, percebeu a cena e apoderou-se do sapatinho que outrora caíra. Ao mesmo tempo, outro rapaz, Leopoldo, foi atraído pela confusão causada pelas moças, apressadas, e se deslumbrou com o vulto de uma “deusa”, na verdade, o de Amélia. Porém, não consegue identificar um rosto.

A partir desta situação, os dois apaixonados iniciam uma busca pelas suas donzelas, contada comicamente, por José de Alencar.

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Érico Veríssimo (Resumo: Clarissa)

Modernismo de segunda fase.
Clarissa é uma jovem de 13 anos que mora na pensão da tia enquanto estuda em Porto Alegre. Ela é uma jovem curiosa, descobrindo o mundo, a adolescência e a vida. Não gosta muito de escola, sente saudades da fazenda em sua cidade natal, Jacarecanga e observa as pessoas que moram na pensão da tia e na vizinhança: Ondina, a infiel esposa de Barata; Amaro, o músico triste e contemplativo; o distraído major; a conservadora tia e seu desempregado marido; a família rica que mora ao lado e a viúva com o filho mutilado. Este último, Tonico, perdeu as duas pernas num acidente de bonde e sonha em marchar com exércitos. Frágil, acaba morrendo. Quanto a Amaro, este sempre contempla Clarissa, sua juventude, sua inocência, sua beleza aflorando da menina que vai se tornando moça. Clarissa faz 14 anos (e ganha permissão para usar salto alto) e passa na escola. O livro acaba com Clarissa voltando para Jacarecanga (e encontrar o primo Vasco) enquanto Amaro fica triste na pensão a pensar nela. O primeiro romance de Érico Veríssimo, Clarissa apresenta um panorama da vida de uma jovem na Porto Alegre de 1932 e começa a história que se estenderá por seus romances da primeira fase.
Fonte:
Digerati. CEC 0004. (CD Rom)

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Textos Infantis: Modalidades (Cristiane Madanelo de Oliveira)

Estudo das diversas modalidades de textos infantis

Fábulas (do latim- fari – falar e do grego – Phao – contar algo)

Narrativa alegórica de uma situação vivida por animais, que referencia uma situação humana e tem por objetivo transmitir moralidade. A exemplaridade desses textos espelha a moralidade social da época e o caráter pedagógico que encerram. É oferecido, então, um modelo de comportamento maniqueísta; em que o “certo” deve ser copiado e o “errado”, evitado. A importância dada à moralidade era tanta que os copistas da Idade Média escreviam as lições finais das fábulas com letras vermelhas ou douradas para destacar.

A presença dos animais deve-se, sobretudo, ao convívio mais efetivo entre homens e animais naquela época. O uso constante da natureza e dos animais para a alegorização da existência humana aproximam o público das “moralidades”. Assim apresentam similaridade com a proposta das parábolas bíblicas.

Algumas associações entre animais e características humanas, feitas pelas fábulas, mantiveram-se fixas em várias histórias e permanecem até os dias de hoje.
leão – poder real lobo – dominação do mais forte
raposa – astúcia e esperteza cordeiro – ingenuidade

A proposta principal da fábula é a fusão de dois elementos: o lúdico e o pedagógico. As histórias, ao mesmo tempo que distraem o leitor, apresentam as virtudes e os defeitos humanos através de animais. Acreditavam que a moral, para ser assimilada, precisava da alegria e distração contida na história dos animais que possuem características humanas. Desta maneira, a aparência de entretenimento camufla a proposta didática presente.

A fabulação ou afabulação é a lição moral apresentada através da narrativa. O epitímio constitui o texto que explicita a moral da fábula, sendo o cerne da transmissão dos valores ideológicos sociais.

Acredita-se que esse tipo de texto tenha nascido no século XVIII a.C., na Suméria. Há registros de fábulas egípsias e hindus, mas atribui-se à Grécia a criação efetiva desse gênero narrativo. Nascido no Oriente, vai ser reinventado no Ocidente por Esopo (Séc. V a.C.) e aperfeiçoado, séculos mais tarde, pelo escravo romano Fedro (Séc. I a.C.) que o enriqueceu estilisticamente. Entretanto, somente no século X, começaram a ser conhecidas as fábulas latinas de Fedro.

Ao francês Jean La Fontaine (1621/1692) coube o mérito de dar a forma definitiva a uma das espécies literárias mais resistentes ao desgaste dos tempos: a fábula, introduzindo-a definitivamente na literatura ocidental. Embora tenha escrito originalmente para adultos, La Fontaine tem sido leitura obrigatória para crianças de todo mundo.

Podem-se citar algumas fábulas imortalizadas por La Fontaine: “O lobo e o cordeiro”, “A raposa e o esquilo”, “Animais enfermos da peste”, “A corte do leão”, “O leão e o rato”, “O pastor e o rei”, “O leão, o lobo e a raposa”, “A cigarra e a formiga”, “O leão doente e a raposa”, “A corte e o leão”, “Os funerais da leoa”, “A leiteira e o pote de leite”.

O brasileiro Monteiro Lobato dedica um volume de sua produção literária para crianças às fábulas, muitas delas adaptadas de Fontaine. Dessa coletânea, destacam-se os seguintes textos: “A cigarra e a formiga”, “A coruja e a águia”, “O lobo e o cordeiro”, “A galinha dos ovos de ouro” e “A raposa e as uvas”.

Contos de Fadas

Quem lê “Cinderela” não imagina que há registros de que essa história já era contada na China, durante o século IX d. C.. E, assim como tantas outras, tem-se perpetuado há milênios, atravessando toda a força e a perenidade do folclore dos povos, sobretudo, através da tradição oral.

Pode-se dizer que os contos de fadas, na versão literária, atualizam ou reinterpretam, em suas variantes questões universais, como os conflitos do poder e a formação dos valores, misturando realidade e fantasia, no clima do “Era uma vez…”.

Por lidarem com conteúdos da sabedoria popular, com conteúdos essenciais da condição humana, é que esses contos de fadas são importantes, perpetuando-se até hoje. Neles encontramos o amor, os medos, as dificuldades de ser criança, as carências (materiais e afetivas), as auto-descobertas, as perdas, as buscas, a solidão e o encontro.

Os contos de fadas caracterizam-se pela presença do elemento “fada”. Etimologicamente, a palavra fada vem do latim fatum (destino, fatalidade, oráculo).

Tornaram-se conhecidas como seres fantásticos ou imaginários, de grande beleza, que se apresentavam sob forma de mulher. Dotadas de virtudes e poderes sobrenaturais, interferem na vida dos homens, para auxiliá-los em situações-limite, quando já nenhuma solução natural seria possível.

Podem, ainda, encarnar o Mal e apresentarem-se como o avesso da imagem anterior, isto é, como bruxas. Vulgarmente, se diz que fada e bruxa são formas simbólicas da eterna dualidade da mulher, ou da condição feminina.

O enredo básico dos contos de fadas expressa os obstáculos, ou provas, que precisam ser vencidas, como um verdadeiro ritual iniciático, para que o herói alcance sua auto-realização existencial, seja pelo encontro de seu verdadeiro “eu”, seja pelo encontro da princesa, que encarna o ideal a ser alcançado.

Estrutura básica dos contos de fadas
Início – nele aparece o herói (ou heroína) e sua dificuldade ou restrição. Problemas vinculados à realidade, como estados de carência, penúria, conflitos, etc., que desequilibram a tranqüilidade inicial;
Ruptura – é quando o herói se desliga de sua vida concreta, sai da proteção e mergulha no completo desconhecido;
Confronto e superação de obstáculos e perigos – busca de soluções no plano da fantasia com a introdução de elementos imaginários;
Restauração – início do processo de descobrir o novo, possibilidades, potencialidades e polaridades opostas;
Desfecho – volta à realidade. União dos opostos, germinação, florescimento, colheita e transcendência.

Lendas (do latim legenda/legen – ler)

Nas primeiras idades do mundo, os seres humanos não escreviam, mas conservavam suas lembranças na tradição oral. Onde a memória falhava, entrava a imaginação para suprir-lhe a falta. Assim, esse tipo de texto constitui o resumo do assombro e do temor dos seres humanos diante do mundo e uma explicação necessária das coisas da vida.

A lenda é uma narrativa baseada na tradição oral e de caráter maravilhoso, cujo argumento é tirado da tradição de um dado lugar. Sendo assim, relata os acontecimentos numa mistura entre referenciais históricos e imaginários. Um sistema de lendas que tratem de um mesmo tema central constiruem um mito (mais abrangente geograficamente e sem fixação no tempo e no espaço).

A respeito das lendas, registra o folclorista brasileiro Câmara Cascudo no livro Literatura Oral no Brasil:

Iguais em várias partes do mundo, semelhantes há dezenas de séculos, diferem em pormenores, e essa diferenciação caracteriza, sinalando o típico, imobilizando-a num ponto certo da terra. Sem que o documento histórico garanta veracidade, o povo ressuscita o passado, indicando as passagens, mostrando, como referências indiscutíveis para a verificação racionalista, os lugares onde o fato ocorreu. (CASCUDO, 1978 , p. 51)

A lenda tem caráter anônimo e, geralmente, está marcada por um profundo sentimento de fatalidade. Tal sentimento é importante, porque fixa a presença do Destino, aquilo contra o que não se pode lutar e demonstra o pensamento humano dominado pela força do desconhecido.

O folclore brasileiro é rico em lendas regionais. Destacam-se entre as lendas brasileiras os seguintes títulos: “Boitatá”, “Boto cor-de-rosa”, “Caipora ou Curupira”, “Iara”, “Lobisomem”, “Mula-sem-cabeça”, “Negrinho do Pastoreio”, “Saci Pererê” e “Vitória Régia”.

Nas primeiras idades do mundo, os homens não escreviam. Conservavam suas lembranças na tradição oral. Onde a memória falhava, entrava a imaginação para supri-la e a imaginação era o que povoava de seres o seu mundo.

Todas as formas expressivas nasceram, certamente, a partir do momento em que o homem sentiu necessidade de procurar uma explicação qualquer para os fatos que aconteciam a seu redor: os sucessos de sua luta contra a natureza, os animais e as inclemências do meio ambiente, uma espécie de exorcismo para espantar os espíritos do mal e trazer para sua vida os atos dos espíritos do bem.

A lenda, em especial as mitológicas, constitui o resumo do assombro e do temor do homem diante do mundo e uma explicação necessária das coisas. A lenda, assim, não é mais do que o pensamento infantil da humanidade, em sua primeira etapa, refletindo o drama humano ante o outro, em que atuam os astros e meteoros, forças desencadeadas e ocultas.

A lenda é uma forma de narrativa antiqüíssima, cujo argumento é tirado da tradição. Relato de acontecimentos, onde o maravilhoso e o imaginário superam o histórico e o verdadeiro.

Geralmente, a lenda está marcada por um profundo sentimento de fatalidade. Este sentimento é importante, porque fixa a presença do Destino, aquilo contra o que não se pode lutar e demonstra, irrecusavelmente, o pensamento do homem dominado pela força do desconhecido.

De origem muitas vezes anônima, a lenda é transmitida e conservada pela tradição oral.

Poesia

O gênero poético tem uma configuração distinta dos demais gêneros literários. Sua brevidade, aliada ao potencial simbólico apresentado, transforma a poesia em uma atraente e lúdica forma de contato com o texto literário.

Há poetas que quase brincam com as palavras, de modo a cativar as crianças que ouvem, ou lêem esse tipo de texto. Lidam com toda uma ludicidade verbal, sonora e musical, no jeito como vão juntando as palavras e acabam por tornar a leitura algo muito divertido.

Como recursos para despertar o interesse do pequeno leitor, os autores utilizam-se de rimas bem simples e que usem palavras do cotidiano infantil; um ritmo que apresente certa musicalidade ao texto; repetição, para fixação da idéias, e melhor compreensão dentre outros.

Pode-se refletir, acerca da receptividade das crianças à poesia, lendo as considerações de Jesualdo:

“(…) a criança tem uma alma poética. E é essencialmente criadora. Assim, as palavras do poeta, as que procuraram chegar até ela pelos caminhos mais naturais, mesmo sendo os mais profundos em sua síntese, não importa, nunca serão melhor recebidas em lugar algum do que em sua alma, por ser mais nova, mais virgem (…)”
Fonte:
OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Estudo das diversas modalidades de textos infantis. Disponível em http://www.graudez.com.br/litinf/textos.htm#Fabulas

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Camões

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Sobre o Ler e o Reler (Raymundo Silveira)

Pela primeira frase de um texto o leitor costuma decidir se continua ou não a lê-lo. É o que está acontecendo com este precisamente agora. Por que estou tão certo disto? Simplesmente porque leio todos os dias desde os nove ou dez anos de idade, encontro-me na faixa de leitores considerada média que engloba a maioria de quem se interessa por leitura, e ajo exatamente assim.

Obviamente, logo mais tarde ele voltará a decidir se quer ou não prosseguir, mas se as primeiras palavras não o interessarem e supondo que se trata de uma leitura por prazer, e não por obrigação, como sucede com quem estuda uma disciplina que detesta, simplesmente porque quer entrar numa faculdade e por isso tem de passar no vestibular, pelo menos o primeiro parágrafo será decisivo para a sua leitura integral.

Ocorre quanto à escrita algo muito semelhante ao que sucede quanto ao cinema. Dizem que certa vez um repórter perguntou a Billy Wilder qual seria a principal razão do seu sucesso como diretor cinematográfico, haja vista que a maioria dos seus filmes se baseia em roteiros aparentemente triviais, e ele respondeu com uma frase de seis palavras: “É simples: basta não ser chato!”

O que me motivou esta escrevinhação foram as palavras de um escritor amigo meu quando amigos comuns o solicitaram a postar os seus textos em mais de um dos sites da Internet e ele se saiu assim: “Não gosto de reprises; de reprises só gosto dos gols do Pelé!” Não concordo absolutamente com isto, a menos que se trate dos textos de um escritor pra lá de chato, o que certamente não é o caso dele, pois tenho o costume de ler os seus escritos por mais de uma vez, do começo ao fim.

Então, a menos que a pessoa deteste ler e seja viciada em futebol, não há como trocar, releituras sucessivas de bons autores pela chatice de ver por diversas vezes o mesmo balão cheio de ar entrando entre três paus, por mais habilidoso que seja o jogador, e por mais espetacular que tenha sido a sua jogada. Se, somente a intensidade do prazer não dispensasse maiores comentários, acrescentaria tantas vantagens da repetição de boas leituras em relação à de lindos gols que, aí sim, me tornaria superchato apenas pela obviedade.

Um tempero a mais a fim de tornar palatável uma escrevinhação é uma pitada de humor. Há textos, aparentemente ocos, mas o autor conhece um macete; uma espécie de erva irresistível, que atrai a atenção de qualquer leitor. Não pretendo ter a audácia de dizer que conheço este tempero, mas todas as vezes que começo a escrevinhar me lembro da frase de Billy e me ponho na situação de alguém que iria ler aquilo que pretendo pôr no papel. Certa ocasião redigi um escrito sobre o tema: “Como Escrever Sobre Um Assunto Que Consiste Em Não ter Assunto Para Escrever”. Como se pode aparentemente deduzir, tinha tudo para não ser lido. Pois recebi inúmeros e-mails favoráveis e o mais sóbrio deles dizia que quem o escreveu conseguiria tirar leite de pedras. Mas como tirar leite de pedras e este ser bebível, ao mesmo tempo? Em outras palavras, o que é ser ou não ser chato? Falar simplesmente que um texto chato é aquele que não atrai o leitor é o mesmo que dizer que as trevas são indesejáveis porque nelas não se podem enxergar os objetos e nem as pessoas.

Então, como evitar a chatice? Simplesmente tentando ser original, criativo e evitando obviedades, linguagem rebuscada e repetitiva. Se eu tivesse começado o presente texto por um período como este, por exemplo, dificilmente alguém o teria lido até aqui: “Toda leitura, para ser prazerosa e eficaz, deve ser feita num ambiente confortável, calmo, silencioso e isolado das demais pessoas, do contrário ela não surtirá o efeito que se pretende adquirir, pois daquelas quatro características dependerá o desiderato que alguém almejará alcançar“. Acho que fui por demais complacente; certamente o leitor não teria passado daí, ou sequer o tivesse lido todo. E, se acaso caísse agora na tentação de querer mostrar onde está a carência de originalidade e criatividade, bem como, a sua obviedade e a linguagem rebuscada e repetitiva, me tornaria mais chato ainda do que ele.

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Sir Arthur Conan Doyle (1859 – 1930)

Sir Arthur Conan Doyle, criador do mais famoso detetive do mundo, Sherlock Holmes, e autor de suas sessenta histórias, nasceu em Edimburgo no dia 22 de Maio de 1859. Filho de Charles Doyle, pintor casual de descendência Irlandesa, e Mary Foley Doyle, também de parentesco Irlandês.

Em Outubro de 1876, Conan Doyle ingressou na Universidade de Edimburgo a fim de formar-se em medicina. Foi lá que conheceu o Dr. Joseph Bell, cirurgião do Hospital de Edimburgo e professor na Universidade, cujos surpreendentes métodos de dedução e análise serviram de grande inspiração na futura criação de seu detetive. De maneira similar a Holmes, o Dr. Bell explicava os sintomas de seus pacientes, até mesmo contava-lhes detalhes de suas vidas, antes que eles pronunciassem uma palavra sequer.

Incentivado pelos conselhos de um amigo, que mencionara como suas cartas eram expressivas, Conan Doyle percebeu que algum dinheiro poderia ser efeito fora do campo medicinal. Foi então que ele escreveu sua primeira história, “O Mistério de Sassassa Valley”, publicada, anonimamente, por míseros três guinéus no Chamber’s Journal, em 1879. O conto revela sua precoce idéia da aparição de uma “besta demoníaca”, tema que ele mais tarde explorou na mais famosa história de Sherlock Holmes, “O Cão dos Baskervilles”.

Foi nas horas de ócio em seu consultório médico que Doyle começou a esboçar o que mais tarde seria seu detetive. Inspirado em Gaboriau, no detetive Dupin, de Poe, e logicamente, no seu tutor Joseph Bell, Conan Doyle criou a primeira versão do que seria o detetive que conhecemos hoje – um tal de Sherringford Holmes, posteriormente Sherlock Holmes.

Depois de muitas tentativas e frustrações, Doyle conseguiu que sua primeira história estrelando o detetive e seu escudeiro Watson fosse publicada. “Um Estudo em Vermelho” apareceu na Beeton’s Christmas Annual, em 1887. A boa aceitação do público levou-o a escrever sua segunda história de Holmes, o “Signo dos Quatro”. O detetive começava a chamar a atenção, atraindo aos poucos o que se tornariam mais tarde fiéis leitores.

Nos intervalos das histórias do detetive, Doyle dedicou-se a obras “mais sérias”, mais apreciadas pelo escritor, como “A Companhia Branca”, “As Façanhas do Brigadeiro Gerard” e “Micah Clarke”. Esse último, um grande sucesso. Doyle acabou, assim, abandonando a medicina para seguir definitivamente a carreira literária.

As histórias de Sherlock Holmes tornavam-se mais e mais populares, obrigando Conan Doyle a continuar criando casos para seu detetive. E quanto mais vezes o detetive expunha suas habilidades para o público estupefato, mais as outras obras de Doyle tornavam-se obscurecidas. Em 1891, escreveu à sua mãe: “Tenho pensado em matar Holmes… e livrar-me dele para sempre. Ele mantém minha mente afastada de coisas melhores”.

A idéia de acabar com Holmes permanecera com Doyle, e durante sua visita à Suíça, em 1893, conheceu as cataratas Reichenbach, local que escolheu como palco para o encontro fatal entre Holmes e o Professor Moriarty. Pretendia, assim, pôr um fim às histórias de Holmes e dar espaço às suas obras mais clássicas.

Para a grande surpresa de Doyle, a morte de Sherlock Holmes, publicada em 1893 no caso “O Problema Final”, chocou milhares de pessoas de todos os cantos do mundo. Muitos marcharam em luto pelas ruas de Londres, em protesto. O público não se conformava e clamava pela volta do detetive.

Assim, em meio a um turbilhão de protestos e insultos, Doyle foi obrigado a ressuscitar seu detetive no caso “A Casa Vazia”, em 1903. Era a prova de que a criatura tornara-se mais forte do que o criador. Sherlock Holmes tinha tornado-se imortal.

No final de 1899, o conflito iminente entre a Inglaterra e a África do Sul deu a Doyle, um fervoroso patriota, a possibilidade de auxiliar seu país. Conseguiu a supervisão de um hospital estabelecido na África, onde tomou posto em 1900.

Juntamente com a guerra, veio de todo o mundo um surto de críticas contra a conduta do Império Britânico. Coube a Doyle defender os interesses de sua pátria, no panfleto amplamente traduzido “A Guerra na África do Sul: Suas Causas e Conduta”.

Pelos seus esforços na defesa dos interesses de seu país, Conan Doyle recebeu, em 1902, o título de nobreza do Império. Passou, então, a portar o soberbo título Sir antecedendo seu nome.

Em 1912, Doyle introduziu ao mundo da literatura o célebre Professor Challenger, de “O Mundo Perdido”, um conto sobre o renascimento da pré-história num lugar remoto da América do Sul.

Em seus últimos anos de vida, Conan Doyle dedicou-se ao estudo aprofundado do espiritismo, assunto sobre o qual escreveu exaustivamente. O espiritismo tornou-se uma religião para ele, e o levou a promover palestras em vários países, como a Austrália e África do Sul.

O mágico Harry Houdini, um showman continuamente alerta a oportunidades para auto-promoção, expôs publicamente os truques mediunísticos em seus shows de palco e escreveu folhetos se opondo a médiuns fraudulentos. Mesmo assim alguns espiritualistas afirmaram que Houdini possuía poderes espiritualistas genuínos, recusando-se a aceitar as próprias declarações de Houdini de que só enganação estava envolvida em suas ilusões de palco.

Arthur Conan Doyle dedicou um capítulo inteiro de seu livro The Edge of the Unknown para argumentar em detalhe que Houdini tinha poder psíquico genuíno, mas não admitia. Curiosamente, Doyle e Houdini permaneceram amigos, apesar dos confrontos públicos a respeito do espiritualismo. Talvez eles compartilhassem uma apreciação do valor da auto-promoção pública.

Doyle era um crédulo ingênuo em vários tipos de tolice. Ele não só acreditou no espiritualismo e todos os fenômenos de sessões espíritas, mas também acreditou em fadas.

Em 1917, duas meninas adolescentes em Yorkshire produziram fotos que tinham tirado de fadas em seu jardim. Elsie Wright (6) e sua prima Frances Griffiths (10) usaram uma máquina fotográfica simples e dizia-se que não possuíam qualquer conhecimento de fotografia ou truques fotográficos.

Arthur Conan Doyle não apenas aceitou estas fotografias como genuínas, ele até escreveu dois panfletos e um livro que atestavam a autenticidade destas fotografias, incluindo muito folclore de fadas adicional. O livro dele, A Vinda das Fadas [The Coming of the Fairies], ainda é publicado, e algumas pessoas ainda acreditam que as fotografias são autênticas. Os livros de Doyle são leitura muito interessante até mesmo hoje. A convicção de Doyle no espiritualismo convenceu muitas pessoas de que o criador de Sherlock Holmes não era tão brilhante quanto a criação fictícia dele.

Alguns pensaram que Conan Doyle estava louco, mas ele defendeu a realidade de fadas com toda a evidência que pôde encontrar. Ele se opôs aos argumentos dos descrentes. Na realidade, os argumentos dele soam surpreendentemente semelhantes sob todos os aspectos a livros atuais promovendo a idéia de que seres alienígenas nos visitam em OVNIs. Robert Sheaffer escreveu um artigo inteligente traçando estes paralelos de forma maravlihosa.

Com o passar dos anos persistiu o mistério. Só alguns fanáticos acreditaram que as fotografias eram de fadas reais, mas o mistério dos detalhes de como (e por que) elas foram feitas continuou fascinando os estudantes sérios de brincadeiras, fraudes e enganações. Quando as meninas (já adultas) foram entrevistadas, suas respostas eram evasivas. Em uma entrevista da BBC em 1975 Elsie disse: “Eu lhe contei que elas são fotografias de invenções de nossa imaginação e é nisso que vou insistir”. Em 1977 Fred Gettings tropeçou em evidência importante enquanto trabalhava em um estudo de ilustrações de livro do começo do século XIX. Ele achou desenhos por Claude A. Shepperson no livro infantil de 1915 que as meninas poderiam ter facilmente possuído, e que eram, sem dúvida, os modelos para as fadas que apareceram nas fotografias.

Morreu em 7 de Julho de 1930, debilitado por um ataque cardíaco que o afligira meses atrás.

OBRAS

Romances sobre Sherlock Holmes:
1887 – Um Estudo em Vermelho
1890 – O signo doa quatro
1902 – O Cão dos Baskervilles
1915 – O Vale do Medo

Sherlock Holmes coletânea de contos:
1892 – As Aventuras de Sherlock Holmes
1894 – As Memórias de Sherlock Holmes
1905 – A Volta de Sherlock Holmes
1917 – Seu Último Adeus
1927 – O livro de casos de Sherlock Holmes
1928 – Coleção completa de histórias de Sherlock Holmes

Histórias do Professor Challenger:
1912 – The Lost World
1913 – The Poison Belt
1926 – The Land of Mist
1927 – The Disintegration Machine
1928 – When The World Screamed
1952 – The Professor Challenger Stories

Ensaios
1893 – Jane Annie or the Good Conduct prize (with J.M. Barrie)
1895 – A Question of Diplomacy
1899 – Brothers
1903 – A Duet. A Duologue
1907 – The Story of Waterloo
1909 – The Fires of Fate
1910 – Brigadier Gerard
1912 – A Pot of Caviare
1912 – The Dramatic Works of Arthur Conan Doyle
1912 – The Speckled Band
1912 – The House of Temperley
1922 – Sherlock Holmes (with William Gillette)

Panfletos:
1902 – The War in South Africa: Its Cause and Conduct
1907 – The Case of Mr. George Edalji
1912 – The Case of Oscar Slater
1914 – In Quest of Truth
1914 – To Arms!
1914 – Great Britain and the Next War
1915 – The Treatment of our Prisoners
1920 – Our Reply to the Cleric
1920 – A Debate with Dr. Joseph McCabe
1920 – Spiritualism and Rationalism
1925 – The Early Christian Church and Modern Spiritualism
1925 – Psychic Experiences (reprint)

Ficção:
1879 – The Mistery of Sasassa Valley
1885 – The Surgeon of Gaster Fell
1889 – Micah Clarke, his statement as made to his three grandchildren
1889 – The Mystery of Cloomber
1889 – Mysteries and Adventures
1890 – The Captain of the Polestar and other tales
1890 – The Firm of Girdlestone: A Romance of the Unromantic
1891 – The White Company
1892 – The Doings of Raffles Haw
1892 – The Great Shadow
1892 – Beyond the City
1893 – The Gully of Bluemansdyke (reissue of Mysteries and Adventures 1889)
1893 – The Refugees. A Tale of Two Continents
1894 – An Actor’s Duel and The Winning Shot
1894 – The Parasite
1894 – Round the Red Lamp: Being Facts and Fancies of a Medical Life
1895 – The Stark Munro Letters
1896 – The Exploits of Brigadier Gerard
1896 – Rodney Stone
1896 – Uncle Bernac: A Memory of the Empire
1898 – The Tragedy of Korosko
1899 – A Duet, with an Occasional Chorus
1900 – The Croxley Master
1900 – The Green Flag and Other Stories of War and Sport
1901 – Strange Studies from Life
1903 – The Adventures of Gerard
1906 – Sir Nigel
1908 – Round the Fire Stories
1911 – The Last Galley: Impressions and Tales
1918 – Danger! and Other Stories
1922 – Tales of Long Ago
1922 – Tales of Pirates and Blue Water
1922 – Tales of Adventure and Medical Life
1922 – Tales of Terror and Mystery
1922 – Tales of Twilight and the Unseen
1922 – Tales of the Ring and Camp / The Croxley Master and Other Tales of the Ring and Camp
1928 – The Dreamers
1929 – The Maracot Deep and Other Stories
1929 – The Conan Doyle Stories
1931 – The Conan Doyle Historical Romances I (Includes:The White Company, Sir Nigel, Micah Clarke and Refugees)
1932 – The Conan Doyle Historical Romances II (Includes: Rodney Stone, Uncle Bernac, The Exploits of Gerard and The Adventures of Gerard)
1934,47 – The Field Bazaar (Private Printings)
1958 – The Crown Diamond (Private Printing)
Versos:
1898 – Songs of Action
1911 – Songs of the Road
1919 – The Guards Came Through and Other Poems
1922 – The Poems of Arthur Conan Doyle. Collected edition

Escritos sobre Guerra, Política e Espiritualismo:
1900 – The Great Boer War
1901 – The Immortal Memory
1905 – The Fiscal Question
1906 – An Incursion into Diplomacy
1907 – Through the Magic Door [Essays on books.]
1909 – The Crime of the Congo
1909 – Divorce Law Reform: An Essay
1911 – Why He is Now in Favour of Home Rule
1914 – The German War
1914 – Civilian National Reserve
1914 – The World War Conspiracy
1914 – The German War
1915 – Western Wanderings
1915 – The Outlook on the War
1916 – An Appreciation of Sir John French
1916 – A Visit to Three Fronts
1916 – The British Campaign in France and Flanders, 1914-1918
1917 – Supremacy of the British Soldier
1918 – Life After Death (A Form Letter)
1918 – The New Revelation: or, What Is Spiritualism?
1919 – The Vital Message
1922 – Spiritualism-Some Straight Questions and Direct Answers
1921 – The Wanderings of a Spiritualist
1922 – The Case for Spirit Photography (with others)
1922 – The Coming of the Fairies
1923 – Our American Adventure
1923 – Three of them. A Reminiscence
1924 – Memoirs and Adventures
1924 – Our Second American Adventure
1924 – The Spiritualists Reader (Editor)
1924 – Leon Denis: The Mystery of Joan of Arc (Translator)
1926 – The History of Spiritualism 2 vol.
1927 – Pheneas Speaks. Direct Spirit Communications
1928 – A Word of Warning
1928 – What does Spiritualism actually Teach and Stand for?
1929 – An Open Letter to those of my Generation
1929 – Our African Winter
1929 – The Roman Catholic Church. A rejoinder.
1930 – [A Form Letter]
1930 – [A Second Form Letter]
1930 – The Edge of the Unknown

Fontes:
http://www.beatrix.pro.br/
http://www.ceticismoaberto.com/

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Sir Arthur Conan Doyle (Conto: Nosso Visitante da Meia Noite)

A minha história, contei-a quando fui preso, mas ninguém acreditou em mim. Contei-a de novo, durante o processo. Contei tudo como se havia passado. Deus me defenda! Pormenorizei tudo, e as palavras e os gestos da Srª. Mannering e as minhas palavras e os meus gestos. E para quê? “O réu fez uma declaração incoerente, inadmissível, nos detalhes em que não repousa sobre nenhuma aparência de prova”, assim se exprimiu um jornal de Londres; para os outros, foi como se eu não tivesse apresentado defesa alguma. E entretanto eu vi com estes olhos o assassinato do Sr. Mannering; nele estou tão inocente como qualquer dos jurados que me julgaram. E já que hoje estais aí, senhor, para receber os requerimentos dos prisioneiros, eis o meu. Peço-vos que o leias, somente que o leias. Depois sabereis qual o caráter daquela Srª. Mannering – se é que ela conserva ainda o nome que usava há três anos, quando para minha desgraça, a conheci. Encarregai desse inquérito um agente particular ou um advogado; e em breve sabereis o bastante para vos convencerdes de que minha narrativa é a pura verdade. A menor averiguação colocar-vos-á sobre a pista. Lembrai-vos de que o crime só beneficiou essa pessoa, pois que, de uma mulher desgraçada que era, tornou-se hoje uma viúva rica. Tendes aí o fio condutor, basta seguí-lo e ver onde ele vos leva. Notai, senhor, que eu não falo de roubo. Não reclamo contra o que mereci, que não foi mais do que merecia. Foi somente o roubo, e paguei-o com meus três anos de cadeia. Reconheço o furto; mas no que diz respeito ao assassinato que hoje faz de mim um condenado por toda a vida, – e com outro juiz que não fosse o Sr. Doutor James, talvez tivesse ido parar na forca – afirmo que estou preso sem culpa, e protesto a minha inocência.

Volto à noite de 13 de setembro. Dir-vos-ei exatamente o que aconteceu. Havia passado o verão em Bristol, em busca de trabalho. Pensei que seria fácil achar algum em Portsmouth, pois sou bom mecânico, e pus-me a caminho, cortando o sul da Inglaterra, ocupando-me de mil negociosinhos. Esforçáva-me por sair honestamente dos trabalhos, pois acabava de passar um ano na prisão de Exter e não me agradava alojar-me em Casa da Rainha. Mas quem tem o nome manchado faz mal em se empregar; e tudo o que pude fazer foi viver.

Enfim, cerca de dez dias passados a cortar lenha e a quebrar pedras por um salário chorado, achava-me perto de Salisbury com um “shilling” no bolso e a paciência esgotada. Há na estrada que vai de Blandford e Salibury, uma taverna chamada “A boa intenção”. Aluguei ali um leito para passar a noite.

Estava sentado na sala, completamente só, à hora de fechar as portas, quando o taverneiro, chamado Allen, aproximou-se de mim e pôs-se a falar de gente da vizinhança. Era um homem que gostava de tagarelar; tão bem que eu fiquei lá, fumando e despejando um copo de cerveja, enquanto durava o seu discurso. E não prestei muita atenção no que ele dizia, até o momento em que, metendo-se o diabo no meio, ele pôs-se a falar dos tesouros de Mannering Hall.

– Quer falar da grande casa que fica à direita, antes de entrar na vila? – perguntei. Aquela que tem um parque?

– Exatamente. A casa branca dos pilares, na estrada de Blanaford

Havia notado essa casa, quando por lá passara e, como, naquele momento, pensado que facilmente uma pessoa poderia introduzir-se nela. Havia expulsado essa idéia, mas eis que agora o hospedeiro a fez voltar com a enumeração das riquezas.

– Ainda moço – disse ele – o seu proprietário já era avarento. Imagine agora em sua idade! Nada impede que ele tenha tido algum prazer com seu dinheiro.

– Que prazer pode ter tido, se não o gasta? – perguntei.

– Mas possuindo a mulher mais bonita da Inglaterra. Isto pelo menos é um prazer. Ela pensava ter o dinheiro à disposição, hoje conhece a diferença.

– E ela, o que era? – murmurei, para dizer alguma coisa.

– Nada, quando o velho Senhor a fez sua Senhora. Vinha de Londres. Uns pretendiam que ele a havia retirado do teatro. Ninguém sabia. O velho havia passado um ano fora. Quando voltou, trazia uma moça. Ela ainda está lá. Sephens, o mordomo, disse-me uma vez que ela, nos primeiros tempos, alegrava toda a casa; mas o procedimento mesquinho de seu marido, a solidão em que a conservava, pois ele detesta as visitas, e a dureza de suas palavras, pois sua língua é um aguilhão, fizeram com que a vivacidade a abandonasse, e transformaram-na numa pálida e silenciosa criatura, que se vê errar pelos atalhos do campo. Alguns pretendem que ela amava outro homem, mas que os tesouros do velho a tornaram infiel, e que agora se lhe despedaça o coração por ter perdido, sem proveito, um pelo outro, pois com a fortuna do marido poderia perfeitamente passar pela pessoa mais pobre da paróquia.

O taverneiro dizia-me essas coisas e muitas outras semelhantes; mas a esquecia logo, porque não me interessavam. O que me preocupava era a maneira por que o Sr. Mannering guardava suas riquezas. Os títulos de propriedade e de renda são simples papéis, e tirá-los é mais perigoso que lucrativo. Mas o ouro e as jóias valem bem o perigo. E então, como que respondendo a meus pensamentos, o taverneiro pôs-se a falar da grande coleção de medalhas de ouro, reunida pelo Sr. Mannering. Era a mais preciosa do mundo; e a prova disso era que, se se pusessem todas as medalhas num saco, o homem mais forte não conseguiria carregá-lo. Então a mulher do taverneiro chamou-o e fomos nos deitar. Isto não é uma historia cuidadosamente preparada para as necessidades da minha causa. Mas, eu vos peço, senhor, prestai atenção: interrogai vossa consciência e dizei se poderia haver tentação mais cruel?

Aquela noite estava eu naquele leito, sem recursos, sem esperança, sem trabalho, com o ultimo “shilling” no bolso. Havia experimentado ser honesto e as pessoas honestas haviam me virado as costas. Chamavam-me ladrão e impeliam-me ao roubo. Arrebatado por essa corrente, não havia para mim meio de salvação. E eis que me aparecia essa pechincha: A grande casa rodeada de janelas, e as medalhas de ouro tão fáceis de fundir! Era como se alguém tivesse estendido uma côdea de pão a um faminto, crendo que ele não a comeria! Lutei um momento; mas basta! Acabei sentando-me na cama, e jurando que naquela noite me tornaria rico e depois renunciaria ao crime, ou conheceria ainda o peso das algemas. Vesti-me às pressas, pus um “shilling” sobre a mesa para o taverneiro e pela janela pulei para o jardim. Um muro alto servia de tapume. Saltei-o com facilidade. Do outro lado, o campo era livre. Não encontrei ninguém na estrada. A porta da entrada estava aberta. No pavilhão do porteiro, ninguém se mexia. O luar estava claro e eu avistava o palácio, muito branco, sob a abóbada das arvores. Andei cerca de um quarto de milha e cheguei a um vasto terreno arenoso diante da porta principal. Permaneci ali um instante acocorado procurando o meio mais fácil para subir. A janela do canto de um dos lados parecia a menos visível dos andares; ocultava-a uma espessa cortina de hera: tinha lá as melhores probabilidades de êxito. Protegido pelas árvores, deslizei por trás da casa. Um cão ladrou e ouviu-se o ruído de sua corrente. Esperei que sossegasse, depois continuei a marcha furtiva até à janela escolhida.

É extraordinário que a gente da aldeia não se ponha em guarda contra os ladrões e que a idéia destes não entre nunca em sua mente. A ocasião faz o ladrão, quando ao passar por uma porta sem pensar no mal, este a vê abrir-se diante de si. Não foi este verdadeiramente o meu caso. Mas um simples gancho fechava a janela; soltei-o com a ponta do meu canivete, levantei a vidraça, introduzi a lamina no intervalo das persianas e abri. Eram persianas de dobradiças e bastou-me empurrá-las para penetrar no quarto.

– Boa noite, senhor! Seja bem-vindo! – disse uma voz.

Sofri muitas emoções em minha vida, mas nenhuma mais violenta do que aquela. Perto da janela, ao alcance do meu braço, estava uma mulher, que tinha na mão uma vela. Alta, delgada, tinha um belo rosto pálido, que parecia ser talhado no mármore, e seus olhos e seus cabelos eram negros como a noite. Uma espécie de “peignoir” descia-lhe até aos pés. E com essa roupa e com esse rosto parecia um fantasma imóvel. Minhas pernas tremiam e tive que apoiar-me a uma janela. Teria girado sobre os calcanhares e fugido, se tivesse tido forças para isso. Mas mal me sustinha em pé, e fiquei a contemplá-la. Depressa ela me reanimou.

– Não tenha medo! – disse ela, – e de uma dona de casa a um ladrão eram estranhas essas palavras.

– Vi-o da janela de meu quarto, quando se ocultava sob as árvores; então desci e o ouvi à janela. Tê-la-ia aberto se me desse tempo. Mas o senhor precedeu-me. – Pegou-me na mão e puxou-me para o quarto.

– Que significa isso, senhora? Nada de gracejos! – disse com uma voz rude, e sei torná-la rude quando quero.

– Não estou disposto a deixá-la zombar de mim, acrescentei, mostrando-lhe o canivete aberto com que forçara a janela.

– Não penso em zombar de si, respondeu ela. Pelo contrário, sou sua amiga e desejo auxiliá-lo.

– A senhora se desculpa, o que é difícil de acreditar. Por que deseja auxiliar-me?

– Tenho minhas razões.

E de repente, seus negros olhos brilharam de cólera, em seu rosto pálido.

Porque o odeio, odeio, odeio! Compreende?

Lembrei-me do que me havia dito o taverneiro, e compreendi. Olhei-a de frente e conheci que podia confiar nela. Ela queria vingar-se de seu marido. Ela queria feri-lo no ponto sensível, na bolsa. Ela o odiava a ponto de perder o orgulho e confiar num individuo como eu, contanto que se vingasse. Detestei algumas pessoas em minha vida; mas creio que não havia compreendido o ódio, até ao momento em que vi aquele rosto de mulher, à luz da vela.

– Agora, confia em mim? – perguntou-me; e outra vez puxou-me levemente pela manga do paletó.

– Sim, senhora.

– Então conhece-me?

– Suponho quem seja.

– Minhas queixas são o assunto obrigatório da gente desta terra. Mas que importa isto a esse homem? Ele só ama uma coisa na terra, e essa coisa está à sua disposição. Tem um saco?

– Não, senhora.

– Feche as persianas. Assim, ninguém verá a luz. Não tema nada. Os criados dormem do outro lado. Vou mostrar-lhes os objetos preciosos. O senhor não pode levá-los todos; escolherá os melhores.

Achava-me numa sala comprida e baixa. Tapetes e peles cobriam o soalho polido. Pequenas vitrines erguiam-se aqui e ali. As paredes eram cobertas de lanças, espadas, remos e outros objetos semelhantes que se encontram nos museus. Havia ali também estofos bizarros, trazidos de paises selvagens. A mulher tirou do meio de tudo isso um grande saco de couro.

– Este servirá. Venha; vou mostrar-lhe onde estão as medalhas.

Pensava sonhar com a idéia dessa mulher pálida que, sendo a dona da casa, me ajudava a roubar sua própria residência. Ter-me-ia rido, talvez, se, na palidez do seu rosto, não houvesse uma coisa que me impressionava e me amedrontava. Ela deslizou diante de mim como um fantasma, levando o rolo verde de seu pavio de cera, e a segui com meu saco, até uma porta na extremidade da sala. A chave estava na fechadura. Penetrei no quarto do lado, atrás da minha guia. Era uma sala vasta, com tapeçarias pendentes que, bem me recordo, representavam uma caça ao veado. E, à luz trêmula da vela, jurar-se-ia ver os cães e os cavalos saltarem ao longo das muralhas. Não havia outros móveis além de grandes armários de nogueira, ordenados de cobre e munidos, no alto, de vidraças, sob as quais eu via alinharem-se as medalhas de ouro, algumas grandes como pratos, de meia polegada de espessura, colocadas todas sobre veludo escarlate e brilhando na obscuridade. Os dedos abriam-se para apanhá-las e já me preparava para fazer saltar uma das fechaduras com meu canivete. Mas a mulher deteve-me o braço.

– Um momento, disse ela. O senhor tem um negócio melhor. Moedas de ouro não valem mais do que estas medalhas?

– Certamente, disse. É o que há de melhor.

– Bem, replicou ela. Meu marido dorme lá em cima, justamente sobre nossas cabeças. Uma simples escadinha nos separa dele. Há, sob seu leito, uma caixa de folha-de-flandres e nessa caixa há bastante dinheiro para encher esse saco.

– Mas como hei de tirá-lo, sem que o homem acorde?

– Que lhe importa que ele acorde? E acrescentou, olhando-me fixamente: – O senhor pode impedi-lo de gritar.

– Não, senhora, isso não.

– Como for do seu agrado, concluiu ela. Julgava-o um homem corajoso; vejo que me enganei! Desde que um velho o intimida, é lógico que não pode tirar o dinheiro de sob seu leito. O senhor é o único juiz de seus atos. Mas esperava mais de si. E creio que deveria escolher outro oficio.

– Não quero ter um assassinato na consciência.

– Pode tirá-lo sem fazer-lhe mal algum. Quem lhe fala de assassinato? O dinheiro está sob sua cama. Fiquei aí se lhe falece o ânimo.

Assim ela me excitava pelo sarcasmo; tentava-me com esse dinheiro que fazia luzir ante meus olhos. E, sem duvida, teria acabado por ceder, e ter-me-ia arriscado, se, percebendo com que olhos maliciosos e pérfidos ela me via lutar, não tivesse compreendido que ela queria fazer de mim um instrumento de sua vingança, e que me deixava na alternativa de matar o velho ou deixar-me prender. Achou que ia muito longe, pois de repente transfigurou-se e sorriu-me. Era tarde: sabia o que devia pensar.

– Não irei lá em cima, declarei. Tenho aqui o que desejo.

Ela olhou-me desdenhosamente, como nunca se olhou para um homem.

– Seja! Roube essas medalhas. Preferia que começasse por este lado. Suponho que uma vez fundidas terão todas o mesmo valor; estas aqui são as mais raras e por conseqüência têm para ele maior preço. É inútil forçar as fechaduras; basta apertar este botão de cobre; há uma mola secreta. Aqui! Em primeiro lugar este grande. Ele guarda-o como a menina-dos-olhos. – Ela havia aberto um dos móveis, e todas aquelas preciosidades se me ofereciam. Ia apanhar as medalhas que ela me indicava, quando a vi mudar de cara e levantar o dedo como para me advertir.

– Silencio! – murmurou. – Que será isso?

Ao longe, no silêncio da casa, ouvimos um rumor surdo e fraco, um rumor de passos. Ela fechou imediatamente o móvel.

– Meu marido! – murmurou. – Mas não se inquiete, arranjarei tudo.

Escondeu-me com o saco atrás da tapeçaria e, iluminando com a vela, voltou rapidamente para o quarto de onde havíamos saído. Apesar de escondido, continuava a vê-la pela porta entreaberta.

– És tu, Roberto? – perguntou ela.

A luz de uma vela iluminou a soleira da porta do museu; os passos aproximaram-se; e vi aparecer um rosto, um rosto grande e severo, magro, e enrugado, com um enorme nariz adunco e lunetas de ouro. A cabeça inclinava-se para trás, por causa das lunetas, e o nariz era saliente como o bico de um pássaro. Os cabelos anelavam-se em torno de sua cabeça. Não tinha barba. Sua delicada boca, pequena e afetada, dissimulava-se profundamente sob o nariz imperioso. Ele estava lá, com a vela à sua frente, e olhava sua mulher com um ar estranhamente hostil. Vendo-o, adivinhei que era igual a afeição que tinham um pelo outro.

– Oh! – perguntou – então que é isso? Ainda um acesso de gênio? Que tens para rodar assim pela casa? Por que não te vais deitar?

– Não tenho sono.

Ela falava pronunciando as palavras com languidez. Se aquela mulher algum dia tivesse sido atriz não esquecia sua profissão.

– Hás de permitir que eu creia – disse ele com uma voz rude – que uma consciência tranqüila é uma boa auxiliar de sono?

– Enganas-te – replicou a mulher- pois dormes admiravelmente.

– Em minha vida – trovejou ele, e com os cabelos eriçados pela cólera parecia um velho papagaio de topete, – só há uma coisa de que me envergonho. Sabes qual? Foi um erro da minha parte que trouxe a punição consigo.

– Tanto para mim como para ti, lembra-te disso!

– Não tens de que te queixar. Eu desci e tu subiste.

– Subi?

– Sim, subiste. Não negarás que se sobe quando se passa do “music-hall” para o Mannering-Hall!! Fui um imbecil arrancando-te do teu meio!

– Se pensas assim, por que me prendes?

– Porque um tormento oculto vale mais do que uma vergonha pública. Porque é mais fácil sofrer as conseqüências de uma loucura do que reconhecê-la. E também porque quero continuar a conservar-te sob meus olhos e a saber que não podes voltar para a companhia do outro.

– Miserável! Miserável covarde!

– Sim, sim, conheço tua ambição secreta. Mas não a realizarás enquanto eu viver. E se voltares para a companhia daquele homem, depois da minha morte, saberei fazer com que voltes ao estado de mendiga. Tu e teu caro Eduardo jamais terão a satisfação de esbanjar minhas economias. Decide-te. Como me explicas estarem abertas esta janela e estas persianas?

– A noite estava muito quente.

– Cometeste uma imprudência. Sabes que pode haver vagabundos lá fora e que minha coleção de medalhas é incomparável? Tinha igualmente deixado aberta a porta. É este o meio de impedir que roubem minhas vitrines?

– Eu estava lá.

– Sem duvida. Ouvi mexeres no quarto das medalhas e foi por isso que desci. Que estavas fazendo?

– Que poderia fazer? Admirava as medalhas.

Curiosidade nova da tua parte.

Olhou-a desconfiado e dirigiu-se para a outra sala. Ela seguiu-o. Constatei então uma coisa que me fez estremecer. Havia deixado meu canivete aberto sobre uma das vitrines. Ele estava ali completamente à vista. A mulher viu-o primeiro. Com uma astúcia bem feminina, colocou sua vela de maneira a interpor a luz entre os olhos do Sr. Mannering e o canivete; depois tomou-o na mão esquerda e ocultou-o na roupa. Entretanto o velho examinava, canto por canto, toda a vitrine; houve um momento em que se aproximou de mim até ao alcance da mão. Nada indicando que se tivesse mexido nas medalhas, ele examinou, murmurando e praguejando, a primeira peça. Apenas passada a revista na primeira colocou a sua vela num canto de uma das mesas e sentou-se fora do alcance de minha vista. Ela ia e vinha atrás dele, segundo indicava a sombra projetada sobre o soalho pela luz da vela. Então ele pôs-se a falar do homem a quem chamava Eduardo, e cada palavra que proferia caia como uma gota de vitríolo. Falava baixo, de sorte que nem tudo eu podia ouvir; mas, pelo que ouvia, acreditei que ele não a teria martirizado mais, açoitando-a com um chicote. A princípio ela murmurou algumas palavras; depois emudeceu, enquanto ele, com sua voz glacial e irônica, continuava insultando, remexendo o passado, torturando, a tal ponto, que me admirava que ela sofresse em silêncio. E, de repente, ouvi o velho gritar: “Sai de trás de mim! Deixa-me! O quê! Ousarias ferir-me!” Ouvi então um ruído característico, uma espécie de choque mole. O velho gritou: “Meu Deus! Sangue!” E arrastou os pés, como se levantasse. Ouvi um segundo golpe. O velho gritou ainda: “Desgraçada!” Depois, só veio interromper o silêncio da casa o ruído de um líquido caindo no chão. Saí então do meu esconderijo e, trêmulo de terror, corri para o primeiro quarto. O velho tinha escorregado da cadeira e seu robe, repuxado, fazia-lhe uma corcova monstruosa nas costas. A cabeça, ainda com as lunetas em seu lugar, inclinava-se para o lado, e a boca pequenina estava aberta como a de um peixe morto. Não via de onde vinha o sangue, mas ouvia-o cair no chão. Ela, de pé, atrás dele, recebia em cheio a luz da vela. Seus lábios fechavam-se, seus olhos brilhavam, um leve rubor subira-lhe ao rosto; não me lembro de ter visto nunca mulher mais bela.

– A senhora fez isso?

– Fiz – respondeu tranqüilamente.

– E agora, o que vai fazer? Vão prende-la por crime de morte.

– Não se inquiete por minha causa. Nada me prende à vida; isso não tem importância. Ajude-me a endireitá-lo na cadeira. É horrível vê-lo assim.

Obedeci, não obstante gelar-me o tocar num cadaver. Um pouco de sangue caiu-me na mão.

– Agora pode tirar as medalhas – disse ela. Tanto faz o senhor, como um outro. Tire-as e vá-se embora.

– Não as quero mais. Quero partir, nunca estive metido em negócio semelhante.

– Que loucura! – disse ela. O senhor veio por causa das medalhas, elas estão à sua disposição. Por que não levá-las? Ninguém lho impede.

Conservava ainda o saco comigo. Ela abriu o móvel e despejamos uma centena de medalhas no saco. Mas não tive forças para ficar por mais tempo. Aproximei-me da janela, pois o ar da casa parecia envenenado pelo que acabava de testemunhar. Voltando-me, a vi ainda de pé, alta e graciosa, com a vela na mão, tal como me havia aparecido. Fez-me um gesto de despedida, ao qual correspondi, e internei-me rapidamente no parque. Graças a Deus, tenho o direito de jurar, com a mão sobre o coração, que não cometi o crime. Talvez fosse diferente, se tivesse podido ler no espírito daquela mulher; e sem duvida ficariam dois cadáveres em vez de um, naquele quarto, se tivesse podido presumir o que ocultava aquele ultimo sorriso. Preocupado unicamente com a minha segurança, não refleti nem um minuto sequer na maneira pela qual ela me havia armado o laço. Mas, havia dado apenas cinco passos no jardim, caminhando na sombra das arvores, da mesma maneira como tinha chegado, quando ouvi um grito, um grito capaz de despertar toda a paróquia, depois outro e mais outro.

– Assassino! Assassino! Assassino! Socorro!

E esses gritos de mulher no silêncio da noite, repercutiram pelos campos. Perturbaram-me o espírito. Num instante, luzes começaram a agitar-se, janelas a abrir-se, não só atrás, no palácio, mas no pavilhão do guarda e nas cavalariças, na frente. Como uma lebre espantada, corri pela alameda, mas ouvi fecharem o portão, antes que pudesse alcançá-lo. Então, escondi o saco num montão de lenha e procurei salvar-me através do parque. Alguém me viu à luz da lanterna e fui imediatamente perseguido por uma dúzia de pessoas, auxiliadas por cachorros. Acocorei-me entre os arbustos, mas os cães eram muito numerosos, e só respirei quando chegaram os homens para impedir que me estraçalhassem. Agarraram-me e levaram-me para o palácio de onde eu saíra.

– Foi este homem, senhora? – perguntou o mais velho do grupo, que mais tarde soube ser o mordomo.

Inclinada sobre o corpo, ela ocultava os olhos com um lenço. Bruscamente, lançou-me um olhar de fúria. Ah! aquela mulher é uma perfeita comediante!

– Sim, sim, foi esse mesmo – gritou ela. Ah! Canalha! Canalha! Fazer isso com um velho! – Estava lá um individuo que parecia um oficial de justiça da aldeia. Pôs-me a mão no ombro e perguntou-me:

– Que responde a isto?

– Que foi ela quem o assassinou – disse, designando a mulher, que nem pestanejou diante de mim.

– Vamos, vamos! Não me engana! – disse ele – E um dos criados deu-me um murro. – Digo que vi, protestei. Vi-a dar duas facadas nesse homem. Ela matou-o, depois de me ter ajudado a roubá-lo.

O criado quis bater-me ainda; ela, porém, estendeu a mão.

– Nada de violências, disse; a justiça castigá-lo-á.

– Queira Vossa Senhoria dizer-me, Vossa Senhoria presenciou o crime?

– Com meus próprios olhos. Foi horrível. Ouvimos barulho e descemos. Meu marido vinha na frente. O homem havia aberto uma das vitrines e enchia o saco de couro preto que tinha na mão. Saltou diante de nós para fugir. Meu marido deteve-o. Na luta o Sr. Mannering recebeu duas facadas. Se não me engano a arma ainda está na ferida. E veja o sangue nas mãos do assassino!

– Vejo-o nas mãos dela – respondi.

– Ela pegou na cabeça de Sua Senhoria, patife desavergonhado! – disse o mordomo.

Nesse momento entrou um criado trazendo o saco que eu escondera na minha fuga.

– Eis – disse o oficial – o saco e as medalhas de que falou Vossa Senhoria. Isto basta. Esta noite conservaremos aqui o homem e amanhã o inspetor e eu o levaremos para Salisbury.

– Pobre diabo! – disse a mulher. – Por minha parte, perdôo-lhe o mal que me fez. Quem sabe que tentação o terá impelido ao crime? Sua consciência e a lei irão assegurar-lhe uma punição que não quero tornar mais cruel com minhas censuras.

Não achava resposta. Não, senhor, não achava resposta, a tal ponto me assombrava essa mulher com sua segurança; e, num silêncio que parecia dar-lhe razão, deixei-me arrastar pelo oficial e pelo mordomo para o celeiro, onde me fecharam por aquela noite. Já vos contei toda a série de acontecimentos que terminaram pelo assassinato do Sr. Mannering por sua mulher, na noite de 14 de setembro de 1894. Talvez, como o oficial de justiça de Mannering-Towers e o juiz, não leveis em conta minhas alegações. Talvez reconheçais nelas o acento da verdade; e, escutando-me, sereis talvez um homem que não se embaraça com considerações pessoais, quando se trata de justiça. Só espero em vós, senhor. Se me relevardes dessa falsa acusação, abençoar-vos-eis como nunca homem algum abençoou a outro. Mas, se pelo contrário me abandonardes, dou-vos minha palavra que daqui a algumas semanas estarei enforcado nas barras do meu cubículo e, daí em diante, por pouco que isto tenha sido permitido a alguém, aparecerei em todos os vossos sonhos. O que peço é muito simples. Informai-vos sobre essa mulher, vigiai-a, revolvei seu passado, verificai o emprego do dinheiro de que se tornou dona, verificai a existência desse Eduardo, que creio estar ligado à sua vida. E se, por acaso, souberdes de alguma coisa que vos mostre a verdadeira natureza da pessoa, ou que vos pareça corroborar a história que vos contei, sei que posso contar com o vosso coração para alcançar piedade para um inocente.

Fonte:
DOYLE, Sir Arthur Conan. Nosso visitante da meia-noite e outros contos sensacionais. Ediouro.
http://www.gargantadaserpente.com/

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Artur de Azevedo (Conto: O Espírito)

O caso que vou contar passou-se há um bom par de anos, quando no Rio de Janeiro o espiritismo não tinha ainda o caráter de seriedade nem os ilustres prosélitos que hoje tem, mas começava a ocupar a atenção e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fé.

Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos lhe perdoavam por não ser culpa dele.

O nosso herói não se empregava absolutamente noutra coisa que não fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade. Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e só gastava o rendimento do seu patrimônio.

Casara-se com d. Laura que, não sendo formosa que o inquietasse, nem feia que lhe repugnasse, era mais inteligente e instruída que ele. Esta superioridade dava-lhe certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar doméstico, onde só a sua vontade e a sua opinião prevaleciam sempre.

O Garcia não se revoltava contra a passividade a que era submetido pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava a ele o resto?

Sim, que d. Laura já não lembrava do Frederico…

Quem era esse Frederico? Um elegante guarda-livros, que a namorava quando o Garcia apareceu iluminado pela sua auréola de capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate.

Ou fosse para melhorar de situação ou porque realmente o magoasse a vitória fácil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d. Laura não se tinha casado, mudara-se para São Paulo, e nunca mais souberam dele, nem ela, nem o Garcia.

Num dia em que este, ano e meio depois de casado, perguntou, a gracejar, pelo primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o tranqüilizar, respondeu, simulando
indiferença:

– Não sei… Parece que morreu…

– Morreu?…

– Pelo menos disseram-me que sim… em São Paulo… Não sei ao certo, nem isso me interessa.

Por esse tempo já o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo, nos mistérios do espiritismo, e fazia parte de um grupo, um dos primeiros que organizaram nesta cidade, para estudar os fenômenos revelados nos livros de Allan-Kardec.

Os associados reuniam-se todos os sábados para consultar a mesa giratória, evocar espíritos e conversar com defuntos célebres. Produziam-se, realmente, alguns fenômenos, que impressionaram profundamente o espírito débil de Garcia, a ponto de fazer com que ele não pensasse mais noutra coisa a não ser em almas de outro mundo.

Tinha o nosso espírita grande curiosidade de evocar por meio de tal mesa giratória o espírito de Frederico, apenas para verificar se estava morto o seu antigo rival; abstinha-se, porém, de o fazer pelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e ridículo.

Mas uma noite, em que a sessão ainda não começara, e estavam presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, o Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espírito de um amigo.

Os outros aquiesceram. Sentaram-se os três e espalmaram as mãos sobre uma pequena mesa de três pés, que em poucos minutos começou a mexer-se como um ser animado.

– Está presente o espírito que evoquei? – perguntou o Garcia em voz sinistra e cavernosa. – Se está presente, dê duas pancadas!

A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu.

– Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! -continuou o Garcia no mesmo tom.

A mesa deu seis pancadas.

– F – disseram os dois companheiros.

– Adiante!

A mesa deu dezoito pancadas.

– R – repetiram os espíritas.

– Adiante!

A mesa deu cinco pancadas.

– E – explicou um dos três.

– F, R, E – disse o outro.

E em tom de comando, acrescentou:

– Se é Frederico, dê uma pancada forte!

A mesa deu uma pancada tão violenta, que partiu a perna.

O Garcia ergueu-se lívido e assombrado, gaguejando:

– Estou satisfeito.

– Mesmo porque é preciso consertar a mesa – concluiu um dos companheiros.

– Com duas pernas é impossível fazê-la trabalhar.

O que preocupava o grupo já não eram os espíritos invisíveis nem os fenômenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo animal; o que todos ali desejavam era ver um espírito materializado, e para isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vãos.

Nessa ocasião estavam presentes no Rio de Janeiro não só o espírito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de São Paulo para tratar de um negócio urgente, de três a quatro dias.

Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponível para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver – apenas ver – d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhes como não só a viu, como lhe falou; e até entrou para a sala..

O caso ê que, naquela noite, a mesma da evocação, voltando o Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessão não se realizara por falta de número, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a rua, e ficou tão estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra.

O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe os passos apressados, se sentara mais que depressa numa cadeira de balanço, a ler um livro, fingindo a maior tranqüilidade.

– Que quer isto dizer?

– Isto quê?

– Esse homem que acaba de sair daqui?

– Um homem?! Daqui?! Tu estas doido!…

– Oh, senhora! Pois não esteve aqui um homem?

– Estás doido, repito.

– Eu vi-o!

– Não podias ter visto.

– Vi-o, e era o Frederico!

D. Laura soltou uma risada.

– Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor é deixares-te disso!

O Garcia pensou:

– Um morto… Sim, ele está’ morto… e ele então materializou-se para aparecer-me… Não foi outra coisa!

No sábado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo:

– Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicação muito importante: sou médium vidente!

– Deveras? – exclamaram todos em coro.

– É o que lhes digo! Sábado passado, ao entrar em casa, encontrei no corredor uma pessoa que morreu em são Paulo.

– Conte-nos isso – ordenou o presidente do grupo – Você não teve medo?

– Eu? Nenhum! O espírito, sim, o espírito é que, pelos modos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir…

Fonte:
AZEVEDO, Artur de. Contos. Ed. Escala. Col. Grandes Obras.

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27 de janeiro de 2008 · 11:46

Mário de Andrade (Resuno e Análise: Contos Novos)

Retratando as vivências da classe média

Datado de 1947, o volume apresenta nove contos, sendo quatro (“Peru de Natal”, “Vestida de Preto”, “Frederico Paciência” e “No Tempo da Camisolinha”) escritos em 1ª pessoa e cinco (“O Ladrão”, “Primeiro de Maio”, “Atrás da Catedral de Ruão”, “O Poço” e Nélson”) escritos em 3ª pessoa.

Predomina nos contos a análise psicológica, chegando a estruturas refinadas e perfeitas dentro da modernidade a que se propõe, como é o caso de “Peru de Natal”.

Mário de Andrade, nos contos em 1ª pessoa, apresenta caráter autobiográfico. No período, influenciado pelas doutrinas psicanalíticas de Freud, deixa-se levar por certo complexo edipiano, de maneira a exaltar a figura da mãe-mártir perfeita e abominar a formação patriarcal da família. Ainda é lembrada (“Frederico Paciência”) certa tendência ao homossexualismo. Por trás da análise psicológica, o escritor mostra a vivência urbana, retirando seus personagens das camadas médias da sociedade paulistana.

Gênero literário

Contos de estrutura moderna, que acolhem as principais correntes ficcionistas que marcaram a Literatura Brasileira das décadas de 30 e 40. Mais do que os fatos exteriores, os relatos procuram registrar o fluxo de pensamento das personagens.

Contexto histórico-cultural

São Paulo, capital e interior, décadas de 20 a 40; processo de urbanização e industrialização (cidade); patriarcalismo X progressismo (ambiente rural).

Enredos:

1. “Vestida de preto“: Juca, em flash-back, recupera as primeiras experiências amorosas com sua prima Maria, bruscamente interrompidas por uma Tia Velha. A repressão associa-se à rejeição da prima, que o esnoba na adolescência. A prima se casa, descasa, e o convida para visitá-la. “Fantasticamente mulher”, sua aparição deixa Juca assustado.

2. “O ladrão“: Numa madrugada paulistana, um bairro operário é acordado por gritos de pega-ladrão. Num primeiro momento, marcado pela agitação, os moradores reagem com atitudes que vão do medo ao pânico e à histeria, anulados pela solidariedade com que se unem na perseguição ao ladrão. Num segundo momento, caracterizado pela serenidade e enleio poético, um pequeno grupo de moradores experimenta momentos de êxtase existencial. Os comportamentos se sucedem, numa linha que vai do instinto gregário ao esvaziamento trazido pela rotina.

3. “Primeiro de Maio“: Conflito de um jovem operário, identificado como “chapinha 35”, com o momento histórico do Estado Novo. 35 vê passar o Dia do Trabalho, experimentando reflexões e emoções que vão da felicidade matinal à amargura e desencanto vespertinos. Mesmo assim, acalenta a esperança de que, no futuro, haja liberdade democrática para que “sua” data seja comemorada sem repressão.

4. “Atrás da catedral de Ruão“: Relato dos obsessivos anseios sexuais de uma professora de francês, quarentona invicta, que procura hipocritamente dissimular seus impulsos carnais. Aplicação ficcional da psicanálise: decifração freudiana.

5. “O poço“: Joaquim Prestes, fazendeiro dividido entre o autoritarismo e o progressismo, é desafiado por um grupo de peões que se insubordinam, desrespeitando o mandonismo absurdo do patrão.

6. “Peru de Natal“: Juca exorciza a figura do pai, “o puro-sangue dos desmancha-prazeres”, proporcionando à família o que o velho, “acolchoado no medíocre”, sempre negara.

7. “Frederico Paciência“: Dois adolescentes envolvidos por uma amizade dúbia, de conotação homossexual, procuram encontrar justificativas para esse controvertido vínculo e se rebelam contra as convenções impostas pela sociedade.

8. “Nélson“: Registro do comportamento insólito de um homem sem nome. Num bar, um grupo de rapazes exercita seu “voyeurismo” pela curiosidade despertada pelo estranho sujeito: quatro relatos se acumulam, na tentativa de decifrar a identidade e a história de vida de uma pessoa que vive ilhada da sociedade, ruminando sua misantropia.

9. “Tempo de camisolinha“: Juca, posicionando-se novamente como personagem-narrador, evoca reminiscências da infância, especialmente do trauma que lhe causou o corte de seus longos cabelos cacheados. Reconcilia-se com a vida ao presentear um operário português com três estrelas-do-mar.

Foco narrativo de 1a pessoa

Centra-se no eixo de individualidade de Juca, protagonista-narrador. Por meio de evocação memorialista, em profunda introspecção, ele relembra a infância, a adolescência e o início de vida adulta.

Foco narrativo de 3a pessoa

Centra-se num eixo de referência social, de inspiração neo-realista. A denúncia de problemas sociais se alia à análise da problemática existencial das personagens.

Espaço

Integra-se de forma dinâmica nos conflitos das personagens. Por exemplo, em “O poço”, o frio cortante do vento de julho, no interior paulista, amplifica o tratamento desumano que o fazendeiro Joaquim Prestes dá a seus empregados.

Personagens

Nas nove narrativas, evidencia-se um profundo mergulho na realidade social e psíquica do homem brasileiro. Os quatro contos de cunho biográfico e memorialista, centrados em Juca, promovem uma “interiorização” de temas sociais e familiares. Já os com enunciação em terceira pessoa apresentam personagens cuja densidade psicológica procura expressar a relação conflituosa do homem com o mundo. Em contos como “Primeiro de Maio”, “Atrás da catedral de Ruão” e “Nélson”, os protagonistas não têm nome: isso é índice da reificação e da alienação que fragmentam a existência humana na sociedade contemporânea.

Fonte:
Digerati CEC 0004. CD Rom

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Camilo Castelo Branco (Resumo: Amor de Salvação)

Amor de Salvação é uma novela passional, considerada pela crítica uma das obras mais bem acabada do autor. A história relata lembranças que são contadas ao narrador pelo protagonista, em uma noite de Natal, após um reencontro entre os dois que não se viam há quase doze anos.

Afonso e Teodora foram prometidos um ao outro, por suas mães que eram amigas desde os tempos em que estudavam num convento. Após a morte da mãe, Teodora vai para um convento e tem como tutor seu tio, pai de Eleutério Romão. Teodora e Afonso estão sempre em contato aguardando o tempo certo para casarem. Afonso resolve estudar fora por dois anos. Teodora influenciada pela amiga Libana quer casar-se o mais rápido possível. A mãe de Afonso, D. Eulália, pede-lhe para aguardar. Mas com a saída de Libana do convento Teodora se desespera e resolve casar-se com seu primo, Eleutério, para libertar-se das grades do convento.

Eleutério era o oposto a beleza de Teodora, era rude e vestia-se de forma hilariante. Apesar da grande tentativa de seu tio, o padre Hilário, em ensinar-lhe a ler, nada conseguiu. Vencido pela incapacidade de seu sobrinho, Padre Hilário desistiu afirmando que somente através de uma fresta no cérebro, aberta a machado, seria possível tal façanha. Teodora viveu em pompas, trajes de sedas, cavalos, bailes, etc., mas nunca esquecera Afonso, enviava-lhe cartas de amor mas nunca obtivera resposta.

Afonso sofreu muito com a notícia do casamento de Teodora, pediu a mãe permissão para se ausentar de Portugal. Contava sempre com o apoio e o consolo das cartas de sua mãe e sua prima Mafalda, que o amava pacientemente. Após anos de amargura, sofrimento e luta contendo-se diante das cartas de Teodora, para não fugir aos ensinamentos religiosos aos quais sua mãe o educou, foi fulminado pela influencia do amigo José de Noronha que o incentivou a escrever à Teodora. Relutou mas não conseguiu. A tal carta foi cair nas mãos de Eleutério, leu mas nada entendeu. Pediu então a um amigo ajuda para interpretá-la. A carta acabou sendo rasgada por Fernão de Teive, dando a desculpa de serem grandes sandices, após junto com sua filha Mafalda, reconhecer as intenções do remetente, seu sobrinho Afonso de Teive. Não conformado Afonso parte ao encontro de Teodora. Eleutério quando os encontra juntos, pede-lhes explicações. Teodora responde-lhe que é uma mulher livre a partir daquele momento, e vai viver com Afonso. Passam momentos, ilusoriamente, felizes. Afonso abandona até a sua própria mãe para viver ardentemente esta paixão que sempre o consumiu. Sua mãe sempre afetuosa, apesar da grande tristeza, sustenta a vida luxuosa que Afonso tem ao lado de Teodora .

Afonso quando fica sabendo da morte de sua mãe, através de carta escrita por Mafalda, se desespera. Teodora tenta consolá-lo, mas ele sente em suas palavras ironia e sente nojo de tamanho fingimento. Procura isolar-se de Teodora e dos amigos. Durante este período, Tranqueira, velho criado da família, alerta-o sobre as intenções do amigo José de Noronha por Teodora. No início se revolta contra o criado, mas acaba escutando-o e passa a observá-los. Encontra umas cartas que confirmam as suspeitas. Certo dia os pega juntinhos com gestos de muita familiaridade. Aborrece-se pede para que Noronha saia de sua casa. Teodora dissimulada como sempre, tenta enganá-lo, mas ele atira-lhe as cartas. Teodora desmaia enquanto Tranqueira derruba Noronha na cisterna para vingar seu patrão.

Afonso passa alguns dias fora de casa, quando retorna encontra uma carta de Toedora informando os pertences que havia levado consigo. Apesar de traído sente saudade da encantadora Teodora. Vende tudo e parte para Paris atrás de um amor que o salve. Gasta tudo o que tem. Por fim, pede ao seu tio Fernão para comprar-lhe a casa onde viveram seus pais e avós, pois não queria ofender a memória de sua mãe que o havia pedido, em carta antes morrer que não a vendesse. Mafalda com seu coração generoso e cheio de amor pelo primo, pede a seu pai que o atenda, e este assim o faz mas, com a condição de que a casa continuaria sendo de Afonso. Afonso afunda-se cada vez mais em seus vícios e extravagâncias a ponto de querer suicidar-se. Tranqueira, que nunca o abandonou, percebeu sua intenção e disse-lhe severas palavras que o livraram de tamanha loucura. Mudou de vida, passou a trabalhar e a estudar com apoio de seu criado.

Fernão de Teive adoece, e prestes a morrer pede ao padre Joaquim que vá a Paris entregar a Afonso, os documentos de propriedade da casa a qual comprara, apenas com intuito de ajudar o sobrinho. Após a morte de Fernão, Mafalda sentindo-se sozinha, resolve viajar com o padre Joaquim para Paris com a objetivo de juntar-se as irmãs de caridade. Quando o padre Joaquim encontra Afonso e conta-lhe da morte do tio, este chora e corre ao encontro da prima que ficara em uma hospedaria.

Mafalda conta ao primo sua decisão, mas padre Joaquim pede-lhes, pelo amor de Deus, que ao invés disso, casem-se. Afonso aceitou de imediato e agradeceu à Deus por ter ouvido os pedidos de suas mães. Afonso e Mafalda voltaram para sua cidade, casaram-se, tiveram oito filhos e foram muito felizes. Apesar do título “Amor de Salvação” a novela relata em quase toda sua extensão, um “amor de perdição” entre Afonso de Teive e Teodora Palmira. Ao “amor de salvação”, Mafalda, são dedicadas somente as ultimas páginas do romance.

Fonte:
Sueli Rodrigues in Digerati. CEC 0004. CD Rom.

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Camilo Castelo Branco: (Resumo e Análise: Amor de Perdição)

Esse estudo foi apresentado na edição do livro vendida pelo jornal O Estado de São Paulo a seus assinantes.

Marco do Ultra-Romantismo português, Amor de Perdição, publicado em 1862, foi muito bem-recebido pelo público em seu lançamento.

A obra é considerada uma espécie de Romeu e Julieta lusitano. Camilo Castelo Branco pertence à Segunda fase do Romantismo português, chamada Ultra-Romantismo – corrente literária da segunda metade do século XIX que leva ao exagero os ideais românticos. Escreveu vários gêneros de novelas: satíricas, históricas e de suspense. Mas foram suas novelas passionais – como Amor de Perdição – que lhe deram maior projeção dentro da literatura portuguesa. Nesta novela passional, de temática romântica exemplar, o escritor levou às últimas conseqüências a idéias de que o sentimento deve sobrepor-se à vida e à razão.

O livro trata do amor impossível e discute a oposição entre a emoção e os limites impostos pela sociedade à realização da paixão. Sem conseguir o objeto da paixão, o herói romântico confirma seu destino trágico. Nele, o mesmo amor que redime resulta em morte, conforme antecipa o narrador-autor na introdução do livro, ao comentar o destino do seu herói: “Amou, perdeu-se e morreu amando”.

1. UMA NOVELA ULTRA-ROMÂNTICA.

Amor de Perdição é uma obra-prima do Ultra-Romantismo português. Tem um narrador em primeira pessoa, que não participa dos acontecimentos, mas conhece os fatos passados por “ouvir falar” e “por pesquisar em documentos”. Conta a história do amor impossível dos jovens Simão e Teresa, separados por rivalidades entre suas famílias – os Albuquerques e os Botelhos, moradores da cidade de Viseu, em Portugal, e inimigos por questões financeiras.

1a. A APOTEOSE DO SENTIMENTO.

O corregedor Domingos Botelho e sua mulher Rita Preciosa têm cinco filhos, entre eles Simão, que desde pequeno demonstra um temperamento explosivo e indolente, e Manuel, calmo e ponderado. O primeiro vai estudar em Coimbra depois de uma confusão doméstica, em que toma a defesa de um criado da família. Lá, adota os ideais igualitários da Revolução Francesa e acaba preso durante seis meses por badernas e arruaças. Quando sai da cadeia, volta a Viseu, onde conhece e se apaixona por Teresa, sua vizinha que tem 15 anos e é filha de uma família inimiga da sua. Com o objetivo de separar Simão e Teresa, o pai da moça ameaça mandá-la para o convento, enquanto Domingos Botelho envia Simão de volta a Coimbra. Uma velha mendiga faz o papel de pombo-correio do casal, levando as cartas trocadas entre os dois jovens apaixonados.

1b. A MUDANÇA DE SIMÃO.

Movido pelo amor a Teresa, Simão decide se regenerar e estudar muito. Nesse meio tempo, o irmão Manuel, que chegara a Coimbra, foge para a Espanha com uma açoriana casada. A irmã caçula de Simão – Ritinha – faz amizade com Teresa. O pai da heroína quer casá-la com o primo Baltasar Coutinho – ordem que a moça se nega a cumprir. As intenções do pai de sua amada fazem Simão retornar clandestinamente para Viseu, hospedando-se na casa do ferreiro João da Cruz, antigo conhecido da família Botelho. Simão combina encontrar-se às escondidas com Teresa no dia do aniversário da moça, mas o encontro é transferido porque Teresa é seguida.

1c. AMOR E MORTE.

Na data combinada, Simão vai ao encontro marcado levando consigo o ferreiro João da Cruz e outros amigos. Depara-se com Baltasar que, na companhia de alguns criados, fora até o local para matar Simão. Na briga, dois dos criados de Baltasar são mortos. Ferido, Simão convalesce na casa de João da Cruz. Teresa vai para um convento. Mariana, filha do ferreiro apaixonada por Simão, empresta a ele suas economias para que vá atrás de Teresa, dizendo que o dinheiro pertence à mãe do próprio Simão.
No dia previsto para que Teresa mude de convento, Simão decide raptá-la. Dá-se um novo confronto com Baltasar Coutinho, que leva um tiro na testa e morre.

Simão entrega-se à polícia e dispensa a ajuda da família para sair da cadeia.

Levado a julgamento, é condenado à forca. Enquanto isso, Mariana enlouquece de amor e a saúde de Teresa definha no convento. Na cadeia, Simão passa os dias lendo e escrevendo cartas. João da Cruz é assassinado pelo filho do criado de Baltasar Coutinho. Mariana, que estava na cidade do Porto, volta a Viseu para tomar posse da herança, confiada a Simão. Tardiamente, o pai de Simão pede que sua pena seja comutada em dez anos de prisão, mas o filho rejeita a ajuda paterna. Prefere o desterro para as Índias. Na data em que a nau dos condenados parte, Teresa morre no convento. Ao saber da morte de sua amada, Simão adoece, vindo a falecer no décimo dia de viagem. Quando seu corpo é jogado ao mar, Mariana que o havia acompanhado, lança-se da proa, suicidando-se abraçada à mortalha do amado.

O narrador-autor de Amor de Perdição conta fatos reais, romanceados a partir dos relatos de uma tia que o criou. Preocupa-se em transcrever documentos para dar autenticidade às aventuras que vai narrar. Essa preocupação do autor é um recurso romântico para mobilizar e envolver o leitor com a intenção de comovê-lo.

1d. CENÁRIO EM MOVIMENTO.

A novela passa em Portugal, no século XIX, fase final do absolutismo, quando a Corte portuguesa experimentava as conseqüências das invasões francesas determinadas por Napoleão. Em Amor de Perdição, o deslocamento das personagens para as cidades de Viseu, Coimbra e do Porto apenas reflete a complexidade das situações que as envolvem, não determinando os acontecimentos. Ainda assim, as referências às cidades permitem uma visão mais ampla da moral vigente e do provincianismo da sociedade portuguesa da época, na qual a tradição de familiar e a preocupação com a reputação prevalecem sobre o individualismo.

2. UM NARRADOR E VÁRIAS VOZES.

Camilo Castelo Branco narra sua história de maneira densa e ágil, intercalando, com maestria, a narração e os diálogos. Sem deixar de afirmar o caráter verídico dos fatos que descreve, o narrador-autor assume que se vale mais da memória do que da realidade dos fatos. Utiliza-se também, ao mesmo tempo, de inúmeros documentos para afastar dúvidas quanto à credibilidade do que descreve, posicionando-se como contador de fatos já ocorridos. “Já lá se vão cinqüenta e sete anos (…)”, diz a carta de tia Rita.

Ao relatar a forma como conseguiu os documentos para reconstituir “a triste história de meu tio paterno Simão Botelho”, o narrador está com o foco centrado na primeira pessoa. Assim que começa a descrever os fatos ocorridos a cada um dos personagens, torna-se um narrador em terceira pessoa.

2a. AMOR POR CORRESPONDÊNCIA.

As cartas trocadas entre os dois jovens protagonistas apaixonados, incluídas no livro, são um importante recurso retórico usado pelo escritor e que intensifica o teor passional e dramático da história.

Trazendo emoções e confissões de Simão e Teresa, os textos das cartas os transformam também em narradores. Amor de Perdição é, portanto, uma obra que possui múltiplas vozes narrativas.

Também se destaca na obra o personalismo do narrador-autor, que volta e meia interfere para julgar ou ponderar – mostrando comoção ou indignação, porém sem se alongar demais nas suas digressões a ponto de prejudicar a ação.

3. AÇÃO EM ORDEM CRONOLÓGICA.

Em Amor de Perdição, os acontecimentos se desenrolam de uma maneira bastante linear e em ordem cronológica, privilegiando a ação em vez da descrição. Exemplar no gênero novela passional, a obra tem uma única trama central – a infeliz história de amor entre Teresa e Simão, repleta de desavenças, infortúnios, crimes, mortes, fugas e tentativas de rapto -, em torno da qual se movimentam as demais personagens.

3a. UMA LINGUAGEM POPULAR. O próprio Castelo Branco justifica o sucesso de seu romance: “Rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas, a lhaneza de linguagem e o desartifício das locuções”. Essa explicação está incluída no prefácio da segunda edição da novela, desdenhada pelo autor, no início, por tê-la produzido em apenas 15 dias, no período em que ficou preso.

Embora tenha escrito febrilmente para sustentar a família e produzido, certa vez, quatro livros ao mesmo tempo, Camilo Castelo Branco manteve sempre o cuidado estilístico e a preocupação com a pureza da linguagem. Se, às personagens mais populares, emprestava uma fala viva e espontânea, aos protagonistas burgueses reservava uma retórica mais sentimental e trágica.

4. PERSONAGENS SEM CONTRADIÇÕES.

O mundo romântico é idealizado, povoado de personagens virtuosas e sem contradições. Nesse contexto, podem-se contrapor às regras sociais, mas são sempre guiadas por seus sentimentos. Amor de Perdição tem três personagens principais: Simão, Teresa e Mariana. Embora pertençam a classes sociais diferentes – Simão e Teresa são burgueses, enquanto Mariana é filha do camponês João da Cruz -, a distinção se perde porque o que vale, na novela e no romance romântico, é a nobreza das emoções, permitindo que sua firmeza de caráter sobressaia.

4a. SIMÃO ANTÔNIO BOTELHO: O HERÓI ROMÂNTICO.

Se muito do que é relatado em Amor de Perdição tem seu fundo de verdade – todos os Botelhos citados na narrativa são realmente parentes do autor por parte de pai -, o herói romântico é, confessadamente, enriquecido pela imaginação do autor. O Simão real, segundo um biógrafo, era pouco e um bagunceiro em Coimbra, até ser degredado para a Índia em 1807, sem que se tivessem mais notícias dele depois. Já o Simão de Camilo Castelo Branco ainda jovem tem ideais revolucionários, mostrados claramente quando ele se rebela contra a mentalidade escravocrata de sua família, cena descrita no primeiro capítulo.

Essencialmente romântico, e muito inspirado na vida do próprio autor, o herói tenta seguir a ordem estabelecida para ter o amor de Teresa, desejo que se mostra impossível. Sem obter resultado, Simão parte para uma espécie de extremismos emocionais, como a tentativa de rapto que culmina em mortes. Defensor das idéias liberais, tem nobreza de caráter. Tanto que se entrega à polícia depois de dar vazão ao seu lado colérico, quando mata Baltasar Coutinho.

4b. TERESA DE ALBUQUERQUE: A HEROÍNA ROMÂNTICA.

A frágil Teresa opõe-se firmemente ao destino que a família quer lhe impor Mas se vê obrigada a cumprir as ordens do pai, o dominador Tadeu de Albuquerque. Obstinada e apaixonada, luta para não se casar com o primo Baltasar Coutinho e troca cartas com Simão, na tentativa de acalmar a chama da paixão. Marginalizada e enclausurada num convento, reflete a fé na justiça divina e as injustiças cometidas em função dos preconceitos da época, que se interpunham entre ela e a felicidade não realizada.

4c. MARIANA: A AMANTE SILENCIOSA.

Mulher mais velha, de 24 anos, criada no campo, Mariana pertence a uma classe social mais popular. Dela o narrador diz ter “formas bonitas” e um rosto “belo e triste”, para realçar a grandeza de seu amor-renúncia. O desprendimento que mostra – mando Simão em silêncio e, por isso, ajudando-o a se aproximar da felicidade pela figura representada pela figura de Teresa – faz parte do ideário romântico. Abnegada e fiel, Mariana jamais diz uma palavra e controla obstinadamente seu ciúme. Na história de Camilo Castelo Branco, é a personagem que mais sofre no romance. Pode-se dizer que a obra existe uma tríade romântica – Simão, Mariana e Teresa. Os três nunca se realizam sentimentalmente e têm um final trágico.

4d. JOÃO DA CRUZ: O CAMPONÊS RÚSTICO.

Personagem popular, é um camponês que se transforma no protetor do jovem Simão quando este volta à cidade de Viseu, atrás de Teresa. A princípio, cuida do jovem em retribuição ao pai de Simão, que outrora o livrara de uma complicação judicial. Mas depois acaba gostando tanto de Simão a ponto de matar para defender o rapaz.

4e. BALTASAR COUTINHO: O BURGUÊS INTERESSEIRO.

É o primo de Teresa, rapaz sem moral e sem brios, que não ama a moça, mas está disposto a recorrer a quaisquer expedientes para vencer a disputa com Simão. Faz o contraponto com o herói, na medida em que ambos vêm de famílias abastadas. Mas enquanto Simão se move pelos mais nobres sentimento, Baltasar é norteado por intenções medíocres.

4f. TADEU DE ALBUQUERQUE: O AUTORITÁRIO.

É o pai de Teresa, que a todo momento toma o destino da moça nas mãos, sem respeitar seus sentimentos. Por uma rivalidade particular com a família de Simão, decide impedir a felicidade da filha, criando vários empecilhos para afastá-la de seu amor.

4g. MANUEL BOTELHO, O IRMÃO DESMIOLADO.

O jovem irmão de Simão – que inicialmente critica o protagonista por sua vida desordenada – envolve-se com uma mulher casada na época em que vai morar com Simão na cidade de Coimbra. Arrependido, confirma sua dependência familiar quando pede ajuda aos pais para devolver aos Açores a mulher casada com quem havia fugido.

As personagens do Romantismo vivem em conflito com a sociedade, que impõe limites à realização de seus desejos. No caso de Amor de Perdição, o obstáculo a ser superado é a família, tanto da de Teresa quanto a de Simão. As personagens do Realismo vivem em contradição consigo mesmas e coma sua visão do mundo.

5. AS NOVELAS CAMILIANAS.

Embora Camilo Castelo Branco classificasse suas obras como romances, os críticos literários referem-se a elas como novelas. A diferença essencial está no tratamento linear da narrativa, nas cenas sucessivas e na conclusão fechada. Os romances abordam um mundo multifacetado, com personagens mais complexas e contraditórias.

Nas novelas passionais do autor, o tema central é amor, exacerbação do sentimento que leva à ruptura com os padrões de comportamento e as regras sociais: a transgressão norteada pelos mais nobre dos sentimentos: a paixão que justifica toda a sorte de condutas, como o enlouquecimento – no caso de Mariana, a apaixonada que ama Simão em silêncio; a clausura – de Teresa, enviada para um convento pelo pai para afastá-la de seu amor; e a transformação de um homem de bem em criminoso – como o assassinato cometido por Simão. São histórias curtas que relatam, quase sempre, a luta entre o bem e o mal.

Em suas novelas passionais, Camilo Castelo Branco explora a contradição entre o eu – que quer guiar-se pelos sentimentos – e os limites sociais que tentam impedir a concretização desses sentimentos. Tudo isso passa num mundo cheio de personagens que são moldadas de forma maniqueísta, voltadas para o bem ou para o mal, sem se desviar de seus propósitos.

6. UM APAIXONADO DO CETICISMO.

Inscrito na segunda fase do Romantismo português – a corrente literária classificada de Ultra-Romantismo -, Camilo Castelo Branco opta pela abordagem dos sentimentos em vez de voltar-se para a questão do nacionalismo, uma característica que marcou vários autores na primeira fase do Romantismo em vários países europeus, inclusive Portugal. A grande interrogação de Camilo Castelo Branco é; até que ponto o homem pode se valer dos sentimentos para guiar sua existência?

O Romantismo surgiu na primeira metade do século XIX, condicionado pelo fenômeno de ascensão da burguesia, provocado pela Revolução Francesa e consolidado com as Revoluções Liberais de 1830 e 1848. É uma reação ao universalismo neoclássico, propondo uma literatura subjetiva e individualista.

O exagero desse individualismo, o tédio e o ceticismo diante da existência criam a sensação indefinida de insatisfação, a que os românticos davam o nome de “Mal do Século”. A dificuldade em distinguir o sonho da realidade; o nacionalismo e a valorização do passado; o desejo de reforma e o engajamento político caracterizam a literatura romântica. O romance romântico aborda a temática do amor nas suas formas mais exaltadas, acima do controle da razão e inevitavelmente ligada à morte, como se vê nesta obra de Camilo Castelo Branco.

7. OPOSIÇÃO AO REALISMO

Amor de Perdição, publicado em 1862, é anterior ao início do Realismo em Portugal, que só começa em 1865, com as polêmicas Conferências do Cassino Lisbonense e as discussões que redundaram na chamada Questão Coimbrã. Camilo opunha-se ao romance realista, julgando-o imoral. Criticava-o por retratar pessoas fúteis ou que premeditam crimes, que desorganizam famílias: padres que rompem o celibato e alterações sexuais. O escritor rejeitava esses temas em favor da apologia do sentimento. Sobre o Realismo, afirmou: “(…) Quero escrever romances para as pessoas lerem na sala, não nos quartos de banho. Quero escrever romances para que todas as pessoas da família possam ler: as moças mais jovens, as senhoras (…)”.

8. O ROMANTISMO EM PORTUGAL.

O Romantismo chega a Portugal no momento em que o país vivia uma das suas mais graves crises sociais e políticas. Dividido entre o absolutismo de Dom Miguel e o liberalismo de Dom Pedro IV – Dom Pedro I no Brasil -, a nação portuguesa se viu envolvida numa violenta guerra civil entre os anos de 1832 e 1834. Os liberais – defensores de uma monarquia constitucional – representavam os interesses da burguesa capitalista emergente contra as detentoras dos bens feudais, representado por Dom Miguel. A revolução romântica alimenta-se, em Portugal, dessa revolução social e política. Os primeiros escritores românticos portugueses – Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877) – participam ativamente da revolução liberal e, após sua vitória, em 1834, retornam do exílio para implantar em Portugal a nova literatura romântica.

8a. AS GERAÇÕES ROMÂNTICAS.

Costuma-se dividir o Romantismo português em três gerações. A primeira – entre 1825 e 1840 – caracteriza-se pela luta pelo liberalismo e pela libertação das amarras neoclássicas. Tem em Almeida Garrett e Alexandre Herculano seus principais representantes. Na Segunda geração – entre 1840 e 1860 -, prevalece o passionalismo e sobressai a figura ultra-romântica de Camilo Castelo Branco. Na terceira – de 1860 -, representada por Júlio Dinis (1869-1871), é marcada a fase de transição para o Realismo da década de 70.

VIDA E OBRA: O MAIS ROMÂNTICO DOS ROMÂNTICOS

A vida de Camilo Castelo Branco (1825-1890) parece Ter sido copiada de uma de suas novelas passionais. Aos dois anos fica órfão de mãe. Aos dez perde o pai. Criado por uma tia e pela irmã, recebe educação religiosa. Aos 16 anos, casa-se com Joaquina Pereira, de apenas 15. Desse primeiro casamento – logo esquecido – tem uma filha, que morre aos cinco anos. Entre os anos de 1843 e 1846, tenta, sem sucesso, formar-se em Medicina na cidade do Porto e de Coimbra.

Entretanto, parece mais inclinado à boêmia e ao escândalo. Em 1846, é preso por raptar a jovem Patrícia Emília, com quem tem outra filha. Em 1847, fica viúvo de Joaquina Pereira. Trava um duelo com um dos filhos de Maria Felicidade Brown, e passa a ter um caso com ela.

1. UMA SUCESSÃO DE TRAGÉDIAS.

Em 1850, conhece Ana Plácido, por quem se apaixona. Quando ela se casa com o brasileiro Pinheiro Alves, o autor entra para o Seminário do Porto, buscando refúgio na religião. Mantém, então, um escandaloso caso amoroso com a freira Isabel Cândida. Em 1859, Ana Plácido abandona o marido e vai viver com o escritor. Perseguidos pela justiça, os dois passam um ano da Cadeia da Relação, na cidade do Porto. Data desse período de encarceramento a redação de sua maior novela passional – Amor de Perdição -, inspirada na suas próprias desventuras e na peça Romeu e Julieta, do escritor inglês William Shakespeare. Com a publicação da novela, em 1862, o escritor alcança grande popularidade.

O casal muda-se para São Miguel de Seide. Camilo Castelo Branco, então, passa a escrever para sobreviver. O irônico Coração, Cabeça e Estômago (1862) e Amor de Salvação (1864) estão entre as melhores obras escritas nesse período. Vários episódios trágicos continuam a perseguir o escritor. Um deles é a loucura de seu filho Jorge. O outro, a cegueira que começa a se manifestar no autor em 1867, conseqüência de uma sífilis contraída na juventude e mal curada. Em 1890, Camilo Castelo Branco coloca um ponto-final em sua maior novela passional. Mata-se com um tiro de pistola.

Principais obras
Carlota Ângela (1858), Amor de Perdição (1862), Coração, Cabeça e Estômago (1862), Amor de Salvação (1864), A Queda dum Anjo (1866), A Doida do Candal (1867), Novelas do Minho (1875-77), Eusébio Macário (1879), A Corja (1880), A Brasileira de Prazins (1882)

Camilo Castelo Branco conquistou fama com a novela passional Amor de Perdição. Bem ao gosto romântico, a característica principal da novela passional é o seu tom trágico. As personagens estão sempre em luta contra terríveis obstáculos para alcançar a felicidade no amor. Normalmente, essa busca é frustrante. Mesmo quando os amantes ficam juntos, isso é conse-guido a custa de muito sofrimento. Os direitos do coração, freqüentemente, vão de encontro aos valores sociais e morais. Segundo o autor, Amor de Perdição foi escrito em 15 dias em 1861, quando ele estava preso na cadeia da Relação, na cidade do Porto, por ter-se envolvido em questões de adultério.

FICHA
Estilo: pertence à época romântica
Gênero: novela passional
Foco Narrativo: Embora na “Introdução” narrador e autor se confundam, os fatos são narrados em 3ª pessoa.
Tempo e Espaço: Portugal (Viseu, Coimbra e Porto), século 19.
Personagens: Simão Botelho, Teresa Albuquerque, Mariana, Baltasar, Domingos Botelho, Tadeu Albu-querque, João da Cruz, D. Rita Castelo Branco

Fonte:
Digerati CEC 0004. CD Rom

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Bernardo Guimarães (Resumo: A Escrava Isaura)

“O coração é livre; ninguém pode escravizá-lo, nem o próprio dono.”

Em uma magnífica fazenda, no município de Campos de Goitacases (RJ), morava Isaura, uma linda escrava de cor de marfim. Isaura era filha de uma bonita escrava que por não se sujeitar aos sórdidos desejos do senhor comendador Almeida (dono da casa) sofreu as mais terríveis privações. Esta escrava teve um caso com o feitor Miguel, que era um bom homem e não aceitou castigá-la como mandou o seu senhor, sendo Isaura fruto desse relacionamento. Isaura foi educada pela mulher do comendador, e era dotada de natural bondade e candura do coração além de saber ler, escrever, italiano, francês e piano. A mulher do comendador tinha desejo de libertar Isaura, porém não o fazia para conservá-la perto e assim ter companhia.

O Sr Almeida se aposenta, retirando-se para a corte e entrega a fazenda a seu filho Leôncio. Este era digno herdeiro de todos os maus instintos e devassidão do comendador. Casou-se por especulação. Nutre por Isaura o mais cego e violento amor. Ele chega à fazenda com sua mulher – Malvina – e seu cunhado – Henrique. Malvina era mulher dócil e tratava Isaura muito bem. Henrique era um filho rico, estudante de medicina, e também ficou tocado pela beleza de Isaura. Morre a mãe de Leôncio sem deixar testamento que libertasse Isaura.

Henrique rapidamente percebe as intenções de Leôncio para com Isaura. Temendo que ele traia sua irmã, adverte-o que não tolerará tal ato. Henrique se oferece como amante para Isaura e daria em troca sua liberdade. O jardineiro da fazenda, um ser disforme e abjetável, também se oferece como amante. Isaura não dá atenção a essas propostas, e diz nunca casar sem amor. Leôncio é avistado por Henrique e Malvina quando fazia semelhante proposta à Isaura. Malvina setencia: ou ela (Isaura) ou eu. No mesmo momento da calorosa discussão, aparece o pai de Isaura com o dinheiro suficiente, uma enorme quantia de 10 contos de réis, para comprar a liberdade dela conforme havia prometido o comendador Almeida. Leôncio não aceita o dinheiro e dá desculpas vazias.

Morre o pai de Leôncio e ele finge imensa tristeza por dias, o que o alija temporariamente de brigar com a mulher. Passado certo tempo, Malvina continua a pressão para que se libertá-se Isaura. Com as desculpas e adiamentos de Leôncio, ela decide voltar à casa do seu pai. A sua saída era caminho livre para os intentos indecentes de Leôncio. Como Isaura continuava a resistir, Leôncio ameaça com torturas. Miguel, sabendo do acontecido, decide fugir com Isaura para o Norte.

Chegando em Recife, a linda Veneza Americana, Isaura muda seu nome para Elvira e Miguel para Anselmo passando a morarem numa chácara no bairro de Santo Antônio. Álvaro era um moço rico, filho de uma distinta e opulente família, liberal, republicano e abolicionista extremado. Ele avista Isaura ao passear perto da sua chácara e a conhece, passando a visitá-la constantemente. Álvaro se utiliza de todos os meios para convencer Isaura a ir a um baile com ele. Isaura não queria ir para não enganar a sociedade e iludir o seu amante. Ela por diversas vezes tentou contar a Álvaro que se tratava de uma escrava fugida, mas não tinha coragem. Ela só aceita ir diante do argumento de que tanta reclusão estaria despertando a atenção da polícia. Isaura sente um mau presságio desse baile.

No baile, Isaura se destaca no meio de todas as mulheres devido a sua beleza e por tocar muito bem piano. Contudo, é reconhecida por Martinho – um estudante de sórdida ganância e espírito de cobiça – que havia guardado um anúncio de escravo fugido. Ele provoca um escândalo durante o baile e Isaura confessa diante de toda a sociedade se tratar de uma escrava. Álvaro, não obstante, defende-a e devido a sua influência a toma por fiador, sem deixar que ela caísse nas mãos imundas de Martinho. Este, sem conseguir levá-la, escreve para Leôncio informando que havia achado sua escrava.

Graças a valiosa intervenção de Álvaro, Miguel e Isaura continuam na sua chácara em Santo Antônio na espera das ações que ele havia prometido tomar. Isaura conta que fugiu para escapar do amor de um senhor libidinoso e cruel. Enquanto Álvaro se encontrava na chácara, Leôncio aparece para sua surpresa e exige levar Isaura. Leôncio encontrava-se munido de um mandado de prisão contra Miguel e guardas para levar sua escrava. A aparição é seguida de forte discussão e Álvaro avança contra Leôncio. A briga é cessada com a aparição de Isaura que se entrega ao seu senhor.

Isaura volta a fazenda onde fica na mais completa reclusão. Leôncio se reconciliara com Malvina, pois iria precisar do seu dinheiro. Miguel é ludibriado na cadeia e convencido
a tentar persuadir Isaura a se casar com Belchior, o jardineiro da fazenda, em troca da liberdade sua e da filha.

Isaura aceita o sacrifício pois estava sem forças e sem esperança. Leôncio já havia tomado todas as providências para o casamento, quando é informado que alguns cavalheiros chegaram. Pensando se tratar do vigário e do tabelião, mando-os entrar. É tomado de surpresa ao avistar Álvaro. Este tinha ido ao Rio de Janeiro e descobre com alguns comerciantes que Leôncio estava falido. Compra os seus créditos e fica dono de toda a dívida de Leôncio.

Álvaro afirma a Leôncio que nada mais o pertence, que toda a sua fazenda incluindo os escravos passavam a ser dele com a execução dos débitos. Isaura abraça Álvaro. Leôncio jura que nunca irá implorar a sua generosidade para abrandar a dívida. Ele ausenta-se da sala e se suicida.

Fonte:

Renato Lima
Digerati CEC 0004. (CDROM).

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Augusto Frederico Schmidt (1906 – 1965)

Augusto Frederico Schmidt, o “gordinho sinistro”, nasceu no Rio de Janeiro, a 18 de abril de 1906.

Filho de família abastada, Augusto fez seus primeiros estudos no colégio Champs Soleil, na Suíça.Voltou para o Rio de Janeiro em 1916, após a morte o pai, e foi estudar em um Colégio na Tijuca e, logo em seguida, no Colégio São José, dos irmãos marista. Lá, ficou pouco tempo, passando, em seguida, por diversas escolas, entre elas, o Grambery, de Juiz de Fora (MG), em cujo grêmio fez sua iniciação literária.

Em 1922, volta ao Rio de Janeiro e, sob influência de sua mãe, leu Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias. Também lia muito, em francês, escritores como Baudelaire, Maupassant, Flaubert e Daudet. Com a morte de sua mãe, Schimdt largou os estudos e dedicou-se ao comércio.

De 1924 a 1926, morou em São Paulo, ligando-se a Mário e Oswald de Andrade. Publicou seu primeiro livro, Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt, em 1928. Funda então uma editora e torna-se um dos grandes divulgadores do Modernismo e, depois, da literatura do Nordeste.Editou, entre outros, Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Gilberto Freyre e Jorge Amado. Em 1934, casou-se com Ieda Ovalle Lemos, sobrinha do compositor Jaime Ovalle.

Segundo entrevista de Décio de Almeida Prado à Folha de S.Paulo, Schimdt também foi um dos responsáveis pela viabilização da revista Clima junto à censura, pois quando a revista surge, em 1941, Décio afirmou que “a censura era fortíssima naquela época. Primeiro, era a dificuldade de ter a licença para publicar. No dia em que aprovaram a publicação de ”Clima”, negaram para umas 20 ou 30 outras revistas. Não se publicava nada, era sistemático. Recusavam até revista sobre padaria. O clube de cinema que fizemos também foi fechado. A aprovação de ”Clima” se deu por meio da influência de um primo do Antonio Candido que morava no Rio de Janeiro e tinha conhecidos. Se não me engano, a pessoa que influiu foi o poeta Augusto Frederico Schmidt, que era um sujeito rico ligado às pessoas poderosas. E era uma revista puramente literária.”

Em 1950, foi publicado em Madri o livro Três Poetas del Brasil, Carlos Drumond de Andrade, Manuel Bandeira e Augusto Schmidt. No ano seguinte, teve uma seleção de seus poemas traduzidos para o italiano.

Havendo dedicado-se não apenas à editora, tornou-se industrial e jornalista e, no governo Juscelino Kubitschek, chegou a exercer a função de representante do Brasil na Operação Pan-Americana, a APO, de onde surgiria o BID Banco Interamericano de Desenvolvimento.

A Operação Pan-Americana era, em outras palavras, responsável por pedir investimentos americanos para o desenvolvimento brasileiro. Juscelino e Schmidt defendiam a idéia de que se não fossem feitos os devidos investimentos, “o apelo comunista” tornaria-se “irresistível entre as massas famintas”.

JK usava Schmidt para driblar a crise em governo provocada pela volta da inflação. Schmidt era o responsável pela criação vário “fatos”, engendrados por sua imaginação. Alfredo Schmidt foi, sem sombra de dúvida, o mais influente homem do governo de JK e o escritor mais poderoso que o Brasil já teve.

O governo de JK era um governo de conciliação, embora submetido a fogo cerrado por parte da esquerda e da direita não-parlamentares. Nele, conviveram altos tecnocratas públicos que, anos depois, comandariam a economia durante o regime militar; grupos empresariais nacionais, que se articulavam por intermédio de Augusto Frederico Schmidt, provavelmente o maior lobista que o país conheceu; e uma aliança, ainda que conflitante, com a esquerda getulista, que JK conquistou pela maneira corajosa com que apoiou Vargas no fim e pela dobradinha com seu vice-presidente, Jango.

Tudo isso consolidado pelo mais amplo pacto fisiológico que o país havia conhecido até então. Em 1960, Schmidt teve uma destacada atuação como presidente do Conselho dos 21, na Conferência de Bogotá. Augusto Frederico Schmidt foi um excelente homem de negócios e um excelente poeta, porém, talvez tal combinação tenha lhe custado alguns desencantos, pois para muitos, escritores não devem nem enriquecer, nem subir na política.

Schmidt foi junto com Raquel de Queirós, um dos artífices do movimento militar de março de 1964 que depôs o governo constitucional de João Goulart. Escreveu muitos artigos contra Jango e Brizola. Vitorioso o movimento militar, Schmidt, passou a ser um defensor dos estudantes e operários presos, das universidades inválidas. Combateu os novos planos econômicos e financeiros, acusando-os de falta de grandeza para um país sedento de riqueza e progresso.

Schmidt era tão próximo dos mais altos círculos do poder no Brasil que chegou a pleitear, junto a seu amigo general Castelo Branco, um emprego de oficial administrativo. Schmidt, um homem cheio de contrastes, morreu a 8 de fevereiro de 1965, na mesma cidade em que nasceu: Rio de Janeiro.

Entre as obras mais importantes de Schmidt estão: Navio Perdido (1929), Pássaro Cego (1930), Aurora Lívida (1958), Babilônia (1959).

OBRAS

Poesia
Canto do Brasileiro – 1928
Cantos do Liberto – 1930
Navio Perdido – 1930
Pássaro Cego – 1930
Desaparição da Amada – 1931
Canto da Noite – 1934
Estrela Solitária – 1940
Mar Desconhecido – 1942
Fonte Invisível – 1949
Mensagem aos Poetas Novos – 1950
Ladainha do Mar – 1951
Morelli – 1953
Os Reis – 1953
Aurora Lívida – 1958
Babilônia – 1959
O Caminho do Frio – 1964
Ciclo de Moura – 1964
Sonetos – 1965

Autobiografia
O Galo Branco – 1948
As Florestas – 1959

Crônica
Paisagens e Seres – 1950
Prelúdio à Revolução – 1964

Fontes:
Dicionário Literário Brasileiro Ilustrado; Editora Saraiva; autor, Raimundo Menezes; 1969. Gaiola Aberta (Tempos de JK e Schmidt); Editora: Rocco; 1999 Folha de S.Paulo
http://www.revista.agulha.nom.br/
ROSCHEL, Renato. Augusto Frederico Schmidt. Disponível em
http://www.speculum.art.br/ , 03/03/2003

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Augusto Frederico Schmidt: Um poeta com faro (Alvaro Costa e Silva)

Biografia romanceada de Augusto Frederico Schmidt revela suas facetas de editor, político, empresário e botafoguense

Órfão de pais, o adolescente gordinho que sofria com os beliscões em suas nádegas – irritante brincadeira dos colegas de trabalho num armarinho no Centro do Rio – sonhava com o Beco das Carmelitas, quando passava de bonde diante daquele ”centro de amores venais”. Está na página 47 da biografia do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, Quem contará as pequenas histórias?, de Letícia Mey e Euda Alvim, que acaba de sair pela editora Globo: ”Deixou correr pela mente a idéia do pecado e castigo, por alguns momentos. Na rua de pequenas casas coloridas, com almofadas nas janelas, moravam mulheres que ‘faziam a vida’. A qualquer hora, do dia ou da noite, que se passasse por lá, havia meretrizes debruçadas sobre almofadas de cetim, esperando os clientes na janela. O encontro da noite anterior havia aguçado a imaginação do caixeiro adolescente. Sonhava com o amor; ter uma namorada parecia apenas uma quimera!”.

Principalmente na primeira parte do livro é assim: Schmidt pensa e, mais que isso, sonha muito. Essa liberdade é uma característica das biografias ditas romanceadas, maneira escolhida pelas autoras para contar a vida de seu personagem. Não deixa de ser um ato de ousadia – um tanto datada no tempo, mas ousadia -, pois as biografias feitas no Brasil, depois que Fernando Morais, Ruy Castro e alguns outros estabeleceram um paradigma para o gênero, passaram a adotar o estilo americano, que é calcado no jornalismo: exaustiva pesquisa, incontáveis entrevistas, apuração minuciosa dos fatos. Nada de sonho.

Fazer o biografado pensar não é proibido. Quando começou a publicar seus perfis nos anos 60, mais tarde identificados com o new journalism (o que quer que seja isso, já era praticado no Brasil desde a década de 40 por Joel Silveira), Gay Talese explicou a razão de saber exatamente o que estava pensando seu personagem naquele determinado momento: ”Eu perguntei a ele”. Acontece que Augusto Frederico Schmidt morreu há mais de 40 anos (no dia 8 de fevereiro de 1965). E nasceu há quase 100 (no próximo dia 18, completaria 99). Daí as dificuldades, que tornam o trabalho mais consistente à medida que Schmidt entra na idade adulta, e as pistas sobre sua vida e obra ficam mais fáceis de achar. Nessa busca, o famoso e esgotadíssimo livro de memórias do próprio Schmidt, Galo branco – inspirado na profética imagem bíblica -, foi fundamental.

Em parte pelo estilo de narrar de Letícia Mey e Euda Alvim – agradável e fluente -, e sobretudo pela trajetória do poeta – quem poderia imaginar que o garoto tímido e assaz beliscado tornar-se-ia o ghost-writer preferido de Juscelino Kubitschek? -, o livro vale. Tantas são as facetas de Schmidt, que o leitor pode escolher aquela que melhor lhe aprouver.

A de poeta está esquecida. Sua vasta produção, iniciada em 1928 com Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt e que teve seu ponto alto com Estrela solitária, de 1940, recebeu elogios de Manuel Bandeira: ”O poeta pagou pontualmente e com enormes juros a nossa letra de crédito quando publicou Canto do brasileiro…, Navio Perdido e Pássaro Cego. A respeito deste último livro escrevi algumas linhas em que procurei definir o que havia de novo, de pessoal e definitivo em seu estro: saudei-o como a voz necessária que vinha quebrar os clichês gastos do modernismo da primeira hora; que, aproveitando-lhe as lições, sabia superá-lo. Defendia-o contra os que lamentavam a recorrência dos grandes temas de sua poesia – os presságios, as ausências, a morte”.

A Schmidt Editora, fundada em 1930, é um marco. Um dos primeiros livros a sair do prelo, Maquiavel e o Brasil, é a estréia de Octávio de Faria, ainda estudante de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, no Rio, a quem o editor conhecera no Centro Dom Vital, de orientação católica. Jorge Amado também lá publicou seu primeiro romance, O país do carnaval. Outro exemplo do faro literário de Schmidt é um lenda no mercado editorial: de como ele, ao ler um relatório do desconhecido prefeito de Palmeiras dos Índios (AL), tal de Graciliano Ramos, desconfiou que ali tinha romancista. Dito e feito: pediu e recebeu os originais de Caetés, indo, no mesmo dia, para uma noitada na Lapa. Tempos depois, enlouquecido, não conseguia achar o texto em lugar nenhum. Um ano se passou, e admiradores de Graciliano, como Jorge Amado e José Américo de Almeida, cobravam a edição do livro. E imagine, lá nos confins, a aflição do novato. Até que um dia encontrou os originais esquecidos no bolso de uma capa de chuva. O livro saiu, mas a fama de editor bagunceiro e desorganizado ficou.

Mesmo assim, a Schmidt Editora ainda lançou, nada mais nada menos, que Casa Grande & senzala, de Gilberto Freyre; alguns best selles da época, como A mulher que fugiu de Gomorra, de José Geraldo Vieira, e João Miguel, de Rachel de Queiroz; e mais estréias: Oscarina, de Marques Rebelo, e Maleita, de Lúcio Cardoso. Na Coleção Azul (que deveria se chamar Coleção Verde), montou toda uma estante de autores ligados ao integralismo: Psicologia da revolução e Doutrina do sigma, ambos de Plínio Salgado; Raízes do integralismo, de Olbiano de Melo; Brasil integral, de Osvald Gouveia; Do liberalismo ao integralismo, de Olímpio Mourão, entre outros títulos e nomes hoje no total ostracismo, ao contrário da fama de fascista e reacionário que dali em diante iria acompanhar Schmidt – foi ele o primeiro ”gordinho sinistro”, muito antes de Delfim Netto.

Para dar mais munição a seus detratores, Augusto Frederico Schmidt ficou rico – crime que, como se sabe, é imperdoável no Brasil, mesmo que se tenha ganhado dinheiro com trabalho e inteligência. Sua primeira empresa de sucesso foi a Metrópole Seguros. Influenciado pelo estilo de vida americano, inicia outras empresas em ramos distintos, com os sócios mais variados. É assim que funda a Panair, pioneira em vôos internacionais no país, e a primeira rede de supermercados, Disco, que abriu suas portas no bairro de Copacabana em 1952. À época, as pessoas ainda adquiriam gêneros alimentícios em armazéns, quitandas e feiras livres. Em pouco tempo, Schmidt juntou uma fortuna razoável, que lhe permitiu, ao casar, adquirir um terreno na rua Paula Freitas, esquina com a praia de Copacabana. No lugar, ergueu um prédio em cuja cobertura viveu com sua amada Yêda.

Como assessor de Juscelino Kubitschek – que o indicou para assumir o comando da Operação Pan-Americana -, o poeta escreveu o discurso em que cunhou a famosa frase ”Deus me poupou do sentimento do medo”. Mas, cá para este departamento, a maior contribuição do carioca Schmidt, fora das lides literárias, foi ter vestido a gloriosa camisa do Botafogo. Foi ele o grande articulador da fusão entre o clube de regatas e o de futebol, em 8 de dezembro de 1942, tendo ocupado durante três anos a vice-presidência. O galo branco não seria, na verdade, preto e branco?

Fonte:
http://www.revista.agulha.nom.br/

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Augusto Frederico Schmidt (Poesias)

Retrato do Desconhecido

Ele tinha uns ombros estreitos, e a sua voz era tímida,
Voz de um homem perdido no mundo,
Voz de quem foi abandonado pelas esperanças,
Voz que não manda nunca,
Voz que não pergunta,
Voz que não chama,
Voz de obediência e de resposta,
Voz de queixa, nascida das amarguras íntimas,
Dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas.

Há vozes que aclaram o ser,
Macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,
Vozes de sonho, de maldição e de doçura.
Os ombros eram estreitos,
Ombros humildes que não conhecem as horas de fogo do
amor inconfundível,

Ombros de quem não sabe caminhar,
Ombros de quem não desdenha nem luta,
Ombros de pobre, de quem se esconde,
Ombros tristes como os cabelos de uma criança morta,
Ombros sem sol, sem força, ombros tímidos,
De quem teme a estrada e o destino
De quem não triunfará na luta inútil do mundo:
Ombros nascidos para o descanso das tábuas de um caixão,
Ombros de quem é sempre um Desconhecido,
De quem não tem casa, nem Natal, nem festas;
Ombros de reza de condenado,
E de quem ama, na tristeza, a sombra das madrugadas;
Ombros cuja contemplação provoca as últimas lágrimas.

Os seus pés e as suas mãos acompanhavam os ombros
num mesmo ritmo.
Mãos sem luz, mãos que levam à boca o alimento
sem substância,
Mãos acostumadas aos trabalhos indolentes,
Mãos sem alegria e sem o martírio do trabalho.
Mãos que nunca afagaram uma criança,
Mãos que nunca semearam,
Mãos que não colheram uma flor.
Os pés, iguais às mãos
— Pés sem energia e sem direção,
Pés de indeciso, pés que procuram as sombras e o esquecimento,
Pés que não brincaram, pés que não correram.

No entanto os olhos eram olhos diferentes.
Não direi, não terei a delicadeza precisa na expressão
para traduzir o seu olhar.
Não saberei dizer da doçura e da infância daqueles olhos,
Em que havia hinos matinais e uma inocência, uma tranqüilidade,
um repouso de mãos maternas.

Não poderei descrever aquele olhar,
Em que a Poesia estava dormindo,
Em que a inocência se confundia com a santidade.
Não poderei dizer a música daquele olhar que me surpreendeu um dia,

Que se abriram diante de mim como um abrigo,
E que me trouxe de repente os dias mortos,
Em que me descobri como outrora,
Livre e limpo, como no princípio do mundo,
Envolvido na suavidade dos primeiros balanços,
Sentindo o perfume e o canto das horas primeiras!
Não direi do seu olhar!

Não direi do seu olhar!
Não direi da sua expressão de repouso!
Ainda não sei se era dele esse olhar,
Ou se nasceu de mim mesmo, num rápido instante de paz
e de libertação!

Quando Eu Morrer

Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo,
A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas.
Como as envolve agora neste instante.
O vento fresco dobrará as árvores esguias
E levantará as nuvens de poesia nas estradas…

Quando eu morrer as águas claras dos rios rolarão ainda,
Rolarão sempre, alvas de espuma
Quando eu morrer as estrelas não cessarão de acender-se
no lindo céu noturno,
E nos vergéis onde os pássaros cantam as frutas
continuarão a ser doces e boas.

Quando eu morrer os homens continuarão sempre os mesmos.
E hão de esquecer-se do meu caminho silencioso entre eles,
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão.
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer a humanidade continuará a mesma.
Porque nada sou, nada conto e nada tenho.
Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.

Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
Quando eu morrer…”

O Grande Momento

A varanda era batida pelos ventos do mar
As árvores tinham flores que desciam para a
morte, com a lentidão das lágrimas.
Veleiros seguiam para crepúsculos com as
asas cansadas e brancas se despedindo,
O tempo fugia com uma doçura jamais de
novo experimentada
Mas o grande momentoera quando os meus
olhos conseguiam
entrar pela noite fresca dos seus olhos…

Elegia

Entrou na sala e ficou em pé tocando piano,
Sua mão pequena batia no teclado
duramente.
Lembro que estava de vermelho
Lembro que tinha nas tranças finas uma fita preta
Lembro que era de tarde
E entrava pelas janelas abertas o vento do
mar.
Não lembro se tinha flores perto dela
Mas nascia um perfume do seu corpo.

Que amor o meu!

Noiva

Noiva, acaso és, a real afogada?
És a louca do rio, noiva?
Se não és, por que cantas assim
E te enfeitas de flores?
Se não és, noiva, por que morres?
Por que levam teu corpo branco
Para tão longe – noiva – para tão longe?
Se tu és a que eu copnheci menina
Por que não estás dormindo sobre o meu
peito,
sossegada, noiva

Quando

Quando repousarás em mim como a poesia
nos grandes poetas
Como a pureza na alma dos santos
Como os pássaros nas torres das igrejas?
Quando repousará o teu amor no meu amor?
Quando penetrará tua luz nos meus olhos
vazios,
Como o sol nos pântanos
Como o sorriso nos tristes

Como o Cristo no mundo em pecado?

Poema

Encontraremos o amor depois que um de nós abandonar
os brinquedos.
Encontraremos o amor depois que nos tivermos despedido
E caminharmos separados pelos caminhos.

Então ele passará por nós,
E terá a figura de um velho trôpego,
Ou mesmo de um cão abandonadoo,

O amor é uma iluminação, e está em nós, contido em nós,
E são sinais indiferentes e próximos que os acordam do
seu sono subitamente.

Lembrança

Todos os que estão neste cinema agora,
Neste cinema alegre,
Um dia hão de morrer também:
Nos cabides as roupas dos mortos
penderão tristemente.

Os olhos de todos os que assistem
as fitas agora,
Se fecharão um dia trágica e dolorosamente.
E todos os homens medíocres
se elevarão no mistério doloroso da morte.
Todos um dia partirão —
mesmo os que têm mais apego às coisas do mundo:
Os abastados e risonhos
Os estáveis na vida
Os namorados felizes
As crianças que procuram compreender —
Todos hão de derramar a última lágrima.

No entanto parece que os freqüentadores deste cinema
Estão perfeitamente deslembrados de que terão de morrer
— Porque em toda a sala escura há um grande ritmo de esquecimento e equilíbrio.

Soneto a Camões

As tuas mágoas de amor, teus sentimentos
Diante das leis que regem nossas vidas,
Desses fados que dão e logo tiram,
E a que estamos escravos e sujeitos.

As tuas dores de amar sem ser amado,
De procurar um bem que não se alcança,
E no canto clamar desesperado
Pelo que nunca vem quando se busca.

Poeta de enamoradas impossíveis
E que num negro amor desalteraste
Essa sede de amar dura e terrível,

As tuas mágoas de amor, tuas fundas queixas,
Como uma fonte ficarão chorando
Dentro da língua que tornaste eterna

A chuva nos cabelos

A chuva molhava os seus cabelos,
A chuva descia sobre os seus cabelos
Voluptuosamente.
A chuva chorava sobre os seus cabelos,
Macios,
A chuva penetrava nos seus cabelos,
Profundamente,
Até as raízes!

Ela era uma árvore,
Uma árvore molhada
E coberta de flores.

Apocalipse

As velas estão abertas como luzes.
As ondas crespas cantam porque o vento as afogou.
As estrelas estão dependuradas no céu e oscilam.
Nós as veremos descer ao mar como lágrimas.
As estrelas frias se desprenderão do céu
E ficarão boiando, as mãos brancas inertes, sobre as águas frias.
As estrelas serão arrastadas pelas correntes boiando nas
[águas imensas.
Seus olhos estarão fechados docemente
E seus seios se elevarão gelados e enormes
Sobre o escuro do tempo.

Ouço uma fonte

Ouço uma fonte
É uma fonte noturna
Jorrando.
É uma fonte perdida
No frio.

É uma fonte invisível.
É um soluço incessante,
Molhado, cantando.

É uma voz lívida.
É uma voz caindo
Na noite densa
E áspera.

É uma voz que não chama.
É uma voz nua.
É uma voz fria.
É uma voz sozinha.

É a mesma voz.
É a mesma queixa.
É a mesma angústia,
Sempre inconsolável.

É uma fonte invisível,
Ferindo o silêncio,
Gelada jorrando,
Perdida na noite.
É a vida caindo
No tempo!

Pequena igreja

Eu queria louvar-te, pequena e humilde igreja
Desta cidadezinha que está morrendo.
Eu queria agradecer-te a compreensão que me deste
Das coisas humildes e eternas.

Eu queria saber cantar a tua tranqüilidade
E a tua pura beleza,
Ó igreja da roça, adormecida diante do jardim cheio de rosas!
Ó pequena casa de Jesus Cristo, irmã das outras casas solenes
[e graves.
Escondida e modesta, com as tuas torres e os teus sinos
Que sabem encher o ar matinal com um tão doce apelo,
E no instante vesperal lembram que é hora de dormir para a
[grande família dos passarinhos inquietos,
Dos passarinhos que tumultuam o pobre jardim cheio de flores!

Soneto cigano

Lembra-me sempre a viagem, a grande, a estranha viagem.
As mulheres brincavam e riam ao pé das enormes fogueiras.
Rostos da cor do bronze, olhares misteriosos,
E mãos escuras para todos os misteres.

Lembra-me sempre a viagem, as estradas perdidas
Por onde seguíamos atrás das auroras ingênuas
Que corriam cantando, e atrás das horas fugidias
— Horas que pareciam dançar ao ruído de pandeiros.

Era tudo uma grande inocência e descuido.
O futuro sombrio, as ambições, os medos,
Não me lembro de os ter sentido nesses tempos.

Colhíamos, então, flores e frutos nos caminhos,
Amávamos o amor nas morenas mulheres,
E adormecíamos à mercê dos ventos e das chuvas.

V (Sonetos)

Noites, estranhas noites, doces noites!
A grande rua, lampiões distantes,
Cães latindo bem longe, muito longe.
O andar de um vulto tardo, raramente.

Noites, estranhas noites, doces noites!
Vozes falando, velhas vozes conhecidas.
A grande casa; o tanque em que uma cobra,
Enrolada na bica, um dia apareceu.

A jaqueira de doces frutos, moles, grandes.
As grades do jardim. Os canteiros, as flores.
A felicidade inconsciente, a inconsciência feliz.

Tudo passou. Estão mudas as vozes para sempre.
A casa é outra já, são outros os canteiros e as flores
Só eu sou o mesmo, ainda: não mudei!

Vazio

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Soneto XLIX

Morrer, Senhor, de súbito, não quero!
Morrer como quem parte lentamente
Vendo o mundo perder-se pouco a pouco
E com o mundo as imagens da memória.

Morrer sabendo próxima e implacável
A hora de deixar o doce efêmero.
Morrer o olhar voltado para a altura
Para a Face de Deus, ardente e pura.

Morrer como quem vai se despedindo
A fixar as paisagens mais antigas
E os seres mais longínquos, já partidos.

Morrer levando a vida já vivida!
Morrer maduro, e não qual fruto verde
Por violência dos galhos arrancados.

Fontes:
A poesia fluminense no século XX. RJ/DF: FBN/Imago/UMC, 1998, RJ/DF .
Nova Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964
http://www.revista.agulha.nom.br/

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Os Estatutos do Homem (Thiago de Melo)

Os estatutos do homem
(ato Institucional Permanente)

Artigo I – Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II – Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III – Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abri-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV – Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único: O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V – Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com o seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI – Fica estabelecida, durante séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII – Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII – Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX – Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X – Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI – Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã

Artigo XII – Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII – Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso o grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final: Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964
Melo, Thiago de. Faz escuro mas eu canto

Fonte:
SANTOS, Eberth. MOURA, Josana de. Literatura e Filosofia (Palavra em Ação). 2.ed. Uberlândia: Ed. Claranto, 2004.

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Concursos de Trovas em Andamento

XVIII CONCURSO NACIONAL E INT. DE TROVAS DE PINDAMONHANGABA
Biblioteca Pública Municipal “Ver. Rômulo Campos D’Arace”
Ladeira Barão de Pindamonhangaba, s/n – Bosque da Princesa
CEP: 12401-320 – Pindamonhangaba-SP
Temas:
Nível Regional: para trovadores domiciliados na cidade de Pindamonhangaba, demais cidades do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Região Serrana (Mantiqueira, no Estado de São Paulo) – SEDUÇÃO.
Nível Nacional/Internacional: para os trovadores domiciliados nas demais cidades do Brasil e Exterior – APATIA.
XII Juventrova (para estudantes) – FICAR
Para todos os temas valem palavras cognatas.
Premiação = Dia: 05 de Julho de 2008.
Máximo de 3 trovas (líricas/filosóficas) por concorrente, datilografando acima da trova, o tema a que concorre.
Serão consideradas as trovas recebidas até 29 de fevereiro de 2008.
Sistema de envelopes.
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XLVIII JOGOS FLORAIS DE NOVA FRIBURGO
Temas de âmbito nacional:
“Escolha” (lírico/filosófica) “Feira” (humorística)
A/C Nádia Huguenin, Rua Emilia Barroso, 128-Cônego
Cep 28.621-290 – Nova Friburgo/RJ
Âmbito Municipal (apenas para Nova Friburgo) = Temas:
“Feitiço” (lírico/filosóficas) e “Cabelo” (humorísticas)
A/C João Freire Filho, Rua Parintins, 200, c/8, Cep 21.321-190 = RJ
ATENÇÃO: haverá ainda um concurso paralelo, tema: “Vinda de D.João VI e suas realizações no Brasil”. Enviar para o mesmo endereço dos concursos nacionais. Todos os concursos são pelo “Sistema de envelopes”, máximo de 03 trovas por tema. Prazo de chegada: até 29/02.2008.
________________________________________
XIV JOGOS FLORAIS DE CURITIBA – PR
Temas: Âmbito Nacional = MISTÉRIO (lírico/filosófica), PIPOCA (humor)
Enviar para Rua Itupava, 791-Alto da Rua XV, Cep 80.040-000, Curitiba.
Âmbito Estadual = ABRAÇO(lírico/filosófica), BATIDA (humor)
Enviar para Rua Graúna, 410-apto. 41, Cep 04513-002, São Paulo-SP
Máximo de 03 trovas por tema. Prazo de recebimento: até 29/02/2008
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III JOGOS FLORAIS DO BALNEÁRIO CAMBORIÚ
A /C de Gislaine Canales
Rua: 2700 – Nº 71 Ap. 302-Edifício Acácias – Bloco B – Centro
Cep 88.330-374 – Balneário Camboriú – SC
Tema nacional: LÁGRIMA
Tema estadual (SC): SORRISO
Países de língua espanhola: SONRISA
Máximo 3 (Lírico/Filosóficas)
Valerão trovas recebidas até 31-05-2008
Outras informações: gislainecanales@uol.com.br
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XXXVIII JOGOS FLORAIS DE NITERÓI 2008
Caixa Postal 100.518, CEP 24001-970 – Niterói – RJ
Temas: Estadual (só trovadores RJ) = CORTINA
Nacional/Internacional = VARANDA
Valem palavras derivadas.
Máximo de 03 trovas (líricas/filosóficas)
Período para remessa: 01/02/08 a 31/05/08
Endereço para remessa:
Festa de premiação marcada para 29 e 30 de novembro 2008.
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III JOGOS FLORAIS DE CAMBUCI
A/C Almir Pinto de Azevedo
Praça da Bandeira, 79, Cambuci-RJ, Cep 28.430-000
Âmbito nacional/internacional: TEMA LIVRE = apenas uma trova.
Sistema de envelopes. Valem as trovas chegadas até 31.05.2008
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III JOGOS FLORAIS DE CANTAGALO
A/C Ruth Farah Nacif Lutterback
Rua Dr. Nagib Jorge Farah, 204, Cantagalo-RJ, Cep 28.500-000
Temas: âmbito nacional=INVERNO ; âmbito estadual (RJ)=VERÃO
Máximo de duas trovas por autor, trovas lírico/filosóficas.
Valem trovas chegadas até 31.05.2008 = Sistema de envelopes.
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XXVI CONCURSO DE TROVAS DE TAUBATÉ
A/C Angélica Villela Santos
Rua Francisco Xavier de Assis, 36, Taubaté-SP, Cep 12.060-460
Temas= Nacional/Intern.=BRASIL; Para o Vale do Paraíba, Região Mantiqueira e Litoral Norte=TROPEIRO.
Máximo: duas trovas por autor. Prazo para recebimento: até 30.06.2008.
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II CONCURSO NACIONAL DE TROVAS DE SAQUAREMA
A/C de João Costa
Rua Pereira, 331 – Bacaxá, Cep 28.993-000 – Saquarema – RJ
Tema único: Gaivota (s) = Duas (2) trovas por concorrente
Sistema de envelope = Prazo: Até 30 de abril de 2008
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I CONCURSO ESTADUAL / NACIONAL DE TROVAS DO SITE TROVA UNE VERSOS
REGULAMENTO
1. Para o concurso TROVA é a forma poética composta de quatro versos de sete sílabas métricas cada um deles, com ocorrência de rimas do 1º verso com o 3º e do 2º com o 4º, tendo o conjunto sentido completo;
2. As TROVAS, em nº de 02(duas), LÍRICAS OU FILOSÓFICAS, serão enviadas entre 01.12.07 a 29.02.08, EXCLUSIVAMENTE PELA INTERNET para trovauneversos@gmail.com; devendo ser inéditas e de autoria do poeta ou poetisa concorrente;
3. Serão acolhidas TROVAS somente em língua portuguesa, o que não exclui os trovadores de outros países, desde que se sirvam dessa língua;
4. Do e-mail deverão constar obrigatoriamente:
– Nome do autor (completo); – Endereço postal (completo);
– Nº do telefone (se houver); – E-mail;
– TROVAS (duas).
5. As TROVAS terão por temas: LENDA(S) – concorrentes domiciliados no estado do Rio Grande do Norte; SONHO(S) – à exceção do Rio Grande do Norte, para os demais estados do Brasil
e outros países;
6. A Comissão Julgadora escolherá em cada segmento 10 (dez) trovas, assim distribuídas:
– 1º, 2º e 3º lugares – Trovas Campeãs (Ouro / Prata / Bronze);
– 4º, 5º e 6º lugares – (Menções Honrosas);
– 7º, 8º, 9º e 10º lugares – (Menções Especiais).
7. Aos vencedores serão concedidos DIPLOMAS de acordo com a classificação;
8. O site TROVA UNE VERSOS anunciará o resultado em 20.04.08;
9. Trovas que estiverem em desacordo com os Artigos deste Regulamento serão excluídas automaticamente do Concurso e a remessa de mais de 02(duas) trovas resultará na desclassificação do(a) participante;
10) Pela simples remessa das TROVAS o(a) concorrente aceita as normas do presente regulamento;
11) Outros informes serão obtidos pelo site: http://www.trovauneversos.hpgvip.com.br (na seção Informativo); dúvidas pelo e-mail: trovauneversos@gmail.com .

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Fonte:
http://www.falandodetrova.com.br/v5/andamento

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Concurso de Trovas (Sistema de Envelopes)

No Brasil o sistema adotado desde muito tempo é o chamado “sistema de envelopes”, que consiste em:

– datilografar/digitar a Trova na face externa de um pequeno envelope de aproximadamente 7/11 cm, tendo, acima da Trova, o Tema a que concorre.

– colocar dentro deste envelope um papel com: nome e endereço completos, mais a assinatura. E outros dados de identificação que achar necessários.

– fechar esse envelope (colar) para remessa.

– colocar o(s) envelope(s) com as Trovas em outro, maior, para a remessa, endereçado ao Concurso. Esse envelope não deve ter nenhuma identificação do remetente. Se não houver instruções específicas, usar como remetente “Luiz Otávio” e repetir o endereço do próprio Concurso.

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Alberto da Cunha Melo (1942 – 2007)

por Marcelo Pereira do Caderno C / JC

Uma das principais vozes poéticas da literatura brasileira contemporânea, o poeta Alberto da Cunha Melo faleceu no sábado (13/10), às 19h35, aos 65 anos, na UTI do Hospital Jayme da Fonte, de falência múltipla dos órgãos em decorrência de complicações pós-operatórias do transplante de fígado ao qual foi submetido no dia 24 de agosto passado. Seu corpo está sendo velado na Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), em Santo Amaro. Alberto deixa quatro filhos, sendo dois do primeiro casamento e dois da viúva Cláudia Cordeiro.

Expoente da chamada Geração 65, em julho passado, Alberto da Cunha Melo foi agraciado com o Prêmio Poesia 2007, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro O cão dos olhos amarelos & Outros poemas inéditos ( A Girafa Editora). Não chegou a ir receber a láurea em virtude do seu estado de saúde. O escritor vinha lutando contra um câncer no fígado, antes de se submeter ao transplante.

“Alberto é Pernambuco, um grande nome pernambucano da poesia nacional, filho ilustre, amigo leal e que lutou para a derrubada do muro que separa os homens e restitui a justiça e a cidadania”, disse o imortal da Academia Pernambucana de Letras e presidente da Cepe, poeta Flávio Chaves, de quem Alberto era assessor especial.

José Alberto Tavares da Cunha Melo nasceu em Jaboatão, em 1942 e tinha orgulho de se dizer neto e filho de poetas. Era sociólogo e jornalista, tendo sido o editor da página Suplemento Cultural do Jornal do Commercio, nos anos 80, abrindo espaços para jovens poetas, principalmente do movimento de escritores independentes, e críticos. Ultimamente, assinava a coluna Marco Zero, na revista Continente Multicultural (editada pela Cepe). Seu primeiro livro – Circulo cósmico – foi publicado em 1966, ano em que o historiador Tadeu Rocha rotulava de Geração de 65 o grupo de poetas surgidos das páginas do Diário de Pernambuco. Portanto, completa, neste ano de 2006, 40 anos de trabalho poético ininterruptos.

Alberto da Cunha Melo deixa uma obra vasta e consistente. São 16 livros, 13 de poesia, e participou de 26 antologias, duas delas internacionais. Suas obras, por ordem de edição são as seguintes: Círculo Cósmico ( Recife: UFPE, separata da revista Estudos Universitários, 1966.); Oração pelo Poema. Recife: UFPE, separata da revista Estudos Universitários, 1969.; a Publicação do Corpo (Quíntuplo, Aquário/UM, 1974.), A Noite da Longa Aprendizagem. Notas a Margem do Trabalho Poético. Recife, 1978-2000, v. I, II, III, IV, V; inédito, . Dez Poemas Políticos (Recife, Pirata, 1979), Noticiário ( Recife: Edições Pirata, 1979), Poemas a Mão Livre (Edições Pirata, 1981), Soma dos Sumos (Rio de Janeiro: José Olympio, 1983), Poemas Anteriores (Recife: Bagaço, 1989), Clau (Recife: Imprensa Universitária da UFRPE, 1992), Carne de Terceira com Poemas à Mão Livre (Recife: Bagaço, 1996.), Yacala (Recife: Gráfica Olinda, 1999), Meditação sob os Lajedos (Natal/Recife: EDUFRN, 2002), Dois caminhos e uma oração (São Paulo: A Girafa, 2003) e O cão de olhos amarelos & Outros poemas inéditos (São Paulo: A Girafa, 2006).

Entre as principais participações em antologia, participou de Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, (Geração Editorial – SP), organizada por José Nêumanne Pinto, e 100 Anos de Poesia. Um panorama da poesia brasileira no século XX, (O Verso/ MinC), organizada por Claufe Rodrigues e Alexandra Maia, e de Pernambuco, Terra da Poesia (IMC/Escrituras), organizada por Antônio Campos e Cláudia Cordeiro.

Na década de 1990 seus poemas saem das fronteiras de Pernambuco e ganham o Brasil e o exterior com o livro Yacala, lançado na Universidade de Évora, em Portugal, com prefácio do crítico literário e professor da Universidade de São Paulo Alfredo Bosi. Em 2003, em entrevista ao Jornal da USP, Bosi ratifica seu entusiasmo pela poesia de Cunha Melo e o considera o principal nome que vem despontando no cenário poético nacional.

O livro Meditação sob os Lajedos, em Dois Caminhos e uma Oração, foi considerado um dos dez melhores livros publicados no Brasil em 2002, por um júri de 400 especialistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em sua primeira versão 2003.

Fonte:
União Brasileira dos Escritores

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Monteiro Lobato (1882 – 1948)

1882 – 1904
Primeiras letras: Lobato estudante

José Bento Monteiro Lobato estreou no mundo das letras com pequenos contos para os jornais estudantis dos colégios Kennedy e Paulista, que freqüentou em Taubaté, cidade do Vale do Paraíba onde nasceu, em 18 de abril de 1882.

No curso de Direito da Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, dividiu-se entre suas principais paixões: escrever e desenhar. Colaborou em publicações dos alunos, vencendo um concurso literário promovido em 1904 pelo Centro Acadêmico XI de Agosto. Morou na república estudantil do Minarete, liderou o grupo de colegas que formou o Cenáculo e mandou artigos para um jornalzinho de Pindamonhangaba, que tinha como título o mesmo nome daquela moradia de estudantes. Nessa fase de sua formação, Lobato realizou as leituras básicas e entrou em contato com a obra do filósofo alemão Nietzsche, cujo pensamento o guiaria vida afora.

1905 – 1910
Lobato volta ao Vale do Paraíba

Diploma nas mãos, Lobato voltou a Taubaté. E de lá prosseguiu enviando artigos para um jornal de Caçapava, O Combatente. Nomeado promotor público, mudou-se para Areias, casou-se com Purezinha e começou a traduzir artigos do Weekly Times para O Estado de S. Paulo. Fez ilustrações e caricaturas para a revista carioca Fon-Fon! e colaborou no jornal Gazeta de Notícias, também do Rio de Janeiro, assim como na Tribuna de Santos.

1911 – 1917
Lobato fazendeiro e jornalista

A morte súbita do avô determinou uma reviravolta na vida de Monteiro Lobato, que herdou a Fazenda do Buquira, para a qual se transferiu com a família. Localizada na Serra da Mantiqueira, já estava com as terras esgotadas pela lavoura do café. Assim mesmo, ele tentou transformá-la num negócio rendoso, investindo em projetos agrícolas audaciosos.

Mas não se afastou da literatura. Observando com interesse o mundo da roça, logo escreveu artigo, para O Estado de S. Paulo, denunciando as queimadas no Vale do Paraíba. Intitulado “Uma velha praga”, teve grande repercussão quando saiu, em novembro de 1914. Um mês depois, redigiu Urupês, no mesmo jornal, criando o Jeca Tatu, seu personagem-símbolo. Preguiçoso e adepto da “lei do menor esforço”, Jeca era completamente diferente dos caipiras e indígenas idealizados pelos romancistas como, por exemplo, José de Alencar. Esses dois artigos seriam reproduzidos em diversos jornais, gerando polêmica de norte a sul do país. Não demorou muito e Lobato, cansado da monotonia do campo, acabou vendendo a fazenda e instalando-se na capital paulista.

1918 – 1925
Lobato editor e autor infantil

Com o dinheiro da venda da fazenda, Lobato virou definitivamente um escritor-jornalista. Colaborou, nesse período, em publicações como Vida Moderna, O Queixoso, Parafuso, A Cigarra, O Pirralho e continuou em O Estado de S. Paulo. Mas foi a linha nacionalista da Revista do Brasil, lançada em janeiro de 1916, que o empolgou. Não teve dúvida: comprou-a em junho de 1918 com o que recebera pela Buquira. E deu vez e voz para novos talentos, que apareciam em suas páginas ao lado de gente famosa.

O editor
A revista prosperou e ele formou uma empresa editorial que continuou aberta aos novatos. Lançou, inclusive, obras de artistas modernistas, como O homem e a morte, de Menotti del Picchia, e Os Condenados, de Oswald de Andrade. Os dois com capa de Anita Malfatti, que seria pivô de uma séria polêmica entre Lobato e o grupo da Semana de 22: Lobato criticou a exposição da pintora no artigo “Paranóia ou mistificação?”, de 1917. “Livro é sobremesa: tem que ser posto debaixo do nariz do freguês”, dizia Lobato, que, para provocar a gulodice do leitor, tratava o livro como um produto de consumo como outro qualquer, cuidando de sua qualidade gráfica e adotando capas coloridas e atraentes. O empreendimento cresceu e foi seguidamente reestruturado para acompanhar a velocidade dos negócios, impulsionada ainda mais por uma agressiva política de distribuição que contava com vendedores autônomos e com vasta rede de distribuidores espalhados pelo país. Novidade e tanto para a época, e que resultou em altas tiragens. Lobato acabaria entregando a direção da Revista do Brasil a Paulo Prado e Sérgio Milliet, para dedicar-se à editora em tempo integral. E, para poder atender às crescentes demandas, importou mais máquinas dos Estados Unidos e da Europa, que iriam incrementar seu parque gráfico. Mergulhado em livros e mais livros, Lobato não conseguia parar.

O autor infantil
Escreveu, nesse período, sua primeira história infantil, A menina do narizinho arrebitado. Com capa e desenhos de Voltolino, famoso ilustrador da época, o livrinho, lançado no Natal de 1920, fez o maior sucesso. Dali nasceram outros episódios, tendo sempre como personagens Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Tia Nastácia e, é claro, Emília, a boneca mais esperta do planeta. Insatisfeito com as traduções de livros europeus para crianças, ele criou aventuras com figuras bem brasileiras, recuperando costumes da roça e lendas do folclore nacional. E fez mais: misturou todos eles com elementos da literatura universal, da mitologia grega, dos quadrinhos e do cinema. No Sítio do Picapau Amarelo, Peter Pan brinca com o Gato Félix, enquanto o saci ensina truques a Chapeuzinho Vermelho no país das maravilhas de Alice. Mas Monteiro Lobato também fez questão de transmitir conhecimento e idéias em livros que falam de história, geografia e matemática, tornando-se pioneiro na literatura paradidática – aquela em que se aprende brincando.

Crise e falência
Trabalhando a todo vapor, Lobato teve que enfrentar uma série de obstáculos. Primeiro, foi a Revolução dos Tenentes que, em julho de 1924, paralisou as atividades da sua empresa durante dois meses, causando grande prejuízo. Seguiu-se uma inesperada seca, que decorreu em um corte no fornecimento de energia. O maquinário gráfico só podia funcionar dois dias por semana. E numa brusca mudança na política econômica, Arthur Bernardes desvalorizou a moeda e suspendeu o redesconto de títulos pelo Banco do Brasil. A conseqüência foi um enorme rombo financeiro e muitas dívidas. Só restou uma alternativa a Lobato: pedir a autofalência, apresentada em julho de 1925. O que não significou o fim de seu ambicioso projeto editorial, pois ele já se preparava para criar outra empresa. Assim surgiu a Companhia Editora Nacional. Sua produção incluía livros de todos os gêneros, entre eles traduções de Hans Staden e Jean de Léry, viajantes europeus que andaram pelo Brasil no século XVI. Lobato recobrou o antigo prestígio, reimprimindo nela sua marca inconfundível: fazer livros bem impressos, com projetos gráficos apurados e enorme sucesso de público.

1925 – 1927
Lobato no Rio de Janeiro

Decretada a falência da Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato, o escritor mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por dois anos, até 1927. Já um fã declarado de Henry Ford, publicou sobre ele uma série de matérias entusiasmadas em O Jornal. Depois passou para A Manhã, de Mario Rodrigues. Além de escrever sobre variados assuntos, em A Manhã lançou O Choque das Raças, folhetim que causou furor na imprensa carioca, logo depois transformado em livro. Do Rio Lobato colaborou também com jornais de outros estados, como o Diário de São Paulo, para o qual em 20 de março de 1926 enviou “O nosso dualismo”, analisando com distanciamento crítico o movimento modernista inaugurado com a Semana de 22. O artigo foi refutado por Mário de Andrade com o texto “Post-Scriptum Pachola”, no qual anunciava sua morte.

1927 – 1931
Lobato em Nova Iorque

Em 1927, Lobato assumiu o posto de adido comercial em Nova Iorque e partiu para os Estados Unidos, deixando a Companhia Editora Nacional sob o comando de seu sócio, Octalles Marcondes Ferreira. Durante quatro anos, acompanhou de perto as inovações tecnológicas da nação mais desenvolvida do planeta e fez de tudo para, de lá, tentar alavancar o progresso da sua terra. Trabalhou para o estreitamento das relações comerciais entre as duas economias. Expediu longos e detalhados relatórios que apontavam caminhos e apresentavam soluções para nossos problemas crônicos. Falou sobre borracha, chiclete e ecologia. Não mediu esforços para transformar o Brasil num país tão moderno e próspero como a América em que vivia.

1931 – 1939
A luta de Lobato por ferro e petróleo

Personalidade de múltiplos interesses, Lobato esteve presente nos momentos marcantes da história do Brasil. Empenhou seu prestígio e participou de campanhas para colocar o país nos trilhos da modernidade. Por causa da Revolução de 30, que exonerou funcionários do governo Washington Luís, ele estava de volta a São Paulo com grandes projetos na cabeça. O que faltava para o Brasil dar o salto para o futuro? Ferro, petróleo e estradas para escoar os produtos. Esse era, para ele, o tripé do progresso.

1940 – 1944
Lobato na mira da ditadura

Mas as idéias e os empreendimentos de Lobato acabaram por ferir altos interesses, especialmente de empresas estrangeiras. Como ele não tinha medo de enfrentar adversários poderosos, acabaria na cadeia. Sua prisão foi decretada em março de 1941, pelo Tribunal de Segurança Nacional (TSN). Mas nem assim Lobato se emendou. Prosseguiu a cruzada pelo petróleo e ainda denunciou as torturas e maus-tratos praticados pela polícia do Estado Novo. Do lado de fora, uma campanha de intelectuais e amigos conseguiu que Getúlio Vargas o libertasse, por indulto, após três meses em cárcere. A perseguição no entanto continuou. Se não podiam deixá-lo na cadeia, cerceariam suas idéias. Em junho de 1941, um ofício do TSN pediu ao chefe de polícia de São Paulo a imediata apreensão e destruição de todos os exemplares de Peter Pan, adptado por Lobato, à venda no Estado. Centenas de volumes foram recolhidos em diversas livrarias, e muitos deles chegaram a ser queimados.

1945 – 1948
Os últimos tempos de Lobat
o

Lobato estava em liberdade, mas enfrentava uma das fases mais difíceis de sua vida. Perdeu Edgar, o filho mais velho, presenciou o processo de liquidação das companhias que fundou e, o que foi pior, sofreu com a censura e atmosfera asfixiante da ditadura de Getúlio Vargas. Aproximou-se dos comunistas e saudou seu líder, Luís Carlos Prestes, em grande comício realizado no Estádio do Pacaembu em julho de 1945. Partiu para a Argentina, após associar-se à editora Brasiliense e lançar suas Obras Completas, com mais de 10 mil páginas em trinta volumes das séries adulta e infantil. Regressou de Buenos Aires em maio de 1947, para encontrar o país às voltas com os desmandos do governo Dutra. Indignado, escreveu Zé Brasil. Nele, o velho Jeca Tatu, preguiçoso incorrigível, que Lobato depois descobriu vítima da miséria, vira um trabalhador rural sem terra. Se antes o caipira lobatiano lutava contra doenças endêmicas, agora tinha no latifúndio e na distribuição injusta da propriedade rural seu pior inimigo. Os personagens prosseguiam na luta, mas seu criador já estava cansado de tantas batalhas. Monteiro Lobato sofreu dois espasmos cerebrais e, no dia 4 de julho de 1948, virou “gás inteligente” – o modo como costumava definir a morte. Foi-se aos 66 anos de idade, deixando imensa obra para crianças, jovens e adultos, e o exemplo de quem passou a existência sob a marca do inconformismo.

Fonte:

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Monteiro Lobato (Produções e Idéias)

Mais do que produzir livros para crianças, Monteiro Lobato dialogava com as crianças.

Monteiro Lobato foi uma criança diferente dos outros garotos de sua geração. A cara enfiada nos livros e os olhos brilhantes a enxergar para muito além da janela do quarto denunciava uma mente irrequieta e fértil imaginação. Seu espaço preferido era a biblioteca do Visconde, na casa da Rua XV de Novembro em Taubaté, onde passava horas folhando revistas ilustradas e aventurando-se nos clássicos da literatura. Mas nem por isso deixou de participar da vida da fazenda, nem de conviver com a população interiorana, seus costumes e suas crenças.

Em 1920 quando seu amigo Hilário Tácito contou-lhe a estória de um peixinho que morreu afogado porque desaprendeu a nadar, Lobato a transformou num pequeno conto que é sua estréia no mundo do faz-de-conta. Lobato reaviva suas lembranças dos tempos de menino, repletas de cenas da roça onde passara a infância. E, assim inspirado, lança a primeira versão de A menina do narizinho arrebitado, narrando as peripécias de uma avó, sua neta órfã, Lúcia, e a inseparável boneca de pano, Emília, além da negra tia Anastácia.

A partir daí Lobato realiza sua vocação de comunicador incomparável na fecunda produção de obras para o público infanto-juvenil.

Procurando a melhor forma de se comunicar com as crianças, Lobato escrevia a seu amigo Rangel: Mando-te o Narizinho escolar. Quero tua impressão de professor acostumado a lidar com crianças. Experimente nalgumas, a ver se interessa. Só procuro isso: que interesse às crianças.

Militante da causa do progresso, Monteiro Lobato percebeu que só através dos jovens seria possível apressar a modificação do mundo. No cenário do sítio da dna. Benta fazia transcorrer o Brasil de seus sonhos: democrático, sem opressão, capaz de construir uma grande Nação.
E o fez opondo-se ao conceito de que crianças eram adultos reduzidos em idade e estatura, embora com a mesma psicologia. “A criança é um ser onde a imaginação predomina em absoluto”, defendia. “O meio de interessá-la é falar-lhe à imaginação”. “Escrever para crianças! – exclamou em resposta a um repórter – é admirável… Elas não têm malícia, aceitam tudo, tudo compreen-dem”.

Captando a lógica e a estrutura do pensamento infantil, Lobato falava não para elas, mas como e no lugar delas. Por isso, pelas suas mãos o aprendizado virava brincadeira séria e as lições escolares mais difíceis – em geral ministradas através de métodos e mestres antiquados – ficavam claras e acessíveis.

Misturando sonho e realidade, Lobato conquistava os pequenos fãs, que logo passavam a dividir com ele o universo em que tudo era possível – bastava usar um pouco de imaginação. Ingrediente que não faltava nas centenas de cartas remetidas por crianças de todas as idades e de todos os cantos do País.

Recebia montanhas de cartas e respondia a todas, tratando as crianças como interlocutores competentes. Não se esquivava de discutir temas como saúde, religião ou política. Além disso, estimulava a atividade literária dos seus leitores, encorajando-os a desenvolver enredos e histórias, ou analisando criticamente sua produção.

De 1920 a 1947 lançou 22 títulos que até hoje continuam a ser editados:
Ficção
Reinações de Narizinho
Viagem ao Céu
O Saci
As Caçadas de Pedrinho
Memórias de Emília
O Poço do Visconde
O Picapau Amarelo
A Reforma da Natureza
O Minotauro
A Chave do Tamanho
Os 12 Trabalhos de Hércules
História do Mundo para Crianças
Emília no País da Gramática
Aritmética da Emília
Geografia de Dona Benta
Serões de Dona Benta
História das Invenções

Adaptações
Hans Staden
Peter Pan
Don Quixote das Crianças
Histórias de Tia Nastácia
Fábulas

Toda obra literária de Monteiro Lobato tem uma forte conotação política. Mesmo naquelas de pura fábula, é política a intenção e a motivação do autor. Como jornalista e como editor todo seu trabalho foi pautado por sua vocação político-libertária. Sem filiar-se oficialmente a organizações ou partidos políticos, Lobato sempre esteve presente nos debates sobre os problemas nacionais e nunca deixou de opinar sobre os assuntos que afetavam a vida do País.

Sua idéia de Brasil nação instiga seu inconformismo com o desenraizamento cultural. Ataca os modismos importados que nada têm a ver com a realidade e propugna pelo resgate do elemento nativo brasileiro de rica tradição. Nessa mesma linha denuncia a agressão que se faz ao nosso idioma adotando vocábulos estrangeiros por simples espírito de imitação.

Nas diversas cruzadas e causas públicas em que se engajaria ao longo da vida – contra a ditadura de Bernardes primeiro, depois a de Vargas, em defesa do voto secreto -, Monteiro Lobato sonhava transformar o Brasil em uma nação próspera cujo povo pudesse desfrutar os benefícios gerados pelo progresso e desenvolvimento. Com essa perspectiva já na fazenda Buquira, que herda do avô, tentou implantar novos métodos de criação e produção agrícola, incentivando ainda as campanhas de saneamento.

Para Lobato, o atraso do país só seria superado pelo trabalho racional e aposta na modernização. Sua luta pela adoção de processo científicos em todos os níveis da atividade humana encontrou a síntese em Henry Ford que ele traduz em seu personagem Mr. Slang, que rebate as críticas dos céticos que culpam a índole do povo pelo atraso do país.

Ferro e petróleo

Certo de que transformaria seu país em uma nação produtiva, eficiente e rica, Monteiro Lobato abandona temporariamente a literatura e a atividade de editor e livreiro, a que se havia dedicado consciente da importância do poder da comunicação, para vivenciar experiências no mundo da indústria e dos negócios.
“O solo, a superfície, apenas permite a subsistência. O enriquecimento vem de baixo. Vem do subsolo”. Entretanto, não bastava explorar as riquezas. Era preciso que o país usufruísse delas. Trabalha para iniciar a produção do ferro com metodologia moderna recém patenteada nos Estados Unidos, utilizando recursos naturais disponíveis no País, tais como a palha do café e o xisto betuminoso.

Os relatórios que envia de Nova York, onde ocupou o posto de adido cultural no consulado brasileiro, são eivados de oportunas observações sobre formas de criar alternativas de exportação de produtos brasileiros. As longas cartas enviadas posteriormente ao presidente Vargas são verdadeiras plataformas desenvolvimentistas e nacionalistas.

Decidido a convencer o povo brasileiro da importância dos empreendimentos petrolíferos, Lobato alimenta debates pela imprensa e realiza palestras. Prega a necessidade da independência econômica e aponta o caminho para alcançá-la. “Conferências sobre o petróleo constituem novidade absoluta. Conferências de negócio1 Para promover a venda de ações duma companhia! Para levantar dinheiro!”

Num auditório abarrotado em Belo Horizonte, Lobato resume: “Compreendi ser o petróleo a grande coisa, a coisa máxima para o Brasil, a única força com elementos capazes de arrancar o gigante do seu berço de ufanias”.

Lançada em 1931, sua Companhia Petróleos do Brasil tem a metade das ações subscritas em quatro dias. Satisfeito com os primeiros resultados percorre o país divulgando o andamento das últimas descobertas.

Ao mesmo tempo em que reclama dos entraves e da burocracia do Ministério da Agricultura que dificultavam as atividades da sua companhia denuncia, em documento enviado a Vargas, as manobras da Standard Oil para assenhorar-se dos melhores lençóis petrolíferos brasileiros através da filial argentina.

Em 1936, a sonda de Alagoas da Cia. Petróleos Nacional sofre intervenção federal e é interditada. Lobato resiste, consegue levantar alguns recursos e finalmente, a 250 metros de profundidade vê irromper o primeiro jato de gás de petróleo do poço São João, em Riacho Doce, em Alagoas.

Numa jogada estratégica, em 1935, lança pela Cia. Editora Nacional: “A luta pelo petróleo”, de Essad Bey, que denuncia a ineficiência do Serviço Geológico, órgão oficial encarregado das pesquisas, a quem acusa de encampar internamente a política dos trustes internacionais para o Brasil: “não tirar petróleo e não deixar que ninguém o tire”.

Em 1936 lança “O escândalo do Petróleo” que teve duas edições esgotadas em menos de um mês. Convencido de que os trustes tudo fariam para sabotar o petróleo brasileiro, na página de rosto do livro Lobato conclama os militares a assumir sua parcela de responsabilidade na questão da soberania nacional: “Se não ter petróleo é inanir-se economicamente, militarmente é suicidar-se”. Apesar de todos os reveses, Lobato e seus companheiros persistem e, em julho de 1938, realizam a assembléia de constituição da Companhia Matogrossense de Petróleo, com objetivo de perfurar em Porto Esperança, em Mato Grosso, região com a mesma estrutura geológica da Bolívia que estava produzindo óleo de qualidade.

Em março de 1938, Lobato, em carta a Getúlio, ressalta que as novas diretrizes do Departamento Nacional da Produção Mineral representam um golpe de morte para o petróleo no país e exorta: “Pelo amor de Deus, e do Brasil, não preste sua mão generosa à mais cruel e mesquinha obra de vingança pessoal, disfarçada em sublime nacionalismo.”

No dia 20 de março de 1941 é preso subitamente em São Paulo, segundo a agência norte-americana Overseas News Agency, “vítima de intensa campanha de militares brasileiros e outros elementos pró-nazismo, que combatem os elementos democráticos e anglófilos do país”.

Impedido de receber visitas, conversar com outros detentos ou tomar sol no pátio, conta em carta a Purezinha, sua esposa, a vida em prisão. “É a gente sozinho com o pensamento, e nunca o pensamento trabalha tanto. Mas de tanto trabalhar acaba girando num círculo”… Última peça do inquérito policial, o relatório encerrado em 1º de fevereiro, salienta que “ficou provado à saciedade que o Dr. José Bento Monteiro Lobato … procura com notável persistência desmoralizar o Conselho Nacional do Petróleo, sem contudo apresentar qualquer prova de suas acusações”.

Em 1950, inspirados no exemplo de Monteiro Lobato, os partidos políticos de esquerda e os movimentos sociais lançam a campanha de rua em defesa do Petróleo. A campanha “O Petróleo é nosso”, empolga o país e servirá de pretexto para que o Congresso Nacional aprove a legislação sobre o Petróleo que, na última hora, recebeu uma emenda que criou o monopólio da Petrobrás.
Carta a Purezinha

À sua esposa, Pureza Monteiro Lobato, da prisão política de São Paulo em março de 1941

Purezinha

Só contarei o que é a vida em prisão. É a gente sozinho com o pensamento e nunca o pensamento trabalha tanto. Mas de tanto trabalhar acaba girando num círculo, isto é, volta sempre às mesmas coisas. Os pontos que formam o círculo do nosso pensamento, ou as estações em que o pensamento pára, para pensar sempre a mesma coisa, são – 1º você. Penso em V. com uma ternura imensa e um imenso dó, e culpo-me de um milhão de coisas. Meu dever era só cuidar da tua felicidade, Purezinha, e no entanto passei a vida a te contrariar e a fazer asneiras que tanto nos estragaram a vida. Se eu tivesse ouvido em negócios, minha situação seria hoje de milionário. Não ouvi, nem sequer te consultei, e o resultado foi desastroso. Cheguei até à prisão!

Depois de pensar e repensar em você e de convencer-me que apesar de todas as aparências, e da nossa eterna divergência, é você a única pessoa que eu amo no mundo, pulo para outra estação. Há a estação da Morte, penso na sobrevivência, no Além, em promessas do espiritismo, etc. Penso em Guilherme (filho do escritor falecido aos 24 anos de idade) e Heitor (Heitor de Morais) e acho-os tremendamente felizes por já terem morrido, isto é, feito uma coisa que nós ainda vamos fazer. Depois penso no meu caso – na vingança que os homens de cima que eu insultei hão de querer tirar de mim. Que tolice dar soco em faca de ponta! Espetei a mão a faca ficou no que era. Meu soco não a quebrou.

A vida aqui me tem feito pensa no horror que V. sempre teve pela prisão, pela condenação do homem ao confinamento por anos e anos. Agora vejo como, sem Ter experiência própria, V. adivinhou o certo. Não há castigo maior. Mil vezes a cadeira elétrica ou a forca – dores de um momento.

Estou preso há quase três dias e já me parecem três séculos. As horas têm 60.000 minutos. As noites não têm fim. Sou obrigado a não fazer nada de nada. Não há o que ler – nem jornais. E a incomunicabilidade em que estou, agrava tudo, porque me isola completamente do mundo exterior. Não posso falar com ninguém, nem comunicar-me com ninguém.

Imagine agora o meu prazer quando ontem recebi um pacote. Abri e vi logo você ali – ceroulas, lenços, meias, pijama novo e aspirina. Que presente, Purezinha! Como qualquer coisinha é todo um mundo para quem está sem nada! Repeti mil vezes o teu nome, e hoje de manhã, ao acordar e ver em cima da mesa as coisas, peguei nas meias e beijei-as… Imagine agora a que fica reduzida uma criatura depois de anos de prisão se eu só com dois dias já estou assim.

Foi o primeiro contacto com o mundo externo, esse presente que V. m mandou. Que alegria imensa me causou! Foi o mesmo que receber a tua visita.

Tratam-me muito bem aqui. Os guardas e diretores são pessoas delicadíssimas; que vêm ver-me todos os dias e conversar. Estou num “apartamento” otimozinho, com um banheiro de primeira ordem, com lavatório, bidê, privada e banheiro novinho com água quente. Sou servido no quarto pelo João, um mulato que está preso há já três meses. Cinco refeições, imagine! Para eu que só azia três. Café com leite, pão e manteiga às 7 h. Almoço com seis pratos às 11, chá mate, pão e manteiga às 2. Jantar às 5 e chá à noite. Creio que vou engordar. Mas o que mais me dói é não Ter o que ler, nem o que fazer – eu com tanto trabalho em andamento aí em casa! Quem me dera pilhar a tradução a Gulnara (Gulnara Monteiro Lobato, nora e sobrinha de Monteiro Lobato) para corrigir! E o febrezinho de Edgard? (Edgar Monteiro Lobato, então doente dos pulmões) Como vai ele? Febre ainda? Como eu prejudiquei aquele menino – como eu prejudiquei a vocês todos, minha cara Purezinha! E agora, no fim de dez anos de lutas, dou de presente a vocês o que meu Deus! A minha prisão – mais amargura para você, mais sofrimento…

O Ernâni, aquele em cuja casa você esteve anteontem mostrou-se muito camarada. Pedi-lhe que telefonasse a você ontem e agora o espero ansioso para saber se telefonou. Ele entra em serviço às 9 horas, um dia sim, um dia não. São 8. Daqui a uma hora saberei se ele conversou com você. Adeus, minha querida, minha cada vez mais querida Purezinha. Um apertadíssimo abraço, e outro em Rute (Rute Monteiro Lobato, filha do escritor) e Edgard. Coragem aí, que cá do meu lado é o que não falta.

Estou escrevendo por escrever, para dar vazão aos sentimentos, porque não há jeito de fazer este papel chegar a você.

Incomunicável! Agora compreendo o horror desta palavra

Juca.

Monteiro Lobato nunca escondeu sua paixão pela pintura. Se não lhe foi possível seguir a carreira de artista plástico, tampouco deu para abafar o impulso criativo que despontou à frente da vocação literária, antecedendo, inclusive, o domínio da própria linguagem.

Começou seus rabiscos ainda na infância. Gostaria de se matricular na Escola de Belas Artes, mas, por imposição do avô materno, que assumira sua tutela após a morte dos pais, entra para a Academia de Direito com dezoito anos incompletos. Tornar-se pintor seria talvez o único sonho descartado em toda a sua vida.

Na Faculdade de Direito, Lobato dava vazão à veia artística no quartinho do chalé avarandado onde morava no Largo do Palácio. Teria virado pintor, mandado às favas o curso de Direito não fosse um incidente com uma caixa de aquarelas, comprada como tinta a óleo: “A vergonha daquela rata matou em mim todas as veleidades pictóricas. Como pretende ser pintor um imbecil que nem distingue aquarela de óleo? “Desistindo de uma arte, caiu nos braços de outra. Fez-se escritor, em uma transposição vocacional que se reflete por toda sua obra.

Quando ponderava sobre sua vocação artística, Lobato admitia uma espécie de saudade do que poderia ter sido, se houvesse optado pela pintura. “No fundo não sou literato, sou pintor. Nasci pintor, mas como nunca peguei nos pincéis a sério … arranjei este derivativo de literatura, e nada mais tenho feito senão pintar com palavras. Minha impressão dominante é puramente visual”.

Tão severo consigo mesmo que, embora pintando e desenhando sem cessar, jamais pretendeu expor seus trabalhos, guardados com carinho em um enorme baú de jacarandá entalhado. Em 1909 chegou a participar de um concurso de cartazes, realizado no Rio de Janeiro, e também colaborou com ilustrações para algumas revistas, como Fon-Fon e Vida Moderna. Ele mesmo fez as ilustrações para a primeira edição de Urupês.

Pintou até os últimos dias de vida – preferencialmente aquarelas – e impregnou suas histórias de coloridos e formas, como se fossem quadros.

Monteiro Lobato vivia permanentemente preocupado com revelar um Brasil desconhecido a que os intelectuais brasileiros davam as costas. Essa preocupação aliada à necessidade compulsiva de se comunicar – comunicar-se com o próximo, comunicar-se com o mundo – levaram-no ao jornalismo. Seu espírito empreendedor e a necessidade de liberdade absoluta para se expressar transformou o jornalista no empresário editor que revolucionou o mercado de livros no Brasil.

“O escritor confundia-se com o jornalista, o homem de imprensa virava publicista e ambos lançavam mão dos meios de comunicação da época – o livro, jornal e a revista – para tentar despertar a consciência social e criar novos padrões de comportamento coletivo”.

Monteiro Lobato é o protótipo do nacionalista de seu tempo, defensor de um nacionalismo que, em todos os tempos, tem sido indispensável para forjar uma nação.

Como escritor, editor ou empresário ele é um homem preocupado com seu país e um arguto crítico social. É esse seu caráter que vai projetá-lo internacionalmente.

Suas obras, de grande repercussão no País, repercutem também nos países vizinhos. Empresário de visão, ele sabe que o mercado de língua espanhola é grande e esteve sempre tentado lançar coisas nossas, traduzidas. Seu sonho como escritor é lançar um livro nos Estados Unidos, mercado para edições de um milhão de exemplares.

Em 1919, pretendeu, sem êxito, estender a Revista do Brasil a Buenos Aires. Em 1921 inicia colaboração com a revista argentina La Novela Semanal; a editora Pátria, de Buenos Aires, lança com sucesso Urupês, em tradução de Benjamin de Garay. Em 1923, uma coletânea de contos é lançada na Espanha, em 1924 outra coletânea é publicada na Argentina. No ano seguinte, quatro contos vertidos para o inglês são publicados nos Estados Unidos. Nessa época também colabora com as revistas francesas La Revue de L’Amerique Latine e La Revue Nouvelle.

Em 1926, Lobato se entusiasma com as idéias e a ações de Henry Ford e começa a publicar uma série de artigos difundindo essas idéias na imprensa carioca, particularmente em O Jornal. Ele acha que ao contrário dos idealistas utópicos, Ford é o idealista orgânico – “o gênio que em 20 anos tornara-se o homem mais rico de todos os tempos”, exemplo que ele quer ver seguido no Brasil. Em seu livro Mr Slang, lançado em 1927, traça um paralelo entre o Brasil e Estados Unidos e reafirma sua crença de que o Brasil pode repetir a façanha do grande desenvolvimento daquele país.

Ainda em 1927, é nomeado por Washington Luís adido comercial interino ao consulado do Brasil em Nova Iorque. Sua permanência nos Estados Unidos confirma o que ele arquitetava para seu país, inspirado no fordismo. Contribui também para modernizar seu pensamento e lhe dá coragem para os passos mais arrojados que mais tarde daria como empresário, lançando-se na busca do petróleo e na transformação do minério do ferro.

Fontes:
http://lobato.globo.com/lobato_%20Biografia.asp
http://www.projetomemoria.art.br/%20MonteiroLobato/monteirolobato/index.html

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Monteiro Lobato (Autobiografia)

Nasceu em Taubaté, aos 18 de abril de… 1884 (na verdade 1882). Mamou até 87. Falou tarde, e ouviu pela primeira vez, aos 5 anos, um célebre ditado: “Cavalo pangaré/Mulher que… em pé/Gente de Taubaté/ Dominus libera mé”.
Concordou.

Depois, teve caxumba aos 9 anos. Sarampo aos 10. Tosse comprida aos 11. Primeiras espinhas aos 15.

Gostava de livros. Leu o Carlos Magno e os doze pares de França, o Robinson Crusoé, e todo o Júlio Verne.

Metido em colégio, foi um aluno nem bom nem mau – apagado. Tomou bomba em exame de português, dada pelo Freire. Insistiu. Formou-se em Direito, com um simplesmente no 4º ano – merecidíssimo. Foi promotor em Areias, mas não promover coisa nenhuma. Não tinha jeito para a chicana e abandonou o anel de rubi (que nunca usou no dedo, aliás).

Fez-se fazendeiro. Gramou café a 4,200 a arroba e feijão a 4.000 o alqueire.

Convenceu-se a tempo que isso de ser produtor é sinônimo de ser imbecil e mudou de classe. Passou ao paraíso dos intermediários. Fez-se negociante, matriculadíssimo. Começou editando a si próprio e acabou editando aos outros.

Escreveu umas tantas lorotas que se vendem – Urupês, gênero de grande saída, Cidades mortas, Idéias de Jeca Tatu, subprodutos, Problema vital, Negrinha, Narizinho. Pretende publicar ainda um romance sensacional que começa por um tiro:

– Pum! E o infame cai redondamente morto…

Nesse romance introduzirá uma novidade de grande alcance, qual seja, a de suprimir todos os pedaços que o leitor pula.

Particularidades: não faz nem entende de versos, nem tentou o raid a Buenos Aires.

Físico: lindo!

Autobiografia por Monteiro Lobato
A Novela Semanal, São Paulo, nº 1, 2 de maio 1921

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Monteiro Lobato (Obras)

Reinações de Narizinho
O livro-mater, a locomotiva do comboio, o puxa-fila. A história começa. Aparecem Narizinho, Pedrinho, Emília, o visconde, Rabicó, Quindim, Nastácia, o Burro Falante… e o milagre do estilo de Monteiro Lobato vai tramando uma série infinita de cenas e aventuras em que a realidade e a fantasia, tratadas pela sua poderosa imaginação, se misturam de maneira inextricável – tal qual se dá normalmente na cabeça das crianças. O encanto que as crianças encontram nestas histórias vem sobretudo disso: são como se elas próprias as estivessem compondo em sua imaginativa, e na língua que todos falamos nesta terra – não em nenhuma língua artificial e artificiosa, mais produto da “literatura” do que da espontaneidade natural. – Volume com 312 páginas

Viagem ao Céu e o Saci
Pedrinho consegue obter uma boa dose do pó de pirlimpimpim, o pó mágico que transporta as criaturas a qualquer ponto do Espaço e a qualquer momento do Tempo – e distribuindo pitadas a Narizinho, Emília, o visconde, Nastácia e o Burro Falante, empreende a viagem ao céu astronômico. Vão parar na lua, onde tia Nastácia fica como cozinheira de S. Jorge, enquanto os outros visitam Marte e Saturno e a Via Láctea, na qual encontram o Anjinho de Asa Quebrada. Enquanto brincam no éter, vão aprendendo sólidas noções de astronomia – só voltam de lá quando dona Benta os chama com um bom berro: “já pra baixo, cambada!”.

Na Segunda parte, O Saci, desenvolve-se a estranha aventura que teve Pedrinho com um saci que conseguiu pegar com a peneira e conservar preso numa garrafa. O diabinho de uma perna só proporciona ao garoto ensejo de conhecer a vida noturna e fantástica das matas – com visões da Mula Sem Cabeça, da Caapora, do Lobisomem, do Boitatá, e das principais criações mitológicas do nosso folclore. – Volume com 275 páginas.

Caçadas de Pedrinho e Hans Staden
Neste volume Pedrinho organiza uma caçada de onça e sai vitorioso como também sai vitorioso do ataque das onças e outros animais de presa ao sítio de dona Benta. Depois encontra um rinoceronte, fugido de um circo do Rio, que se refugiara naquelas matas – um animal pacatíssimo e de bastante ilustração, do qual Emília tomou conta, depois de batizá-lo de Quindim.

Completa o volume a narrativa feita por dona Benta das celebres Aventuras de Hans Staden. Este aventureiro alemão veio ao Brasil em 1559 e esteve nove meses prisioneiro dos tupinambás, a assistir cenas de antropofagia e à espera de ser devorado de um momento para outro. Mas salva-se. Volta para a Alemanha e lá publica o seu livro: o primeiro que aparece com cenário brasileiro e um dos mais pungentes e vivos de todas as literaturas. – Volume com 144 páginas.

História do mundo para crianças
Este livro de Monteiro Lobato teve uma aceitação excepcional, estando já a caminho de 200.000 exemplares. Nele o autor dá um apanhado da evolução humana, e da história da humanidade no planeta, na seriação clássica de todas as “histórias universais” – mas escrita de modo extremamente atrativo, como um verdadeiro romance policial posto em nível infantil. As crianças lêem avidamente este livro, como lêem as histórias da carochinha, e desse modo criam uma história da civilização. E os pais também lucram imensamente com a leitura deste livro; dum certo modo podemos dizer que o que o grosso da nossa população sabe de história é o que Monteiro Lobato conta em sua exposição para as crianças … – Volume com 313 páginas.

Memórias da Emília e Peter Pan
Emília, a terrível Emília, resolve escrever Memórias e as escreve com as unhas do visconde. Nelas vem o episódio, tão vivo e interessante da visita das crianças inglesas ao sítio de dona Benta, trazidas pelo velho almirante Brown. Vieram para conhecer o Anjinho de Asa Quebrada, que Emília descobre na Via Láctea, durante a Viagem ao Céu. Emília conta tudo – o que houve e o que não houve; e vai dando as suas ideiasinhas sobre tudo – ou a sua filosofia, que muitas vezes faz dona Benta olhar para tia Nastácia, e murmurar: “Já viu, que diabinha?”.

Na Segunda parte, Peter Pan, dona Benta recebe o famoso livro de Sir John Barrie, Peter Pan and Wendy e o lê da sua moda para as crianças. Durante a leitura, a espaços interrompidos de cenas provocadas pelos meninos e, sobretudo, pela Emília, ocorre o caso do desaparecimento da sombra da tia Nastácia. Quem furtou a sombra da pobre negra? O visconde é posto a investigar, e como é um excelente Sherlock, descobre tudo: artes da Emília… – Volume com 247 páginas.

Emília no País da Gramática e Aritmética da Emília
Temos aqui uma das obras primas de Monteiro Lobato, e o mais original de quantos livros se escreveram até hoje. Lobato figura a língua como uma cidade, a cidade da Gramática, e leva para lá o pessoalzinho do sítio, montado no rinoceronte. E é este paciente paquiderme o gramático que tudo mostra e explica. Há a entrevista de Emília com o venerando Verbo Ser, que é uma pura criação. E a reforma ortográfica, que Emília opera à força, com o rinoceronte ali ao seu lado para sustentar suas decisões, constitui um episódio que não só encanta as crianças pela fabulação como ensina de modo indelével as principais regras da ortografia.

Na Aritmética da Emília, Monteiro Lobato usa do mesmo sistema e consegue, numa matéria tão árida como a aritmética, transformar o velho Trajano numa linda brincadeira no pomar. O quadro negro em que faziam contas a giz era o couro do Quindim… Volume com 302 páginas.

Geografia da dona Benta
Em vez de estudar geografia nos livros, como fazem todas as crianças, o pessoalzinho do sítio embarca no “O terror dos Mares” e sai pelo mundo afora, a “viver” geografia. E a geografia, aquele estudo penoso e tão sem graça, se torna uma aventura linda, com paradas em inúmeros portos e descidas em terra para ver as coisas mais notáveis de todos os países. É brincadeira das mais divertidas e é um preciosíssimo curso de geografia, porque as noções desse modo adquiridas ficam para sempre – não são esquecidas nunca. – Volume com 261 páginas.

Serões da dona Benta
Um certo dia dona Benta resolve ensinar física aos meninos e em vários serões faz um verdadeiro curso de física, melhor que quanto é feito, penosamente, nos ginásios. A física perde a sua secura. Os diálogos, os incidentes, as constantes perguntas dos meninos – e as constantes perguntas dos meninos – e as ocasionais maluquices da Emília, amenizam a matéria. Trata-se de um livro para meninos aí de seus 12 anos, já em idade ginasial, e que se tem revelado preciosíssimo auxiliar dos compêndios oficiais. – Volume com 352 páginas.

D. Quixote das crianças
As arqui-famosas aventuras de D. Quixote de la Mancha e de seu gordo escudeiro Sancho aparecem aqui contadas por dona Benta, naquele seu modo de contar que é só dela. Emília entusiasma-se com o herói e em certo momento resolve imitá-lo – e armada dum cabo de vassoura, feito lança, investe contra as galinhas do quintal. E faz que tia Nastácia teve que agarrá-la e prendê-la numa gaiola, como aconteceu com o herói da Mancha na sua loucura… – Volume com 239 páginas.

O Poço do Visconde
Um precioso livro em que a geologia, sobretudo a geologia especial do petróleo, é exposta ao vivo e com profundo conhecimento da matéria. O visconde vira geólogo, preleciona, ensina a teoria e depois passa à prática; abertura de poços de petróleo nas terras do sítio de dona Benta. E tão bem são conduzidos os estudos geológicos e geofísicos, que a Companhia Donabentense de Petróleo, por eles fundada, consegue abrir o primeiro poço de petróleo do Brasil: o Caraminguá nº 1. – Volume com 253 páginas.

Histórias de Tia Nastácia
São as histórias mais populares do nosso folclore, contadas por tia Nastácia e comentadas pelos meninos. Nesses comentários, no fim de cada história, Pedrinho, Narizinho e Emília se revelam bem dotados de senso crítico, e “julgam” as histórias da negra com muito critério e segurança. É um livro que “ensina” a arte da crítica – coisa que pela primeira vez um escritor procura inocular nas crianças. – Volume com 226 páginas.

O Picapau Amarelo e A Reforma da Natureza
Dona Benta adquire todas as terras em redor do sítio para atender a uma coisa prodigiosa: a resolução que os personagens da fábula tomaram de irem morar lá. Branca de Neve com os sete anões, D. Quixote e Sancho, Peter Pan e os meninos perdidos do País do Nunca, a Gata Borralheira, todas as princesas e príncipes encantados das histórias da carochinha, os heróis da mitologia grega, tudo, tudo que é criação da Fábula muda-se com armas e bagagens para o Picapau Amarelo, levando os castelos, os palácios, as casinhas mimosas como a de Capinha Vermelha e até os mares. Peter Pan transporta pra lá até o Mar dos Piratas. Acontecem maravilhas; mas no casamento de Branca de Neve com o príncipe Codadad, o maravilhoso sítio é assaltado pelos monstros da fábula – e no tumulto que houve tia Nastácia desaparece… – Volume com 295 páginas.

O Minotauro
Neste livro desenrolam-se as aventuras de Pedrinho, do visconde e da Emília na Grécia Heróica, para onde foram em procura de tia Nastácia. Acontecem mil coisas, e afinal descobrem o paradeiro da negra, graças à ajuda do Oráculo de Delfos. Estava presa no Labirinto de Creta, nas unhas do Minotauro! Mas tia Nastácia já havia domesticado esse monstro, à força de bolinhos e quitutes; deixara-o tão gordo que os meninos puderam entrar no Labirinto e salvá-la sem que ele, espaçado no trono, pensasse em reagir… – Volume com 255 páginas.

A Chave do Tamanho
O mais original dos livros de Monteiro Lobato. Emília, furiosa com a duração da guerra, resolve acabar com a guerra. Como? Indo Ter à Casa das Chaves, lá nos confins do mundo, e “virando” a Chave da Guerra. Mas comete um erro e em vez da Chave da Guerra vira a Chave do Tamanho, isto é, a chave que regula o tamanho das criaturas humanas. Em conseqüência, subitamente todas as criaturas humanas do mundo inteiro “perdem o tamanho”, ficam de dois, três centímetros de estatura – e Lobato conta o que se seguiu. Trata-se de um livro rigorosamente lógico, e que inocula nas crianças o senso da relatividade de todas as coisas. – Volume com 200 páginas.

Fábulas
Neste livro Monteiro Lobato reescreve as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, mas comentadamente. A novidade do livro está nestes comentários, em que as fábulas são criticadas com a maior independência – e Emília chega a ponto de “querer linchar” uma delas, cuja lição de moral lhe pareceu muito cruel. Um livro encantador, em que o gênio dos velhos fabulistas é singularmente realçado pelos diálogos entre os meninos, que a inventiva de Monteiro Lobato vai criando com a maior agudeza e frescura. – Volume com 300 páginas.

Os doze trabalhos de Hércules
Pela primeira vez em todas as literaturas os famosíssimos Trabalhos de Hércules – o mais belo romance fantástico da Antigüidade Clássica – aparece desenvolvido à moderna – e vivificado pela colaboração de Pedrinho, Emília e o visconde de Sabugosa. Esses três heroisinhos modernos penetram na Grécia Heróica a fim de acompanhar as façanhas de Hércules – e acompanham-nas, nelas tomando parte e muitas vezes salvando o grande herói. Do decorrer das aventuras ressalta a lição moral da superioridade da inteligência espontânea, viva como azougue e sempre vitoriosa. Livro que é um encanto para as crianças e para todos os adultos de bom gosto. 2 tomos com 584 páginas.

Urupês
Esse livro de contos, considerado por muito como a obra-prima de Monteiro Lobato, tornou-se um clássico da literatura brasileira. É um fenômeno sem precedente que provoca um terremoto literário, outro sociológico e outro político. A primeira edição, lançada em 1918 foi toda ilustrada pelo próprio Lobato.

Junto com Saci, constitui a primeira experiência e também o primeiro êxito editorial de Lobato, financiada com recursos próprios.

A terceira edição, em 1919, esgotou-se rapidamente devido a uma longa referência ao personagem central do livro feita por Rui Barbosa, o que ensejou uma quarta edição. Lobato brinca com o idioma, adota o vocabulário doméstico do interior de São Paulo, cria palavras novas – como por exemplo, “matracolejando gargalhadas” – muitas das quais estão hoje nos dicionários. São vários contos retratando aspectos da realidade brasileira nos quais denuncia, numa linguagem vigorosa, o drama da exclusão social que ainda persiste no Brasil pós Lobato. Velha Praga é uma reportagem sobre os grandes incêndios produzindo estragos na lavoura e na economia do País comparáveis a uma grande guerra. Buscando culpa refere-se ao nosso caboclo como “funesto parasita da terra… inadaptável à civilização”. Em Urupês ele contrapõe aos heróis da literatura indigenista o caboclo, o pobre Jeca Tatu, indiferente ao desenvolvimento do País. O livro provocou muita polêmica por seu conteúdo racista. Lobato mais tarde reconheceu que o retrato do caboclo era injusto, que a culpa não era do Jeca, mas sim daqueles responsáveis pela sua miséria e abandono.

Contos: Os faroleiros – O engraçado arrependido – A colcha de retalhos – A vingança da peroba – Um suplício moderno – Meu conto de Maupassant – Pollice verso – Bucólica – O mata-pau – Boca torta – O comprador de fazendas – O estigma – Velha Praga – Urupês

Cidades mortas
Foi publicado originalmente em 1919 numa edição da Revista do Brasil. Reúne os primeiros escritos de Lobato, ainda estudante em Taubaté, e contos que escreveu antes de seguir para os Estados Unidos para ocupar um posto no Consulado brasileiro em Nova Iorque. Mostra o Brasil de duas épocas, porém com os mesmos problemas, onde os políticos não têm a menor preocupação social.

Nos contos transparece a transição na agricultura brasileira provocada pela grande crise do café ocorrida em 1929. É um retrato bem nítido do que era São Paulo nos anos 20.

Contos: Cidades mortas – A vida em Oblivion – Os perturbadores do silêncio – Vidinha ociosa – Cavalinhos – Noite de São João – O pito do reverendo – Pedro Pichorra – Cabelos compridos – O resto de onça – Porque Lopes se casou – Júri na roça – Gens ennuyeux – O fígado indiscreto – O plágio – O romance do Chopin – O luzeiro agrícola – A cruz de ouro – De como quebrei a cabeça à mulher do Melo – O espião alemão – Café! Café! – Toque outra – Um homem de consciência – Anta que berra – O avô do Crispim – Era no Paraíso – Um homem honesto – O rapto – A nuvem de gafanhotos – Tragédia dum capão de pintos.

Negrinha
Muitos consideram que neste livro estão os melhores contos escritos por Lobato. Sem dúvida são os mais emotivos e que mais agradaram ao público. Alguns contos foram escritos antes de sua viagem aos Estados Unidos, outros depois do retorno. O livro contém verdadeiras preciosidades no tratamento do idioma e os personagens são mais urbanos e mais mundanos que os dos livros anteriores.

Há, de fato, contos primorosos que honram a literatura brasileira, como por exemplo a “Facada Imortal”.

Contos: A primeira edição de Negrinha continha os seguintes contos: Negrinha – Fitas da vida – O drama da geada – O bugio moqueado – O jardineiro Timóteo – O colocador de pronomes. Edições posteriores incluem: O fisco – Os negros – Barba Azul – Uma história de mil anos – Os pequeninos – A facada imortal – A policitemia de Dona Lindoca – Duas cavalgaduras – O bom marido – Marabá – Fatia de vida – A morte do Camicego – Quero ajudar o Brasil – Sete grande – Dona Expedita – Herdeiro de si mesmo.

Idéias de Jeca Tatu
No prefácio à primeira edição da Revista do Brasil em 1919, provavelmente redigido pelo próprio Lobato, diz que “uma idéia central unifica a maioria destes artigos” …. Essa idéia é um grito de guerra em prol da nossa personalidade.

Contem Paranóia ou mistificação, uma crítica aos modernistas, diretamente a Anita Malfatti, que provocou polêmica e a ira dos amigos da pintora. Ele não admitia que aqui se copiasse o que se produzia na Europa. Queria que o “vigoroso talento” de Anita produzisse coisas mais nossas.

Anota o editor que nas numerosas paginas deste volume a terra aparece em suas ominadas expressões – o interior, a roça, a gente da roça, os costumes e comidas da roça. … Em Idéias de Jeca Tatu, “Monteiro Lobato aparece em mangas de camisa, integralmente ele próprio no pensamento e no modo de expressá-lo – vivo, alegre, brincalhão e com a ironia às vezes levada até à crueldade”.

Escritos: A caricatura no Brasil – A criação do estilo – A questão do estilo – Ainda o estilo – Estética oficial – A paisagem brasileira – Paranóia ou mistificação? – Pedro Américo – Almeida Júnior – A poesia de Ricardo Gonçalves – A hosteofagia – Como se formam as lendas – A estátua do Patriarca – Sara, a eterna – Curioso caso de materialização – Rondônia – Amor Imortal – O saci – Arte francesa de exportação – A mata virgem, Mr. Deibler e Zago – Em nome do silêncio – Royal-street-flush arquitetônico – As quatro asneiras de Brecheret – Arte brasileira – Antonio Parreiras – Um romancista argentino – Um grande artista – Os sertões de Mato Grosso – O Vale do Paraíba – diamante a lapidar – O rei do Congo – O rádio-motor – Hermismo – Um novo ‘frisson” – Cartas de Paris – A conquista do azoto.

A onda verde e o presidente negro
A primeira edição de Onda Verde saiu em 1921 pela Monteiro Lobato & Cia. São reportagens sobre a “onda verde” dos cafezais a cobrirem as terras agricultáveis de São Paulo. O Choque das raças, foi publicado em 1926, em vinte partes, no jornal A Manhã, onde era colaborador, e no final desse mesmo ano lançado em livro pela Editora Nacional.

Duas décadas mais tarde seria reeditado com o título de Presidente Negro ou O choque das raças (romance americano do ano 2.228). Em 35 foi publicado na Argentina pela Editorial Claridad. Em 1948, quando a Brasiliense editou as obras completas, juntou os dois num só volume.

Lobato escreveu O Choque pensando em lançá-lo nos Estados Unidos, porém lá acharam que era conflitivo. É seu primeiro e único romance. O que mais chama a atenção no livro é a capacidade de Lobato em desvendar o futuro. Ele mesmo diria mais tarde que os Estados Unidos que ele descreveu no livro são os Estados Unidos que ele depois ficou conhecendo.

Em A Onda Verde, descreve o papel do “grilo” na ocupação territorial de São Paulo e sua indignação com o Homo sapiens por seus crimes sociais e ecológicos, lançando um apelo a todos os animais: “Animais todos da terra, uni-vos…”

Crônicas e artigos de A Onda Verde: A onda verde – O grilo – A lua córnea – O incompreendido – Veteranos do Paraguai – Os eucaliptos – Os tangarás – O pai da guerra – Homo Sapiens – Luvas – Dramas de crueldade – Dialeto caipira – Os livros fundamentais – Condes – Uruguaiana – O dicionário brasileiro – O 22 da Marajó – A arte americana.

Na antevéspera
Com o subtítulo Reações mentais dum ingênuo, a primeira edição data de 1933, pela Editora Nacional. É o estado d’alma do autor nos tempos da presidência de Bernardes e começos da de Washington Luís. Nas obras completas o livro é acrescido de escritos de épocas anteriores e/ou posteriores a esse tempo, o que os editores justificam pela necessidade de equilibrar a matéria dos vários volumes.

Neste livro, diz o prefaciador da primeira edição (talvez o próprio Lobato) “está enfeixada uma serie de reações ocorridas num período bem atormentado da vida brasileira. Todos sentíamos um terrível e indefinível mal ambiente. Um cheiro de fim. Era a República Velha que ia agonizando na presidência de Bernardes”….

Conteúdo: Manuelita Rosas – O primeiro livro sobre o Brasil – País de tavolagem – O hipogrifo – Fala Jove – Uma opinião de M Jerôme Coignard – Bacilos vírgula – Idéias russas – Doloi Stiid – O drama do brio – Literatura de cárcere – Novo Gulliver – O Pátio dos Milagres – Vatel – O nosso dualismo – Herói nacional – A feminina – O bocejo de leoa – Catulo – voz da terra – Justiça oxigenada – As cinco pucelas – A moda futura – Plágio post-mortem – Amigos do Brasil – O inimigo – A rosa artificial – O perigo de voar – Forças novas – Em pleno sonho – A influência americana – Krishnamurti – O direito de secessão – O grande problema – A grande idéia – O armistício d Catanduva – O bombardeio de São Paulo – O cabeça chata – O despique – Euclides, um gênio americano – A mata virgem – Ariel e a Rainha Mab – Uma visita a Guiomar Novais – O saco de carvão – D. Bosco e o petróleo – Estradas – A pucela de Indiana – Azoteida.

O escândalo do petróleo e ferro
O Escândalo do Petróleo foi escrito e publicado em 5 de agosto de 1936 pela Editora Nacional. Os cinco mil exemplares sumiram como pão quente. Em 14 de agosto soltaram uma Segunda edição com mais cinco mil que também desapareceram, levando os editores a lançar a terceira edição com dez mil exemplares.

O livro tinha uma dedicatória às Forças Armadas brasileiras dizendo: “Exércitos, marinhas, dinheiro e mesmo populações inteiras nada valem diante da falta de petróleo”. O livro é um protesto indignado contra a burocracia federal que “não perfura, nem deixa que se perfure” para encontrar petróleo, e uma denúncia à ação das grandes empresas estrangeiras assim como a submissão de nossas elites aos interesses delas. Quando reunido nas obras completas da Brasiliense esse livro já estava na sua décima edição.

O Ferro completa esse volume com o relato da luta de Lobato para o uso de solução brasileira para a exploração do minério do ferro. Para ele, Volta Redonda não era a solução mais apropriada e defendia que o grande futuro da nossa siderurgia estava na redução dos óxidos de ferro em baixa temperatura. A primeira edição desse livro é de 1931 e foi outro grande sucesso de vendas.

No prefácio do volume que reúne esses dois livros, o editor, Caio Prado Jr., destaca que “o seu pensamento (de Lobato) não ficou pairando no mundo dos sonhos e dos projetos e prédicas. Transformou-se em ação; e seu ideal de melhorar a sorte do povo brasileiro, de regenerar o seu Jeca Tatu, materializou-se num negócio de grandes perspectivas e amplas possibilidades”.

Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital
A primeira edição de Mister Slang e o Brasil – colóquios com o inglês da Tijuca -, foi publicada pela Editora Nacional em 1927. Slang é o velho inglês que em longos bate-papos com um carioca vai tecendo críticas ao modo de governar brasileiro e denúncias aos males da ditadura de Bernardes…

Problema Vital reúne série de artigos publicados no Estado de SP em 1918 e tem como epígrafe: “O Jeca não é assim: está assim”. Aqui Lobato resgata a figura do caboclo e reafirma sua fé no brasileiro impedido de construir uma grande nação por uma elite predadora. Suas denúncias sobre o estado da saúde do povo provocaram grande repercussão na opinião pública obrigando o governo a adotar providências.

Sumário: 1º parte, Mr Slang – advertência – Da balbúrdia de idéias – Da maçaroca – De outras opiniões do Manoel – Do cruzeiro e outras miudezas – Do carpinteiro de Southdown – Do período ciclônico – Da indústria da repressão – Da camisola de força – Da proteção à incompetência – Do capítulo que faltou – Da Estrada Alegre – Dos direitos imorais – Do prasitismo camuflado – Da cabeça e da mão – Da importação de cérebro – De frutas e livros – Dos ladrões – Do suplício da senatoria – Das elites – Dos trinta homens – Nota final.

2º parte, Opiniões – Psicologia do jornal – Audiências públicas – O padrão – A moeda de borracha – Gânglios pensantes – A cegueira naval – Loucura – Guerra do livro – Artur Neiva – Resignação – A morte do livro – A desencostada – Assessores – Vacas magras e gordas – A maravilha do Calabouço – O quarto poder – Honni soit.

3º parte, Problema Vital – A ação de Osvaldo Cruz – Dezessete milhões de opilados – Três milhões de idiotas – Dez milhões de impaludados – Diagnóstico – Reflexos morais – Primeiro passo – Déficit econômico, função do déficit da saúde – Um fato – A fraude bromatológica – Início de ação – Iguape – A casa rural – As grandes possibilidades dos países quentes – Jeca Tatu.

América
Neste livro Lobato revive o personagem inglês Mr Slang e com ele percorre os Estados Unidos, mostrando a pujança daquele país, tecendo comparações, buscando soluções que possam servir para tirar o Brasil do atraso. Depois de passar 4 anos nos Estados Unidos, Lobato volta ao Brasil para dedicar-se inteiramente a lutar pelo petróleo e pelo ferro. A primeira edição foi lançada pela Editora Nacional em 1932.

Mundo da Lua e Miscelânea
A primeira edição de Mundo da Lua saiu em 1923 e reúne uns escritos de Lobato em um diário de sua juventude. Na edição das obras completas, foram acrescentados outros escritos posteriores e que ajudam a compreender a mocidade do autor. Miscelânea, também acrescentado a esse volume contém série de artigos sobre pessoas e impressões sobre viagens pelo interior do Brasil.

Primeira parte, Mundo da lua – trechos de um diário. Segunda parte, Fragmentos – trechos de um diário. Terceira parte, Miscelânea – Traduções – Processos americanos – Primeiro amor – A dourorice – Alice in the Wonderland – O segredo de bem escrever – Fim do esoterismo científico – Pearl Harbour – Pelo Triângulo Mineiro – Paulo Setúbal – Moeda aregressiva – La moneda rescindible – Planalto – Um romance que prenuncia outro – De São Paulo a Cuiabá – A cidade dos pobres – Júlio César da Silva – Apelo aos nossos operários – A geada – Mais estradas – Jesting Pilate – Quem é esse Kipling? Machado de Assis.

A barca de Gleyre
Com a epígrafe “Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. Vai de 1903 a 1948. O próprio Lobato se espanta: “quarenta anos do mesmo amigo e mesmo assunto, que fidelidade… E a conseqüência foi se tornarem uma raríssima curiosidade”. Lançada em 1943 é a última obre de Lobato na Editora Nacional.

O autor explica que carta não é literatura, é algo à margem da literatura… Porque literatura é uma atitude – é a nossa atitude diante desse monstro chamado público, para o qual o respeito humano nos manda mentir com elegância, arte, pronomes no lugar e sem um só verbo que discorde do sujeito. O próprio gênero memórias é uma atitude: o memorando pinta-se ali como quer ser visto pelos pósteros – até Rouseaau fez assim – até Casanova…. Mas cartas não… Carta é conversa com um amigo, é um duo – e é nos duos que está o mínimo de mentira humana.

Prefácios e entrevistas
O enorme sucesso de Lobato como escritor o fazia ser constantemente procurado por intelectuais e escritores que queriam associar seus nomes ao de Lobato para conquistar o público, e por jornalistas de todas as partes, principalmente durante a ditadura. Lobato dizia que se responsabilizava unicamente pelas entrevistas escritas de seu próprio punho. Como nunca estava satisfeito com as versões publicadas, parou de receber jornalistas.

Esse volume, com prefácio de Marina de Andrade Procópio de Carvalho, reúne 20 prefácios e 17 entrevistas.

Sumário: prefácio de Marina de Andrade Procópio – Prefácios (para os seguintes livros): Ipês, de Ricardo Gonçalves – Antologia de contos humorísticos – Seleta de contos brasileiros, organizada por Lee Hamilton – Contas de capiá, de Nhô Bento – Éramos seis, da Sra. Leandro Dupré – Luta pelo petróleo, de Essad Bey – Aspectos de nossa economia rural, de Paulo Pinto de Carvalho – Diretrizes para uma política rural e econômica, de Paulo Pinto de Carvalho – Nos bastidores da literatura, de Nelson Palma Travassos – Serpentes em crise, de Afrânio do Amaral – Nós e o universo, de Urbano Pereira – Bio-perspectivas, de Renato Kehl – Gilberto Freyre, de Diogo de Melo Menezes – Cartas para outros mundos, de Álvaro Eston – O pecado original, de Rocha Ferreira – Falam os escritores, de Silveira Peixoto – A sabedoria e o destino, de Maurice Maeterlinck – Uma revolução econômico-social, de Otaviano Alves de Lima – Prefácio de paraninfo na formatura de contadores de uma escola de comércio – carta-prefácio aos Poemas atômicos, de Cesídio Ambrogi.

Entrevistas: O Brasil às portas da maior crise de sua história – Inglaterra e Brasil – Um governo deve sair do povo como o fumo sai da fogueira – Entrevista com Silveira Peixoto – Resposta a uma “enquete” da Mocidade Paulista – Faz vinte e cinco anos… – Monteiro Lobato fala sobre o problema judaico e outros assuntos – Insultos ao Brasil – Eu sou um homem sem função – Entrevista ao Correio Paulistano sobre a beca na Academia Paulista de Letras – As orelhas de Vasco da Gama – Lobato, editor revolucionário – Monteiro Lobato na torre de marfim – Um mundo sem roupa suja … Que fazer da Alemanha depois da guerra? – Quando era proibido entrevistar Monteiro Lobato.

Conferências, artigos e crônicas
Reúne, segundo os editores, uma pequena parte da colaboração de Monteiro Lobato espalhada por jornais e revistas do País, ou apenas divulgada em pequenos folhetos, além de alguns textos inéditos. Da leitura desse volume, os leitores podem ter uma visão mais rica da ação de Lobato nos variados setores para onde convergiu seu talento.

Sumário: Prefácio – Conferência em Ubatuba – Conferência em Belo Horizonte – Prefácio a “No Silêncio” – Prefácio a “Minha vida e minha obra”- Sobre poesia e poetas I, II, III – Vida Ociosa – Discurso de agradecimento – Saudação a Horácio Quiroga – Torpilhar – O teatro brasileiro – Fantasia – O mais velho dos escultores: O acaso – Pedro Alexandrinho – O doutor Quirino – O cigarro do Padre Chico – A evolução das idéias argentinas – A hora perigosa – A glória – Estradas de rodagem – São Paulo e o Brasil – Reconstruir a casa – Como países se suicidam – A nossa doença – Confissões ingênuas – Fradique Mendes – Eu tomo o sol – A criança é a humanidade de amanhã – Mensagem à mocidade do Brasil – De quem é o petróleo da Bahia? – Georgismo e Comunismo – O planejamento do futuro – O visconde científico – História do rei vesgo – Entrevista coletiva – Zé Brasil – A última entrevista.

Literatura do minarete
O “Minarete” era o nome que Lobato e seu grupo de amigos mais chegados davam ao chalé onde realizavam suas tertúlias. Depois serviu para batizar um jornal que seu amigo Benjamim Pinheiro lançou em Pindamonhangaba, onde todos colaboravam. O editor reuniu nesse volume das obras completas os textos que Lobato publicara em diversos jornaisinhos na juventude enquanto estudante de direito.

Sumário: Outrora e Hoje – Juro! – A cor – O charuto – Rubis – Tio Pedrosa – Falta de assunto – Os lambe-feras – Da janela – Fragmento – Como se escreve um conto – A todo transe – A fuga dos ideais – Crônicas teatrais – Tão ingênua! – Diário dum esquisitão – Memórias de um velho – Assombro – Psicologia do sono – Futebol – Na roleta – En Tigelópolis – Sara Bernhardt – Um Giles moderno – A poesia japonesa – O queijo de Minas ou História de um nó cego – Filosofias – Em casa de Fídias – Duas dançarinas.

Cartas escolhidas.
Em dois volumes, com prefácio de Edgard Cavalheiro, reúne farta correspondência de Lobato, desde 1895 até 1948. Ao incorporar essas cartas às obras completas os editores quiseram ampliar os subsídios para a compreensão do homem e do escritor. Nas palavras de Edgard Carvalheiro – “Que as novas gerações extraiam destas páginas as lições que elas encerram. Nada do grande homem é sonegado nestas cartas. Elas refletem uma personalidade realmente invulgar. E despida de todo o aparato das biografias. O homem-Lobato está vivo, palpitante, nestes volumes”.

Fontes:

http://www.projetomemoria.art.br/ MonteiroLobato/bibliografialobatiana/bibliot.html

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Monteiro Lobato (Conto: Jeca Tatu : A ressurreição)

I

Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários fichinhas pálidos e tristes.
Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.

Todos que passavam por ali murmuravam:

Que grandíssimo preguiçoso!

II

Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.

Por que não traz de uma vez um feixe grande? Perguntaram-lhe um dia.

Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:

Não paga a pena.

Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa.

Só pagava a pena beber pinga.

– Por que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.

– Bebo para esquecer.

– Esquecer o quê?

– Esquecer as desgraças da vida.

E os passantes murmuravam:

– Além de vadio, bêbado…

III

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.

Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.

Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por quê? Desânimo, preguiça…

As pessoas que viam aquilo franziam o nariz.

– Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro…

IV

Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.

Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?

Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:

– Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.

– Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?

– É que ele mata.

– E porque você não faz o mesmo?

Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:

– Quá! Não paga a pena…

– Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V

Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.

– Amigo Jeca, o que você tem é doença.

– Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito que responde na cacunda.

– Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase.

– Anqui… o quê?

– Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.

– Essa tal maleita não é a sezão?

– Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão.

VI

O doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: “E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?”

– Ouvi, sim, senhor!

– Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta.

– Até por lá, sêo doutor!

Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras.

Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal…

VII

Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas.

– Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota p’ra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida.

Jeca abriu a boca, maravilhado.

– Os anjos digam amém, sêo doutor!

VIII

Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era “positivo” e dos tais que “só vendo”. O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse:

– Tire a botina e ande um pouco por aí.

Jeca obedeceu.

– Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente.

Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado.

– E não é que é mesmo? Quem “havera” de dizer!…

– Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser.

– Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T’esconjuro! E pinga, então, nem p’ra remédio…

IX

Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca.

A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan… horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.

Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.

– Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta… diziam os passantes.

– Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do “intaliano”.

X

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.

– Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!…

Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a

– Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira…

A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias – azulou! Dizem que até hoje está correndo…

XI

Ele, que antigamente só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.

– Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?

– Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo.

– Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!

– Quero mostrar a esta paulama quanto vale um homem que tomou remédio de Nha Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça.

O italiano via aquilo e coçava a cabeça.

– Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco!

XII

Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.

O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças assim.

E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.

E se alguém lhe perguntava:

– Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia:

– É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel…

E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:

– E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!…

XIII

Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente.

Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.

Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.

Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos.
E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros!

Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!

– Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!

– Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem por aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.

XIV

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!…

As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.

– Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.

O seu professor dizia:

– O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen… Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da “branca”…

XV

Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.

– Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um “estranja” legítimo, até na fala.
Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.

– Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos…

E ninguém duvidava de nada.

– O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito…

XVI

A fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame…

Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe.

Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio.

– Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda.

E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII

Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas.

O seu entusiasmo era enorme. “Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro…”

E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII

Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais.

Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.

Nota da redação:
Este conto foi adotado como peça publicitária do Laboratório Fontoura. Adaptado em história em quadrinhos ou na forma de folheto, ou ainda fazendo parte de almanaques, teve até os anos 60 uma tiragem de cerca de 18 milhões de exemplares. Há testemunhos de que sua leitura transformou a vida de muita gente.

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Monteiro Lobato (Conto: O Colocador de Pronomes)

Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense” , com bastante sucesso.

Vivia em paz com as suas certidões quando o flechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Tiburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Tiburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

Acorda, donzela…

Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou…

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

Anjo adorado!
Amo-lhe!

Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.

Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

– A família Tiburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

– É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

– Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

– … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

– Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

– Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

– Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

– Laurinha, quer o coronel dizer…

O velho fechou de novo a carranca.

– Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…

– Oh, coronel…

– … ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.

– Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

– Deus vos abençoe, meus filhos!

No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.

Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal…

Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar.
Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar “pomos de Hesperides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:

– Salta fora, regionalismo de má sonância!

A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

– A ingresia d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.

E suspirava, condoído dos nossos destinos:

– Povo sem língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…

E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.

– Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.

E, baixando as cangalhas, lia:

– Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!

– … no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são, tarelos!

E suspirava deveras compungido.

– Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à… adivinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…

– Mas a evolução…

– Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos – pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.
Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.

– “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…

Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

– Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

– Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.
Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

– Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu a fim de remendar-se filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.

– Experimentemos processo outro, mais suasório.

E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos”.

Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.

Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.

– Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim…

Aldrovando empertigou-se.

– Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da esquina.

Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…

O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.

– Hei – de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!

E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.

Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.

– Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…

O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

– Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.

– ? ? ?

– Que reformes a tabuleta, digo.

– Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?

– Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.

O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

– Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz…

– Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.

O ferreiro abriu o resto da boca.

– O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”

– Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que …

– … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.

– V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

– Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali…

– Se V. S. paga…

Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela

Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.

A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina adentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

– Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!

O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.

– “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…

O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

– Não hei – de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…

Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…

Que vinha vindo mas não veio, aí!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

– Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.

– Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

Disse e fez.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

À memória daquele que me sabe as dores,

O Autor.

Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.

A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI – Do método automático de bem colocar os pronomes – engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o “914” da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para libertas o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa adentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:

– Me dá um mata-bicho, patrão!

Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.

– Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.

O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

– Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:
“daquele QUE SABE-ME as dores”.

– Deus do céu! Será possível?

Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

– “que sabe-me”…

Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.
Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

– Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

E morreu.

De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.

Paz à sua alma.

1920

(1) Octave Mirbeau – Journal d’une Femme de Chambre.

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Sebos, o destino dos livros (Gilfrancisco)

Bibliófilos e discófilos constituem uma seita que ama livros e discos acima de todas as coisas. Eles reviram sebos à procura de raridades, podem não ser nem muito eruditos nem muito importantes. Freqüentadores assíduos dos sebos – lugares onde, aos sábados, vários intelectuais também fazem ponto de encontro – eles passam horas, às vezes dias inteiros, garimpando seus “tesouros”, como costumam chamar suas obras raras.

Nos sebos há um pouco de tudo. Vale a lei da oferta e da procura. Vamos encontrar também, volumes gastos, maltratados ou sujos, edições amareladas, poeira fina, páginas rotas e preços às vezes baixos. Portanto, para quem gosta de livros o salão de festas é uma livraria ou uma biblioteca, pública ou particular.

O acervo dos sebos é formado principalmente pela aquisição de bibliotecas. A morte acaba levando os parentes a se desfazerem dos livros, seja pela dificuldade de manutenção ou simplesmente para se livrarem dos objetos que despertam saudades.

Livros ocupam espaços e os apartamentos são cada vez menores, inclusive na altura, que era por onde as estantes podiam espalhar-se. As vezes, os descendentes não tem os mesmos interesses intelectuais que o chefe da família.

As constantes mudanças de casas para apartamentos pequenos também costumam motivar as pessoas a abrirem mão de suas bibliotecas. E há aqueles proprietários, com cara e coragem, vão importunar logo a viúva ou os filhos do colecionador, e em troca de mísera quantia, transformam o seu estabelecimento em entreposto onde os bibliófilos saciam um pouco de sua sede de saber ou da mania de ter coisas… Uma coisa é certa, não é por questões financeiras, as pessoas que têm boas bibliotecas não necessitariam do pequeno rendimento que a venda de seus livros lhes proporcionaria.

Os sebos, tradicionais comércios de vendas, compras e trocas de livros usados, e que em outras cidades é apenas isso mesmo – comércio, embora trabalhando com mercadoria cultural – que aos poucos vai adquirindo traços de verdadeiro movimento cultural em ascensão, trazendo expectativas de um redimensionamento não só aos que trabalham no ramo mas aos próprios caminhos do comportamento de quem impulsiona a cultura.

O comércio de livros usados se perde na noite dos tempos em todos os países de tradição editorial ele existe, como oportunidade de se encontrar obras raras e esgotadas a preço barato. Em Paris, é denominado de “bouquinerie”, e todo turista que visitou a capital francesa conheceu o pitoresco da fileira de bancas de livros às margens do rio Sena.

No Brasil, os estabelecimentos deste tipo receberam a denominação “sebos”. Nas grandes cidades brasileiras, certas ruas e bairros caracterizam-se pela proliferação deles. É o caso do bairro de Pinheiros, em São Paulo ou o da rua São José, no Rio de Janeiro, que durante muito tempo teve esta característica, de rua dos sebos.

Sebo é enriquecimento cultural: é um local onde se encontra material de vanguarda tradicionalista. Sebo é também antropologia: o livro usado é a história de um leitor, com anotações, frases sublinhadas e história muitas vezes documentada em fotos e documentos familiares esquecidos em páginas passadas e repassadas, e que sebistas sensíveis e atentos já estão colecionando e catalogando em pastas apropriadas. Existe até um Guia de Sebos Brasileiros, que teve sua 1a. edição em 1990.

É ainda nos sebos que vão parar alguns dos volumes roubados das Bibliotecas Públicas, do Arquivo Público, do Instituto Geográfico e Histórico, da Academia de Letras, de Instituto e colégios particulares – como atestam os respectivos carimbos.

Já é tempo de que o humanismo dos sebos seja reconhecido em seu papel social e cultural. Que as pessoas aprendam a ter na palavra “sebo”, quando se trata deste tipo especial de comércio, não mais uma palavra agressiva e feia, e sim algo que recorde bons momentos de convivência com estes amigos fiéis e sábios: os livros, os discos, as revistas…

Num país que a crise econômica vem transformando o hábito de ler num verdadeiro luxo, uma saída para não pagar os preços de ficção científica cobrados pelas livrarias é comprar nos sebos. Hoje, os sebos não são só dos caçadores de livros raros ou das classes mais pobres. O universo de consumidores cresceu e sebistas continuam ampliando seus negócios.

Nesses pontos se vendem, se compram e se trocam livros de literatura, filosofia, história, didáticos, enfim, de todas as especialidades e até mesmo pornográficos. Revistas e também coleção de jornais podem ser encontrados.

Não há preço fixo no sebo. Tudo está aberto a negociação. “O preço, agente discute”, diz um proprietário. Para os sebistas conta muito a curiosidade do freguês. E se alguém demonstrar necessidade e urgência em adquirir um certo volume, o sebista anota tudo com a sua psicologia básica. Neste caso o livro é valorizado. O sebista tem faro para negócio, percebe o tipo de freguês e até a forma como paquera um livro usado. Por este motivo é que se questiona o item”raridade de um volume”. O que pode ser raro para um, pode ser figurinha fácil para outro.
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Gilfrancisco é jornalista, pesquisador e professor universitário.

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/sebo

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O Conto – como fazer

Teses sobre o conto
(por Ricardo Piglia )
1. Num de seus cadernos de notas Tchekov registrou este episódio: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida“. A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.

2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.

O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.
O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

3. Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de cruzamento são a base da construção.

4. No início de “La Muerte y la Brújula”, um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. “Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da “Historia Secreta de los Hasidim“. O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das “Mil e Uma Noites” em “El Sur”; como a cicatriz em “La Forma de la Espada”) da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.

5. O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.

Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.

6. A versão moderna do conto que vem de Tchekov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de “Dublinenses”, abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.

A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.

7. “O Grande Rio dos Dois Corações”, um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.

O que Hemingway faria com o episódio de Tchekov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.

8. Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o “kafkiano”.

A história do suicídio no argumento de Tchekov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.

9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.

A história visível, o jogo no caso de Tchekov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

10. A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.

Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em “La Muerte y la Brújula”, a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em “El Muerto”; com Nolan em “Tema del Traidor y del Héroe”; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.

11. O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

O CONTO

Calcula-se que o hábito de ouvir e de contar histórias venha acompanhando a humanidade em sua trajetória no espaço e no tempo. Em que momento o primeiro agrupamento humano se sentou ao redor da fogueira para ouvir as narrativas fantásticas ou didáticas capazes de atrair a atenção e o gosto dos presentes e de deixar, no rastro de magia em que eram envolvidas, uma lição e/ou um momento de prazer?

O que se pode afirmar é que todos os povos, em todas as épocas, cultivaram seus contos. Contos anônimos, preservados pela tradição, mantiveram valores e costumes, ajudaram a explicar a história, iluminaram as noites dos tempos.

De Sherazade (uma voz de mulher que conta mil e um contos nas Mil e uma noites, fazendo, dessa forma, a compilação dos contos mais conhecidos no final da Idade Média) aos contistas contemporâneos, a narrativa curta tem sido observada com especial interesse.

A fórmula de compilação e narração de contos até então mantidos no ideário popular adotada nas Mil e uma noites foi largamente adotada e repetida por muitos autores nos anos subseqüentes (Veja-se, por exemplo, o Decamerão, de Bocaccio).

Aos poucos, novas modalidades de contos foram surgindo, diferenciando-se dos contos infantis e dos contos populares, regidos agora por uma nova maneira de narrar, de acordo com a época, os movimentos artísticos que essa época produziu e o estilo individual do autor/narrador.

Luzia de Maria, no volume O que é conto, da coleção Primeiros Passos, introduz seu leitor na discussão das várias modalidades de conto, começando por distinguir “o conto como forma simples, expressão do maravilhoso, linguagem que fala de prodígios fantásticos, oralmente transmitido de gerações a gerações e o conto adquirindo uma formulação artística, literária, escorregando do domínio coletivo da linguagem para o universo do estilo individual de um certo escritor”. [1]

E surgiram os contos de humor, os contos fantásticos, os contos de mistério e terror, os contos realistas, os contos psicológicos, os contos sombrios, os contos cômicos, os contos religiosos, os contos minimalistas, os contos estruturados de acordo com as técnicas da narrativa.

Ricardo Piglia assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em entrelaçar ambas e, só ao final, pelo elemento surpresa, revelar a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira se desenrola. As duas histórias encontram-se nos pontos de cruzamento que vão dando corpo a ambas, embora o que pareça supérfluo numa seja elemento imprescindível na armação da outra.

A história visível e a história secreta, segundo ele, recebem diferentes tratamentos no conto clássico e no conto moderno. No primeiro, uma história é contada anunciando a outra; nos contos modernos, as duas histórias aparecem como se fossem uma só.

Na forma reduzida do conto, a intensidade da busca: “O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta.” [2]

As qualidades que lhe são apontadas são a concisão e a brevidade, ou seja, é estruturado com uma linguagem densa, com o máximo de economia de palavras. Sua dimensão se dá no sentido da profundidade.

O conto de feição clássica se organiza numa cadeia de acontecimentos que centralizam o poder de atração, apresentando, conseqüentemente, ação, personagens, diálogos. Caracteriza-se como narração de um episódio, uma única ação, com começo, meio e fim, concentrado num mesmo espaço físico, num tempo reduzido. Destaca-se por sua unidade de tempo e de ação.

O conto contemporâneo, reflexo da nova narrativa que se foi construindo nas últimas décadas, substituiu a estrutura clássica pela construção de um texto curto, com o objetivo de conduzir o leitor para além do dito, para a descoberta de um sentido do não-dito. A ação se torna ainda mais reduzida, surgem monólogos, a exploração de um tempo interior, psicológico, a linguagem pode, muitas vezes chocar pela rudeza, pela denúncia do que não se quer ver. Desaparece a construção dramática tradicional que exigia um desenvolvimento, um clímax e um desenlace. Em contrapartida, cobra a participação do leitor, para que os aspectos constitutivos da narrativa possam por ele ser encontrados e apreciados. Exige uma leitura que descortine não só o que é contado, mas, principalmente, a forma como o fato é contado, a forma como o texto se realiza.

1- REIS, Luzia de Maria R. O que é o conto. São Paulo: Brasiliense. 1987, p.10.
2. PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p. 24.

Ricardo Piglia é escritor argentino, autor de, entre outros, “Respiração Artificial” (Iluminuras) e “Dinheiro Queimado (Companhia das Letras). O texto acima foi publicado originalmente em “O Laboratório do Escritor” (Iluminuras).

Tradução de Josely Vianna Baptista

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/comofazer

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Augusto dos Anjos (1884 – 1914)

Referendado como o Poeta da Morte, dos cemitérios, dos ossos e da carne em putrefação, Augusto dos Anjos, ao contrário do que muitos imaginam, segreda em sua obra poética uma filosofia esotérica libertária,capaz de nos guiar pela senda da mais pura transcendência.

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão, esta pantera,
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Estes são seus “Versos Íntimos”, escritos em 1906 pelo poeta Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, a compor um dos mais declamados trabalhos deste enigmático discípulo de Baudelaire, cuja breve vida esteve marcada por um intenso questionamento filosófico, disseminado por toda a sua obra.

“Versos Íntimos” expõem, de modo formal e cruel, a nossa efêmera condição, fadados que estamos a nos prostrar na lama sepulcral não sem antes experimentarmos toda a sorte de sofrimentos advindos do relacionamento humano.

Só mesmo a perfeição faria toda a filosofia Hobbeana, a considerar o homem lobo do próprio homem, caber assim metrificada nos catorze versos (geralmente dois quartetos e dois tercetos) decassílabos heróicos – 6a e 10a sílabas são tônicas – de um único soneto. O poeta observa laconicamente o definhar de nossos sonhos, lembra-nos a todos de que a ingratidão é o natural presente que nossas mãos estão acostumadas a receber por toda a vida, e nos adverte acerca das traições a que estamos sempre sujeitos, considerando por isso inútil qualquer espécie de remorso que possamos sentir esboçar-se em nosso peito. São versos realistas, eivados de um pessimismo desconcertante, a reproduzir o comportamento da sociedade hipócrita à qual estamos condenados desde o nascimento.

Por dizer verdades como estas, Augusto dos Anjos pagou seu preço. Sua poesia, considerada por muitos impressionista, não agrada à maioria, posto que seus versos rasgam as principais feridas da natureza humana, não acostumada a falar da morte sem estremecer, pouco disposta a observar os erros de sua maneira absurdamente competitiva de viver.

Entretanto, se nos detivermos mais serenamente sobre sua obra, encontraremos não obstante os termos difíceis por onde esbanja o cientificismo, toda uma mística que lhe serve de arcabouço, inequívoca função compensatória para o pessimismo declarado do poeta, sempre a questionar severamente o sentido de nossas vidas. Em alguns de seus sonetos e outras partes não tão popularizadas de seus versos, deparamo-nos com um caráter filosófico ocultista absolutamente singular em toda a literatura brasileira, com genuínas reflexões à moda esotérica, em versos sublimados por uma religiosidade espiritualista, voltados para a libertação e transcendência desta nossa alma, a mesma que, no mais das vezes, vive atormentada.

Augusto dos Anjos nasceu aos 20 de abril de 1884 no engenho do Pau-d’Arco, na Paraíba do Norte. Criado no seio de um austero regime patriarcal, o poeta veio ao mundo em época tumultuada, quando a sociedade assistia ao crescimento dos movimentos abolicionista e republicano que se contrapunham à decadente monarquia de fim de século. Filho do advogado Alexandre Rodrigues dos Anjos e de D. Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, Sinhá Mocinha para os íntimos, foi alimentado na primeira infância pelo leite da escrava Guilhermina, a quem dedicaria anos mais tarde o soneto “Ricordanza della mia Giuventú”

Augusto, terceiro filho de uma prole de seis, não cursou escola alguma até seus 16 anos, quando iniciou sua produção literária. Recebeu do próprio pai, junto de seus irmãos, todas as lições de humanidades. Somente o caçula não pôde ser educado pelo “Dr. Alexandre”, vitimado que fora o genitor pela paralisia geral em 1905, ano em que faleceu; e foi o próprio Augusto quem se encarregou de ensinar o irmão menor. Ao pai, dedicou três sonetos na ocasião: “A meu pai doente”, “A meu pai morto”, e “Ao sétimo dia de seu falecimento”. A família reunida, tomava lições às sombras do tamarindo, árvore que marcou a vida de Augusto, considerada membro da família, sob a qual o jovem se sentava para ler, estudar, e compor seus versos. A “árvore de amplos agasalhos” acha-se homenageada nos sonetos “Debaixo do Tamarindo” e “Vozes da Morte” entre outros, peças de elevada sensibilidade.

Dr. Alexandre era um misantropo. Por nada trocava a quietude de sua vida doméstica, e passava seus dias lendo, sempre alienado das questões administrativas do engenho, que ficavam a cargo de seu primo, Dr. Aprígio, monarquista de índole racista e reacionária. Alexandre era homem ilustrado, dono de vasta biblioteca. Títulos de todos os gêneros incluíam os hinos sagrados do “Rig Veda”, cujo nome sânscrito significa “saber”, e o “Phtah-Hotep”, livro egípcio de sabedoria reputado à V dinastia, cerca de 2400 a.C. Augusto os menciona em seu soneto “Agonia de um Filósofo”. O acervo abrangia obras filosóficas, poesia, literatura clássica, códigos do Direito, livros nacionais e obras importadas da Europa que chegavam por navio, escritas em todas as línguas latinas, inglês e alemão, além dos dicionários e das gramáticas de grego e latim. Todos liam de tudo naquela casa, até faziam circular internamente três jornais escritos à mão pelos próprios membros da família, “O Miserável”, “O Espinho”, e “O Ourinol da Tarde”, este último temido pelo tanto de pilhérias que trazia, dirigido com bom humor pelo conservador Dr. Aprígio. Neles, semanalmente, “publicavam-se” crônicas, comentários políticos, opiniões, receitas, enigmas e charadas, além de verdadeiras disputas literárias. Lamentavelmente, deles nada resta; nenhum exemplar desta “imprensa sui generis” sobrou.

A família também se divertia promovendo sessões espíritas. Embora todos ali se intitulassem católicos fervorosos, a virada do século trazia em seu bojo a febre das sessões espíritas, muito praticadas na Europa em torno de manifestações curiosas que alimentavam a crença nos espíritos desencarnados, capazes de interferir em nosso mundo e nos trazer mensagens do além. Augusto dos Anjos não perdeu tempo e resolveu investigar o outro mundo por si mesmo. Passou a promover as sessões na sala de jantar de sua casa, para o desespero de sua mãe que, nestas horas, se agarrava ao terço ou recitava o responso de Santo Antônio, temendo o sobrenatural. Conta-se que Augusto logo passou a ser visto como médium qualificado. Certa feita teria recebido o espírito de Gonçalves Dias que poetou na melhor da verve maranhense. Não houve quem duvidasse da autoria dos poemas psicografados.

Mas convém lembrar que Augusto bem conhecia o estilo dos grandes poetas, ele próprio era repentista nato, capaz de fazer sonetos de cabeça em questão de dois ou três minutos, para só depois transcrevê-los num papel. Porém, nessa época, o Pau-d’Arco foi assolado por medos de assombração de toda gente. A família presenciara fenômenos no estilo Poltergeist na casa grande, eram batidas que à noite assustavam. Na capela do Pau-d’Arco (também cemitério), pegada à casa, surgiram manchas de gordura em seus ladrilhos, às quais o poeta chamou de “óleo malsão”. A família estava atarantada. À noite não havia quem abrisse as janelas com medo dos espíritos, e os empregados se apavoraram por conseguinte, julgando que a gordura que escorria na capela era dos espíritos perturbados que haviam acordado com as sessões praticadas por Augusto. Dona Mocinha tomou atitude enérgica e proibiu as tais sessões. Nas “Cismas do Destino”, o implicado perpetraria as pancadas que os atemorizavam:

“Todas as divindades malfazejas,
Siva e Ahriman, os duendes, o Yn e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas”.

No ano de 1900 matricula-se no Liceu Paraibano, e após rápida passagem pelos bancos escolares presta exames para a Faculdade de Direito de Recife, sendo facilmente aprovado em 1903. Fez o chamado curso vago, estudava no Pau-d’Arco e ia a Pernambuco apenas cumprir as provas que, em seu caso, eram mais severas e incluíam todos os pontos do início ao fim do curso. Nesta época é influenciado pelo positivismo de Comte, propalado aos quatro cantos por seu professor, Tobias Barreto.

O poeta formou-se em 1907, mas, igual ao pai, não exerceu a profissão. Em 1908 é nomeado professor de literatura do Liceu Paraibano. Também passa a dar aulas particulares que serão seu ganha pão, uma vez que a família, por conta das crises econômicas e da vertiginosa baixa do açúcar no mercado internacional, viu-se obrigada a hipotecar seus dois engenhos, para os perder definitivamente em 1910. Neste mesmo ano, aos 4 de julho, casa-se com Ester Fialho, de quem haverá três filhos. O primeiro deles foi um natimorto de sete meses a quem o poeta escreveu seu soneto “Agregado infeliz de sangue e cal…”. Em 1912 mudar-se-ia para o Rio de Janeiro, vivendo sempre em pensões baratas e ministrando aulas. Nasce sua filha Glória nesse ano, e no seguinte, Guilherme. Mas sua permanência no Rio seria curta, só serviria mesmo para empreender a publicação de seu livro.

Mas antes de falarmos dele, convém ainda citar outro nome, não muito importante, mas que exerceu certo fascínio sobre a juventude de Augusto. Foi seu tio Generino dos Santos, que não vivia no engenho. Ao visitá-lo provocava-o com os ideais libertários que, como maçon convicto e republicano extremado, professava. Era também defensor ferrenho do positivismo que, embora presente na obra augustiana, não absorveu toda a inquietação do poeta. Augusto fora buscar suas verdades mais além; transpondo o cabedal de toda a literatura clássica, leu Darwin, Leibnitz, também os alemães Spencer e Haeckel, e abraçou-se ao filósofo Schopenhauer, precursor da noção de inconsciente, que o conduziu às portas do brahamanismo e do budismo, temas centrais de Augusto, a denotar a espiritualizada busca de sua mente efervescente, acusada pelos incautos de ter sido meramente pessimista e mórbida.

Exemplo disso é o “Monólogo de uma Sombra”; são 31 sextilhas que abrem seu único livro intitulado “Eu”. A primeira edição data de 1912; trazia 58 poemas em 131 páginas impressas pela Princeps da Guanabara, dois anos antes da morte do poeta. Foi custeado por seu irmão Odilon dos Anjos, e não vendeu o suficiente para ressarcir o investimento de 550 mil réis. Só a foto de Augusto, a figurar no livro, custou 50 mil.

O que a princípio possa parecer egolatria, em verdade revela um Eu em amplo sentido de expressão, repleto de conflitos, tomado por densas questões existenciais e uma preocupação permanente com a transcendência da alma. O Eu de Augusto mais parece ser um Eu profundo, distante do ego, e substancializado como essência. Por ele Augusto se apresenta aos leitores em pleno exercício de reflexão cosmogônica, à moda dos antigos pré-socráticos, que se perguntavam acerca do cósmico segredo, a respeito da substância de todas as substâncias. Perpassa por toda sua poética uma noção monista e panteísta do universo, isto é, uma idéia defendida também pelos gnósticos e alquimistas, cuja raiz se encontra no orfismo, de que tudo na natureza é vivo, mesmo a matéria inanimada, e de que cada uma de suas partes representa o todo. À moda schopenhaueriana, Augusto acreditava na expiação como forma de solucionar a perene luta entre as vontades, e aguardava pelo advento de uma humanidade redimida e pura, quando os homens valorizariam o sentido universal da vida em detrimento das questões egóicas e particulares da alma. Isto está bem claro em seu título “Os Doentes”, onde encara a morte como mera etapa do processo ininterrupto da vida, a assinalar não o fim, mas uma continuidade ou recomeço de seu perene ciclo.

A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do “Eu” — desde 1919 constantemente reeditado como “Eu e outras poesias” — um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma. Com o tempo, Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais lidos do país, sobrevivendo às mutações da cultura e a seus diversos modismos como um fenômeno incomum de aceitação popular.

Augusto dos Anjos bateu também às portas do ocultismo e da teosofia, galgando a mesma senda de Fernando Pessoa, de quem era leitor. Pessoa tornar-se-ia divulgador da doutrina de Mme. Blavatsky em Portugal, tradutor que fora das obras teosóficas de Annie Beasant. A doutrina esotérica ocupava a mente do poeta paraibano, que também se interessou pela astrologia, mas sua breve existência não lhe deu o tempo para que se iniciasse formalmente nas Escolas de Mistério.

Esta sua mística, espécie de filosofia em forma de poesia inclassificável, destoante de qualquer escola literária, transborda por seus intrincados versos, científicos sim, mas sobretudo herméticos. Exemplos tácitos de sua espiritualidade poética, dentre tantos outros, são “O Lamento das Cousas”, soneto schopenhaueriano que bem sintetiza os paradoxos atualmente pesquisados pela mecânica quântica; “O Meu Nirvana”; “Caput Immortale”; “Louvor à Unidade”, soneto que privilegia a mônada de Leibnitz (ou pitagórica, se preferirem); “Supreme Convulsion”; “Natureza Íntima”, verdadeira máxima alquimista, a de que a natureza evolui per si e também em decorrência do aprimoramento pessoal de cada um; “Ao Luar”, soneto em que descreve aquilo que bem pode ter sido uma experiência sua fora do corpo, fenômeno este com que se preocupam hoje os parapsicólogos; e “Ultima Visio”, no qual é a alquimia gnóstica quem se pronuncia.

Vejamos um dos melhores exemplos desta sua visão budista-panteísta, essencialmente presente em seu diálogo interno “Solilóquio de um Visionário”, publicado na citada edição do “Eu”:

“Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue, transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo.

Vestido de Hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais…

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!”

O poeta, evidentemente, está aqui às voltas com o eterno mistério da morte, ao qual classifica como “velho e metafísico”. Caberia uma tese inteira somente sobre este soneto, mas indiquemos o essencial. Suas metáforas tratam mesmo de um corpo que, uma vez enterrado, libertaria sua alma. O poeta diz comer seus olhos crus avidamente, ou seja, imagina transpor seu olhar superficial sobre as coisas, seu entendimento comum da vida. Uma vez liberto dos limites impostos pela carne, ao completar sua “digestão”, isto é, ao metabolizar suas reflexões sobre o labiríntico tema, o poeta tem suas impressões visuais (algo próprio dos sentidos físicos) substituídas por visões divinas, recurso dos que se elevam em suas orações, e que permitem perceber as coisas pela ótica superior de um habitante das alturas (íncola etéreo). Esta é a condição da alma “desprendida”, que se veste de Hidrogênio incandescente (a maiúscula é alegorizante, sugere não o elemento químico, mas algo extraordinário), original metáfora para o estado anímico incorpóreo. Passa assim o poeta a vagar pelas monotonias siderais, talvez uma alusão ao interregno entre duas existências para todo aquele que, como Augusto dos Anjos, acredite na reencarnação. Mas ele vaga improficuamente, e o sem sentido de seu vagar se explica justamente por causa de sua atual condição, a de se achar encarnado, com a alma às escuras, pois é necessário que nesta existência a alma ainda aprenda mais!
Cético em relação às possibilidades do amor (“Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me”), Augusto dos Anjos fez da obsessão com o próprio “eu” o centro do seu pensamento. Não raro, o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo é egoísmo e angústia em seu livro patético (“Ai! Um urubu pousou na minha sorte”). A vida e suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se a combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e biológicas, decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua angústia, sedimentou-lhe o amargo pessimismo (“Tome, doutor, essa tesoura e corte / Minha singularíssima pessoa”). Ao asco de volúpia e à inapetência para o prazer contrapõe-se porém um veemente desejo de conhecer outros mundos, outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma (“Quero, arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais”).
Augusto dos Anjos, que nunca ficara doente em sua vida, foi tomado por uma pneumonia dupla de funesta proporção. Morreu assim, precocemente, aos 30 anos, em Leopoldina, aos 12 de novembro de 1914. Seu livro foi reeditado por seu amigo Órris Soares, acrescido de todas as suas outras poesias dispersas, em 1920. Desde então vem sendo o poeta nordestino mais lido, também o menos compreendido. Poeta não da morte, nem da carne em putrefação, mas sim da vida, capaz que foi de ver o mundo num grão de areia e de ouvir verdades ditas pelas pedras mortas

Fontes:

URBAN, Paulo. Augusto dos Anjos: O Poeta da Espiritualidade. Publicado na Revista Planeta nº 337 / outubro 2000. Disponível em

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Conto de Ficão Cientifica: Lucy in the Sky with Diamonds

O que havia era um calmo “mar” escuro, que foi perturbado por um pequenino fio luminoso amarelado com bordas vermelhas. Depois foi ficando cada vez mais intenso; ofuscando a vista. Um arco incandescente começou a se formar com uma beleza indescritível; agora um pequeno ponto se destacava no centro da semi-esfera como um ponto mais luminoso. Logo a cabine ficou completamente iluminada, os raios amarelados entravam pela pequena janela e a cabine começava a ficar aquecida. A íris de Michelle se contraiu involuntariamente para se acostumar com a luz. Já estava em órbita há três meses, mas ainda se deslumbrava com o amanhecer visto a mil quilômetros da superfície terrestre. “Here comes the Sun”, pensou Michelle.

Michelle teria que se preparar para mais um dia de trabalho; além de ocupar o cargo de Comandante da Estação Espacial LUCY, suas culturas de morangos estavam em um estado adiantado de desenvolvimento. Era impressionante como os morangos (e outros vegetais) se desenvolviam quando estavam “sem peso”. Principalmente com um ambiente sob medida (luz, umidade e temperatura) e uma espécie de cortiça porosa que continha tudo aquilo que o melhor solo terrestre podia oferecer. Assim que a tecnologia fosse mais desenvolvida, a Terra teria “Campos de Morangos para sempre!!!” Pensava Michelle.

Para variar, outra cena cômica se deu durante suas abluções matinais. Hoje foi o sabonete que escapou para o teto. Resolvido o pequeno incidente, Michelle se dirigiu ao módulo cilíndrico “Miss Eleanor Rigby”, que dava acesso à sala de exercícios. Ao passar pela cabine do Sargento Peppers, observou que ele, novamente, não havia prendido bem as amarras ao dormir, e estava no teto batendo levemente com a cabeça no duto de ventilação que o havia “sugado” lentamente durante a noite. Havia uma grande vantagem em uma Estação Espacial: se você perdesse alguma coisa, essa coisa iria invariavelmente se dirigir ao duto de ventilação.

Depois de uma hora na bicicleta ergométrica, Michelle se sentia melhor, já que ativara a circulação em seu corpo e exercitara suas pernas. A imponderabilidade, causava várias mudanças no corpo humano. Como o corpo está em queda livre, o sangue se dirige para a cabeça, deixando-a inchada, com os olhos vermelhos e o nariz entupido (por isso dizem que a comida de astronauta não tem gosto, o sentido do olfato fica muito debilitado em órbita); as pernas ficam finas, com o os músculos gelatinosos. A pessoa fica alguns centímetros mais alta, pois sua coluna vertebral não precisa sustentar o peso do corpo; o famoso “frio na barriga” é constante, já que o aparelho digestivo fica “flutuando”. Outro problema é que o cálcio dos ossos escapa pela urina, deixando os ossos frágeis. Com a diminuição dos movimentos, consome-se menos oxigênio, diminuindo em até 20% o número de glóbulos vermelhos no sangue. Por essas e outras, é necessário uma dieta ricam em todos os tipos de alimentos e uma boa dose de exercícios.

Michelle estava pronta para mais um dia de trabalho. Encontrou com o Doutor Robert no caminho da sala de comunicações. Ele era o responsável pela saúde da tripulação. Michelle entrou no pequeno cilindro. Tinha que dizer a senha diária ao computador:

_”Yellow Submarine”. Disse Michelle.

_Bom dia Cap. Michelle. Respondeu a Unidade de Inteligência Artificial (UIA).

_Bom dia Walrus. Respondeu Michelle.

_Cap. Michelle, acabo de receber uma mensagem.

_Não vá me dizer que você não tem a menor idéia de onde ela vem! Não vejo nenhum monolito por aqui! Disse Michelle em tom jocoso.

_Entendi sua observação Cap. Michelle… Meus bancos de dados possuem várias referências… Ficção Científica do século XX. Interessante, mas completamente absurda. Uma UIA é incapaz de fazer o que aquele HAL-9000 cometeu. Ironia, uma coisa curiosa exclusiva aos humanos. A mensagem é da Terra, é urgente.

_Me desculpe Walrus. Reproduza a mensagem, por favor. Disse Michelle com arrependimento. Mas logo se sentiu uma idiota, computadores não tem sentimentos. Pelos menos não deveriam ter…

A voz que saiu do auto-falante era impessoal e sem personalidade.

_Estação LUCY, atenção! Um acidente ocorreu com o Módulo de Transporte “Penny Lane”. Um destroço de menos de 5cm de um antigo satélite se chocou com o giroscópio do Módulo. Eles perderam o alinhamento e passarão por uma órbita ao lado de vocês. O comunicador deles está avariado e o piloto automático se foi. O controle está manual.

_Que coisa! Ser atingido por um destroço no espaço é o mesmo que ser atingido por um meteorito na superfície da Terra! É impossível! Exclamou Michelle.

_Existem três casos registrados em meus bancos de dados com pessoas que foram atingi…

_Silêncio Walrus! Estabeleça contato com a Terra agora! Disse Michelle.
Alguns segundos depois, a Superintendente da Agência Espacial Mundial estava no visor da LUCY. Todas as atividades da Estação estavam suspensas. Foi instalado o regime de alerta total. Uma tripulação de 4 homens estava quase a deriva em órbita, e a única esperança era que o piloto encontrasse a Estação Espacial LUCY visualmente e atracasse com ela.

_Doutora Yoko. Como o Piloto irá ver a estação? Estamos na sombra da Terra; o Sol ainda está atrás de nós. Eles não recebem o rádio-farol; na certa está avariado também! Assim que o piloto ver nossas luzes, será tarde demais para ele manobrar em nossa direção e passará direto! A próxima vez que nos encontrarmos poderá ser tarde demais!! Disse Michelle com o rosto completamente molhado de suor (apesar da temperatura da cabine permancer em 22º Celsius) Apenas o Doutor Robert e o Sargento Peppers estava com ela na cabine.

_Ainda não sabemos!! A nave de resgate “Mystery Tour” só sairá em seis horas, e levará outras três para se encontrar com a “Penny Lane”. Pelo radar, ela passará por vocês em trinta minutos, temos que pensar em alguma coisa. Recebemos uma leitura de que há vazamento de oxingênio na “Penny Lane”. Disse a Doutora Yoko que ainda aparentava um rosto sonolento.

_Entre em contato conosco o mais rápido possível.

_Nossos melhores homens em Terra estão trabalhando numa solução. Entraremos em contato assim que tivermos uma idéia!

O monitor ficou escuro, refletindo apenas o reflexo perplexo da Cap. Michelle.

_Que ótimo! A batata quente está em nossas mãos! Disse Michelle fazendo um gesto de concha com as mãos.

Os dois homens se olharam e deram de ombros. Eles não tinham a menor idéia de como resolver esse sério problema. Michelle flutuava de um lado para o outro dentro da cabine. Perguntou ao Sargento Peppers se adiantaria ir até lá fora e fazer sinal com alguma lanterna. A resposta foi negativa. O Módulo de Fuga “Help” que ficava preso ao casco da estacão não possuía sistema de navegação. As comunicações por rádio estavam cortadas. Apenas as visuais, mas as luzes que possuíam não eram suficiente para avisar ao “Penny Lane” onde eles estariam. Michelle supirou.

_Cap. Michelle, a senhora deve se acalmar, tome um pouco de água fresca. Disse o Doutor Robert. Era estranho um senhor inglês de quarenta e setes anos se dirigir para uma bela jovem francesa de vinte quatro anos por senhora. Ne certa seria pelo cargo.

_Não me chame de senhora Doutor! E eu não estou com sede, estou com…Espere aí!

_O que foi? Perguntou Peppers.

_Água! É isso!!! Walrus, onde está o Sol? Quando os raios nos alcançarão? Disse Michelle com um expressão de quem havia visto um fantasma.

_O Sol está a 20º acima do horizonte terrestre. Os raios solares ainda não atingiram nossa órbita por estarmos indo a favor da rotação terrestre com uma defasagem de 35%. Quando os raios atingirem a Estação LUCY, o Módulo “Penny Lane” já terá passado da órbita em 2 minutos e 13 segundos. Respondeu o computador.

_Ótimo!! Walrus, abra as válvulas dos tanques de água 2 e 3. Disse Michelle.

_Com todo o respeito Cap. Michelle, mas a senhora tem certeza dessa ordem? Qual o motivo dela? Perguntou o Sargento Peppers.

_Não me chame de senhora! Depois eu explico! Walrus, execute a ordem!

_Sim Cap. Michelle. Respondeu o computador enquanto abria as válvulas. A água saía dos tanques que mantinham toneladas de pressão em suas paredes com uma fúria enorme.

A pressão externa era praticamete zero, fazendo com que o conteúdo dos tanques fossem “sugados” pelo vácuo do espaço numa avalanche.

_Paul!! Veja isso!! Quê diabos é aquilo?? Apontou o piloto Starr para a pequena janela da cabine de controle da “Penny Lane”.

_Parece uma nuvem!! Uma nuvem aqui no espaço??? Ela brilha, como se fosse feita de milhares de pequenas luzes!!

_O que foi? Perguntou o Engenheiro Lennon que entrava naquele momento na cabine.

_Veja!! É a coisa mais linda que já vi!! Parece uma nuvem de pequenos “diamantes”, milhares deles!! Um pequeno arco-íris está sendo formado!! Disse o pequenino piloto.

Os três homens ficaram em silêncio por alguns segundos paralizados pela visão que tinham através da pequena janela da cabine. O Capitão Paul colocou as mãos à cabeça e gritou:

_Mande George parar como os reparos!! Já sei o que é aquilo!! Starr, vá em direção da nuvem!!

_Em direção na nuvem? Mas…

_Faça o que mandei!!

Alguns minutos, no meio da manta brilhante que se formara no espaço, o piloto pôde ver as luzes da Estação LUCY.

_Lá está!! Conseguimos!! Agora é só levar a “Penny Lane” com cuidado. Mas o que é essa coisa brilhante? Perguntou Starr.

_Você ainda não descobriu? Disse Lennon.

_Acho que não. Me diga logo!!

_Bem só pode ser uma coisa!! Paul teve um palpite de que aquilo fosse alguma coisa vinda da Estação Espacial LUCY. A Estação sabia que estávamos por perto, mas não sabiam onde exatamente.

_Você ainda não disse o que é essa Nebulosa Brilhante!!! Disse o pequeno piloto com cara de raiva.

_Calma!!! Como eu disse, sabíamos que a Estação LUCY estava por perto. De repente uma nuven de pequenos “diamantes” começa a brilhar numa órbita próxima a nossa. Note que o Sol está atrás da nuvem. Essa nuvem só pode ter vindo de LUCY. Ao vermos os “diamantes”, saberíamos de onde eles viriam. É só pensar!! Os “diamantes” são feitos de cristais de ÁGUA!! Na certa o capitão da Estação mandou abrir as válvulas dos tanques, que possuem milhares de litros. Assim que a água escapa para o espaço, acontecem duas coisas: a água evapora e congela ao mesmo tempo!! Como a pressão no vácuo tende a zero, o ponto de ebulição da água é baixíssimo, fazendo-a evaporar instantaneamente; mas como a temperatura no espaço é de 3 Kelvins (-270º Celsius), quase zero absoluto, a água congela!! Mas como eu disse, ela evapora milésimos de segundo antes e, congelando, se transforma em cristais de gelo, que, iluminados pelos raios do Sol que estão logo atrás, brilham e decompõem a luz, como pequenos prismas, fazendo aquele espetáculo maravilhoso que vimos a pouco.

_Puxa!! Como sou burro!! Disse o piloto Starr.

_Não se preocupe com isso, você ainda tem que se preocupar em fazer a junção com LUCY. Disse o Engenheiro Lennon.

Depois, tudo ocorreu perfeitamente bem. O Módulo de Transporte “Penny Lane” se conectou perfeitamente com a Estação LUCY graças a perícia de Starr. As duas tripulações se abraçavam e comemoravam com muita água e música de um antigo grupo de rock inglês do século XX. Afinal quatro astronautas escaparam por pouco da morte iminente graças a genial idéia da Cap. Michelle em transformar a região ao redor da Estação Espacial numa espécie de prisma gigante, espalhando luzes coloridas pelo espaço. No meio da escuridão quase completa, era óbvio que a tripulação da “Penny Lane” avistaria “LUCY no Céu com Diamantes!!!”

Fonte:
http://galaxiabr.vilabol.uol.com.br/lucyintheskywithdiamonds.htm

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Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779 – 1868)

Vida

Beatriz Francisca de Assis Brandão nasceu na cidade de Vila Rica, então capital da província de Minas Gerais, atual Ouro Preto, a 29 de julho de 1779. Filha do sargento-mor Francisco Sanches Brandão e de Isabel Feliciana Narcisa de Seixas. Dedicou-se à poesia, à prosa e à tradução, assinando-se apenas com o prenome à guisa de pseudônimo, D. Beatriz, no período em que colaborava para a Marmota Fluminense.

Depois de publicar seus versos no Parnaso brasileiro, os reúne em volume sob o título de Cantos da mocidade, em 1856. A segunda obra publicada foi Carta de Leandro a Hero, e Carta de Hero a Leandro, também no Parnaso brasileiro. Em 28 abril de 1868, já bastante conhecida, mereceu um artigo, no Correio Mercantil, intitulado “Prima de Marília”, onde se lê que “D. Beatriz era um ânimo varonil e uma inspirada poetisa.”

D. Beatriz dedicou-se também ao ensino. Dirigiu em Vila Rica um educandário para meninas. E participou da nossa imprensa, tendo publicado no Guanabara e na Marmota Fluminense, de 1852 a 1857.

Faleceu no Rio de Janeiro a 5 de fevereiro de 1868.

É a patrona da cadeira n° 38 da Academia Mineira de Letras e pertenceu à Sociedade Promotora da Instituição Pública da Cidade de Ouro Preto.

Obra:

Poesias. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1831. v. 2, cad. 5°, p. 27-38.

Carta de Leandro a Hero, traduzida do francês, e dedicada à Senhora D. Delfina Benigna da Cunha, e Carta de Hero a Leandro. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1832. v. 2, cad. 7°, p. 7-28.

Cantos da mocidade. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro,1856. v. 1.

Saudação à Ilma. e Exma. Sra. Dona Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco. Poesia em versos hendecassílabos, que vem em um livro anunciado por B.X.P. de Sousa, em 1859.

Catão. Drama trágico pelo abade Pedro Metastásio, traduzido do italiano. Rio de Janeiro: Typ. B.X.P. de Sousa, 1860. É precedido de uma dedicatória em versos à princesa Dona Januária.

Lágrimas do Brasil. Poesia em versos hendecassílabos, no mausoléu levantado à memória da excelsa rainha de Portugal, dona Estefânia. Rio de Janeiro, 1860.

As comendas. Rio de Janeiro, s. d. Poesia.

Romances imitados de Gessner. Rio de Janeiro: Typ. B.X.P. de Sousa, s.d. Poesia. 32 p. Contém dois pequenos romances em versos: “O caçador” e “Lelia e Nerina”.

Óperas traduzidas para o português: Alexandre na Índia, José no Egito, Sonho de Cipião, Angélica e Medoro, Semíramis reconhecida, Diana e Endimião.

Drama à coroação de D. Pedro I, posto em música, cantado no teatro. (Não foi impresso.)

Drama ao nascimento de D. Pedro II, posto em música, cantado no teatro. (Não foi impresso.)

Cantata aos anos da imperatriz D. Leopoldina.

Textos

Soneto

Estas, que o meu Amor vos oferece,
Não tardas produções de fraco engenho,
Amadas Nacionais, sirvam de empenho
A talentos, que o vulgo desconhece.

Um exemplo talvez vos aparece
Em que brilheis nos traços, que desenho:
De excessivo louvor glória não tenho,
E se algum merecer de vós comece.
Raros dotes talvez vivem ocultos,
Que o receio de expor faz ignorados;
Sirvam de guia meus humildes cultos.
Mandei ao Pindo os vôos elevados,
E tantos sejam vossos versos cultos,
Que os meus nas trevas fiquem sepultados.

Soneto

Voa, suspiro meu, vai diligente,
Busca os Lares ditosos onde mora
O terno objeto, que minha alma adora,
Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;
Não perturbes seu sono: nesta hora,
Em que a Amante fiel saudosa chora,
Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;
Seu coração penetra; nele inspira
Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;
Em seu cândido peito amor procura;
Vê se também por mim terno suspira.

Soneto

Meu coração palpita acelerado,
Exulta de prazer, de amor delira,
Novo alento meu peito já respira,
É mil vezes feliz o meu cuidado.

O meu Tirce de mim vive lembrado,
Saudoso, como eu, por mim suspira;
Que seleto prazer a esta alma inspira
A amorosa expressão do bem amado!

Doce prenda dos meus ternos amores,
Amada, suavíssima escritura,
Que em meu peito desterras vãos temores;

Em ígneos caracteres na alma pura
Grava, Amor, com os farpões abrasadores
Estes doces penhores da ternura.

Soneto

Que tens, meu coração? Porque ansioso
Te sinto palpitar continuamente?
Ora te abrasas em desejo ardente,
Outra hora gelas triste e duvidoso?

Uma vez te abalanças valeroso
A suportar da ausência o mal veemente;
Mas logo esmorecido, descontente,
Abandonas o passo perigoso?

Meu terno coração, ela, resiste,
Não desmaies, não tremas; pode um dia
Inda o Fado mudar o tempo triste.

Suporta da saudade a tirania,
Que ainda verás feliz, como já viste,
Raiar a linda face da alegria.

Fontes:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_vida.html
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_obra.html
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_textos.html

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Literatura Feminina (Virginia Woolf)


Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/

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Júlia Lopes de Almeida (Conto: A Pobre Cega)

dados da autora no final
Na cidade de Vitória, no Espírito Santo, havia uma ceguinha que, por ser muito amiga de crianças, ia todos os dias sentar-se perto de uma escola, num caminho ensombrado por bambus. Entretinha-se ela ouvindo as conversas da pequenada que subia para as aulas.

As auras do mar vinham de longe queimar-lhe o rosto trigueiro. Imóvel, com o cajado nas mãos pequenas, ela imaginava quanto os rapazinhos deveriam estar pimpões dentro das suas roupinhas bem lavadas, e ria-se quando, a qualquer ameaça ou repelão de um dos mais velhos, os pequenos gritavam:

—Eu vou dizer à mamãe!

E havia sempre um coro de gargalhadas, a que se juntava uma voz lamurienta.

Um dia, dois dos estudantes mais velhos, já homenzinhos, desciam para o colégio, quando verificaram ser ainda muito cedo, e sentaram-se também numas pedras, a pequena distância da mendiga. O dever da pontualidade, que não deve ser esquecido em nenhum caso da vida, aconselhou-os a ficarem ali até a hora fixada pelo mestre para a entrada na escola. Entretanto, para não perderem tempo, repassaram os olhos pela lição, lendo alto, cada um por sua vez, o extrato que tinham feito em casa, de uma página de História do Brasil.

A cega, satisfeita por aquela inesperada diversão, abriu os ouvidos à voz clara de um dos meninos, que dizia assim:

“A civilização adoça os costumes e tem por objetivo tornar os homens melhores, disse-me ontem o meu professor, obrigando-me a refletir sobre o que somos agora e o que eram os selvagens antes do descobrimento do Brasil. Eu estudei história como um papagaio, sem penetrar nas suas idéias, levado só por palavras. Vou meditar sobre muita coisa do que li. Que eram os selvagens, ou os índios, como impropriamente os chamamos? Homens impetuosos, guerreiros com instintos de animal feroz. Entregues absolutamente à natureza, de que tudo sugavam e a que por modo algum procuravam nutrir e auxiliar, estavam sujeitos às maiores privações; bastando que houvesse uma seca, ou que o animais emigrassem para longe das suas tabas, para sofrerem os horrores da fome. Sem cuidar da terra e sem amor ao lar, abandonavam as suas aldeias, poucos anos habitadas, e que ficavam pobres “taperas” sem único indício de saudade daqueles a quem agasalharam! Elas ficavam mudas, com os seus telhados de palma apodrecidos, sem ninhos, sem aves, que as flechas assassinas tinham espantado, sem flores, sem o mínimo vestígio do carinho que temos por tudo que nos rodeia. Abandonando as tabas, que por um par de anos os tinham abrigado, os donos iam plantar mais longe novos arraiais. Os homens marchavam na frente, com o arco pronto para matar, e as mulheres iam atrás, vergadas ao peso das redes, dos filhos pequenos e dos utensílios de barro de uso doméstico. O índio vivia para a morte; era antropófago, não por gula, mas por vingança.

Desafiava o perigo, embriagava-se com sangue e desconhecia a caridade. As mulheres eram como escravas, submissas, mas igualmente sanguinárias. Não seriam muito feios se não achatassem os narizes e não deformassem a boca, furando beiços. Além da guerra e da caça, entretinham-se tecendo as suas redes, bolsas, cordas de algodão e de embira, e polindo machados de pedra com que cortavam lenha. Quero crer que as melhores horas da sua vida seriam passadas nessas últimas ocupações.

Que alegria invade o meu espírito quando penso na felicidade de ter nascido quatrocentos anos depois desse tempo, em que o homem era uma fera, indigno da terra que devastava, e como estremeço de gratidão pelas multidões que vieram redimir essa terra, cavando-a com a sua ambição, regando-a com seu sangue, salvando-a com a sua cruz!

Graças a elas, agora, em vez de devastar, cultivamos, e socorremo-nos e amamo-nos uns aos outros!

Pedro Álvares Cabral, Pêro Vaz de Caminha, Frei Henrique de Coimbra, vivei eternamente no bronze agradecido, com que no Rio de Janeiro vos personificou o mestre dos escultores brasileiros!”

Vinham já os outros rapazes muito apressados a caminho da escola. A cega calculou pelas vozes o tipo e a estatura de cada um, e, quando já se perdia ao longe o rumor dos passos da maior parte deles, sentiu, como nos outros dias, cair-lhe devagarinho no colo uma laranja e um pedaço de pão.

Nenhuma palavra costumava acompanhar aquela dádiva, mas uma corridinha leve denunciou, como das outras vezes, o fugitivo, o Chico, que não tendo nunca dinheiro para dar à pobrezinha, dava-lhe a sua merenda!

Nesse dia as crianças voltaram imediatamente do colégio: o professor adoecera e não havia aula. Sentindo-os, a cega levantou o bastão para que parassem e perguntou:

— Como se chama o menino que todos os dias me mata a fome, dando-me a sua merenda?

Ninguém respondeu. Como a pobre renovasse a pergunta, Chico fugiu envergonhado. Reconhecendo-o pela bulha dos passarinhos rápidos, a mendiga exclamou:

— É aquele que fugiu! Tragam-mo cá; quero beijar-lhe as mãos!

Alcançado pelos colegas, Chico retrocedeu, vermelho como uma pitanga, e deixou-se abraçar pela mendiga, que lhe passava os dedos pelo rosto, procurando adivinhar-lhe as feições.

Familiarizados com ela, os meninos perguntaram-lhe:

— Vocemecê não vê nada, nada?

— Nada.

— Já nasceu assim?

— Não…

— Como foi?

— Coitadinha…

As perguntas das crianças não a humilhavam, porque ela já as tinha por amigas.

— Querem saber como fiquei cega? Escutem: quando eu era moça, morava e frente à casa de uma viúva carregada de filhos. Uma noite acordei ouvindo gritos. — Socorro, socorro! Pediam em brados. Levantei-me à pressa, vesti-me não sei como, e fui à janela. Da casa fronteira saíam chamas e grandes novelos de fumo; na rua, a dona da casa, gritando sempre, aconchegava os filhos ao peito. De repente deu um grito agudíssimo: faltava um dos filhos mais moços – o Manoel!

A desgraçada quis atirar-se às chamas, ms as crianças agrupavam-se todas agarradas à sua saia: então eu atravessei correndo a rua, e de um pulo trouxe para fora o menino, já meio tonto e pálido como um morto. Não me lembro senão do calor do fogo que me cercava por todos os lados, da fumaça que oprimia e da dor horrível que senti nos olhos, quando, à rajada fria da noite, entreguei na rua o filho à mãe.

Ela gritou radiante: — Está salvo! e eu pensei com amargura: — Estou cega…

— E essa família? Inquiriu um dos meninos.

— Era pobre também. Nem sei onde pára…

— Sei eu! Respondeu um dos pequenos; essa família é a minha! A criança que a senhora salvou é hoje um homem trabalhador e que há-de protegê-la. É meu pai.

Uma hora depois a velha cega entrava para sempre em casa de Chico, onde lhe deram o melhor leito e a trataram sempre com o mais doce carinho, provando assim que muita razão tinha o mestre fazendo ver ao discípulo quanto a civilização adoça os caracteres e torna os homens bons!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Histórias da nossa terra. (Rio de Janeiro. Ed. Francisco Alves, 1925), 99. 25-34. apud LAJOLO, Marisa, & ZILBERMAN, Regina. Um Brasil para crianças. Global, SP, 1993, 4ª ed. Disponível em

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Dados da Autora

Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida (24 de setembro de 1862, Rio de Janeiro – 30 de maio de 1934, Rio de Janeiro), foi uma escritora abolicionista.

Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida nasceu na então Província do Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1862, filha do Dr. Valentim José da Silveira Lopes, professor e médico, depois Visconde de São Valentim, e de D. Adelina Pereira Lopes. Mãe dos escritores Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida. Viveu parte da infância em Campinas, S.P. Onde estreou sua carreira de escritora, 1881, escrevendo na Gazeta de Campinas. Desde cedo mostrou forte inclinação pelas letras, embora no seu tempo de moça não fosse de bom-tom nem do agrado dos pais, uma mulher dedicar-se à literatura. Numa entrevista concedida a João do Rio entre 1904 e 1905, confessou que adorava fazer versos, mas os fazia às escondidas. Em 28/11/1887 casou-se com um jovem escritor português, Filinto de Almeida, à época diretor da revista A Semana, editada no Rio de Janeiro, que recebeu a colaboração sistemática de Dona Júlia por vários anos. Sua produção literária foi vasta, mais de 40 volumes abrangendo romances, contos, literatura infantil, teatro, jornalismo, crônicas e obras didáticas. Em sua coluna no jornal O País, durante mais de 30 anos, discutiu variados assuntos e fez diversas campanhas em defesa da mulher. Foi presidenta honorária da Legião da Mulher Brasileira, sociedade criada em 1919; e participou das reuniões de formação da Academia Brasileira de Letras, da qual ficou excluída por ser do sexo feminino. Sua coletânea de contos Ânsia Eterna, 1903, sofreu influência de Guy de Maupassant e uma das suas crônicas veio a inspirar Artur Azevedo ao escrever a peça O dote. Em colaboração com Felinto de Almeida, seu marido, escreveu, em folhetim do Jornal do Comércio seu último romance A casa verde, 1932, vindo a falecer dois anos depois, 30/05/1934, na cidade do Rio de Janeiro.

Romances
A Família Medeiros ; Memórias de Marta ; A Viúva Simões ; A Falência ; Cruel Amor ; A Intrusa ; A Silveirinha ; A Casa Verde (com Felinto de Almeida) ; Pássaro Tonto ; O Funil do Diabo

Novelas e contos
Traços e Iluminuras ; Ânsia Eterna ; Era uma vez… ; A Isca (quatro novelas) ; A caolha

Teatro
A Herança (um ato) ; Quem Não Perdoa (três atos) ; Nos Jardins de Saul (um ato) ; Doidos de Amor (um ato)

Diversos
Livro das Noivas ; Livro das Donas e Donzelas ; Correio da Roça ; Jardim Florido ; Jornadas no Meu País ; Eles e Elas ; Oração a Santa Dorotéia ; Maternidade (obra pacifista) ; Brasil (conferência)

Escolares
Histórias da Nossa Terra ; Contos Infantis (com Adelina Lopes Vieira) ; A Árvore (com Afonso Lopes de Almeida)

Fontes:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/juliaLopes_vida.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Julia_lopes_de_almeida

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Ludwig Tieck (Conto de Fadas: O Loiro Eckbert)

Tradução de Karin Volobuef

Em uma região da Hercínia morava um cavaleiro que comumente era chamado apenas de O Loiro Eckbert. Ele contava cerca de quarenta anos, mal alcançava estatura mediana, e seus cabelos louros claros caíam curtos e lisos bem rente ao semblante pálido e descarnado. Levava uma vida pacata e reservada, e jamais se envolvia nas contendas de seus vizinhos, além disso, só muito raramente era visto fora dos muros de circunvalação de seu pequeno castelo. Sua esposa apreciava igualmente a solidão, e ambos pareciam amar-se do fundo de seus corações, sendo usual queixarem-se apenas do fato de que o céu se recusava a abençoar seu casamento com filhos.

Só raramente Eckbert recebia visitas de hóspedes, e quando isso acontecia, quase nada era alterado por causa deles no modo de vida habitual, a temperança residia ali e a parcimônia em pessoa parecia ordenar tudo. Nessas ocasiões, Eckbert ficava jovial e de bom humor, apenas quando ficava sozinho é que se percebia nele um certo ar taciturno, uma melancolia silenciosa e retraída.

Ninguém vinha ao burgo tão amiúde como Philipp Walther, um homem a quem Eckbert se havia associado por encontrar nele uma forma de pensar muito semelhante à sua própria . Sua morada propriamente dita ficava na Francônia, mas com freqüência ele permanecia mais da metade do ano nas cercanias do burgo de Eckbert coletando ervas e seixos e ocupando-se em colocá-los em ordem, vivia de uma pequena fortuna e por isso não dependia de ninguém. Eckbert muitas vezes acompanhava-o em seus passeios solitários, e de ano a ano os dois ficavam unidos por uma amizade mais estreita.

Há momentos em que a pessoa é tomada de angústia se tiver que manter um segredo que até então vinha ocultando de seu amigo com grande desvelo; nessa hora, a alma sente um impulso irresistível de compartilhar tudo, de descerrar frente ao amigo inclusive as coisas mais íntimas, a fim de tornar essa amizade tanto mais sólida. Nessas ocasiões as almas se revelam uma à outra em sua fragilidade, e de vez em quando também pode suceder-se de uma retroceder assustada diante da amizade da outra.

Já era outono quando numa noite nebulosa Eckbert se achava sentado com seu amigo e sua esposa Bertha junto ao fogo de uma lareira. As chamas lançavam um vivo clarão através do aposento e brincavam no teto; a noite espreitava lúgubre pelas janelas adentro, e as árvores lá fora estremeciam com a fria umidade. Walther queixou-se do longo caminho de retorno que teria de percorrer, e Eckbert sugeriu-lhe que pernoitasse ali, passando parte da noite com uma conversa descontraída e depois indo ainda dormir até o amanhecer em um dos aposentos da casa. Walther aceitou a proposta, e então foram trazidos o vinho e a ceia, o fogo foi realimentado com madeira e a conversa entre os amigos foi ficando cada vez mais alegre e espontânea.

Depois de os pratos terem sido retirados e os servos se afastado, Eckbert tomou a mão de Walther e disse: “Meu amigo, vós deveríeis aproveitar a ocasião e ouvir de minha esposa a história de sua infância, que é bastante incomum.” – “Com prazer”, disse Walther, e sentaram-se novamente junto à lareira.

Era então justamente meia-noite, a Lua espreitava em intervalos por entre as nuvens que passavam esvoaçantes. “Espero que vós não haveis de me considerar importuna”, começou Bertha, “meu esposo diz que tendes uma maneira de pensar tão nobre que seria errado ocultar-vos alguma coisa. Peço-vos porém que, por mais inusitada que minha narrativa possa parecer, não a tomeis por um conto de fadas.

Nasci em uma aldeia, meu pai era um pobre pastor. As condições de meus pais não eram das melhores, muitas vezes eles não sabiam de onde poderiam tirar o pão. Mas o que eu lastimava bem mais era que meu pai e minha mãe amiúde se altercavam por causa de sua pobreza e então um fazia amargas censuras ao outro. Além disso, constantemente diziam que eu era uma criança tola e estúpida, incapaz de realizar até as tarefas mais insignificantes, e, de fato, eu era por demais inepta e desajeitada, sempre deixava cair as coisas , não aprendia nem a costurar nem a fiar, não conseguia ajudar em nenhum serviço doméstico, somente a penúria de meus pais, isso eu compreendia muito bem. Com freqüência ficava então sentada num canto com a cabeça cheia de fantasias sobre como haveria de ajudá-los se de um momento para outro me tornasse rica, e como haveria de acumulá-los de ouro e prata e me deliciar com seu assombro; aí via espíritos elevando-se pelos ares e me indicando tesouros enterrados ou dando-me pequenos seixos que se transformavam em pedras preciosas, enfim, ocupava-me das mais mirabolantes fantasias e, quando depois disso tinha que me levantar para ajudar em algo ou carregar alguma coisa, mostrava-me ainda bem mais desajeitada porque minha cabeça estava zonza com todos aqueles sonhos quiméricos.

Meu pai sempre ficava muito zangado comigo por eu ser assim um fardo totalmente inútil para eles; por isso, tratava-me muitas vezes de modo bastante cruel, e era raro receber dele uma palavra gentil. Assim eu alcancei algo em torno dos oito anos de idade e nessa época foram tomadas medidas sérias para que eu fizesse ou aprendesse alguma coisa. Meu pai considerava que tudo não passava de capricho ou indolência de minha parte a fim de passar meus dias em ociosidade; resumindo: ele começou a me perseguir com veementes ameaças, quando porém elas não trouxeram nenhum fruto, surrou-me da maneira mais atroz dizendo que essa punição seria repetida todos os dias uma vez que eu não passava de uma criatura inútil.

Durante toda aquela noite chorei amargamente, sentia-me abandonada ao extremo, sentia tamanha pena de mim mesma que desejava morrer. Temia o alvorecer do dia, estava totalmente desnorteada e sem saber o que fazer; desejava possuir todas as habilidades imagináveis, e não conseguia entender por que era menos capaz do que as outras crianças que conhecia. Estava à beira do desespero.

Quando despontou o dia, levantei-me e, quase sem que o soubesse, abri a porta de nossa pequena cabana. Encontrei-me no campo aberto, pouco depois estava numa floresta em que ainda mal chegava a luz do dia. Fui correndo sem parar e nunca olhava para trás, não sentia qualquer cansaço, pois continuava acreditando que meu pai ainda poderia me alcançar e, irritado pela minha fuga, tratar-me-ia com crueldade redobrada.

Quando alcancei o fim da floresta o Sol já estava bastante alto; percebi nesse momento que havia à minha frente algo escuro e encoberto por uma densa névoa. Ora tive que escalar colinas, ora seguir por um caminho que serpenteava por entre rochedos, e eu presumi então que devia estar na serra circunvizinha, e comecei a sentir-me apavorada naquela solidão. Pois lá na planície nunca vira nenhuma montanha, e quando ouvira alguém mencionando serras, a própria palavra já soara assustadora aos meus ouvidos infantis. Não tive coragem de retornar, foi meu medo justamente o que me impeliu adiante; muitas vezes olhava sobressaltada para trás quando o vento passava sobre minha cabeça e se infiltrava pelas árvores ou quando uma machadada longínqua ressoava através da manhã silenciosa . Por fim, ao deparar-me com carvoeiros e mineiros e ouvir uma pronúncia estranha, por pouco não caí desmaiada de horror.

Perdoai minha prolixidade; sempre que falo dessa história, involuntariamente torno-me loquaz, e Eckbert, a única pessoa a quem a narrei, sempre prestou tamanha atenção que me deixou mal-acostumada.

Atravessei diversas aldeias e pedi esmolas, pois agora sentia fome e sede; conseguia arranjar-me razoavelmente com as respostas quando alguém perguntava algo. Já avançara assim por uns quatro dias, quando fui dar em uma pequena vereda que foi me levando cada vez mais para longe da estrada principal. Os rochedos à minha volta começaram nesse ponto a apresentar uma forma diferente, bem mais estranha. Eram penhascos empilhados uns sobre os outros, que davam a impressão de que o primeiro sopro de vento os faria despencar para todos os lados. Fiquei em dúvida se deveria prosseguir. Durante as noites sempre havia dormido na floresta, pois estávamos justamente na estação mais amena do ano, ou então em cabanas de pastores isoladas; mas ali não encontrava nenhuma moradia humana nem podia ter a expectativa de deparar-me com uma nesse descampado; os rochedos foram tornando-se cada vez mais tenebrosos, obrigando-me diversas vezes a passar bem próximo a abismos vertiginosos, e, por fim, até mesmo a trilha sob os meus pés desapareceu . Fiquei absolutamente desconsolada, chorei e gritei, e o eco de minha voz respondeu nos vales rochosos de uma maneira aterrorizante. Então caiu a noite e escolhi um canto coberto de musgo para nele repousar. Não pude dormir; durante a noite ouvi os ruídos mais estranhos, que ora tomava por animais selvagens, ora pelo vento gemendo entre as rochas, ora por pássaros inusitados. Rezei e adormeci só muito tarde, pouco antes de amanhecer.

Acordei com a luz do dia batendo em minha face. À minha frente havia um rochedo íngreme; escalei-o na esperança de poder descobrir lá de cima uma saída desse descampado e eventualmente divisar casas ou pessoas. Mas quando alcancei o cimo, tudo ao meu redor, tão longe quanto a vista alcançava, era igual ao lugar em que me encontrava, tudo estava submerso em uma neblina perfumada, o dia estava cinzento e lúgubre, e meus olhos não conseguiam distinguir nenhuma árvore, nenhum prado, nenhum arbusto sequer, exceto umas poucas ramas dispersas que haviam crescido, solitárias e tristonhas, de algumas fendas estreitas nas rochas. Não é possível descrever a saudade que eu sentia de avistar ao menos um único ser humano, ainda que ele fosse dos mais estranhos e me inspirasse temor. A fome mortificava-me enquanto isso, sentei-me e decidi-me a morrer. Algum tempo depois, porém, a vontade de viver saiu vitoriosa, reuni minhas forças e caminhei o dia inteiro sob lágrimas, sob suspiros intermitentes; por fim já mal tinha consciência de mim, estava com sono e esgotada, já mal tinha o desejo de viver e, ainda assim, receava a morte.

Perto do anoitecer a região à minha volta pareceu tornar-se um pouco mais aprazível , minhas idéias e minha vontade reavivaram-se, o desejo de viver despertou em todas as minhas veias. Julguei então ouvir ao longe o zunir de um moinho, acelerei meus passos e quão bem, quão leve me senti quando realmente acabei por alcançar os limites do deserto de rochedos, e mais uma vez estendiam-se à minha frente bosques e prados com longínquas e suaves montanhas. Era como se tivesse saído do inferno e entrado no paraíso, a solidão e meu estado de desamparo nesse momento já não pareciam mais assustadoras.

Em lugar do esperado moinho fui dar numa cachoeira, o que por certo reduziu bastante minha alegria; estava colhendo com a mão um gole de água do regato quando de súbito tive a impressão de ouvir a alguma distância o som abafado de alguém tossindo. Nunca fora tão agradavelmente surpreendida como nesse momento, caminhei naquela direção e, na orla da floresta, divisei uma anciã que parecia estar descansando. Estava trajada quase totalmente de preto, uma mantilha negra cobria sua cabeça e boa parte de seu rosto, na mão segurava uma bengala.

Aproximei-me dela e pedi sua ajuda, a anciã convidou-me a sentar ao seu lado e deu-me pão e um pouco de vinho. Enquanto eu comia, entoou com voz esganiçada uma canção religiosa. Quando terminou, disse-me para acompanhá-la.

Essa oferta me alegrou muitíssimo, não obstante a voz e o aspecto da anciã me parecerem bizarros. Ela andava com bastante agilidade apoiada em sua bengala, e fazia caretas a cada passo que dava, o que no início me fazia rir. Os rochedos desabitados foram ficando cada vez mais para trás, atravessamos uma suave campina e depois um bosque bastante extenso . Quando chegamos ao fim dele o Sol estava justamente se pondo, e jamais me esquecerei da imagem e da sensação desse entardecer. Tudo se fundia nos mais delicados tons rubros e dourados, as árvores erguiam seus picos no arrebol, e pelos campos derramava-se um clarão encantador; as matas e as folhas das árvores estavam imóveis, o céu límpido parecia um paraíso de portas abertas, e o murmúrio das fontes e o ocasional zunir das árvores atravessavam aquela risonha calmaria num tom de jubilosa melancolia. Minha alma juvenil alcançou então, pela primeira vez, uma idéia do que era o mundo e suas particularidades. Esqueci-me de mim e de minha guia, meu espírito e meus olhos apenas voavam entusiasmados por entre as nuvens douradas.

Subimos então numa colina recoberta de bétulas, do alto via-se um pequeno vale repleto de bétulas, lá embaixo no meio das árvores havia uma casinha. Um alegre latido soou em nossa direção e em pouco um ágil cãozinho pulou na anciã abanando a cauda; depois ele veio ter comigo, olhou-me de todos os lados e em seguida retornou para junto da anciã com trejeitos amáveis.

Quando descíamos pelo morro ouvi um cântico singular que parecia vir da cabana, como se fosse de um pássaro; o canto era assim:

Doce solidão
Do bosque, que alegria
Dia após dia
E pelos tempos que virão
Oh, como me delicia
Doce solidão.

Estas poucas palavras eram incessantemente repetidas; esse canto, se tivesse que descrevê-lo, era quase como o som distante de uma charamela e uma trompa de caça tocando juntas.

Minha curiosidade estava aguçada ao extremo; sem esperar pelo convite da anciã entrei com ela na cabana. O crepúsculo já caíra, tudo estava bem arrumado, havia algumas canecas num armário na parede, vasos misteriosos sobre uma mesa, junto à janela estava pendurado um pássaro em uma pequena e reluzente gaiola, e era ele de fato quem entoava aquelas palavras. – A anciã arfava e tossia, parecia que não conseguia mais se restabelecer, ora afagava o cãozinho, ora falava com o pássaro, que apenas lhe respondia com sua canção habitual; na verdade, ela agia como se eu nem estivesse presente. Enquanto fiquei assim a observá-la, diversas vezes senti um frio na espinha, pois seu rosto estava em um movimento constante e distorcido, ao mesmo tempo em que a cabeça balançava como se fosse de velhice de modo que se tornava impossível discernir realmente as feições dela.

Quando havia se restabelecido, ela acendeu uma luz, pôs uma mesa diminuta e serviu a ceia. Então virou-se para mim e disse-me para sentar numa das cadeiras de vime trançado. Dessa forma fiquei sentada bem em frente dela e a luz estava entre nós. Juntou suas mãos ossudas e rezou em voz alta continuando a fazer caretas, de modo que eu quase teria rido novamente; mas tomei o cuidado de controlar-me para que ela não se zangasse comigo.

Depois da ceia, rezou outra vez, e em seguida ofereceu-me um leito numa câmara muito pequena; ela dormiu na sala. Não permaneci desperta por muito tempo, estava meio atordoada, mas durante a noite despertei algumas vezes e então ouvia a anciã tossindo e falando com o cão enquanto o pássaro, que parecia estar sonhando, cantava somente palavras isoladas de sua canção. Esses sons, em conjunto com as bétulas que murmuravam bem em frente à janela e o canto de um rouxinol distante, formavam uma combinação tão fantástica que eu ficava com a impressão, não de ter despertado, mas de estar apenas caindo em um outro sonho ainda mais estranho.

De manhã a anciã me acordou e pouco depois impeliu-me para o trabalho, minha tarefa era fiar, e desta vez aprendi a fazê-lo sem dificuldade, além do mais também tinha que cuidar do cão e do pássaro. Rapidamente acostumei-me à lida doméstica, e todos os objetos ao redor se tornaram conhecidos; tive então a impressão de que tudo era como deveria ser, já não pensava que a anciã tinha algo de bizarro, que a localização da casa era extravagante, e que havia algo de extraordinário no pássaro. Mas sua beleza nunca deixou de chamar minha atenção, pois suas penas reluziam em todas as cores possíveis, o mais formoso azul claro alternava-se em seu pescoço e corpo com o vermelho mais vivo , e quando cantava enfatuava-se de orgulho fazendo com que suas penas parecessem ainda mais soberbas.

Muitas vezes a anciã ausentava-se e retornava apenas ao anoitecer, então eu ia ao seu encontro com o cão e ela me chamava de minha menina e filha. Com o tempo fui me afeiçoando bastante a ela, pois que nos acostumamos a tudo, especialmente quando crianças. À noite ela ensinou-me a ler, logo assimilei a lição, e depois disso a leitura na minha solidão tornou-se uma fonte infinita de prazer, já que a anciã possuía alguns livros antigos escritos à mão que continham histórias mirabolantes.

Até hoje a lembrança de como vivi naquela época continua parecendo-me estranha: sem receber a visita de nenhuma criatura humana, adaptada somente a esse círculo familiar tão diminuto, pois o cão e o pássaro davam-me a mesma impressão que normalmente só pessoas há muito conhecidas nos causam. Nunca mais pude recordar o curioso nome do cão, embora o tivesse chamado tantas vezes naquele tempo.

Já vivia assim com a anciã há quatro anos e devia estar com uns doze anos, quando finalmente ela depositou maior confiança em mim e me revelou um segredo: todos os dias o pássaro botava um ovo no qual se achava uma pérola ou uma pedra preciosa. Já havia muito, eu percebera que ela mexia às escondidas na gaiola, mas nunca me preocupara com isso. Por ora ela incumbiu-me da tarefa de recolher esses ovos durante as suas ausências e guardá-los cuidadosamente nos vasos misteriosos. Daí por diante ela deixava alimentos para mim e passou a ausentar-se por períodos mais longos, semanas, meses; minha pequena roca chiava, o cão latia, o pássaro mágico cantava enquanto a região na circunvizinhança se mantinha tão serena que não me recordo de ter havido durante todo esse tempo qualquer vendaval, qualquer tempestade. Nunca ninguém perdeu o caminho e foi dar ali, nenhum animal selvagem aproximava-se de nossa morada, eu estava satisfeita e cantava, e meu trabalho fazia os dias se sucederem. – O ser humano talvez fosse bastante feliz se lhe fosse possível manter até o fim uma vida tão tranqüila.

A partir das poucas coisas que lia, ia formando uma idéia bastante fabulosa do mundo e das pessoas; tudo assemelhava-se a mim e a meus companheiros: quando eram mencionadas pessoas alegres, eu não conseguia imaginá-las de outro modo a não ser como o pequeno lulu, damas faustosas sempre tinham a aparência do pássaro, todas as mulheres idosas, a da minha anciã bizarra. – Também li um pouco sobre o amor, e então fabricava na minha imaginação histórias fantasiosas envolvendo a mim mesma. Imaginava o cavaleiro mais belo do mundo, dotava-o de todas as qualidades, embora realmente não soubesse, após todos esses esforços, qual era a aparência dele; mesmo assim, sentia uma grande pena de mim mesma quando ele não correspondia ao meu amor e nesses momentos elaborava em pensamento, ou por vezes também em voz alta, longos e tocantes discursos a fim de conquistá-lo. – Vós estais sorrindo! Deveras, nós todos agora já passamos por esse tempo de juventude.

Nessa época preferia mesmo ficar só, pois então era eu própria quem mandava na casa. O cão amava-me muito e fazia tudo o que eu queria; o pássaro respondia a todas as minhas perguntas com seu cântico; minha pequena roca sempre girava com vivacidade, e assim, no fundo, nunca fui tomada pelo desejo de mudanças. Quando a ancião retornava de suas longas jornadas, elogiava minha dedicação, ela dizia que, desde a minha chegada, a casa estava muito melhor cuidada, ela ficava contente com meu crescimento e minha aparência sadia, enfim, tratava-me como a uma filha.

‘Tu és valorosa, minha menina!’ disse-me ela certa vez num som estridente; ‘se continuares assim, sempre haverás de passar bem; por outro lado, sair do bom caminho nunca traz bons frutos, o castigo é infalível e nunca é tarde demais para ele.’ – Quando ela assim falou, não lhe dei muita atenção, pois era muito vivaz em minha maneira de ser; mas à noite lembrei-me de suas palavras e não consegui compreender o que ela quisera dizer com aquilo. Refleti com cuidado sobre cada palavra, decerto eu havia lido sobre riquezas e, por fim, veio-me a idéia de que suas pérolas e pedras preciosas provavelmente fossem valiosas. Dentro em breve essa idéia acabaria adquirindo contornos ainda mais definidos. Mas o que ela queria dizer com o bom caminho? Ainda não conseguia captar perfeitamente o sentido de suas palavras.

Completei quatorze anos, e é uma desventura para o ser humano o fato de alcançar a razão e, em troca, infalivelmente perder a inocência de sua alma. Eis que eu compreendi claramente que, se assim o quisesse, poderia apoderar-me do pássaro e das jóias quando a anciã estivesse longe e partir com eles em busca do mundo sobre o qual havia lido. Aí talvez até pudesse encontrar o formosíssimo cavaleiro de quem ainda não me esquecera.

No princípio essa era uma idéia como qualquer outra, mas enquanto estava sentada junto à roda de fiar, esse pensamento sempre ficava retornando contra a minha vontade, e acabei deixando-me levar por ele de tal modo que já me via magnificamente adornada e cercada de cavaleiros e príncipes. Nas ocasiões em que me deixava levar assim, tornava-me bastante tristonha quando novamente levantava os olhos e percebia estar na pequena cabana. Aliás, desde que fizesse minhas tarefas, a anciã não me dava maior atenção.

Certo dia minha senhoria partiu novamente, dizendo-me que dessa vez haveria de ficar longe por mais tempo do que de costume, ela exortou-me a cuidar muito bem de tudo e a não me entregar ao tédio. Despedi-me dela com certa aflição, pois tinha a sensação de que não tornaria a vê-la. Segui-a com os olhos por um longo tempo, embora eu mesma não soubesse por que estava tão assustada; era quase como se meu intento já estivesse decidido sem que tivesse plena consciência disso.

Nunca cuidei do cão e do pássaro com tamanha solicitude; meu afeto por eles era maior do que antes. A anciã já estava ausente havia alguns dias quando acordei com o firme propósito de abandonar a cabana com o pássaro e de sair em busca do assim chamado mundo. Meu coração estava apertado e cheio de angústia, desejei novamente continuar ali, e não obstante essa idéia também me era repugnante; uma estranha batalha travou-se em minha alma, como se houvesse em mim dois espíritos rebeldes em combate. Ora a plácida solidão parecia-me tão encantadora, ora entusiasmava-me outra vez com a idéia de um mundo novo com toda a sua maravilhosa diversidade.

Não sabia que decisão tomar, o cão não parava de pular carinhosamente em mim, os raios do Sol derramaram-se com alegria pelos campos, as verdes bétulas reluziam: tive a sensação de ter algo muito urgente a fazer, por conseguinte segurei o cãozinho, amarrei-o dentro da sala e tomei sob o braço a gaiola com o pássaro. O cão vergou-se e choramingou por causa desse tratamento inusitado, lançou-me um olhar suplicante, mas eu tinha receio de levá-lo comigo. Em seguida tomei um dos vasos repletos de pedras preciosas e coloquei-o entre as minhas coisas, os demais deixei onde estavam.

O pássaro revirou a cabeça de um modo bizarro quando passei com ele pela porta; o cão esforçou-se muito em acompanhar-me, mas teve que ficar para trás.

Evitando o caminho que levava aos rochedos agrestes, parti em direção oposta. O cão latia e choramingava sem parar, e eu fiquei profundamente comovida; o pássaro dispôs-se algumas vezes a cantar, mas, como estava sendo carregado, isso devia ser-lhe incômodo.

Enquanto prosseguia caminhando, os latidos foram soando cada vez mais fracos e, por fim, acabaram de vez. Chorei e estive prestes a tomar o caminho de volta, mas o anseio de ver algo novo impeliu-me adiante.

Já passara montanhas e alguns arvoredos quando caiu a noite e fui forçada a procurar albergue numa aldeia. Eu estava muito desajeitada quando entrei na taverna, deram-me um aposento e um leito, dormi bastante tranqüilamente apesar de sonhar com a anciã, que me ameaçava.

Minha viagem transcorreu de forma bastante uniforme, mas quanto mais avançava mais ia ficando atemorizada com a imagem da anciã e do cãozinho; eu ficava pensando que, sem meu auxílio, ele provavelmente morreria de fome; quando atravessava alguma floresta, tinha a impressão de que a anciã de repente apareceria à minha frente. Dessa forma, era sob lágrimas e suspiros que continuava meu caminho; em todas as ocasiões em que parava para descansar e depositava a gaiola no chão, o pássaro entoava sua canção fantástica e com isso fazia-me recordar de forma muito nítida daquelas belas paragens que abandonara. Como a natureza humana tende ao esquecimento, acreditava então que minha viagem anterior durante a infância não tivesse sido tão tristonha como a atual; desejei estar novamente naquela situação de outrora.

Eu tinha vendido algumas pedras preciosas e, depois de uma jornada de vários dias, cheguei a uma aldeia. Já na chegada tive uma sensação estranha, assustei-me e não sabia com o quê; mas logo entendi os meus sentimentos, pois era a mesma aldeia em que havia nascido. Como fiquei admirada! Minha alegria, motivada por mil lembranças curiosas, foi tamanha que as lágrimas correram pelas faces! Muitas coisas estavam diferentes, haviam surgido casas novas, outras, que naquela época tinham acabado de ser erigidas, agora estavam em estado decadente, também avistei construções que sofreram incêndios; tudo era bem mais diminuto e apertado do que eu esperava. Senti uma alegria infinita pela expectativa de rever meus pais depois de tantos anos; encontrei a casinha, a soleira tão familiar, a maçaneta ainda era exatamente como outrora, foi como se tivesse sido apenas ontem que a fechei; meu coração bateu com violência, abri com um gesto brusco – mas na sala havia semblantes totalmente estranhos que me encaravam. Indaguei pelo pastor Martin e disseram-me que já havia morrido há três anos com sua esposa. – Rapidamente recuei e, em prantos, abandonei a aldeia.

Eu havia imaginado que seria tão bonito surpreender meus pais com minha riqueza inesperada; aquilo com que na infância eu apenas tinha podido sonhar havia-se tornado realidade devido a um acaso dos mais extraordinários – e agora tudo foi em vão, eu não podia dar essa alegria a eles, e aquilo pelo que sempre mais ansiara na vida estava perdido para mim para sempre.

Em uma cidade agradável aluguei uma casinha com jardim e tomei os serviços de uma criada que veio morar comigo. O mundo não era tão maravilhoso como havia suposto, mas comecei a pensar um pouco menos na anciã e em minha antiga moradia e, de modo geral, vivia bastante satisfeita.

O pássaro já não cantava fazia bastante tempo; por isso, não foi pequeno o meu susto quando certa noite recomeçou e, dessa vez, com uma canção modificada. Ele cantou:

Doce solidão
Do bosque, longe de minha visão.
Remorso principia –
Nos dias que serão!
Oh, única alegria,
Doce solidão.

Durante toda aquela noite não pude dormir, tudo voltou-me à memória e, mais do que nunca, senti que causara uma injúria. No dia seguinte a visão do pássaro era-me por demais odiosa, ele ficava olhando para mim, e sua presença causava-me temor. Passou a entoar sua canção ininterruptamente e com voz mais alta e sonora do que antes fora seu costume. Quanto mais o observava, maior era o meu pavor; por fim, abri a gaiola, enfiei minha mão nela e peguei seu pescoço, apertei os dedos com força, ele lançou-me um olhar suplicante, soltei-o, mas já estava morto. – Enterrei-o no jardim.

A partir de então comecei a ficar inquieta por causa de minha criada, pensei no que eu mesma fizera e imaginava que também ela algum dia poderia me roubar ou até mesmo assassinar. – Já há algum tempo conhecia um jovem cavaleiro que me agradava sobremaneira, dei-lhe minha mão – e, com isso, senhor Walther, minha história chegou ao fim.”

“Vós devíeis tê-la visto naquela época”, interrompeu Eckbert com sofreguidão – “sua juventude, sua formosura e que encanto incompreensível lhe fora conferida através de sua educação solitária. Ela deu-me a impressão de um milagre e eu lhe dediquei um amor além de todas as medidas. Eu não tinha posses, mas o amor dela permitiu-me chegar a esse bem-estar; viemos residir aqui e, até hoje, nem por um momento nos arrependemos de nossa união.”

“Mas de tanto eu falar”, recomeçou Bertha, “a noite já vai bem adiantada – vamos nos recolher para dormir!”

Levantou-se e foi ao seu aposento. Walther desejou-lhe boa noite com um beijo na mão, e disse: “Nobre senhora, agradeço-vos, posso imaginar-vos muito bem com o estranho pássaro e cuidando do pequeno Strohmian.”

Também Walther recolheu-se, somente Eckbert continuou na sala, andando inquieto de um lado para outro. – “O ser humano é realmente um tolo!”, desatou ele a falar; “Primeiro, dou ensejo para que minha mulher narre sua história, e agora arrependo-me desse gesto de confiança! – Não irá ele trair minha amizade? Não irá contar a outros o que ouviu? Não poderá, já que assim é a natureza humana, criar uma desditosa cobiça pelas nossas pedras preciosas e por isso imaginar planos e se dissimular?”

Ocorreu-lhe que Walther não se despedira dele tão cordialmente como seria natural após uma confidência daquelas. Uma vez que a alma foi tomada de desconfiança, acaba também encontrando em cada detalhe uma confirmação. Também havia momentos em que Eckbert se repreendia por nutrir uma suspeita tão vil contra seu bom amigo e, mesmo assim, não conseguia evitar de senti-la novamente. Durante a noite inteira debateu-se com esses pensamentos e dormiu bem pouco.

Bertha estava doente e não pôde comparecer para o café da manhã; Walther parecia não se preocupar muito com isso e inclusive despediu-se do cavaleiro com bastante indiferença. Eckbert não conseguia entender seu comportamento; foi ver sua esposa, que ardia em febre, e disse-lhe que ela devia estar extenuada por causa da narrativa da noite.

Desde aquela noite, as visitas de Walther ao burgo de seu amigo tornaram-se raras, e, nas poucas ocasiões em que ele vinha, partia logo depois de algumas palavras insignificantes. Esse comportamento mortificava Eckbert ao extremo, muito embora não demonstrasse nada para Bertha e Walther, mas ambos deviam estar percebendo nele sua agitação interior.

A doença de Bertha tornava-se cada vez mais preocupante; o médico meneava a cabeça em sinal negativo; o rosado das faces dela desaparecera e seus olhos iam ficando cada vez mais febris. – Certa manhã, mandou que chamassem seu esposo para junto de seu leito, as servas tiveram que se retirar.

“Amado esposo”, começou, “preciso revelar-te algo que quase custou meu juízo e arruinou minha saúde, ainda que possa parecer em si um detalhe insignificante. – Tu deves lembrar-te que sempre que narrava minha história eu não conseguia recordar, a despeito de todo esforço que fizesse, o nome do cãozinho com o qual convivi por tanto tempo. – Naquela noite, quando Walther se despedia de mim, ele disse de repente: ‘Posso imaginar-vos muito bem cuidando do pequeno Strohmian.’ Será coincidência? Terá adivinhado o nome, ou terá feito a menção com algum propósito? E, nesse caso, que ligação haverá entre esse homem e meu destino? – Por vezes digo a mim mesma que essa coincidência não passa de simples fruto de minha imaginação, mas isso é real, absolutamente real . Um pavor colossal apossou-se de mim no momento em que uma pessoa estranha auxiliou-me dessa forma com minhas recordações. O que dizes, Eckbert?”

Eckbert contemplou sua esposa doente com profundo pesar; permaneceu em silêncio, pensativo, em seguida disse-lhe algumas palavras de consolo e deixou-a. Em um aposento afastado, ia de um lado a outro numa agitação indescritível. Há muitos anos Walther vinha sendo o único a freqüentar sua casa, e não obstante era a única pessoa no mundo cuja existência o oprimia e atormentava. Tinha a impressão de que haveria de se sentir aliviado e feliz se essa única criatura pudesse ser afastada de seu caminho. – Tomou sua besta a fim de distrair-se e caçar.

Era um dia de inverno, sombrio e tempestuoso, e vasta camada de neve cobria as montanhas e vergava os ramos das árvores até o chão. Vagueou sem um destino certo, o suor cobria-lhe a testa, não encontrava nenhum animal selvagem e isso aumentava seu azedume. De súbito viu algo movendo-se à distância, era Walther coletando musgo das árvores; sem saber o que fazia, apontou a arma, Walther volveu-se, fez um gesto mudo de ameaça, mas nesse instante o dardo partiu e Walther tombou.

Eckbert sentiu-se aliviado e tranqüilo, contudo, um calafrio incitou-o a retornar a seu burgo; tinha um longo caminho pela frente, pois percorrera uma grande distância a esmo pelas florestas adentro. – Quando chegou, Bertha já havia falecido; antes de morrer ela ainda falara muito sobre Walther e a anciã.

Eckbert viveu então por longo período em profunda solidão; noutros tempos já costumava ser um pouco tristonho pois a estranha história de sua esposa o inquietava, sempre temera que algum incidente funesto pudesse ocorrer; mas agora seu estado era de total desmoronamento interior. O assassinato de seu amigo pairava-lhe sem trégua diante dos olhos, ele vivia censurando-se interiormente.

Em busca de distração, às vezes dirigia-se até a cidade grande mais próxima onde comparecia a festas e reuniões sociais. Ansiava por algum amigo que preenchesse o vazio em sua alma, mas bastava recordar-se de Walther e a palavra amigo o deixava em sobressalto ; convencera-se de que inevitavelmente haveria de sofrer desventuras com quem quer que fosse seu amigo. Vivera por tanto tempo com Bertha em doce serenidade, a amizade de Walther por tantos anos trouxera-lhe contentamento, e agora ambos tinham sido ceifados de modo tão brusco que em alguns momentos sua vida mais lhe parecia um fabuloso conto de fadas do que uma existência real.

Um jovem cavaleiro, Hugo von Wolfsberg, procurou a companhia do calado e taciturno Eckbert e parecia sentir uma inclinação sincera por ele. Eckbert sentiu-se maravilhosamente surpreso, correspondeu à amizade do cavaleiro tanto mais rapidamente quanto menos havia contado com ela. Os dois passaram a ficar juntos com freqüência, o desconhecido realizava toda sorte de obséquios para Eckbert, um já quase não saía mais a cavalo sem o outro, em todas as reuniões sociais eles se encontravam, enfim, os dois pareciam inseparáveis.

A alegria de Eckbert costumava durar apenas por curtos momentos, pois ele tinha a nítida sensação de que a afeição de Hugo se devia tão somente a um engano: ele não o conhecia, não sabia sua história, e mais uma vez ele foi tomado por aquele mesmo anseio de revelar-se por completo a fim de poder certificar-se do quanto o outro era seu amigo. Dali a pouco, porém, seu intento era tolhido por escrúpulos e pelo temor de ser rejeitado. Havia momentos em que estava tão convencido de sua infâmia que acreditava que nenhuma pessoa poderia estimá-lo caso o conhecesse um pouco melhor. Entretanto, não pôde refrear-se; durante um solitário passeio a cavalo revelou a seu amigo toda sua história, perguntando-lhe em seguida se poderia sentir amizade por um assassino. Hugo ficou comovido e procurou consolá-lo; Eckbert acompanhou-o até a cidade com o coração aliviado.

Mas ele parecia estar amaldiçoado a ver nascer a suspeita sempre no momento da confidência, pois, mal haviam penetrado no salão, quando contemplou seu amigo iluminado pelas muitas velas, e sua expressão não lhe agradou. Acreditou perceber um sorriso pérfido, notou que só falava pouco com ele, que conversava bastante com os demais ao passo que a ele parecia ignorar. Encontrava-se ali na reunião um cavaleiro idoso que sempre se mostrara um adversário de Eckbert e sempre indagara de modo estranho sobre sua riqueza e sua esposa; a este juntou-se Hugo e ambos ficaram algum tempo conversando furtivamente e olhando para Eckbert. Este agora via sua suspeita confirmada, considerava-se traído, e uma cólera terrível apossou-se dele. Enquanto ainda mantinha os olhos fixos naquela direção, de repente avistou o semblante de Walther, todos os seus traços, toda sua figura, para ele tão familiar; continuava ainda olhando para lá e ficou convencido de que não era ninguém senão Walther quem conversava com o ancião. – Seu horror foi indescritível; descontrolado, precipitou-se para fora, ainda nessa noite abandonou a cidade e retornou a seu burgo depois de errar o caminho várias vezes.

Qual um fantasma errante perambulou de aposento a aposento, seus pensamentos estavam em completo torvelinho, idéias terríveis eram sucedidas por outras ainda mais terríveis, e seus olhos foram totalmente abandonados pelo sono. Muitas vezes pensou que havia enlouquecido e que criava tudo aquilo em sua imaginação; em seguida os traços de Walther voltavam à sua memória e tudo lhe parecia cada vez mais enigmático. Decidiu sair em viagem a fim de colocar seus pensamentos outra vez em ordem; a idéia de ter um amigo, o desejo de companhia ele agora tinha abandonado para sempre.

Partiu sem estabelecer uma rota definida, aliás, mal contemplava as paisagens que se estendiam à sua frente. Quando já trotava com seu cavalo há alguns dias, viu-se de repente perdido num labirinto de rochas que em parte alguma permitiam descobrir uma saída. Finalmente encontrou um velho camponês que lhe indicou um caminho que passava por uma cachoeira; quis dar-lhe algumas moedas em agradecimento, mas o camponês as recusou. – “Que importa?”, disse Eckbert consigo, “eu poderia acabar imaginando outra vez que ele é Walther!” – e nisso volveu os olhos novamente para trás e era Walther. – Eckbert esporeou seu corcel e correram tão rápido quanto este conseguia, atravessando campinas e bosques até que o animal desabasse embaixo dele. – Sem se incomodar com isso, passou então a seguir sua viagem a pé.

Subiu absorto por uma colina; pareceu-lhe distinguir nas proximidades um latido alegre ao qual se misturava o sussurro de bétulas, e ouviu cantarem uma canção num tom singular:

Doce solidão
Do bosque, de novo que alegria.
Sempre estou são,
Aqui não mora ambição.
Outra vez me delicia,
Doce solidão

Isto deu um golpe fatal na mente, no juízo de Eckbert; ele não conseguia encontrar a chave do enigma: estaria sonhando agora ou teria ele sonhado outrora com uma mulher chamada Bertha; as coisas mais fantásticas mesclavam-se às mais banais, o mundo ao seu redor estava enfeitiçado, e ele não era capaz de qualquer pensamento, qualquer recordação.

Uma anciã de costas vergadas caminhava devagar, subindo a colina com uma bengala e tossindo. “Estás trazendo meu pássaro para mim? Minhas pérolas? Meu cão?” gritou ela em sua direção. “Vejas, a injúria causa seu próprio castigo: ninguém senão eu era o teu amigo Walther, teu Hugo.”

“Deus no céu!” disse Eckbert de mansinho para si mesmo – “em que tenebrosa solidão passei então minha vida!”

“E Bertha era tua irmã.”

Eckbert caiu ao chão.

“Por que ela me abandonou desse modo pérfido? Caso contrário tudo teria terminado bem e direito, seu tempo de provação já havia terminado. Ela era a filha de um cavaleiro que a entregou a um pastor para que a criasse, a filha de teu pai.”

“Por que sempre pressenti essa terrível idéia?” exclamou Eckbert.

“Porque em tua infância mais tenra certa vez o ouvistes falando sobre isso: por causa da esposa ele não podia criar essa filha junto a si, pois era de outra mulher.”

Eckbert jazia enlouquecido no chão e sua vida se esvaia; em tons surdos e emaranhados ouvia a anciã falando, o cão latindo e o pássaro repetindo sua canção.

Fonte:
http://www.members.tripod.com/volobuef/tr_eckbert.htm

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A Imagem da Criança na Poesia Infantil Brasileira (Marta Yumi Ando)

Dados do autor no final
RESUMO
A poesia infantil brasileira sofreu lento processo de evolução: se, em seu período formativo, na virada do século XX, o gênero atuou, predominantemente, como veículo pedagógico, e, se entre as décadas de 20 e 50, houve tentativas de emancipá-lo desse passado mais utilitarista, a partir da década de 60, ele incorporou, significativamente, as conquistas da poética moderna. Resultado de uma pesquisa desenvolvida no PIBIC/CNPq-UEM, e apresentado originalmente no XI Encontro Anual de Iniciação Científica e na 55a. Reunião Anual da SBPC, este trabalho teve como objetivo focalizar a imagem que se construiu da criança ao longo de mais de um século de poesia infantil brasileira e os modos como os poetas construíram essa imagem, a fim de promover a mediação com o pequeno leitor.

PALAVRAS-CHAVE: literatura infanto-juvenil, poema, leitura.

INTRODUÇÃO

Os poemas infantis eram o lugar por excelência de propagação de uma imagem exemplar da criança, segundo interesses de ordem não-literária. Embora tenham ocorrido rupturas desde os anos 20, essa produção predominantemente didática persistiu até os anos 60, quando poetas genuínos a tornaram digna de pertencer ao âmbito artístico. Entretanto, não obstante as conquistas alcançadas, o gênero ainda é visto de forma pejorativa como se infantil significasse infantilidade. Esse é um equívoco que deve ser retificado através de estudos que mostrem a riqueza que caracteriza a verdadeira poesia infantil.

MATERIAL E MÉTODO

A pesquisa empreendida, de natureza bibliográfica, foi realizada no período de 1o./08/2001 a 31/07/2002, em cumprimento às etapas de abrangência do Projeto de Iniciação Científica “Panorama e paradigmas da poesia infantil no Brasil”, desenvolvido com bolsa do PIBIC-CNPq/UEM. Nessa pesquisa, foram realizadas leituras de textos teórico-críticos que serviram de subsídio para a sistematização histórica da poesia infantil brasileira, para o reconhecimento do lugar e da imagem da criança na sociedade brasileira, para a reflexão sobre os modos como os escritores construíram essa imagem bem como para o levantamento dos aspectos temáticos e estéticos responsáveis pela mediação entre crianças e poetas.

RESULTADOS

Na virada do século XX, via de regra, os poemas infantis brasileiros funcionavam como manuais educativos, valorizando-se a criança passiva e obediente. Uma das obras em que a vivacidade infantil é ignorada em prol da transmissão de normas comportamentais é Poesias infantis (1904)1 de Olavo Bilac. Moldada para o uso escolar, tal obra pauta-se na educação moral, conforme exemplifica o poema “Meio-dia” (p.317-318):

1. Meio-dia. Sol a pino.
2. Corre de manso o regato.
3. Na igreja repica o sino;
4. Cheiram as ervas do mato.
5. Na árvore canta a cigarra;
6. Há recreio nas escolas:
7. Tira-se, numa algazarra,
8. A merenda das sacolas.
9. O lavrador pousa a enxada
10. No chão, descansa um momento,
11. E enxuga a fronte suada,
12. Contemplando o firmamento.

13. Nas casas ferve a panela
14. Sobre o fogão, nas cozinhas;
15. A mulher chega à janela,
16. Atira milho às galinhas.
17. Meio-dia! O sol escalda,
18. E brilha, em toda a pureza,
19. Nos campos cor de esmeralda,
20. E no céu cor de turquesa…
21. E a voz do sino, ecoando
22. Longe, de atalho em atalho,
23. Vai pelos campos, cantando
24. A Vida, a Luz, o Trabalho.

Neste poema, composto por quadrinhas de redondilhas, destaca-se a religiosidade; apresenta-se uma visão ufanista da natureza; mostra-se uma imagem patriarcal da mulher; valoriza-se o trabalho rural e o doméstico.

A religiosidade se evidencia quando se descreve o cenário, apresentado como um lugar por excelência bucólico, que convida à devoção religiosa. Em obediência a esse locus amoenus, a religiosidade funde-se à natureza, de modo que o sol do meio-dia está em seu esplendor, o rio corre mansamente e sente-se o cheiro da natureza. A sinestesia é figura de destaque, havendo o cruzamento da visão (sol, regato e ervas), da audição (o marulhar do regato e o repicar do sino) e do olfato (o cheiro das ervas).

Na 2a.estrofe, dá-se continuidade à descrição do locus amoenus: Na árvore canta a cigarra (v.5), e introduz-se um elemento novo, qual seja, o didatismo: Há recreio nas escolas:/ Tira-se, numa algazarra,/ A merenda das sacolas. (v.6-8). Não obstante se trate de um momento de descontração, o recreio é apenas um intervalo entre os estudos, que aparecem com maior realce em outros poemas do autor, como “Justiça” (p.315) e “Ave-Maria” (p.318). (Neste artigo, estamos utilizando a edição Obra reunida, organizada por Alexei Bueno (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996).

Na estrofe subseqüente, surge a figura do lavrador que, suado e cansado, pousa a enxada/ No chão (v.9-10). No contexto histórico em que se deu a formação da literatura infantil brasileira, vários elementos corroboraram para a construção da imagem de um Brasil em processo de modernização. No entanto, o gênero apresentava traços nitidamente conservadores, e, se a nossa literatura infantil surge como um produto que se quer moderno, mas que apresenta características tradicionais, não é de estranhar a acentuada presença de um ruralismo arcaico, como se constata em muitos poemas bilaquianos.

Na 4a. estrofe, o conservadorismo presentifica-se na imagem patriarcal da mulher. Ao focalizar a dona de casa, reforça-se a dependência da mulher em relação ao homem, uma vez que a “dona de casa” permanece confinada em seus afazeres domésticos, enquanto espera pelo retorno do verdadeiro dono, que possui, ao contrário daquela, um papel socialmente ativo na sociedade. Além disso, é curioso o estereótipo da “rainha do lar” aí presente, pois, como afirma CADERMATORI (1984, p.34), os termos “doméstica” e “rainha”, implícitos na expressão “rainha do lar”, se contradizem, mas, ao mesmo tempo, criam um lugar-comum conveniente à cultura dominante; nesta medida, a referida expressão “eufemiza a omissão social da mulher, coroando-a no recinto fechado em que ela circula. Sendo o lar o seu reino, ela nada tem a fazer fora dele”.

Na penúltima estrofe, resgata-se a visão ufanista da natureza, sublinhando-se o tom eufórico mediante a exclamação e adjetivações que evocam reverberações de jóias: o sol brilha intensamente, os campos não são apenas verdes, mas cor de esmeralda, e o céu não é apenas azul, mas cor de turquesa.

Na estrofe final, acentua-se a religiosidade através da reiteração do badalar dos sinos. Se, no terceiro verso, o sino simplesmente repica, aqui ele possui voz, como se estivesse chamando as pessoas para a devoção religiosa. Metonímia de igreja, o sino, ao ecoar longe, propaga a religiosidade por toda a extensão campestre capaz de alcançar. No último verso, a inicial maiúscula destaca os valores que se pretendem inculcar: uma vida rural e religiosa; luz como metáfora para o estudo; e o tipo de trabalho valorizado, a saber: o rural e o doméstico.

Acompanhando as rupturas que vinham ocorrendo na literatura brasileira em geral a partir da década de 20, houve também, na poesia infantil, tentativas de romper com a visão tradicional que vinha impedindo a autonomia do gênero. Em O menino poeta (1943), (Como não foi possível encontrar a edição original de O menino poeta, em que se insere “Tempestade”, estamos utilizando a transcrição do referido poema obtida em Leitura e desenvolvimento da linguagem (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, de A. L. B. SMOLKA et al.), de Henriqueta Lisboa, considerada a obra mais relevante do período, poemas inovados mesclam-se àqueles em que predomina a visão adulta. Um dos poemas em cujos versos predomina a inovação é “Tempestade” (p.64):

1. – Menino, vem para dentro
2. olha a chuva lá na serra,
3. olha como vem o vento!
4. – Ah! como a chuva é bonita
5. e como o vento é valente!
6. – Não sejas doido, menino,
7. esse vento te carrega,
8. essa chuva te derrete!
9. – Eu não sou feito de açúcar

10. para derreter na chuva.
11. Eu tenho força nas pernas
12. Para lutar contra o vento!
13. E enquanto o vento soprava
14. e enquanto a chuva caía,
15. que nem um pinto molhado,
16. teimoso como ele só:
17. – Gosto de chuva com vento,
18. gosto de vento com chuva!

Constituído de versos brancos, este poema apresenta irregularidade na configuração estrófica que acompanha, ao nível semântico, uma visão de mundo também anticonvencional. Constata-se uma brincadeira com a sonoridade, de modo a instaurar estreita correlação entre sons e significados: – Menino, vem para dentro/ olha a chuva lá na serra,/ olha como vem o vento!// – Ah! como a chuva é bonita/ e como o vento é valente! (v.1-5).

A aliteração do fonema sonoro constritivo labial /v/ sugere o próprio som do vento a anunciar a tempestade próxima. Em meio ao temporal que se forma, duas vozes conflitantes medem forças: a prudência adulta e a vitalidade infantil. O adulto tenta impor sua autoridade através do tom exclamativo, mas o menino também sublinha sua vontade exclamativamente, além de qualificar a chuva (como bonita) e o vento (como valente).

Ao contrário dos poemas do 1o período, em que a criança não tinha voz, neste ela não apenas tem voz como esta supera a do adulto, cujos exageros e dramaticidade são ignorados pelo garoto travesso e autoconfiante: – Eu não sou feito de açúcar/ para derreter na chuva./ Eu tenho força nas pernas/ Para lutar contra o vento! (v.9-12).

Nas estrofes finais, aparece a voz do eu-poético a descrever o menino em sua obstinada teimosia, em meio à tempestade que já desaba: E enquanto o vento soprava/ e enquanto a chuva caía,/ que nem um pinto molhado, / teimoso como ele só:// – Gosto de chuva com vento,/ gosto de vento com chuva! (v.13-18).

O contato com as forças da natureza, promovendo a fusão entre menino e chuva, o faz exclamar exultante, e a palavra final cabe a ele e não ao adulto autoritário. Como as palavras chuva e vento se repetem ostensivamente e como elas são sugestivas de per si, quase onomatopaicas, essa reiteração intensifica o som da tempestade, de forma que o nível sonoro reflita o semântico. Além disso, o gradativo aproximar da tempestade caminha em paralelo à progressão da vontade infantil que também se impõe, decisivamente, no final do poema.

A partir dos anos 60, baniu-se a antiga tradição que fazia do gênero um meio de adestramento social, e a forma, que ganhou roupagem moderna, fez com que a produção poética para a infância no Brasil alcançasse a necessária autonomia. Uma obra inovadora é Ou isto ou aquilo (1964) (Neste artigo, estamos utilizando a edição de 1990, publicada pela editora Nova Fronteira), de Cecília Meireles, em que se desvenda a interioridade infantil através da exploração sonora, como se verifica em “Moda da menina trombuda” (p.11):

1. É a moda
2. da menina muda
3. da menina trombuda
4. que muda de modos
5. e dá medo.
6. (A menina mimada!)

7. É a moda
8. da menina muda
9. que muda
10. de modos
11. e já não é trombuda.
12. (A menina amada!)

Neste poema, constituído de versos polimétricos, o tema, em vez de receber um tratamento de dura repreensão do adulto, é tratado com singeleza. Abordando a metamorfose d’(A menina mimada!), que, deixando de ser trombuda, torna-se (A menina amada!), a poeta trabalha com as mudanças de humor passageiras.

As associações sonoro-semânticas, no título e na estrofe inicial, ocorrem pelo emprego das nasais /m/, /n/ e /õ/ e das vogais fechadas /e/, /i/ e /u/ que, através da reiteração, revelam o humor infantil.

Na 2a. estrofe, constituída de um só verso, (A menina mimada!), ocorre uma abertura vocálica que se repete no verso final. Dá-se especial relevo a esse verso, já que, além de sozinho constituir uma estrofe, vem destacado pelos parênteses e pelo ponto de exclamação, recursos que reforçam sua importância.

Na estrofe seguinte, apesar de a menina continuar mudando de modos, estes já não são os mesmos, pois ela já não é trombuda (v.11). No verso que finaliza o poema, destaca-se, como no verso 6, o conteúdo através dos mesmos recursos, havendo nova abertura decorrente do sentido positivo inerente ao verbo amar.

Há dois momentos fundamentais no poema, refletidos na divisão do texto em partes, graficamente simétricas: o primeiro (v.1-6) é o da menina trombuda; o segundo (v.7-12), do instante em que ela se sente amada. Portanto, o nível gráfico, a par da sugestiva sonoridade, espelha as significações presentes, concretizando os estados anímicos da criança.

A pronunciada musicalidade de que se reveste o poema, através das nasais e das vogais fechadas em oposição à vogal aberta /a/, vai ao encontro da palavra moda, pois este termo refere-se a um certo tipo de cantiga popular. Além disso, moda pode também designar capricho. Neste sentido, parece haver correlação de moda-cantiga e de moda-capricho com a moda cantada no poema, já que tanto a musicalidade quanto o comportamento caprichoso da menina se presentificam em “Moda da menina trombuda”.

DISCUSSÃO

Se, por um lado, a doutrinação foi uma constante na gênese da poesia infantil brasileira, por outro, os autores desse período apresentam grande importância histórica, em virtude do pioneirismo em criar uma literatura infantil genuinamente brasileira. Além disso, se é verdade que eles se revestiram de uma postura doutrinária, isto, na realidade, ocorreu pelo fato de estarem em consonância com a conservadora ideologia da época. A partir da década de 20, houve tentativas de romper com esse conservadorismo, obtendo-se um razoável acervo de poemas originais, dando início à emancipação do gênero, que se consolida, de forma indelével, a partir dos anos 60, embora ainda existam, ao lado de poetas genuínos, indivíduos que escrevam versos pautados no didatismo.

CONCLUSÃO

Se a poesia infantil brasileira, em seu período inicial, caracterizou-se pelo utilitarismo, e se, nas décadas de 20 a 50, surgiram modernistas que nutriram o desejo de emancipação poética, a partir dos anos 60, tal desejo foi significativamente concretizado. Na ausência de intuitos doutrinários, o poeta dialoga com a criança, a assimetria se desfaz e o universo infantil é respeitado, promovendo o encontro entre criança e poesia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BILAC, O. Meio-dia. In: BILAC, O. Obra reunida (org e introd. de Alexei Bueno). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.317-318.

CADERMATORI, L. Jogo e iniciação literária. In: ZILBERMAN, R.; CADERMATORI, L.. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2. ed. São Paulo: Ática, 1984, p.28-37.

LISBOA, H. Tempestade. In: SMOLKA, A. L. B. et al. Leitura e desenvolvimento da linguagem. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, p.64.

MEIRELES, C. Moda da menina trombuda. In: MEIRELES, C. Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.11.

Fonte:
PRADO, Isaura Maria Mesquita; MOLINARI, Sonia Lucy (editores). VII SAU (Semana de Artes da UEM). II Mostra Integrada de Ensino, Pesquisa e Extensão. 21 a 30 maio 2004. Maringá: UEM – Universidade Estadual de Maringá. Arq. Apadec, 8(supl.): Mai, 2004 ISSN 1414-7149 (CD-ROM).

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DADOS DO AUTOR
Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (2003) e mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (2006). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente com prosa experimental, literatura infanto-juvenil e leitura. Atualmente, cursa doutorado em Letras na Universidade Estadual Paulista (UNESP – São José do Rio Preto), integra a Banca de Avaliação da Prova Discursiva de Literatura do Vestibular da Universidade Estadual de Maringá e atua como professora na rede particular de ensino .
Fonte:
Currículo Lattes

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Rafael Arráiz Lucca (1959)

(Caracas, 3 de janeiro de 1959) é um ensaísta, poeta, historiador e professor venezuelano.

Atualmente, Arráiz é professor da Universidade Metropolitana de Caracas (Unimet). Desde 2001 está cedido à “Fundação para a cultura urbana” de Caracas. Se licenciou advogado em 1983 pela (Universidade Católica Andrés Bello – UCAB), especialista em comunicações integradas em 2002 (Unimet) e Mestrado em História em 2005 (UCAB). Foi presidente de Monte Ávila Editores e Diretor do Conselho Nacional da Cultura. É membro da Academia de Gastronomía Venezuelana desde 2004. Em novembro de 2005 convidado a ingressa na Academia de Letras da Venezuela como indivíduo de Número, ocupando a cadeira 5, em reconhecimento a sua obra intelectual.

Escreveu vários livros de poemas incluindo: Balizaje (1983), Terrenos (1985), Almacén (1988), Litoral (1991), Pesadumbre en Bridgetown (1992), Batallas (1995), Poemas Ingleses (1997), Reverón 25 poemas (1997) y Plexo Solar (2002).

Escreveu também ensaios como: Venezuela en cuatro asaltos (1993), Trece lecturas venezolanas (1997), Vueltas a la patria (1997), Los oficios de la luz (1998), El recuerdo de Venecia y otros ensayos (1999), El coro de las voces solitarias, una historia de la poesía venezolana (2002) y ¿Qué es la globalización? (2002).

Es autor de una Antología de Poesía Venezolana (1997); de El libro del amor (Antología de poesía amorosa universal, 1997) y de la selección Veinte poetas venezolanos del Siglo XX (1998).

Desde 1983, Arráiz Lucca escreve semanalmente uma coluna de opinião no diário El Nacional. Prêmio Municipal de Literatura 1993 com a obra El abandono y la vigilia, no gênero: Poesia.

Poesias:

Dieciocho

¿Acaso no son tres las dimensiones
que salvan al plano de su opacidad
y causan el prodigio del volumen?
¿No son tres las personas del verbo
y la trinidad un misterio divino?
¿No fueron tres las veces que negaron a Cristo
y no fue el tercero el día de su resurrección?
¿No son tres los poderes de la república
y un tercero el fruto de dos?
¿No empuña Poseidón un tridente
y tres los sujetos de un engaño?
¿No son tres los lados del tallo de un papiro
y triangulares los cuatro planos de la pirámide
y el trébol de cuatro hojas la excepción más infrecuente?

Cuatro

He muerto.

Desde que el desvarío de mis pupilas
anunciaba el estado de coma,
mis hijos han permanecido como canoas
en los costados del lecho.
Hilda, la enfermera que me asiste en el tránsito,
cata las intermitencias del pulso cada vez más lejano,
oye los murmullos de un gato agonizante sobre los rieles del tren.
Mis ojos abiertos están en blanco
y mi boca se abre aspirando las últimas bocanadas
del aire dichoso.
Un latigazo eléctrico sacude mis piernas
como el estertor del toro después de la puntilla:
mi corazón ha dejado de latir.

He muerto.

La sangre ha dejado de recorrer mi cuerpo en su frenesí.
Lo que sustentaba mi piel como una vieja promesa
le ha cedido el espacio al color amarillento de los papeles
decrépitos.
Soy una suerte de hoja ocre plagada de hongos,
un papiro abandonado sobre el tope de una nevera
inservible.
Mi sangre, que durante años fue fiel en su periplo rutinario,
no recibe el impulso para su itinerario retórico.
Soy una casa olvidada por la suerte del fuego
que le ha dejado su reino al hielo más seco.

He muerto.

Una sola instrucción he dejado a mis deudos:
al apoderarse de mí la tiesura,
abran las ventanas para que mi alma encuentre su rumbo,
déjenla ir,
no interpongan ningún obstáculo a su vuelo,
el aleteo de las palomas que se anuncian
con el carraspeo de sus gargantas
les anunciará la ascensión del espíritu que encontró en mí
la hospitalidad de un cuerpo romo,
poco filoso, naturalmente tibio, herbívoro,
proclive al regazo de las hembras.

He muerto.

Las campanas de la iglesia vecina han propagado su eco
a la misma hora de mi nacimiento:
son las doce y treinta del mediodía de una fecha imprevista.
No recuerdo cuántos años han pasado desde mi llegada,
pero sé que la misma luz que me recibió me despide.

He muerto.

Asciendo en volandas hacia un espacio de luz
más blanco que las volutas de algodón,
pero nada hay en mi vuelo que perturbe la paz
de creer que he concluido todas mis batallas.
Atrás queda la ventana de mi apartamento
y más lejos aún la cama donde he rendido mis últimas fuerzas.
Ya Caracas es un paisaje abstracto que se divisa
entre el fragor de las nubes quiméricas.
Ya América se escruta entre la bruma
con su figura de trompo alargado y difuso.
Ya la tierra es una sola esfera azul que se achica
como una fortuna majestuosa que se pierde en el tiempo.

He muerto.

Asciendo hacia el punto donde todas las preguntas
adquieren respuesta.
Voy entrando en un túnel que acelera mi vuelo,
soy lo que siempre he sido:
una mínima partícula amada por un Dios memorioso.
Mis fragmentos de pronto han sido tocados
por el rayo de la totalidad:
todo en un segundo lo comprendo.
Las escenas centrales de mi tiempo terreno,
de las que ignoraba su carácter principal,
han salido al damero del entendimiento ejecutando su danza.
Todos los puntos que no advertía cercanos
han revelado ahora sus conexiones ocultas:
una araña teje su tela en la penumbra,
tengo en mis manos el Aleph de Carlos Argentino Daneri.

He muerto.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Categoria:Escritores_da_Venezuela
http://www.festivaldepoesiademedellin.org/pub.php/en/Revista/ultimas_ediciones/62_63/arraiz.html

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Khaled Hosseini (1965)

(Cabul, 4 de Março de 1965) é um romancista e médico afegão, com naturalização estadunidense. É o autor do romance best seller, O Caçador de Pipas.

Biografia

Hosseini nasceu na capital do Afeganistão, Cabul. Sua mãe era professora de uma escola de segundo grau para garotas em Cabul. Seu pai se envolveu com o Ministério do Exterior afegão. Em 1970, o Ministério do Exterior enviou sua família para o Teerã, Irã, onde seu pai trabalhou para a Embaixada Afegã. Em 1973, Hosseini e sua família retornam à Cabul. Em Julho de 1973, na mesma noite em que nasce o irmão mais jovem de Hosseini, o reino do Afeganistão muda de mãos através de um golpe sem derramamento de sangue.

Em 1976, Khaled Hosseini e sua família se mudam para Paris, França, por conta do novo emprego do seu pai. Eles não voltam ao Afeganistão porque, enquanto estavam em Paris, comunistas tomaram o poder do país por meio de um golpe cruel. Deste modo, foi consentido à família Hosseini, asilo político, nos EUA, onde passaram a residir em San Jose, Califórnia. Suas propriedades foram todas deixadas no Afeganistão e eles foram forçados a sobreviver com ajuda governamental por um curto período.

Hosseini graduou-se na escola secundária em 1984 e inscreveu-se na Universidade de Santa Clara, onde ganhou título de Bacharel em Biologia, em 1988. Após alguns anos, ele ingressou na Universidade da Califórnia, San Diego, escola de Medicina, onde recebeu o título de Doutor em Medicina em 1993. Ele completou o período de residência em Medicina Interna na Cedars-Sinai Medical Center, em Los Angeles, no ano de 1996. Khaled Hosseini continua praticando medicina.

Influências

Quando Hosseini era criança, leu desde poesias persas à romances como “Alice no País das Maravilhas” e a série do detetive “Mike Hammers”, do escritor Mickey Spillane. As memórias de um Afeganistão pré-invasão soviética e suas experiências pessoais, o levaram a escrever o seu primeiro romance, The Kite Runner (O Caçador de Pipas). Um homem hazara, chamado Hossein Khan, trabalhou para os Hosseini quando eles moravam no Irã. Quando Hosseini estava cursando seu terceiro grau, ensinou Khan a ler e a escrever. Ainda que o relacionamento com Hossein Khan tenha sido breve e um tanto formal, a afeição de Hosseini por esta rápida amizade serviu como inspiração para o relacionamento entre Hassan e Amir em O Caçador de Pipas.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Khaled_hosseini

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Livros: O Caçador de Pipas (Khaled Hosseini)

O caçador de pipas é o primeiro romance escrito pelo afegão Khaled Hosseini, que atualmente mora na Califórnia, EUA. Publicado pela primeira vez em 2003, é o primeiro romance em inglês escrito por um afegão.

Introdução

O caçador de pipas conta a história de Amir, um garoto Pashtun rico de Wazir Akbar Khan, distrito de Cabul, que é atormentado pela culpa de ter traído seu amigo de infância, Hassan, filho do empregado Hazara do seu pai, Ali. A história tem como cenário uma série de acontecimentos tumultuosos, que começa com a queda da monarquia do Afeganistão decorrente da invasão soviética, a massa de emigrantes refugiados para o Paquistão e para os EUA e a implantação do regime Taliban.

Sinopse

Amir era um garoto problemático que cresceu num Afeganistão pré-guerra civil. Sua mãe morreu durante o seu parto, sua relação com seu pai, Baba, é formal demais e seu melhor amigo é Hassan, um garoto hazara de lábio leporino, filho do empregado da família, Ali. Amir não entendia o afeto que seu pai demonstrava ter por Hassan, afeto esse que resultou numa plástica, paga por Baba, para corrigir o defeito de nascença do garoto, quando este fez doze anos.

Amir e Hassan eram insultados por Assef, um brigão de uma respeitada família afegã que se une aos talibãs após o domínio russo. Em um encontro turbulento com Assef, Hassan protege Amir de uma agressão, ameaçando atirar no olho esquerdo de Assef com um estilingue. Assef e seus capangas recuaram, prometento uma revanche a Hassan.

O amigo de Amir é um dos destaques do anual campeonato de pipas, que marca o início do inverno em Cabul.

Amir é um mestre na competição e Hassan é um talentoso caçador de pipas, alguém que apanha as pipas caídas para exibi-las como troféus.

Em seus doze anos, Amir finalmente ganha a estima do seu pai por ter vencido a competição. Infelizmente, quando Hassan corre para apanhar a última pipa, ele encontra Assef. Amir vai a procura do seu amigo e acaba testemunhando Hassan sendo brutalmente violentado por Assef. Falta, a Amir, coragem para intervir e ele prefere manter seu conhecimento sobre o fato em segredo. No entanto, a culpa que ele passou a sentir perante a sua inatividade naquele momento, envenenava lentamente o seu relacionamento com Hassan.

No seu aniversário de treze anos, Amir recebe diversos presentes do seu pai e dos amigos deste. Entretanto, um deles é particularmente especial: um carderno em branco que ganhara do amigo e sócio do seu pai, Rahim Khan, para que ele escrevesse suas histórias.

Não podendo mais tolerar a presença de Hassan em sua casa, Amir prepara uma armadilha para seu amigo, escondendo dinheiro e um relógio de pulso sob o colchão de Hassan para incriminá-lo. Apesar de ser inocente, Hassan prefere confessar o roubo a complicar seu amigo. Ali se sente forçado a deixar a família, a qual serviu durante muitos anos, e se mudar para a remota Hazarajat, apesar dos protestos e lágrimas de Baba. Ainda que Amir nunca mais tivesse visto Hassan novamente, ele se vê constantemente atormentado por tê-lo traído.

Em 1980, Amir e seu pai deixam o Afeganistão, vão para Peshawar, no Paquistão, e, em seguida, para os EUA, escapando do novo regime soviético.

Em 1984, Amir e Baba estão morando em Fremont, Califórnia, EUA. Baba trabalha em um posto de gasolina e ganha um dinheiro extra vendendo sucatas em uma feira aos domingos, almejando pôr seu filho numa faculdade. Baba é diagnosticado com um câncer no pulmão. Amir conhece Soraya Taheri, com quem se casa mais tarde. Eles têm um casamento tradicional. Soraya se muda para a casa de Amir e cuida de Baba até ele morrer.

Os anos se passam. Amir embarca em uma bem-sucedida carreira como romancista. Ele e Soraya não podem ter filhos e relutam em adotar uma criança.

Em 2001, quinze anos depois da morte de Baba, Amir recebe um telefonema de Rahim Khan, que vivia em Peshawar. Amir viaja para o Paquistão para encontrá-lo. Rahim revela a Amir tudo o que aconteceu no Afeganistão depois da guerra civil.

Rahim se mudou para o antigo casarão de Baba, levando consigo Hassan, a mulher e o filho de Hassan, Sohrab. Dez anos depois, ele deixa Cabul e vai para o Paquistão. Hassan e sua mulher foram assassinados por um soldado taliban. Seu filho foi levado para um orfanato.

Rahim Khan pede a Amir que ele retorne ao Afeganistão para resgatar Sohrab. Para persuadi-lo, Rahim revela um segredo de família: Ali era estéril e Baba era o verdadeiro pai de Hassan, fazendo com que Amir e Hassan fossem meio-irmãos e Sohrab fosse meio-sobrinho de Amir.

Após relutar muito, Amir retorna a uma Cabul controlada pelo Taliban para procurar por seu sobrinho. Ele localiza o orfanato e é informado que o garoto fora levado por um oficial Taliban, que o usa como escravo sexual. Amir acha o oficial e pergunta por Sohrab, no entanto, o oficial é Assef. Eles brigam na frente do garoto e, se não fosse Sohrab ameaçando atirar no olho esquerdo de Assef com um estinligue e cumprido sua ameaça, Amir teria morrido.

Amir e Sohrab fogem para o Paquistão, onde ele decide adotar o garoto, mas encontra a oposição das autoridades americanas locais. Amir conta a Sohrab que talvez tenha de colocá-lo em um orfanato temporariamente. Com medo de receber o mesmo tratamento cruel que recebera no Afeganistão, Sohrab tenta o suicídio ao cortar seus pulsos. Amir descobre Sohrab a tempo, quando corre para contá-lo que sua mulher, nos EUA, encontrou uma forma de levar o garoto para a América.

O livro acaba com Amir e Sohrab de volta aos EUA. Sohrab está emocionalmente abalado e procura não falar. O dia de ano novo afegão é celebrado com uma competição de pipas, e Amir compra uma. Ele usa uma das antigas manhas de Hassan para derrubar uma pipa adversária. Nesse momento, um pequeno sorriso de Sohrab enche Amir de alegria: uma pipa voando foi o começo do descogelamento das emoções de Sohrab, e Amir, finalmente, se sente libertado da culpa que carregara consigo desde a infância.

Personagens em “O caçador de pipas”
Pashtun, protagonista da história
Hazara do seu pai
Assef – um briguento vizinho de Amir, quando este morava em Cabul
Baba – pai de Amir e um homem de negócios
Ali – Empregado de Baba e pai de Hassan
Rahim Khan – amigo e sócio de Baba, no Afeganistão. O único amigo adulto de Amir.
Sanaubar; mãe de Hassan
EUA; esposa de Amir
Sohrab – filho de Hassan, órfão no Afeganistão

Importância literária e crítica

O caçador de pipas foi escolhido por diversas comunidades e organizações como uma forma de discussão sobre as questões históricas e culturais presentes no romance. Muitos programas escolares notáveis têm adotado o livro.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Kite_Runner

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Schneider Carpeggiani (Cronica: 100 anos e a imortalidade pela frente)

Como uma tentativa de preservar a cultura do estado, a academia pernambucana de letras foi fundada no tempo em que o recife vivia seu jeito francês de ser.

Sempre ranzinza e irônico, o escritor Carlos Heitor Cony certa vez disse que não conseguiria levar muito a sério um século no qual ele vivia. Mesmo para quem teve de conviver diariamente com o Século XX, é difícil fazer um balanço equilibrado desses últimos 100 anos, que deixaram a impressão de ter passado rápido demais para a quantidade de pestes e feitos, alguns fundamentais outros deliciosamente fúteis, que deixou como legado: duas guerras mundiais, Aids, ditaduras abomináveis, Internet, a guitarra elétrica, o astro pop, o videocassete, o CD… A lista é interminável.

Com pouco mais de 20 dias de vantagem em relação ao contraditório século que acaba de se encerrar, a Academia Pernambucana de Letras comemora no dia 26 de janeiro o seu centenário – fundada por Carneiro Vilela, como a Terceira do Brasil, só perdendo para a Brasileira e a Cearense. Singular desde o seu princípio, tanto por ter permitido o ingresso de nomes que se distinguiam não só no campo da literatura, mas também no da filosofia, ciências e história, pela eleição vitoriosa da primeira mulher a fazer parte de uma instituição de letras, a professora e poeta Edwiges de Sá Pereira – como pelo caráter irreverente do seu registro civil, escrito, em tom humorístico, pelo poeta Gregório Júnior:

“Ergamos, pois a nossa própria estátua!
Dos célebres nós temos monopólio,
Deixemos a modéstia vil e fátua.
Fundada a grei, a nossa panelinha,
Exclame cada um no capitólio –
Zoilos, tremei! Posteridade, és minha”

A fundação da APL pode ser encarada como uma tentativa de sobrevivência da cultura pernambucana, que se via ameaçada pelos problemas econômicos do Estado, que já não era mais a potência de antes. Até meados do Século XIX, o Recife era um dos maiores centros culturais do Brasil. Para isso, dois fatos colaboravam de forma fundamental: pela sua posição geográfica, (esse era o primeiro destino de navios vindos da Europa para a então capital do Brasil, Rio de Janeiro). Antes de chegar à corte, inúmeras companhias de teatro e ópera aportavam primeiro por aqui; e a Faculdade de Direito do Recife, naquele período, era uma das duas únicas do Brasil. Intelectuais de todas as partes, como Castro Alves, acabavam vindo estudar na cidade, criando um intenso intercâmbio cultural.

Enquanto surgia, a APL via o Brasil começar a ser dominado pela chamada “república do café com leite”, centrada em São Paulo e Minas Gerais, que não precisava do nosso açúcar para “adoçar” a mistura do poder.

Naquele princípio de século, continuávamos sendo um mero satélite espiritual da França. A tal ponto que nossa vida intelectual podia ser comparada com o que acontecia na Rússia czarista, onde os membros da aristocracia costumavam comunicar-se em francês, relegando o russo para as relações com os criados. Reza a lenda que, no centro do Recife, havia até um mendigo que pedia esmolas no idioma de Racine. “Donnez moi l” argent, si vous plait”, pedia aos passantes, surpresos diante de tal refinamento.

As idéias que orientavam os fundadores de nossa República, aglutinando-se ao Positivismo, eram de origem francesa. Lia-se muito Anatole France, Zola, Flaubert e Maupassant. A grande exceção nesse terreno era o ferino português Eça de Queiroz. A “ecite” contaminava a todos – alguns gostavam outros não. Indiferença era o que não havia.

Para os mais abastados, nada como fluir anualmente à cidade-luz. Nenhum outro destino era melhor para, digamos, a cabeça. No campo da literatura, ela se tornava um laboratório de tendências. Parnasianismo ou simbolismo? Realismo ou naturalismo? Ao mesmo tempo em que Machado de Assis penetrava de maneira sutil na alma humana, revelando suas ambigüidades, Aluízio de Azevedo contrapunha a esse realismo psicológico um naturalismo à Zola, no qual as mazelas sociais assumem o primeiro plano.

O Recife vivia sua belle époque tardia dos anos 20 na Esquina do Lafayette. Era por lá que os intelectuais, especialmente os poetas, se reuniam para conversar sobre literatura, a sua e a dos outros – o que, até hoje em dia, ainda deve ser bem mais interessante.

Em seu ensaio “A Esquina do Lafayette”, o acadêmico da APL Rostand Paraíso ressaltou que naquele tempo o Recife vivia uma verdadeira “febre” de academias paralelas à APL: “Houve o Cenáculo Pernambucano de Letras que, segundo Luiz do Nascimento, seu participante, morrera da doença da desídia e do abandono. Da mesma doença, haviam desaparecido a Academia Recifense de Letras, de Fernando Pio e Mauro Mota, o Silogeu Pernambucano de Letras, de Berguedof Elliot, o Grêmio Recifense de Letras, a Falange Literária Dr. Oliveira Lima, e o Cenáculo da Livraria Silveira, entre outras instituições que chegaram a ter seus momentos de glória”. Nesse período, a Academia Pernambucana de Letras tinha apenas 20 cadeiras. Um número reduzido para abrigar a quantidade de intelectuais que habitavam o Recife. Em 1921, o número subiu para 30 e, finalmente, em 1960, para 40 cadeiras, igualando-se à Academia de Letras Francesa, o padrão para todas as outras.

Apesar de viver em uma cidade cheia de crioulas tradições francesas e repleta de intelectuais, a APL não repetia o seu glamour em termos econômicos. A grande prova disso é que suas reuniões aconteciam em salas emprestadas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico do Recife. “O certo é que quase todas as Academias no Brasil passaram por grandes dificuldades financeiras para terem condições de funcionar como desejavam seus criadores. A Casa de Machado de Assis (a Academia Brasileira de Letras) sofreu grandes dificuldades nos seus primeiros tempos. Não possuía sede desejada. Rodrigo Otávio e outros valores intelectuais chegaram a ceder parte de seus escritórios de advocacia para abrigar colegas intelectuais. Não foi diferente com a Casa de Carneiro Vilela (como é conhecida a instituição)”, declara o atual presidente da APL, Luiz de Magalhães, reeleito por quatro vezes por unanimidade.
A sede de fato da Academia, situada na Rui Barbosa, número 1596, só foi doada em 1966, durante o governo de Paulo Guerra, que assumiu o comando do Estado após Miguel Arraes ter sido exilado devido ao golpe militar de 64. Interessante foi que o pedido de Luiz Delgadom então presidente da APL, para o governador declarava que todos os acadêmicos eram “uns pobretões”.

O solar que hoje abriga a APL havia sido residência do barão Rodrigues Mendes, no Século XIX. Na época em que foi doado, estava tão abandonado que as vacas dos herdeiros tiravam o seu merecido descanso noturno nos salões onde hoje se reúnem os acadêmicos.

Cedido o casarão, os móveis e obras de arte da Academia foram doados, em sua maioria, pela sociedade pernambucana da época. Inclusive por Dom Helder Câmara.
E foi nessa sua atual sede que a APL recebeu o ingresso de dois senhores com estilo notadamente anti-acadêmico, mas cuja obra falava por qualquer ato excêntrico ou mesmo pela ausência de postura: João Cabral de Melo Neto e Gilberto Freyre, eleitos por unanimidade.

João Cabral, sempre introspectivo e avesso a solenidades, nem mesmo foi à sua posse. Alegou estar doente. “Não tenho qualquer lembrança da presença de João Cabral na Academia”, lembra o presidente Luiz de Magalhães. Já Gilberto Freyre, despojado e sem maiores rodeios, não se conteve em reclamar do demorado discurso proclamado por Waldemar Lopes durante sua posse. “Minha bunda já está doendo” – disse, levando todos os presentes a cair na gargalhada.

Com uma história marcada por problemas financeiros, feministas, anti-acadêmicos e postura à francesa de ser, a APL chega aos seus 100 anos com uma recepção em 26 de janeiro, na qual será entregue a medalha do centenário para os seus 40 membros, entidades e personalidades homenageadas. “A data que vamos comemorar será o coroamento vivo do que foi possível traduzir ou realizar em homenagem à cultura, como para dar relevo e dignidade à própria instituição a que pertencemos”, declarou Luiz de Magalhães.

Durante a recepção que marca o centenário, será realizada a inauguração da nova sala de reuniões da instituição, cujo nome do patrono ainda será escolhido.

Lista dos primeiros acadêmicos da APL :
Antônio Joaquim Barbosa Viana; João Gregório Gonçalves; Bianur Gadault Fonseca de Medeiros; Carlos da Costa Ferreira Porto Carreiro; Gervásio Fioravanti Pires Ferreira; Arthur Orlando da Silva; João Batista Regueira Costa; Joaquim Maria Carneiro Vilela; Francisco Augusto Pereira da Costa; Eduardo de Carvalho; Alfredo Ferreira de Carvalho; José Antônio de Almeida Cunha; José Isidoro Martins Júnior; Henrique Capitolino Pereira de Melo; Ernesto de Paula Santos; Joaquim José de Faria Neves Sobrinho; Sebastião de Vasconcelos Galvão; Luiz de França Pereira; Manuel Teotônio Freire; Celso Vieira.

Fonte:
http://apl.iteci.com.br/

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Academia de Letras (Origem)

Para a maioria, o termo “academia de letras” é tão compreensível, tanto em definição, critérios para escolha de seus membros e função, como uma tábua etrusca: ilegível e totalmente por fora da realidade. Não é bem assim. Para se entender melhor o que ela significa, é necessária uma não muito breve viagem no tempo.

A primeira academia foi uma escola fundada, próxima a Atenas, quase quatro séculos antes de Cristo, por Platão e dedicada às musas. Era formada por uma biblioteca, uma casa e um jardim. Pela tradição, o jardim teria pertencido ao herói ateniense Academus, da guerra de Tróia, nome que deu origem ao termo “academia”. Nessa escola, de maneira informal, mestres e discípulos trocavam experiências sobre filosofia, matemática, música, astronomia e legislação. Os jovens seguidores do filósofo dariam continuidade a esse trabalho que viria a se constituir num dos capítulos mais importantes da história do saber ocidental.

As mais conhecidas academias gregas foram a Antiga Academia, fundada por Platão, que teve como um dos seus discípulos Aristóteles; a chamada Academia do Meio, fundada pelo filósofo platônico grego Arcesilaus; e a Nova Academia, fundada pelo filósofo grego Carneades. Essa tradição, que deu origem a todas as academias e universidades de ensino superior do Ocidente, foi interrompida com o seu fechamento pelo imperador romano Justiniano, em 529 depois de Cristo.
Nos séculos XIII e XIV, quando o renascimento começou a tirar a Europa das trevas da Idade Média, seguindo a tradição clássica, diversas academias de poetas e artistas começaram a se estabelecer na França e Itália. A mais famosa, a Accademia Platônica, fundada em Florença por volta de 1440, se dedicou a aprofundar o discurso da obra de Platão, Dante e do aprimoramento da língua italiana.

Em 1635, com a finalidade de tornar a língua francesa “pura, eloqüente e capaz de tratar das artes e ciências”, com autorização do rei Luís XIII, o Cardeal Richelieu funda a Academia Francesa, que até hoje serve de base para todas as outras academias. Constituída por 40 cadeiras, cujos ocupantes perpétuos são eleitos pelos mais antigos, depois de apresentarem suas qualificações. É interessante ressaltar que durante o discurso de posse, o novo acadêmico tem de lembrar os seus antecessores. Provavelmente, devido a essa lembrança, que sempre tem de ocorrer, surgiu a origem da enigmática expressão `acadêmico imortal`.

Em seu livro Inútil Poesia, a professora Leyla Perrone-Moisés definiu da seguinte forma o desenvolvimento da literatura nos séculos posteriores à formação da Academia Francesa de Letras: “Como atividade autônoma, ela data de meados do Século XVIII. Como instituição e matéria de ensino, ela alcança o seu auge de prestígio no período que vai do início do Século XIX até meados do Século XX. Seu prestígio decorria, então, de uma determinada concepção de cultura, que implicava a estima consensual pelas humanidades e a valorização da tradição escrita. Essa tradição estava sacramentada num cânone, fundamentada em determinados valores, o qual orientava a organização dos programas e manuais escolares”.

Então capital brasileira e com uma vida cultural marcada por reunião de intelectuais e diversas publicações voltadas à literatura, o Rio de Janeiro foi a sede da primeira academia de letras brasileira. Em pontos de encontro como a livraria Garnier, surgiu a idéia de sua fundação, inicialmente proposta por Lúcio Mendonça, que toma forma em 1896. Em seu comando, o presidente Machado de Assis e, como primeiro-secretário, um nome pernambucano, Joaquim Nabuco.

Fontes:
FUNDAÇÃO Joaquim Nabuco. Disponível em http://www.fundaj.gov.br/notitia/

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Academia Pernambucana de Letras

A Academia Pernambucana de Letras foi fundada em 26 de janeiro de 1901, no Recife, por Joaquim Maria Carneiro Vilela e outros escritores pernambucanos da época, com um total de 20 cadeiras tendo como objetivo “promover a defesa dos valores culturais do Estado, especialmente no campo da criação literária”.

É uma instituição civil, de utilidade pública e foi a terceira academia de letras fundada no Brasil. A primeira foi a do Ceará, criada em 1894, três anos antes da Academia Brasileira de Letras (1897).

No início, as reuniões da APL eram realizadas em salas do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Em 1966, passou a funcionar em sede própria, num casarão na Av. Rui Barbosa, n. 1596, que pertenceu ao Barão Rodrigues Mendes, João José Rodrigues Mendes um comerciante português. O Governo do Estado de Pernambuco, na época do então governador Paulo Guerra, desapropriou o imóvel, doando-o à Academia, através do Decreto n.1.184, de 14 de janeiro de 19666. O edifício-sede da Academia é conhecido como a Casa de Carneiro Vilella.

Os móveis e as obras de arte foram doados, em sua maioria, pela sociedade pernambucana, incluindo doações do arcebispo Dom Helder Câmara.

Em 1911, foi aumentado o número de acadêmicos de vinte para trinta e, em 1960, passou para quarenta cadeiras, por sugestão do acadêmico Mauro Mota. Compõe-se hoje de quarenta membros, podendo ter o mesmo número de sócios correspondentes, residentes em outros Estados ou no Exterior.

Os acadêmicos não usam o fardão, como na Academia Brasileira de Letras. O fardão foi substituído por um colar dourado, com medalhão distintivo.

A APL possui uma biblioteca, um auditório e edita a Revista da Academia Pernambucana de Letras, que apesar de ter uma periodicidade irregular, é publicada desde 1901. Promove e estimula iniciativas de caráter cultural, concede prêmios literários, medalhas, troféus e títulos honoríficos, realiza cursos, reuniões e simpósios destinados ao estudo, pesquisa e discussões sobre literatura, especialmente a pernambucana.

Atualmente é presidida pelo Acadêmico Waldenio Porto (Cadeira nº 15).

Os patronos das cadeiras são pernambucanos, com exceção de Bento Teixeira, da Cadeira nº 1, que se declarou português.

Podemos citar alguns Acadêmicos como:

Amílcar Dória Matos – Nasceu no Recife, a 24 de janeiro de 1938. É bacharel em Direito pela Universidade de Pernambuco, e possui o diploma de Mestrado em Direito Comparado da Southern Methodist University, do Texas, Estados Unidos. Jornalista profissional, tendo trabalhado em jornais como O Estado de São Paulo e Jornal do Commercio, recebeu diversos prêmios pelos seus trabalhos na área de ficção. Entre eles: Prêmio Recife de Humanidades e Prêmio José Conte. No terreno de ficção, suas principais obras são: A Morte do Papa, A Trama da Inocência, Os Olhos da Insônia, Os Doze Caminhos, Cartas ao Espelho. Nos últimos anos, começou a se dedicar também à poesia, com o lançamento de dois livros de poemas.

Ariano Suassuna – Nasceu em João Pessoa, na Paraíba, em 16 de junho de 1927. É advogado, professor, teatrólogo e romancista. É o idealizador do Movimento Armorial, interessado no desenvolvimento e no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras. Entre as suas principais obras estão: Romance da Pedra do Reino, Auto da Compadecida, O Santo e a Porca, Farsa da Boa Preguiça, O Rico Avarento e O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna. O filme O Auto da Compadecida, baseado no seu livro, tornou-se a maior bilheteria da história do cinema nacional.

Cláudio Aguiar – Nasceu a 3 de outubro de 1944, em Paranga, CE. Formado em Direito, é também Doutor pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Entre suas principais obras, estão: Os Espanhóis no Brasil, Franklin Távora e Seu Tempo, Suplício de Frei Caneca e Caldeirão. Autor de inúmeros ensaios e romances, atua também como dramaturgo. Para 2001, espera a montagem de sua adaptação do livro A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela, que realizou para o teatro.

Flavio Chaves – Pernambucano, nascido em Carpina, a 17 de outubro de 1958, onde fez os seus estudos primários e secundários, com passagem pelo seminário Salesiano. Iniciou sua carreira literária com o livro de poesia Digitais de um Coração, em 1983. E tem como suas principais obras os livros Poemas de Sal e Sol, Aragem do Subterrâneo, Território das Lembranças e Aragem do Subterrâneo. Idealizou e organizou no Recife, junto à Fundarpe e UNICAP, a I Caminhada Poética Brasileira. É filiado à União Brasileira de Escritores, UBE – Secção Pernambuco, exercendo o cargo de presidente nos biênios 95/96, 97/98, tendo sido reeleito novamente em 99/2000.

Francisco Bandeira de Melo – Nasceu no Recife, a 29 de abril de 1936. Formou-se em Direito pela UFPE e trabalhou, nos anos 50, como jornalista do Jornal do Commercio. No mesmo veículo, desde 91, escreve crônicas aos domingos. Foi assessor da Delegação do Brasil junto a ONU, em 63, quando nesse período colaborou como correspondente para publicações na revista Manchete. Exerceu os cargos de presidente da Empetur e Secretário de Cultura, Turismo e Esportes do Estado de Pernambuco. Entre suas principais obras estão Pássaro Narciso, Sol Amargo e o recente Baú de Espelhos, coletânea com poemas novos e antigos.

Jarbas Maranhão – Nasceu em Nazaré da Mata, a 22 de janeiro de 1916. É formado em Direito pela UFPE. Participou da fundação de numerosas entidades técnicas e culturais, entre elas o Instituto Rui Barbosa, de São Paulo. Recebeu medalhas de mérito e comendas por instituições culturais e órgãos do poder público, entre as quais a Comenda da Ordem dos Guararapes, a Comenda da Ordem do Capibaribe e a Comenda da Ordem Camoniana. É Cidadão Benemérito do Estado do Rio de Janeiro. Tem mais de 30 livros publicados sobre temas jurídicos, políticos ou literários.

Lucila Nogueira – Carioca, nascida a 30 de março de 1950, radicou-se no Recife no mesmo ano. É poeta, crítica, tradutora, professora de literatura portuguesa e brasileira, língua portuguesa e teoria da literatura do Departamento de Letras da UFPE. Seus poemas já foram traduzidos para o inglês, espanhol, francês e alemão. Tem como seus principais trabalhos Peito Aberto, Livro do Desencanto, Ilaiana, Zingamares, Imilce, todos eles de poesia. Para 2001, espera a publicação do livro Amaya, pela editora portuguesa Arion e a sua primeira coletânea de contos.

Luiz Marinho – Nasceu em Timbaúba, PE, a 8 de maio de 1926. Dividiu sua formação intelectual entre sua cidade natal e Recife. Na prática, teve sua vida profissional ligada ao trabalho na Caixa Econômica Federal. É considerado um dos maiores nomes da dramaturgia pernambucana, sendo o autor de Um Sábado em 30, uma das peças de maior sucesso do Estado, entre outras como A Incelença e Viva o Cordão Encarnado, esta última ganhadora do “Prêmio Molière” Pertence ainda à União Brasileira de Escritores – Seção Pernambuco.

Maria do Carmo Barreto Campello de Melo – Nasceu no Recife, a 21 de julho de 1924. Passou parte da infância no Rio de Janeiro. Jornalista profissional, atualmente está aposentada como técnica de Comunicação Social da Sudene. Com diploma de bacharela em Letras Clássicas e licenciada na mesma disciplina, tem cursos de pós-graduação e de aperfeiçoamento em literatura e língua portuguesas pela UFPE. Foi colaboradora por três anos do Jornal do Commercio, do Recife, e realizou diversas palestras sobre literatura e condição feminina. Atuou no Magistério como professora de latim, português e literatura brasileira e portuguesa. Suas principais obras são: Música do Silêncio – I e II, Ser em Trânsito, Miradouro, e Retrato do Abstrato.

Maria do Carmo Tavares de Miranda – Nasceu em Vitória de Santo Antão, no dia 6 de agosto de 1926. É bacharela e Licenciada em Letras Clássicas, bacharela em Filosofia pela UFPE, doutora em Filosofia pela Sorbonne, na França e doutora e docente-livre em filosofia pela UFPE. Foi diretora-geral do Seminário de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco, pesquisadora efetiva de centros internacionais de pesquisa e membro titular da Academia Internacional de Filosofia de Arte e da Academia Brasileira de Filosofia. Entre os seus principais trabalhos estão: Pedagogia do Tempo e da História, Educação no Brasil, Os Franciscanos e a Formação do Brasil e tradução, introdução e anotações de Da Experiência do Pensar, de Martin Heidegger.

Milton Lins – Nasceu no Cabo, em 20 de julho de 1927. Fez o curso primário com professoras particulares em Recife. Em 1947, ingressou na Faculdade de Medicina. Estagiou no Hospital das Clínicas de São Paulo, em cirurgia torácica. Em 1963, ganhou bolsa de estudos do Governo da França, estagiando em Paris, no Serviço do Prof. Charles Dubost. Fez estágio de atualização no Hospital Metodista de Houston e no Texas Heart Institute, nos Estados Unidos. Entre suas principais obras estão Livro Preto, Prestações de Contos, Recontando Histórias, O Sino Escarlate e, em 1988, traduziu toda a poesia rimada e metrificada de Arthur Rimbaud. Para 2001, prepara mais dois volumes de tradução de autores franceses e ingleses.

Pelópidas Soares – Nasceu em Catende, em 27 de março de 1922. Em sua cidade, fundou colégios, clubes culturais e recreativos, bibliotecas, jornais e revistas, ao mesmo tempo que publicava artigos e poemas em jornais do interior e da capital. Tem vários poemas traduzidos para o espanhol. É também autor de teatro de bonecos, e suas peças O Boato e O Porre foram representadas por várias cidades do Estado. Entre os prêmios, recebeu o troféu Cultura Viva de Pernambuco, pela FUNDARPE, e o título de sócio-honorário da Sociedade Brasileira de Médicos e Escritores – Seção Pernambuco.

Waldemar Lopes – Nasceu em Periperi, 1 de fevereiro de 1911. Sua formação e vida intelectual foi realizada entre Pernambuco e Rio de Janeiro. Serviu à Organização dos Estados Americanos, de 1954 a 1976, como diretor-adjunto e diretor de seu escritório no Brasil. Pertence a várias instituições técnicas e culturais, tanto no Brasil quando no Exterior. Recebeu vários prêmios literários no terreno da poesia. Entre suas principais obras estão: Legenda, Os Pássaros da Noite e Jogo Inocente.

Waldenio Porto – Nasceu em Caruaru, em 29 de junho de 1935, onde fez seus estudos primários e secundários. Na mesma cidade, colaborou com o jornal A Vanguarda. No Recife, formou-se em medicina e fez seu curso de pós-graduação em cirurgia no serviço do Professor Fernando Paulino, no Rio de Janeiro. Faz parte da Sociedade Brasileira de Médicos e Escritores (SOBRAMES). Entre suas principais obras estão: As Vinhas da Esperança e Quando se Cobrem de Verde as Baraúnas. Nasceu em Caruaru, em 29 de junho de 1935, onde fez seus estudos primários e secundários. Na mesma cidade, colaborou com o jornal A Vanguarda. No Recife, formou-se em medicina e fez seu curso de pós-graduação em cirurgia no serviço do Professor Fernando Paulino, no Rio de Janeiro. Faz parte da Sociedade Brasileira de Médicos e Escritores (SOBRAMES). Entre suas principais obras estão: As Vinhas da Esperança e Quando se Cobrem de Verde as Baraúnas.

A Academia distribui prêmios literários regularmente, em edições anuais, em diversas categorias:
Prêmio Othon Bezerra de Mello;
Prêmio Pereira da Costa);
Prêmio Faria Neves Sobrinho;
Prêmio Geraldo de Andrade;
Prêmio Leda Carvalho;
Prêmio Gervásio Fioravanti (Poesia);
Prêmio Vânia Souto de Carvalho (Ensaio);
Prêmio Nanie Siqueira Santos (Poesia – não inédito);
Prêmio Dulce Chacon (Livro de autora pernambucana);
Prêmio Amaro de Lyra e César (Poesia);
Prêmio Antônio de Brito Alves (Ensaio);
Prêmio Edmir Domingues (Poesia);
Prêmio Leonor Carolina Corrêa de Oliveira (História de Condado e Goiana);
Prêmio Amaro Quintas (História de Pernambuco);
Prêmio Roval de Contos.

Fontes:
FUNDAÇÃO Joaquim Nabuco. Disponível em http://www.fundaj.gov.br/notitia/

http://apl.iteci.com.br/

PARAÍSO, Rostand. Academia Pernambucana de Letras: sua história, v. 1 e v.2 . Recife: APL, 2006. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Academia_Pernambucana_de_Letras

PERNAMBUCO –
http://www.pe-az.com.br/pernambuco/pernambuco.htm

Academias Postadas:
– Academia de Letras de Maringá

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Expressões e Suas Origens = Letra A (Deonísio da Silva)

Estas expressões encabeçam cada página ímpar do livro De Onde Vêm As Palavras, Editora Mandarim. O autor apresenta a etimologia das palavras em ordem alfabética, sendo um verdadeiro dicionário.

A bom entendedor, meia palavra basta
Esta frase, dando conta de que não são necessárias muitas palavras para um bom entendimento entre as pessoas, está coberta de sutilezas, pois sugere que os interlocutores compreendem o sentido exato do que se disse por meio das mais leves alusões. Às vezes, é pronunciada também como advertência ou ameaça disfarçada de boas intenções. Os franceses são ainda mais sintéticos: para bom entendedor, meia palavra. E os espanhóis dizem: a bom entendedor, meio falador. A frase consagrou-se no famoso livro Dom Quixote de la Mancha, do celebérrimo Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616).

A burrice é contagiosa; o talento, não.
Esta é uma das muitas frases célebres da autoria do crítico literário Agripino Grieco (1888-1973), famoso por tiradas cheias de verve e maledicência, proferidas contra pomposos escritores nacionais, até então convictos de que, dado o ofício que praticavam, muitas vezes confundido com sua posição social ou política, não poderiam ter suas obras criticadas, a não ser em comentários favoráveis. O corajoso paraibano, entretanto, culto e irônico, não poupava ninguém e levou à posteridade uma obra de crítica literária desassombrada, imune às tradicionais igrejinhas e confrarias tão presentes na cultura brasileira. Entre seus livros estão Vivos e mortos, Recordações de um mundo perdido e Gralhas e pavões.

Abre-te sésamo
Esta frase reúne as palavras mágicas e cabalísticas que, proferidas pelo herói do episódio “Ali-Babá e os quarenta ladrões”, das Mil e uma noites, resultam na abertura da porta misteriosa da caverna onde eram guardados os tesouros. Aqui está presente também a etimologia para explicar o significado de sésamo, em latim sesamum, que é uma planta em cujas sementes, muito pequenas e amareladas, está contida numa cápsula que se abre sem muita pressão. O sésamo nada mais é do que o nosso popular gergelim, utilizado nas padarias para o fabrico de pães especiais e outras delicadezas de sabor muito raro.

A casa da mãe Joana
A expressão ‘casa da mãe Joana’ alude a lugar em que se pode fazer de tudo, onde ninguém manda, uma espécie de grau zero de poder. A mulher que deu nome a tal casa viveu no século XIV. Chamava-se, obviamente, Joana e era condessa de Provença e rainha de Nápoles. Teve vida cheia de muitas confusões. Em 1347, aos 21 anos, regulamentou os bordéis da cidade de Avignon, onde vivia refugiada. Uma das normas dizia: “o lugar terá uma porta por onde todos possam entrar”. ‘Casa da mãe Joana’ virou sinônimo de prostíbulo, de lugar onde impera a bagunça, mas a alcunha é injusta. Escritores como Jean Paul Sartre, em A prostituta respeitosa, e Josué Guimarães, em Dona Anja, mostraram como o poder, o respeito e outros quesitos de domínio conexo são nítidos nos bordéis.

A crítica não ensina a fazer obras de arte; ensina a compreendê-las
Frase do jornalista e romancista carioca Raul d’Ávila Pompéia (1863-1895), patrono da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras. Foi também diretor da Biblioteca Nacional, cargo atualmente ocupado pelo poeta, crítico e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna. Os críticos nem sempre foram bem entendidos, mas freqüentemente hostilizados. O autor do famoso romance O ateneu foi um dos poucos escritores que, com isenção, esforçaram-se por praticas ou entender a crítica. Seu contemporâneo francês, também romancista, Gustave Flaubert (1821-1880), tinha opinião radicalmente contrária. Segundo ele, era crítico quem não podia criar, assim como tornava-se delator quem não podia ser soldado.

Acta Est Fabula
O cuidado com dois momentos decisivos das narrativas, o começo e o desfecho, resultou na criação de formas fixas como “era uma vez” para a abertura das fábulas, e “foram felizes para sempre”, para a conclusão. No teatro romano, o fim dos espetáculos era anunciado aos espectadores com a frase acima, que significa “a peça foi representada”. O imperador romano Caio Júlio César Otaviano Augusto escolheu esta frase como última a ser pronunciada por ele antes de morrer. Tinha feito uma administração tão primorosa que o século em que viveu foi chamado pelos historiadores de o século de Augusto.

Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura
Utilizada para designar a pertinácia como virtude que vence qualquer dificuldade, por maior que seja, esta frase perde-se nas brumas do tempo, mas um de seus primeiros registros literário foi feito pelo escritor latino Ovídio (43 a.C.-18 d.C), autor de célebres livros como A arte de amar e Metamorfoses, que foi exilado sem que soubesse o motivo. Escreveu o poeta: “A água mole cava a pedra dura”. É tradição das culturas dos países em que a escrita não é muito difundida formar rimas nesse tipo de frase para que sua memorização seja facilitada. Foi o que fizeram com o provérbio portugueses e brasileiros.

Alea Jacta Est
O general e estadista romano Júlio César (101-44 a.C.) pronunciou esta frase, que significa ‘a sorte está lançada’, em 49 a.C., durante a campanha da Gália. Ele decidira atravessar o rio Rubicão, transgredindo a lei do Senado romano que determinava o licenciamento das tropas toda vez que um general de Roma entrasse na Itália pelo norte. A tradição consagrou-a como sinônimo de decisão importante, tomada após reflexão e seguida de risco. É lembrada quando se quer ressaltar ou não há mais possibilidade de voltar atrás, nem que se queira. Célebre em razão de quem a pronunciou em situação tão dramática, tem sido com freqüência para ilustrar decisões irrevogáveis.

A imprensa é o quarto poder
Esta frase, que expressa em boa síntese a importância que tem a imprensa, deve sua criação ao escritor e grande orador britânico Edmund Burke (1729-1797). Ao lado dos três poderes clássicos de uma sociedade democrática, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, a imprensa seria o quarto poder pela influência exercida sobre as votações do primeiro, as ações do segundo e as decisões do terceiro. Quem mais divulgou a frase em seus escritos, defendendo a mesma concepção, foi o famoso historiador e crítico inglês Thomas Carlyle (1795-1881). A imprensa foi sempre importante também para nossas letras. Os primeiros romances brasileiros foram publicados em jornais e revistas.

A mulher é a porta do diabo
Esta famosa frase foi originalmente dita e escrita em latim – mulier janua Diaboli – por Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, na África, doutor da Igreja e um dos pilares da teologia cristã e da filosofia ocidental. Antes de proferi-la, entretanto, levou vida amorosa das mais conturbadas, entregando-se a prazeres que depois condenou. Sua conversão é atribuída às orações de sua mãe, sobre quem escreveu um texto famoso, o Panegírico de Santa Mônica. Para um dialético como Agostinho, nada mais sintomático: sua salvação e perdição foram obras femininas. “A mulher é a porta de Deus” também poderia ser uma frase agostiniana.

A política não é uma ciência, mas uma arte.
Frase pronunciada pelo lendário príncipe, chefe militar e estadista prussiano, Otto von Bismarck (1815-1898), que fez da Alemanha uma grande potência, garantindo-lhe unidade não apenas territorial, pois com ele o povo alemão conquistou sua autonomia. Para tanto, Bismarck enfrentou sérias dificuldades e ousou sustentar uma de suas guerras até mesmo contra o partido católico. Além disso, deu especial atenção às classes trabalhadoras, protegendo-se numa espécie de socialismo de Estado. A frase acima foi dita pela primeira vez num discurso pronunciado em alemão no dia 18 de dezembro de 1863 e desde então insistentemente repetida em muitas outras línguas.

A pressa é inimiga da perfeição
Esta frase antológica passou ao acervo de ditos célebres pela pena do famoso jurisconsulto brasileiro Rui Barbosa de Oliveira ao comentar a rapidez com que se redigia o Código Civil Brasileiro, que trouxe em sua versão final preciosas anotações do mestre. Os detalhes sempre foram importantes, nas redações das leis como nas obras artísticas. Ao longo dos carnavais, várias foram as escolas de samba que perderam pontos importantes pelo desleixo com pormenores. O águia de Haia, como era chamado por sua atenção em famosa conferência que pronunciou na Holanda, acrescentou que a pressa é também “mãe do tumulto e do erro”.

Assim é, se lhe parece
Frase de autoria do célebre escritor italiano, Prêmio Nobel da Literatura em 1934, Luigi Pirandello (1967-1936), autor de contos, romances e peças de teatro. Algumas de suas obras foram transpostas para o cinema. Seus livros mais conhecidos são O falecido Matias Pascal, Seis personagens à procura de um autor e Assim é, se lhe parece, comédia em três atos que discute a busca da verdade. Dois dos principais personagens, o senhor e a senhora Ponza, por meio de diálogos, apresentam um espelho da vida provinciana, no estilo habitual do autor, marcado por fina ironia, grande dose de sarcasmo, mas também grande compaixão humana. A frase passou a ser usada para encerrar uma discussão.

As mulheres perdidas são as mais procuradas
Cantores e cantoras, como Roberto Carlos e Sula Miranda, muso e musa de caminhoneiros, a quem dedicaram várias de suas canções, souberam inspirar-se num imaginário rico em metáforas, presente em frases como esta, extraída do pára-choques de um caminhão. Tendo abandonado os projetos de ferrovias, o desenvolvimento brasileiro dos anos de pós-guerra deu preferência ao transporte rodoviário. Formou-se, então, um tipo de profissional que está presente desde então na cultura brasileira, não apenas com o trabalho importantíssimo que realiza, inclusive carregando este livro até você, leitor, mas também em frases picantes, aludindo a amores passageiros que podem durara penas por um trecho de suas longas viagens.

À sombra de um grande nome
Esta frase tem sua origem na expressão latina Magni nombris umbra, encontrável em vários escritores antigos que escreviam em latim, entre os quais Lucano (39-65) e seu tio Sêneca (4 ªC.-65 d.C.), o primeiro lamentando a rápida transformação do seu caráter do grande general romano Pompeu (106-48 a.C.) que abandonou suas virtudes guerreiras ao tornar-se paisano, ainda que sob os eflúvios solenes da toga. A frase é citada quando um grande homem, por seus atos, faz com que se apaguem antigas lembranças de feitos memoráveis que o credenciaram à admiração, mas que vão para a vala comum dos esquecimentos em virtude de seus desvios. As boas recordações são apagadas e o povo passa a relembrar apenas os malefícios da grande figura. É também utilizada para identificar quem faz o mal à sombra de um bom nome, como ocorre a auxiliares de vários governantes.

A Terra é Azul
Esta frase foi a declaração do cosmonauta soviético Yuri Alekseyevich Gagarin (1934-1968), o primeiro a fazer um vôo espacial, a bordo da nave Vostok 1, em 12 de abril de 1961. Antes dele, a cadelinha Laika, também soviética, se é que se pode dar nacionalidades a cachorros, foi o primeiro ser vivo a ir ao espaço, no Sputnik 2 (um dos dez satélites soviéticos lançados a partir de 1957), mas morreu ao entrar em órbita. Gagarin disse a famosa frase quando contemplou a Terra de um lugar onde homem nenhum estivera. Não foi apenas um pioneiro, mas alguém que, a bordo de sofisticada tecnologia da época, lançou um olhar humano sobre o planeta e soube expressá-lo com simplicidade e poesia.

Até que a morte os separe
A história desta frase prende-se às cerimônias de casamentos, principalmente dos ritos cristãos, que concebem os laços do matrimônio como indissolúveis. Está presente em numerosas narrativas, sejam contos, novelas, romances ou poesias. Integra também a ensaística que trata das relações entre marido e mulher na estrutura familiar. Um de seus mais antigos registros foi feito pelo apóstolo São Paulo (10-67) em sua Primeira Epístola aos Coríntios, em que se esforça para demonstrar aos leitores e ouvintes daquela famosa carta que os laços que unem homem e mulher no casamento foram instituídos, não pelos homens, mas por Deus, ainda no paraíso.

Até tu, Brutus?
A história desta frase famosa, comumente aplicada a situações de traição, remonta ao episódio que resultou no assassinato do grande imperador, estadista e general romano Caio Júlio César (101-44 a.C.), vítima de conspiração organizada por senadores e aristocratas e liderada, entre outros, por Marco Júnio Bruto (85-42 a.C.), nos idos de março de 44 a.C. A vítima defendeu-se quanto e como pôde de punhais e espadas, até que reconheceu entre os que o atacavam e feriam o próprio filho adotivo. Ao vê-lo, teria pronunciado esta frase que o historiador Suetônio celebrizou em A vida de César. O enteado pagou caro por tramar a morte do pai e, derrotado, suicidou-se dois anos depois.

Ave, Maria!
Uma das mais célebres frases de todas as religiões cristãs, significando salve, Maria! Foi transcrita do Evangelho de Lucas 2, 28, constituindo-se na saudação com que o anjo Gabriel anunciou à Virgem Maria que ela estava grávida do Espírito Santo e iria ganhar um menino a quem deveria pôr o nome de Jesus. Tão famosa ficou a expressão que tornou-se tema e título de diversas obras artísticas, como pinturas, esculturas e até músicas. É também o nome de uma das mais notórias orações, que tem uma segunda parte acrescentada às palavras proferidas pelo anjo Gabriel no momento da anunciação. Ave já era forma de saudação na antiga Roma, como o clássico Ave, Caesar.

A vida é breve
Esta frase constitui o primeiro dos célebres aforismos de Hipócrates (460-377 a.C.), que o escreveu originalmente em grego, precedido de outra frase: a arte é longa. Tem sido muito citada ao longo dos séculos, e o cantor e o compositor Tom Jobim foi um dos que a aproveitaram, inserindo-a nos versos de uma de suas famosas músicas, porém em ordem inversa para fazer a rima: “breve é a vida”. O pai da medicina, ainda que praticando uma ciência, reconheceu ser a arte mais duradoura do que a vida, inaugurando assim uma linhagem de médicos escritores, presentes em todas as literaturas do mundo, incluindo a brasileira, em que se destacam autores que exerceram a medicina como ofício principal.

A voz do dono
Tornou-se célebre a figura de um cão ouvindo um fonógrafo, acompanhada desta expressão que foi utilizada por um fabricante de discos e de um aparelho destinado a reproduzir os sons gravados. A frase teria sido pronunciada pela primeira vez por Thomas More (1478-1535), depois transformado em santo, quando atuava como juiz de uma causa entre sua esposa e um mendigo. Lady More trouxera para casa um cachorrinho extraviado e um dia um mendigo apresentou-se como dono do animal. Querendo ser justo, o famoso humanista inglês pôs sua esposa num dos cantos da sala e o mendigo no outro, ordenando que cada qual chamasse ao mesmo tempo o cachorrinho, que estava no meio dos dois. Sem vacilar, o animal correu para o mendigo, reconhecendo a voz do dono. Para não deixar muito triste sua esposa, o marido pagou uma moeda de ouro pelo cãozinho.

A voz do povo é a voz de Deus
A expressão veio do latim vox populi, vox Dei, traduzida quase literalmente. Há milênios o povo simples considera que o julgamento popular é a voz de Deus. Tal crença tem raízes na cultura das mais diversas procedências. Tudo começou em Acaia, no Peloponeso, onde o deus Hermes se manifestava em seu templo do seguinte modo: o consulente entrava, fazia a pergunta ao oráculo, depois do que tapava as orelhas com as mãos e saía do recinto. As palavras errantes ditas pelos primeiros transeuntes seriam as respostas divinas. Perguntava-se a um deus, mas era o povo quem respondia. No Brasil, um instituto de pesquisa de opinião pública chama-se Vox Populi e foi um dos primeiros a prever a vitória de Fernando Collor nas eleições presidenciais de 1989 por larga margem. Curiosamente, não previu seu afastamento. Teria faltado a vox Dei?

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Deonísio da Silva é catarinense, ou catarinauta, como diz, de Siderópolis, onde nasceu em 1948. Em 1976, pelas mãos de Rubem Fonseca, publicou seu primeiro livro, Exposição de Motivos, logo premiado pelo MEC e transposto para teleteatro por Antunes Filho, ao qual seguiram A Mulher Silenciosa, Orelhas de Aluguel, A Cidade dos Padres. Em 1991 recebeu o Prêmio Internacional Casa de las Américas pelo romance Avante, Soldados: para Trás. Seu romance Teresa, lançado em 1997, baseado na vida de Teresa D’Ávila, foi premiado pela Biblioteca Nacional e transposto para teatro antes mesmo de ser publicado. Doutor em letras pela USP, é professor da Universidade Federal de São Carlos.

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=curiosidades/docs/vempalavras1

P.S.: As Letras G, H e I foram postadas em dezembro de 2007.

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De onde vêm nossas palavras (Hélio Consolaro)

Tudo tem a sua história. A língua portuguesa não é diferente. Toda língua possui uma história que se confunde com a de seus falantes, ou seja, o seu povo. O português também é assim. Nossas palavras vêm de várias fontes. Vejamos:

1ª) Fonte primária e básica é o LATIM FALADO, que os filólogos denominam de “latim vulgar”. Este latim era levado pelos soldados romanos a cada região conquistada pelo império. Em cada terra, os soldados romanos se misturavam na convivência, que também gerou uma mistura lingüística do latim vulgar com a língua nativa do lugar, dando origem a vários idiomas, como: português, castelhano, catalão, provençal, francês, rético, italiano, sardo, dalmático (morto) e romeno.

A Península Ibérica foi conquistada no século III A.C.. Nela habitavam celtas, iberos, fenícios, gregos e outros grupos. Celso Cunha diz que poucas palavras destes povos permaneceram no português, como: balsa, barro, carrasco, louça, manteiga e alguns sufixos.

2ª) LATIM ESCRITO usado pela Igreja Católica e pelos intelectuais, de onde nasceram as palavras eruditas no português, como: celeste, fascículo, homúnculo, lácteo, miraculoso (de milagre).

3ª) Outras línguas, quase sempre neolatinas, das quais recebemos palavras que tiveram origem também no latim, como “amistoso”, ligado à palavra castelhana amistad (no português amizade), do latim amicitate.

4ª) Invasões estrangeiras. Os visigodos, no século V, como os árabes, do século VII ao XV, estiveram na Península Ibérica, por isso há no português várias palavras de origem gótica, como: albergue, bando, guerra, trégua; de origem árabe, como: alface, álcool, cifra, faquir, tripa, xadrez.
De 1580 a 1640 Portugal permaneceu sob o domínio espanhol, são desta época o espanholismo, como: alambrado, granizo, hombridade, neblina redondilha, tablado, vislumbrar.

5ª) Imigrações. Já no Brasil, o português sofreu influência dos negros, que foram trazidos como escravos, como acarajé, candomblé, dengue, vatapá. Recebemos palavras também do povo nativo, os índios, principalmente nos nomes dos acidentes geográficos e das cidades. Depois dos europeus e asiáticos vindos ao Brasil no final do século XIX e início do século XX, como: italianos, espanhóis, japoneses. Por isso, o português do Brasil foi se distanciando do português de Portugal.

6ª) Influência cultural. A intelectualidade brasileira já sofreu forte influência cultural da França, por isso temos palavras importadas do francês, como: chique, croqui, tricô, menu, omelete, purê, sutiã. Atualmente sofremos uma influência forte do inglês norte-americano, como: basquete, vôlei, boxe, ringue, uísque, nocaute, cartum, filme. Havendo muitas palavras que conservam a ortografia inglesa, como: marketing, software, overnight, holding, lobby.

E o português continua aberto à importação de termos estrangeiros, principalmente em tempos de globalização.

*Hélio Consolaro é professor do Ensino Médio, cronista diário da Folha da Região.

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=curiosidades/docs/origens

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Palavras e Expressões Regionais do Pernambuco

Ababacado, Abestado – Bobo, tolo, idiota.
Abiscoitado – Bobo, ingênuo.
Abisuntado – Enganado, lesado.
Abufanar – Provocar; irritar; perturbar.
Acertar na veia – Fazer a coisa com exatidão; dar o tiro certo.
Acochado – Destemido, valente.
Acunhar – Perseguir, chegar junto.
Afolozado – Folgado.
Alcoviteira – Pessoa que faz intermediação ou apóia namoro proibido.
Aloprado – Ousado.
Alpercata – Sandália de couro cru.
Aluado – Meio louco.
Amarrar-o-bode – Ficar de mau humor.
Amojada – Prenhe, grávida.
Amolegado – Coisa remexida, mole; pessoa frouxa.
Amundiçado – Desprovido de bons modos; mal-educado.
Ancho – Feliz, contente; metido.
Aperriado – Aflito, irritado.
Apoquentado – De cabeça quente; irritado.
Aprochegar – Aproximar-se; se enturmar.
Arenga – Briga.
Ariado – Sem rumo, desorientado.
Aruá – Bobo, idiota.
Arregar – Pegar carona sem ser convidado; usufruir de algo sem pagar.
Arremedar – Imitar, geralmente os pássaros.
Arretado – De boa qualidade, excelente.
Arriado – Enamorado, apaixonado.
Arrilique – Remédio eficaz, santo remédio.
Arribar – Partir, fugir.
Arrocha-o-nó – Agir com firmeza.
Arrudiar – Dar a volta pelo lado de fora (“O moleque arrudiou o circo, procurando um buraco pra entrar”).
Arupemba – Peneira.
Avexar – Apressar .
Avia – Apressa, agiliza (“Avia logo com esse serviço, menino!”).
Babão – Puxa-saco.
Baitola – Bicha, homessexual masculino.
Baixa-da-égua – Lugar muito distante.
Balai-de-gato – 1. Situação confusa; 2. Coisa muito ruim.
Baleado – Ligeiramente embriagado.
Bambo – Por acaso, por sorte (Não sabia o endereço, acertou no bambo).
Barata-de-igreja – Beata.
Barroada – Choque, batida entre dois ou mais automóveis.
Bascui – Sujeira, entulho.
Bater-fofo – Falhar, não cumprir o prometido.
Berrante – Revólver, arma de fogo.
Bexiga – Coisa ruim; situação complicada.
Bexiguento – Patife, cretino.
Bicada – Dose de aguardente, dose de bebida alcoólica.
Bicado – Embriagado.
Bigu – Carona.
Bila – Bola de gude.
Bip – Pessoa insistente; pessoa pegajosa; pessoa que fala muito.
Biritado – Bêbado, embriagado.
Bizu – Cola de prova; fraude em vestibular.
Boca-quente – Pessoa influente, importante.
Bodeado – Chateado; embriagado.
Bode-moco – Pessoa com problema de audição.
Borrego – Filhote de cabra.
Brebote – Comida com baixo teor de nutrição.
Bregueço – Objeto sem valor, desprezível.
Brenhas – Lugar longe e de difícil acesso.
Bruaca – Mulher feia.
Bujinganga – Conjunto de objetos variados, sem ou de pouco valor; miudezas.
Bunda-nacasta – Cambalhota.
Buruçu – Confusão.
Cabra – Pessoa não identificada; pessoa má; trabalhador braçal.
Cabrita – Menina-moça, moça sapeca.
Cabroeira – Grupo de cabras, pessoas.
Cabuetar – Denunciar.
Cabuloso – Chato; desagradável (O sujeito é muito cabuloso).
Cachete – Comprimido.
Cafofa – No futebol, chute fraco, sem força.
Caixa-dos-peito – Tórax (O cabra levou um tiro bem na caixa-dos-peito).
Caixa-prego – Lugar muito distante.
Califon – Sutiã, corpete.
Calombo – hematoma, galo, caroço.
Calunga – Aquele que trabalha descarregando caminhão.
Cambota – Pessoa de joelhos separados, que caminha de pernas abertas.
Canso – Cansado; Informação velha (Ele casou com ela porque quis, mas estava canso de saber que ela não prestava).
Cão chupando manga – Muito competente no que faz.
Capiongo – Desanimado, triste, abatido.
Caritó – Estado da mulher que envelheceu e não conseguiu casar (Ela ficou no caritó).
Carraspana – Bebedeira, cachaça.
Catatau – Entulho, amontoado de objetos.
Catinga – Mau-cheiro.
Catombo – Parte elevada de alguma superfície; hematoma.
Catota – Secreção nasal, meleca.
Catrevage – Coisa velha, objetos sem valor.
Cavalo batizado – Grosseiro, estúpido.
Cavernosa – Pessoa ou coisa misteriosa.
Chamar-na-grande – Advertir seriamente.
Cheleléu – Puxa-saco, xaleira.
Chililique – Desmaio.
Chirimbamba – Mundiça, ralé.
Chirre – Sopa rala, caldo sem consistência.
Chumbado – Meio embriagado.
Chupitilha – Refresco.
Cocorote – Cascudo.
Coivara – Ajuntamento de galhos preparativo na queimada.
Comunismo – Carestia (Os preços na feira hoje estavam um comunismo).
Conxambrança – Acordo entre duas ou mais pessoas, com objetivo de ação maldosa.
Corta-jaca – Intermediário de namorados.
Corpete – Sutiã.
Cotoco – Pedaço muito pequeno de um objeto (O lápis está só no cotoco).
Couro-de-pica – Diz-se da pessoa ou situação que vai e volta freqüentemente sem nada resolver.
Cromo – Calendário.
Curriola – Grupo de pessoas da baixa classe social.
Cuvico – Pequeno cômodo.
Dar o grau – Caprichar num serviço.
Dar o prego – Enguiçar, quebrar (o carro deu o prego na subida da ladeira).
Derna – Desde.
Derrubado – Feio; decrépito.
Desenxavido – Desinibido.
Desopilar – Descontrair .
Desmilinguido – Magro; sem vigor.
Despachada – Pessoa desinibida; pessoa folgada.
Despautério – Desaforo.
Despanaviado – Desajeitado; tonto.
Desunerar – Engrolar; ficar mal cozido ou mal assado; comida fora do ponto.
Difunço – Gripe, resfriado.
Disgramado – Atrevido ou sujeito desgraçado.
Dois gatos pingados – Platéia minúscula, pouca gente.
Do tempo do ronca – Muito antigo, fora de moda, ultrapassado.
Embarrigar – Engravidar, ficar grávida.
Emburacar – Entrar sem pedir licença.
Empazinado – Estado daquele que comeu além da conta.
Empeleitada – Empreitada, trabalho com pagamento previamente ajustado.
Emprenhar – Engravidar.
Empombar – Implicar.
Empulhado – Pessoa constrangida, sem graça diante de uma situação.
Encangados – Unidos, inseparáveis.
Encasquetar – Ficar com idéia fixa em alguma coisa
Encruar – Emperrar; empacar.
Engembrado – Dolorido, esfolado (Depois da corrida, fiquei com o corpo todo engembrado).
Engrisilha – Situação confusa; coisa enrolada.
Entonce – Então.
Entupido – Pessoa com prisão de ventre.
Escafedeu – Sumiu, desapareceu.
Escurrupichado – Muito comprido, esticado.
Esparro – Arrogância.
Espinhela caída – Doença na coluna vertebral.
Espoletado – Brabo; inconseqüente.
Espragatar – Esmagar (Ele caiu e ficou espragatado no chão).
Esprivitado – Agitado, atrevido.
Estabanado – Destemperado.
Estalecido – Gripe, resfriado.
Estambocar – Quebrar partes do reboco da parede.
Estoporar – Explodir; passar da conta; gastar em excesso (Ele estoporou todo o dinheiro apurado).
Estribado – Endinheirado, rico.
Estrupício – Aquilo ou a pessoa que dá trabalho, que sobrecarrega a vida de alguém (“Aquele menino é o estrupício da minha vida!”).
Esturricar – Secar ao sol em demasia.
Farnesim – Gastura, arrepio, comichão, agitação nervosa.
Farofa – Enganação; pose (Ele muito frouxo, só tem farofa).
Farrapar – Não cumprir, falhar (Assumiu o compromisso comigo mas farrapou; o motor do meu carro está farrapando).
Febrento – Chato; mau-caráter.
Ferrado – Derrotado; em situação de apuro.
Fita – Amostração; que só tem pose.
Foi o bicho – Foi excelente.
Folote – Frouxo, folgado, afolozado.
Frege – Agitação, reboliço, festa ou função de aparência má.
Fubento – Desbotado, velho, surrado (O paletó do médico está fubento).
Fubica – Carro velho, imprestável.
Fuleiro – Usa-se para classificar objeto sem valor ou pessoa que não cumpre o prometido.
Fuleragem – Atitude desprezível.
Furdunço – Briga, bagunça, confusão.
Futricar – Bisbilhotar, remexer.
Fuxico – Mexerico, intriga, fofoca.
Gaia – Traição ao cônjuge, infidelidade conjugal.
Gaiato – Gozador.
Gaitada – Gargalhada.
Galalau – Homem de alta estatura.
Garajau – Grade feita em madeira para transportar galinhas.
Gargantilha – Homossexual masculino.
Gasguita – Mulher de voz estridente.
Gastura – Mal estar estomacal; arrepio.
Goga – Empáfia, soberba.
Góia – Resto, ponta de cigarro.
Gota-serena – Enraivecido, irado (Ficou com a gota-serena porque o time dele perdeu o jogo).
Gréia – Zombaria, gozação.
Grude – Sujeira; cola de farinha de mandioca; pessoa pegajosa.
Guelar – Apropriar-se indevidamente de algo; roubar.
Guenzo – Pessoa magra, esquelética.
Incandeado – Ofuscado.
Inguizira – Coisa ou situação complicada.
Inhaca – Mau-cheiro, fedor, catinga.
Injiado – Enrugado.
Inté – Até.
Interar – Completar.
Istruir – Desperdiçar, estragar (É pecado istruir comida).
Jabá – Propina; qualquer comida sem muito preparo, grosseira.
Jabaculê – Dinheiro; propina.
Jaburu – Mulher feia.
Jamanta – Pessoa grande e gorda.
Jararaca – Mulher que gosta de brigar, valente.
Jerico – Jumento; pessoa ignorante, burra.
Lambedor – Xarope caseiro.
Lambisgóia – Mulher magra, esquelética; mulher namoradeira.
Lacraia – Escorpião; mulher de gênio mau.
Lapada – Dose (Tomei apenas uma lapada de cachaça).
Latumia – Conversa sem controle, algazarra, confusão.
Lero – Conversa descontraída, sem compromisso.
Leseira – Bobagem, idiotice.
Leso – Bobo; Pessoa esperta que se faz de boba para levar vantagem.
Liseu – Estado de quem está sem dinheiro (Maria está num liseu que faz pena).
Loiça – Homossexual masculino.
Lombrado – Cansado.
Lumia – Clareia.
Lundu – Saudade.
Macaca – Estado de pessoa irritada, raivosa (Ele estava com a macaca).
Maçaroca – Grande quantidade de objetos desordenados (Era uma maçaroca de papel).
Madorna – Dormir (Vou tirar uma madorna).
Mafuá – Bagunça; confusão.
Malamanhado – Mal vestido.
Malassada – Omelete.
Maloqueiro – Moleque, vagabundo.
Maluvida – Pessoa sem educação, malcriada.
Mangote – Grande grupo de pessoas (Tinha um mangote de velhas na missa).
Manzanza – Lentidão; pessoa lenta.
Marinete – Carro tipo perua, utilitário.
Marmota – Pessoa desajeitada, mal-vestida.
Marretar – Roubar.
Mas é nada! – Interjeição indicando discordar, não permitir algo.
Mata-fome – Bolacha.
Matulão – Sacola de couro; bizaco.
Meganha – Soldado; recruta.
Meiota – Metade de uma garrafa de cachaça.
Melado – Embriagado .
Miolo-de-pote – Bobagem, conversa fiada.
Misto – Caminhão com metade da carroceria transformada em cabine para o transporte de passageiros: a outra metade leva as cargas.
Mocréia – Mulher feia; mulher sem classe.
Mondrongo – Engenhoca sem utilidade, coisa malfeita.
Mormaço – Ambiente sem ventilação, quente e úmido.
Mosqueiro – Restaurante malcuidado, sujo.
Mufino – Medroso, covarde.
Muiar – Molhar.
Mulesta-dos-cachorros – Ira, raiva (Ele ficou com a muleta-dos-cachorros).
Mundiça – Ralé, pessoa(s) sem educação.
Munganga – Careta, trejeito.
Munheca-de-pau – Motorista sem habilidade, mau motorista.
Muruanha – Muriçoca.
Murrinha – Coisa emperrada; pessoa com raiva.
Mussiça – Macia; carne sem osso.
Nebrina – Sereno.
Nesga ou Nesguinha – Pedaço pequeno, minúsculo.
Nó-cego – Dificuldade; pessoa ou coisa complicada.
Noda – Nódoa, mancha.
Novela – Situação de difícil solução, interminável.
Oitão – Corredor lateral entre a casa e o muro do quintal
Ôxe ou oxente – Exclamação de surpresa.
Pabulagem – Orgulho vão, empáfia; embuste, impostura.
Pacaia – Cigarro feito com palha e fumo de rolo.
Paia – Coisa sem valor; restos.
Pamonha – Diz-se da pessoa tola, sem iniciativa: comida de milho.
Pandemonho – Correria, confusão.
Pantim – Artimanha; trejeito; disfarce com objetivo de esconder algo a outrem.
Papagaio – Pipa; dívida não paga.
Pareia – Par; coisa ou pessoa sem igual (Na ruindade, aquele ali não tem pareia, não) .
Passado na casca do angico – Pessoa experiente, madura.
Pau-do-canto – Diz-se quando o aluno é aprovado com nota mínima (Eduardo passou no pau-do-canto).
Peba – Coisa sem valor, ruim.
Pedir penico – Fracassar, desistir.
Peguenta – Pessoa pegajosa, que não desgruda das outras.
Penca – Grande quantidade; cacho.
Penosa.- Galinha.
Penso – Torto, desalinhado.
Pereba – Ferimento, ferida.
Pia – Olha, veja.
Picinês – Óculos.
Pílula-bufante – Batata-doce.
Pindaíba – Estado de pobreza, liseu.
Pinguela – Passagem estreita, de madeira, sobre riacho.
Piniqueira – Empregada doméstica.
Piola – Ponta de cigarro.
Piquai – Objeto sem valor, peba.
Pirangueiro – Pessoa mão-fechada, pão-duro.
Pirobo – Bicha, homossexual masculino.
Pirraia – Criança, pessoa de comportamento infantil.
Pisante – Sapato.
Pitaco – Palpite.
Pitéu – Gata, mulher jovem e bonita.
Pitoco – Coisa ou pessoa pequena.
Pixaim – Cabelo encaracolado.
Pixotinho – Pessoa pequena, ainda criança.
Ponche – Refresco; suco de fruta.
Potoca – Conversa fiada, conversa besta.
Pra mode – De modo a.
Precisão – Necessidade.
Precondia – 1. Estado de tristeza, de abatimento (Depois que a mulher o deixou, ele ficou numa precondia danada) 2. Situação monótona (Sem festas, a cidade fica numa precondia horrorosa).
Presepe – Pessoa vestida com roupa espalhafatosa, desajeitada.
Presepada – Estripulia, confusão; atitude desonesta; atitude ridícula.
Presepeiro – Aquele que pratica presepadas.
Pru qui – Por aqui.
Quartim – Uma quarta parte da garrafa de cachaça.
Quartinha – Reservatório, de barro, para armazenar água, bem menor que pote.
Quartinho – Um quarto da garrafa de cachaça.
Quebra-queixo – Doce de ponto apurado, à base de coco e de castanha de caju, vendido nas ruas num tabuleiro que o ambulante carrega na cabeça.
Queijudo – Donzelo; abestalhado.
Queixão – Falar em tom arrogante, desafiador (Ele veio com queixão pra cima de mim).
Quenga – Prostituta; mulher de comportamento condenável.
Quengo – Cabeça.
Rabiçaca – Derrapada (Na curva, o carro deu uma rabiçaca e quase capotou).
Rançosa – Comida ou bebida amarga.
Rafaméia – Ralé; grupo de pessoas sem linhagem.
Reboculosa – Mulher de corpo avantajado e atraente.
Rebordosa – Reviravolta; prejuízo.
Rebutalho – Restos de qualquer coisa; coisa sem valor.
Refém – Referente a; a respeito de (Não sei nada refém ao crime).
Remosa – Comida gordurosa, carregada, indigesta.
Resmungar – Reclamar repetidas vezes, geralmente em voz baixa.
Revestrério – Reviravolta, mudança de situação para melhor ou pior.
Riba – A parte superior; em cima.
Rimueta – Vai-e-vem; situação que não se resolve.
Riúna – Botina, calçado.
Rodage – Estrada de barro.
Roendo – Sofrendo por desilusão amorosa (Ela vive o tempo todo roendo por ele).
Rojão – Ritmo puxado, cansativo.
Rolete – Rodela de cana-de-açúcar.
Ronceiro – Lento; preguiçoso.
Roncha – Mancha provocada por pancada.
Roscofe – Relógio de pulso de baixa qualidade.
Rudilha – Pano de apoio para carregar lata de água na cabeça.
Ruma – Grande grupo de pessoas ou grande quantidade de objetos (Tinha uma ruma de gente na procissão).
Saída – Pessoa desinibida, afoita, atrevida.
Saimento – Paquera agressiva, fogosa; oferecimento (Neuza tá com muito saimento pro lado do namorado).
Sair com dois quentes e um fervendo – Reagir energicamente; entrar na briga pra valer.
Sair de bandinha – Deixar o lugar discretamente, sem chamar atenção.
Sambado – Estado de coisa muito gasta, velha, surrada.
Samboque – Buraco aberto em superfície lisa; ferimento.
Sapecado – Assado apenas superficialmente.
Sarrar – Namorar agarrado; amasso.
Se abrir – 1. Achar graça; 2. Ceder (a mulher) às investidas amorosas do homem.
Se aprochegue – Venha pra cá; chegue mais perto.
Segurar cabra pra bode mamar – Facilitar as coisas para outra pessoa.
Sibito – Pessoa magra e de baixa estatura; pequeno pássaro.
Sobejo – Resto de comida.
Sobrada – 1. Diz-se da ocasião em que uma pessoa tentou realizar alguma coisa e não conseguiu; 2. Quando um carro tentar fazer uma curva e derrapa.
Sobroço – Mágoa.
Soneca – Cochilo.
Sonsa – Pessoa falsa; pessoa fingida.
Supimpa – De boa qualidade, excelente.
Sustança – Valor altamente nutritivo de um alimento.
Talaigada – Grande gole de cachaça.
Tampa – Coisa ou pessoa de grande valor; o melhor, o primeiro .
Tapa-no-beiço – Tomar uma dose de cachaça (Vamos dar uma tapa-no-beiço?).
Tapiar – Enganar; distrair.
Tá variando – Endoidecido.
Teitei – Confusão, algazarra.
Teréns – Pertences de uma pessoa; objetos pessoais.
Tico – Quantidade mínima, pequena porção.
Tição – Pedaço de madeira queimada; pessoa de cor negra.
Timbugar – Mergulhar na água de um rio ou açude.
Tiririca – Estado de uma pessoa enraivecida (Ele ficou tiririca com a acusação).
Tirrina – Tigela grande.
Toitiço – Nuca; juízo.
Tome tento – Tome juízo; se ligue.
Tô operado – Significa: Sinto, mas não posso te ajudar.
Trepeça – 1. Pessoa má; 2. Objeto sem valor.
Troço – Objeto pessoal; pessoa desqualificada.
Trojão – Mulher gorda.
Tronchura – 1. Situação embaraçosa; 2. Coisa mal-feita.
Truado – Embriagado.
Trunfa – Topete, cabeleira.
Trafuá – Briga, confusão.
Trapusapo – Em tempo recorde; o mesmo que vapt-vupt.
Trepeça – Pessoa ou coisa sem valor.
Tribuzana – Algazarra.
Troncho – 1. Inclinado; tortuoso 2. Indivíduo de vida desregrada.
Truado – Embriagado.
Trupicão – Tropeço; topada.
Trupizupe – Pessoa desajeitada.
Tufo – Molho (Arrancou um tufo de cabelo).
Tuia – Grande quantidade; muitas pessoas ou coisas.
Uruvai – Orvalho.
Urucubaca – Azarão.
Urupemba – Peneira; o mesmo que Arupemba.
Vai dar bode – Vai acabar em confusão.
Vara de tirar coco – Pessoa alta e magra.
Varapau – Homem alto e magro.
Vascui – Restos; resíduos.
Velhaco – Mau pagador.
Vexado – Que tem pressa, apressado.
Vuco-vuco – Casa que comercializa objetos usados.
Xanha – Coceira.
Xenhenhém – Conversa mole, desculpa mal dada.
Xeleléu – Bajulador.
Xêxo – Calote.
Xexeiro – Mau pagador, caloteiro.
Xilindró – Presídio.
Xilique – Mal estar; desmaio.
Xiringar – Lançar jato de água.
Xodó – Namoro; paquera.
Xoxo – Magro, franzino, raquítico.
Zambeta – Indivíduo que tem os dois pés tortos.
Zarói – Pessoa caolha, estrábica.
Zuadenteo – Barulhento.
Zureia – Orelha..

Fonte:
http://www.pe-az.com.br/especiais/pernambuques.htm

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Ziraldo (Crônica: Reminiscência)

Nasci numa pequena cidade de Minas. Até aí nada demais. Muita gente nasce em cidades pequenas, distantes e quietas. Seria feliz, de qualquer maneira, se quem lê neste instante pudesse saber a alegria que existe em se nascer num lugar assim, em que as ruas pequenas e estreitas, as altas palmeiras, a água macia da chuva que cai sempre, as muitas estrelas e a lua, as pedrinhas das calçadas, a meninada, a carteira da sala de aula, a mestra e mais uma quantidade destas lembranças simples sejam, mais tarde, influências reais na vida da gente. Na vida de quem, afinal, preferiu enfrentar a cidade grande: as águas desse mar, a luz dessas lâmpadas frias, a sala fechada, triste e sem perspectivas em que se ganha a vida, a cadeira quente e insegura das tardes de ir e vir — pura fadiga — das empresas, a luta, a dura luta de ser alguém, um peixe grande em mar estranhamente grande. A verdade é que, um dia, a pensar e refletir na grama macia da pracinha da matriz, a criança decidiu sair.

E a estrada se abriu a sua frente. Vir era uma idéia. Fixa. Caminhar era fácil.

A chegada: a rua imensa, as buzinas, as luzes, sinal verde, aquela cidade grande, grande ali, na sua frente. Cada face, cada ser que passava — pra lá e pra cá — inquietamente, tanta gente, suada, apressada, sem alegria, sem alma, a alma cerrada, enrustida, cada triste surpresa era a chegada.

Cheguei. Um táxi. A mala. As esquinas. Está bem, mas, que fazer? Sentei e pensei. Pela janela da casa alta vai a vida. Seria a vida? E disse a primeira frase na cidade grande, as primeiras palavras diante da grande luta e as palavras eram: Meu Deus, que saudade! E nem um dia me separava da pracinha da matriz. Cada dia que, a seguir, vi passar, esqueci.

Diante da máquina, neste instante, há uma distância imensa entre aquele dia na missa cantada na minha igrejinha e este dia em que, diante de mim, diante de minha mulher e da minha casa feita de cidade grande, minhas filhas brincam de ser gente grande.

E elas. Que vai ser delas? Sem palmeiras, sem um pai de ar grave; sem entender a chuva a cair em jardins humildes, nas margaridas branquinhas; sem entender de lua e de estrelas — que céu aqui, pra se ver nem se vê —, sem brincar na lama das ruas, a lama das chuvas, casca de palmeira, descer as barracas, nadar sem mamãe saber, nas águas escuras, fim de quintal, quintal, quintal? sem quintal? pedrinha de calçada, marcar a canivete sua inicial na carteira da sala. Ainda bem que nasceram meninas.

Já é diferente. Será que é? Sei lá. Entre a chegada e este instante, lembrança nenhuma. Sei que cheguei.

E sei mais: que esta página está é uma grande besteira, dura de cintura, sem graça, uma m… Já se vê que quem nasceu para caratinguense nunca chega a Rubem Braga. E também tem mais: Quem é capaz de escrever uma página literária decente — igual a essa (?) — sem usar uma vez sequer a letra O? Leiam mais uma vez. Atentamente. Se tiver um — além deste aí em cima — eu como!

Fonte:
ZIRALDO. Crônicas Mineiras. São Paulo: Editora Ática, 1984. Disponível em http://www.releituras.com/ziraldo_reminiscencia.asp

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José Sant’ anna (Cronica: O Folclore)

“Velho é o tema, mas tão velho como o folclore é o sol, e o sol é sempre novo, quando esparge sobre o céu silencioso o ouro e a púrpura de sua flama, nos deslumbramentos do amanhecer.”

Velha é a terra, mas o rejuvenescimento constante de seu seio, abrindo-se fecundo, em flores e frutos, repete-lhe, em cada instante que passa, a ressurreição de sua mocidade eterna. Como o sol e a terra, o folclore é sempre novo, porque como o sol e a terra é também eterno e imortal.

Crescem-se-lhe as asas, em cada voejar sobre os seres, novas asas lhe nascem para suster na sua trajetória infinita.

E porque é eterno e imortal, vive o folclore em todos os seres, e espalha os tesouros imensos de sua força milagrosa.

Na infância do homem, as cantigas de ninar perpassam sob a gaze dos berços na voz carinhosa da mãe que sorri, contemplando a imagem do filhinho adormecido.

Na noite silenciosa e muda sopram aos ouvidos os acordes de uma serenata, inebriando os seres, vibrando em ternas canções de amor.

Canções que encheram a alma de nossos avós, umas e outras fizeram vibrar corações, que amaram e sofreram por nós, que, como nós, foram moços e envelheceram, que como nós, entraram na vida sob o fulgor de alvoradas de ouro e dela desertaram entre sombras e desenganos.

O folclore está em todo o meio ambiente. E põe a magia do seu gênio em toda a parte: Nas crendices, nas simpatias e nas superstições contra os ventos, as chuvas, os raios e as doenças.

E invade palácios, para fazer dançar os corações em festa, e entra na casinha pobre para minorar a dor, afugenta a tristeza e enfrenta a morte.

O folclore é como se fosse poema de amor feito em luz, do amor que cria, do amor que une, do amor que redime, do amor que purifica as almas.

O folclore espalha a paz. A paz é filha dileta do amor.

E só é feliz o homem, e só são felizes os povos, nas horas de paz, nas horas em que sob seus tetos e dentro de suas almas não pairam as apreensões da maior de todas as calamidades que os afligem, que é a guerra.

Fonte:
SANT’ANNA, José. Anuário do Folclore. Disponível em http://ifolclore.vilabol.uol.com.br/div/folclore/index.htm

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