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Moacir Costa Lopes (Estante de Livros)

MARIA DE CADA PORTO

Romance de estréia do autor, Maria de Cada Porto é uma narrativa ousada que nos conta o drama de marinheiros náufragos que, enquanto esperam a salvação ou a morte, refletem sobre sua rotina a bordo e sobre o seu passado de festas, amores e desamor em cada porto.

Trechos do Livro

Mas é bonito o mar. Experimente ficar no bico de pro-a. A gente olha a linha do horizonte e diz tolamente: daqui a pouco estarei lá. E nunca está, nunca transpõe aquela linha que brinca de correr com a gente. A maresia entra-nos pelas narinas e nos dá vontade de ser toninhas, as bailarinas do mar. O sol mergulha e vai surpreender os peixinhos lá embaixo, às vezes mostra um peixe grande correndo atrás dos pequenos para engolir. Os peixes-voadores são zombeteiros, o grande vem com fome, raiva e sede, eles pulam fora d’água e voam vinte metros, o peixe grande engole dez sardinhas por vingança. Mais adiante um lombo escuro empurra o mar para os lados e parece até uma ilha submersa que quer respirar, mas é uma baleia que vem estudando há bilhões de anos um modo de engolir peixes sem água e, não fosse a chaminé em cima da cabeça, teria que mijar muitos dias seguidos.

O sol fica com raiva, vermelho, por não ter podido ferver o mar, e essa vermelhidão cai em cima d’água e resvala, tirando faísca de luz do costado e dos vidros das vigi-as. A maruja fica enternecida, bestamente sentimental, e dá em pensar na infância frustrada e descobre que está longe dela pela velhice de tantas viagens.

Então, um dia a gente pisa no cais, e ele parece mexer-se.

– Linda manhã.

– Manhã linda. Há muito te esperava. Que viagem longa!

– Longa viagem. Regresso mais velho, mais tolo.

E vi muita coisa. Num crepúsculo manso, uma vaga de onda crescendo e se envergando em forma de vespa, vi as bolhas se inflarem com a luz do sol morto, no topo da vaga, e se arrebentarem no arrojo das águas, se partindo, e o som do estalo chegando ao ouvido da maruja embevecida como canto das sereias, de que narram lendas antigas.

E vi também, numa esquina de rua, um homem só morrer sozinho de frio e de fome e de uma chaga roendo-lhe o corpo; janelas abertas ao lado e de frente, homens e mulheres lhe observando a morte, de portas fechadas. Quando o homem deu o último suspiro, esparramando moedas de uma lata no chão, homens e mulheres fecharam suas janelas, abriram as portas e trouxeram velas acesas para cercar o corpo do homem só, que morreu sozinho. Aí rezaram… e sentiram sua morte.

– Vi mais coisa e volto mais velho.

– Vamos então.

– Vamos.

… amores explosivos que têm a existência de um foguete de junho, amor de parada de trem, amor de linha de telefone cruzada, amor de marinheiro. Depois, num cantinho de nossa memória, esse amor catalogado mas sem local, sem data e sem nome.

– Lembrarei esta tarde por muito tempo.

– Então façamos dela uma grande lembrança, meu bem, pois estamos vivendo hoje o nosso passado de amanhã.
 

POR AQUI NÃO PASSARAM REBANHOS

Sexto e mais alegórico romance de Moacir C. Lopes, Por aqui não passaram rebanhos nos convida a refletir sobre o tempo, a transitoriedade do homem e a eternidade simbolizada pela pedra.

Na linha explícita do realismo mágico, o livro sugere que, enquanto busca sua definição como ser completo, o homem é um monstro em transição. Inspirado no Parque das Sete Cidades, no Piauí, cujas antiquíssimas formações rochosas lembram seres petrificados, conta a história de um homem despojado do passado que não sabe o que o espera no futuro.

Longe da civilização e em meio a uma região inóspita, Emiliano refugia-se numa caverna onde encontra Selene, jovem bela e sedutora que o espera há três mil anos. Ele se apaixona e tenta a todo custo embarcar no tempo dela para viverem juntos para sempre. No processo, conhece o Sumé, um velho aguadeiro cujo animal carrega tonéis furados no lombo. Por onde vai pingando a água dos tonéis, nasce uma floresta onde crianças se tornam adultos em questão de minutos. Eles dividem o mesmo espaço, mas seus tempos são desencontrados.

No final, de alguma maneira Emiliano se torna eterno, mas nem ele arriscaria dizer se ficou mais próximo da redenção ou da ruína.

Trecho do Livro

Emiliano não sabe quanto tempo caminhou. Vem de longos caminhos.

Um dia uma mulher morreu nos seus braços e os habitantes de seu povoado, em bandos de caçadores, com armas e cães, o seguiram até o meio da floresta, como fera que estivesse ameaçando o mundo. E ele era apenas uma criança. Nem trazia o contágio da doença que matara aquela mulher. Arrastava consigo apenas o contágio de sua própria espécie.

Muito depois, outra mulher, jovem, morreu nos seus braços. Também esta o amava, e ofertava-lhe o corpo cada noite. Antes, ela lhe dissera: eu vou morrer. E ele falou: vamos. A minha morte será mais longa que a tua. Assim, a partir desse dia, Emiliano começou a morrer. E não sabe quando completará a sua morte.

A última lembrança foi de uma criança com quem conviveu. Não lhe dera nome, nem sabe se chegou a ser sua filha, esposa ou irmã, só recorda que ela estendia-lhe as mãos porque queria convivência. Quando ficou adulta e julgou que já conhecia o mundo, um dia, na bifurcação de dois caminhos, ela seguiu o outro.

Foi esquecendo os gestos aprendidos, porque não conseguiu mais entender seus semelhantes, se aprendeu a sorrir também não sabe. Surpreendeu-se algumas vezes de mãos estendidas mas logo as contraía, envergonhado de querer, de pedir ou mesmo de ofertar-se. Só restava caminhar.

Lembrou-se que, por onde havia passado, o mundo era todo pertencente, cada metro quadrado de chão fora medido, entre um e outro havia faixas que diziam: passe por aqui, cuidado. E cada pedaço do mundo era de alguém que criara um idioma próprio para poder comunicar-se com os rebanhos que lhe pertenciam. Se ele caminhava por um quadrilátero e sua sombra se projetava no quadrilátero vizinho, taxavam bem caro a invasão de sua sombra.

Então, do alto do promontório, contemplando o vale, disse: por aqui não passaram rebanhos. Seguirei por aqui.

Assim, como se o corpo não lhe pertencesse e fosse trapos que espalhara, as estrelas perto do seu rosto, velando seu cansaço, adormeceu sono profundo.

Fonte:
http://www.moacirclopes.com.br/obras.php

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Robert Galbraith (O Chamado do Cuco)

Tudo tem início quando o corpo de Lula Landry, uma modelo belíssima, negra, se projeta da varanda de sua cobertura, repleta de neve, na direção da morte. Apesar da beleza rara e da fama internacional, a jovem revelava uma mente perturbada e vinha tentando se recuperar da dependência química. Assim, foi fácil concluir que ela havia se suicidado.

Pouco tempo depois, porém, o irmão dela, que não crê absolutamente nesta possibilidade, procura o investigador particular Cormoran Strike para buscar a verdade. O detetive, ex-combatente na Segunda Guerra, com lesões internas e externas, está à beira da falência, a ponto de fechar o escritório, e mesmo assim não seria capaz de pagar todas as dívidas.

A princípio ele se deixa guiar por seus princípios morais e rejeita a oferta, pois não acredita na possibilidade de assassinato. No fim, porém, sua consciência perde o conflito interno e o protagonista acaba cedendo diante do pagamento generoso do cliente e da probabilidade de dar um fim ao caos que tomou conta da sua vida. Strike se apega ao pretexto que o motivou a aceitar o caso: a luta por justiça.

Sua decisão de desvendar o que se oculta por trás dessa morte o leva a submergir em um universo intrincado, do qual Lula fazia parte. Tudo fica cada vez mais sinistro e os riscos se ampliam. Sua vida passa a correr perigo enquanto ele percorre o submundo londrino. ===============

Robert Galbraith é o nome artístico de J K Rowling, autora consagrada da saga Harry Potter e de Morte Súbita. A escritora britânica Joanne Kathleen Rowling nasceu na cidade de Yate, nas proximidades de Bristol, na Inglaterra, em 31 de julho de 1965.

É o primeiro livro escrito por J. K. Rowling sob o pseudônimo de Robert Galbraith, procurando  desvincular sua imagem e nome famosos para explorar algo diferente ou mesmo evitar comparações com outras obras suas.

Ela surpreendeu o mundo quando, em 2012, anunciou seu primeiro romance adulto, Morte súbita. Porém, a surpresa maior veio em 2013 quando descobriu-se que o autor por trás de Robert Galbraith era ela. O Chamado do Cuco já estava bem cotado no Goodreads muito antes mesmo da informação vazar.

Robert Galbraith, porém, não é o único pseudônimo de Rowling. O próprio nome J. K. Rowling é um pseudônimo. Por volta de 1997, quando seu agente Christopher Little conversava com a autora sobre a publicação de Harry Potter and the Sorcerer’s Stone, ele sugeriu que ela adotasse um nome neutro alegando que os garotos não leriam um livro escrito por uma mulher. Foi quando ela emprestou o nome Kathleen de sua avó paterna e passou a assinar J. K. Rowling.

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~A janela abriu, o Cuco caiu~

Foi através de uma sacada que a supermodelo Lula Landry, também conhecida como Cuco, caiu para a morte no que a polícia e a imprensa qualificaram como suicídio. Porém, seu irmão, John Bristow, não acredita nessa versão e contrata Cormoran Strike para investigar o que de fato aconteceu com Lula no seu último dia de vida. John procura Strike porque o detetive fora amigo de infância de Charlie, seu falecido irmão. A princípio, Strike reluta em aceitar o cargo, mas as dificuldades financeiras por que passa somada aos seus problemas sociais mais prementes o fazem pensar melhor.

    (…) Foi só quando chegou à porta de vidro no andar de cima que Robin percebeu, pela primeira vez, a que tipo de empresa fora enviada para auxiliar. Ninguém na agência lhe dissera. O nome no papel ao lado da campainha estava gravado no vidro: C. B. Strike e, abaixo dele, as palavras Detetive Particular.
Apesar do foco principal do livro ser a investigação do último dia de Lula, ele não se apega somente a isto.

Strike acaba de sair da casa de sua noiva Charlotte com quem estava junto durante anos e, sem ter para onde ir, passa a ter uma subvida morando no escritório em que trabalha. Ele é filho de um homem famoso que mal vira durante seus trinta e cinco anos de vida, mas a fama do pai o ofusca quando as pessoas descobrem sobre sua origem familiar.

Robin passa a trabalhar para Strike por um erro da parte dele, que pensava ter cancelado o contrato com a agência de temporários por não ter como pagar. Ela é aquela pessoa que está indecisa entre seguir as incertezas de um sonho e a segurança e estabilidade de um emprego comum e tedioso.

A narrativa é em terceira pessoa, transitando pelo menos oitenta porcento por Strike e os vinte restantes por Robin. E ela é lenta.

Strike investiga praticamente todos os que tiveram contato com Lula, porém todas essas pessoas trazem informações cruciais para nos animar a ir adiante e criar nossa teoria do que aconteceu.

O tom de humor está muito bem colocado nas páginas. Num momento, Strike está matutando sobre como cobrar os clientes que não lhe pagaram e, no outro, está simplesmente cutucando o nariz quando John Bristow entra na sala para conversar com ele.

Robert começa sua história de maneira bem agradável e ela vai melhorando a cada página até chegar este momento em que a gente quer correr na leitura para saber como Cormoran explicará o que descobriu.

    (…) Escreveram que ela era desequilibrada, instável, inadequada para o superestrelato em que a rebeldia e a beleza a capturaram; que passara a andar com uma classe endinheirada e imoral que a corrompera; que a decadência de sua nova vida atordoou uma personalidade já frágil. Ela se tornou uma densa fábula moral de Schadenfreude, e tantos colunistas fizeram a alusão a Ícaro que a revista Private Eye publicou uma matéria especial.

Veterano na guerra do Afeganistão, o personagem perdeu uma perna em combate e carrega consigo a vergonhosa história de sua família. Filho de uma groupie, que engravidou de um astro do rock e ficou famosa por isso, Strike é sempre lembrado como fruto de uma família desestruturada e de uma mãe que, aos olhos da sociedade, mereceu a morte por overdose.

Não bastasse, no mesmo dia em que é procurado pelo irmão de Lula, o detetive tem uma briga épica com a noiva, Charlotte, com quem termina o relacionamento, passando a morar no escritório em que trabalha. A vida conturbada de Strike tem relação com a de Lula que, assim como a mãe do detetive, é julgada pela imprensa, pelos amigos e até mesmo pela família, que vê sua morte prematura como algo esperado. “Como era fácil tirar proveito da tendência de uma pessoa à autodestruição; como era simples empurrá-la para a inexistência”, escreve a autora em certo ponto sobre a comparação das personagens desvalorizadas.

A seu favor, o detetive tem sua apurada inteligência e sua nova assistente temporária, Robin, uma jovem garota que aceita o trabalho mais pelo fascínio pela profissão do chefe que pelo salário.

A investigação dura o livro todo, com diversas entrevistas com as pessoas que, de algum modo, estavam envolvidas com a modelo em seus últimos dias de vida.

Sua principal crítica é voltada à sujeira do mundo da fama. Na falsidade e superficialidade de seus agentes, assim como nos fãs, obcecados por ídolos que pouco têm a oferecer e que, mesmo depois da morte, continuam a ser referência. A imprensa também ganha alfinetadas, principalmente os famosos tabloides ingleses, que exploram ao máximo e incansavelmente pessoas e suas histórias, por vezes trágicas e indignas de serem reveladas. Em certo ponto, a perseguição sofrida por Lula pelos jornais é apontada pela escritora como um dos responsáveis por sua morte.

Apesar da falta de charme e de todas as dificuldades encontradas para desenvolver a investigação, Strike consegue ser um personagem que prende o leitor. Seus pensamentos são relacionáveis e sua falta de simpatia não é motivo para aversão.

Fontes:
Ana Lucia Santana. http://www.infoescola.com/livros/o-chamado-do-cuco/
Tiago de Souza http://ocapitulodolivro.blogspot.com.br/2013/11/resenha-o-chamado-do-cuco.html
Raquel Carneiro. http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/livros-da-semana/j-k-rowling-se-reinventa-com-misterioso-o-chamado-do-cuco/

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Fabiane Ribeiro (Jogando Xadrez com os Anjos)

Jogando Xadrez com os Anjos é um livro que ao mesmo tempo em que machuca o leitor faz com que ele se encante com a maneira que a jovem protagonista supera todos os seus obstáculos e cria toda uma atmosfera reflexiva.

Narrado em terceira pessoa, conhecemos Anny, tem apenas 8 anos em 1947. Ela vive na Inglaterra justamente quando o país tenta se reerguer no período pós-guerra. A protagonista passa muito tempo sozinha, com o coração apertado pelas saudades dos pais, os quais recebem uma “proposta de emprego” irrecusável e decidem aceitar, deixando a filha  aos cuidados de um casal totalmente desequilibrado , em uma casa onde há apenas rancor..

Nestes momentos de ausência a garota fica sob os cuidados de uma serviçal. Meiga, ela se esforça para compreender e aceitar a conjuntura em que vive. Por determinação dos pais, ela é obrigada a permanecer o tempo todo em sua casa; por esta razão não pode ir à escola e recebe aulas particulares de Jane, uma mestra que Anny considera desprezível.

A criança mal pode imaginar que sua vida está prestes a passar por uma triste reviravolta. Os pais são obrigados a ficar fora por mais tempo e, assim, só poderão ver a filha uma vez por ano. Eles então recorrem à Jane e seu marido; pagam a ambos para que acolham Anny.

Como já desconfiava, a menina encontra um lar desprovido de amor e atenção. Sua tutora a trata mal, não permite que ela se divirta com seus inúmeros brinquedos e também a impede de assistir televisão. Além disso, a austera professora determina que a menina cumpra tarefas domésticas e só lhe concede duas refeições diárias.

Mas Anny não perde a fé e preserva a inocência em seu coração. Ela se entretém com o cultivo do jardim e suplica a Deus que lhe envie alguém para preencher sua profunda carência afetiva. Tudo que traz do passado é o tabuleiro de xadrez que ganhou do pai e a oportunidade de olhar à distância para sua antiga residência.

É quando a protagonista encontra em sua jornada pela vida anjos que a guiarão neste momento difícil. Entre eles está Pepeu, um estranho rapaz que modificará definitivamente a sua existência. Com ele a menina realiza um aprendizado essencial, sem jamais sair dos limites de seu jardim.

Ao seu lado a garota mergulha no reino encantado presente em seu tabuleiro de Xadrez; aí as possibilidades são infinitas e tudo se torna acessível. As pessoas que surgem em seu caminho contribuirão para seu crescimento espiritual e ela vai receber ensinamentos fundamentais, conquistando valores como o altruísmo, a fé e o amor em sua face mais autêntica.

Estes amigos que Anny faz a defendem e ajudam a menina a ter um pouco de infância, além de alguns fazerem parte do seu Reino Xadrez, que é um lugar para o qual a menina é transportada quando sonha, já que o Reino reflete ao inconsciente da menina e também adiciona um “ambiente” a mais na história.

O livro é carregado por um clima fortemente soturno, as páginas são semelhantes ao barulho de um vento triste e as maldades, saudades e frustrações da personagem principal contribuem para que o enredo se torne ainda mais triste. Mas não se engane, achando que irá chorar o livro todo, pois Anny encontra como saída desse mundo perverso: a fuga da realidade e penetra em um mundo feito de Xadrez, onde faz suas próprias leis, além de ter um dom especial e uma maturidade excepcional.

ALGUNS PERSONAGENS DO LIVRO

PEPEU (Pedro Leopoldo), 21 anos, norte-americano. Artista de rua e membro do grupo artístico itinerante denominado “Anjos da Arte” (e, posteriormente, “Anjos da Guerra”). Um eterno menino sonhador e apaixonado, extremamente sensível, nostálgico, mas também divertido.

Pepeu na história: Em um belo dia, Pepeu surge misteriosamente nos canteiros do jardim cuidado por Anny. Com o passar do tempo, eles tornam-se amigos, cúmplices, companheiros para as partidas de xadrez, danças ao som de gaita e conversas sobre o mundo além daqueles canteiros. O amor que sentem um pelo outro é um amor fraterno; são como irmãos, como uma família. No decorrer da história, Pepeu desabafa com Anny sobre seu passado e as razões para o sofrimento que ele carrega. Porém, ao mesmo tempo em que as respostas são dadas, muitos mistérios continuam a envolvê-lo.

“Lentamente, Pepeu subiu os degraus da igreja, a contemplar os próprios pés e as pedras do chão. Tudo cheirava a mar.

Na escadaria, uma sombra surgiu, e veio de encontro à sua. Seu coração soube antes de seus olhos quem estava ali naquele deserto junto a ele. Era o Infinito ganhando forma novamente.

Ele levantou lentamente a face e viu a moça descendo os degraus da igreja, caminhando ao seu encontro.

Tirou a boina da cabeça, segurou-a junto ao coração, e ficou parado com um pé em cada degrau, a contemplar aqueles cabelos.

As ondas dos fios castanhos se misturavam ao longe com as ondas do oceano e ele pôde sentir a alegria invadir cada célula de seu corpo.

Ela estava parada bem à sua frente. Usava um vestido azul, como o mar e o céu, que eram seus únicos companheiros naquele local esquecido pelo mundo.

Ela falou, e sua voz pareceu uma manhã de primavera:

— Ângela.

— Ângela… – ele repetiu – que nome lindo. Parece nome de anjo”.

HERMES, homem inglês de meia-idade. É o responsável pela “adoção” de Anny após a partida misteriosa dos pais, juntamente com sua esposa, Jane. Um homem frio e de olhar triste, cujo coração parece não ter alegria de viver. Será que Anny conseguirá conviver com um homem tão amargurado? Talvez a razão para tamanha amargura esteja nos erros do passado…

Hermes na história: Sempre com a cara fechada e sem expressões, Hermes arrasta a vida sem alegrias e esperanças. Até que Anny, a protagonista de oito anos, surge em sua casa pequena e cinzenta. A princípio a presença da garota, cheia de vida e alegria, é como veneno para sua existência dolorosa. Mas ela não medirá esforços para compreendê-lo e ajudá-lo. Hermes tem um capítulo especial, durante um Natal inesquecível, em que muito de seu passado é revelado. Assim, a tristeza em seu olhar, finalmente, começa a ter uma explicação.

“Hermes era casado com Jane há duas décadas. Eles não conseguiram ter filhos e, com o passar dos anos, se acostumaram tanto com a ideia de que nunca seriam pais que nunca mais tocaram no assunto. Ele era um homem sério, que tinha menos idade do que aparentava. Sua barba era tão malcuidada que chegou a dar nojo em Anny quando ela o olhou de perto. A garota pensou que ele não tinha alegria de viver quando olhou dentro de seus olhos pela primeira vez, deparando-se com uma expressão vazia e cansada, de quem espera pouco e entrega pouco à vida”.

“Enquanto falava, Hermes parecia reviver sua própria história, mergulhando cada vez mais profundamente nas lembranças – lembranças de quando ele ainda vivia e não simplesmente existia.

Há tanto tempo ele não se permitia relembrar…

Havia guardado aquelas recordações no fundo de sua alma por tanto tempo, que elas, agora, pareciam empoeiradas. Era difícil revivê-las, pois eram doces, e o coração do homem, com o tempo, havia se tornado amargo.

Anny deixou-se embalar pelas memórias de Hermes e foi acompanhando cada detalhe, também criando as cenas em sua mente”.

BORBOLETA AZUL aparece tanto na realidade, quanto no Reino Xadrez, onde é o único pontinho colorido em um reino branco e preto. Ela sempre traz esperança e aparece em momentos importantes da vida (e dos sonhos) da pequena Anny, a protagonista da história e rainha do Reino Xadrez! A borboleta azul é uma representação muito especial na trama e trará bons sentimentos e aprendizados à pequena rainha sempre que aparecer.

“A borboleta azul demorou-se muito no jardim, e Anny pensou que ela devia estar reconhecendo seu segredo nas plantas, o amor; assim como Pepeu o reconhecera.

Ela voou por entre as flores que nasciam, e Anny foi andando atrás dela, imitando sua leveza. Então, a menina esticou os dedos e a borboleta azul pousou sobre um deles.

Anny a observou por vários instantes, maravilhada com sua perfeição. Ela era linda de se ver”.

“A rainha Anny declarou que aquele era o dia mais feliz de seu reinado, e todos os súditos de cristal dançaram alegremente nos gramados quadriculados. No castelo, que uma vez estivera em ruínas, músicas alegres tocavam – todas elas eram originadas por belos pianos. E, ao redor do palácio, voava uma borboleta azul-celeste. Linda, cheia de vida e cor”.

DESIRÉ, 12 anos, Inglesa. Enxerga o mundo através das palmas das mãos.

Desiré na história:

Ela surge, junto de seu irmão George, no muro da casa vizinha à de Anny, trazendo alegria e suavidade a sua história sofrida. Deficiente visual, Desiré conta com a ajuda de sua fiel cachorrinha, Nina, e com o amor imenso pela vida que existe dentro do seu peito. Ela ajuda Anny a também conhecer o mundo com as palmas das mãos – e, assim, senti-lo da forma verdadeira –, é sua confidente e companheira nas tardes em que cuida dos jardins e durante momentos preciosos em que ambas descobrem a arte da dança. Anny e Desiré são um grande exemplo de amizade, pureza e superação e, também junto de Pepeu, vivem momentos encantadores por entre as flores que Anny cultivara nos jardins antes sem vida.

“Outro dia, as meninas estavam conversando distraidamente, quando Desiré parou e disse:

— Quem está aí?

Sem que Anny notasse, elas realmente tinham companhia:

— Pepeu! – gritou Anny, indo abraçar o rapaz – Que bom que está aqui. Eu gostaria que você conhecesse minha nova amiga. É a Desiré. Ela é muito especial. Venha, aproxime-se do muro, para que ela possa conhecê-lo.

O rapaz aproximou-se de Desiré e ela esticou as mãos para tocar-lhe a face. A menina ficou alguns minutos analisando cada traço de Pepeu, então, sorriu:

— Você é lindo!”
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Fabiane Ribeiro já escrevia quando tinha 6 ou 7 anos de idade. Seu entretenimento predileto era criar narrativas. A leitura também era sua maior paixão. Ela lia compulsivamente, sem escolher estilos ou gêneros. Graduada em Veterinária, ama os animais assim como as palavras.

TRECHOS DO LIVRO
“O castelo continuava lindo, enorme e xadrez, exceto por um pontinho azul que o circundava.
Era ela, a borboleta azul…

Então, uma chuva começou no Reino Xadrez. Não era uma forte tempestade. Afinal, não representava fúria ou descontrole. Era uma chuva fina, reconfortante; uma chuva para limpar a alma.

Representava alento, recomeço.

Era como se o céu chorasse junto com Anny, mas de uma forma suave…
Sobre o castelo se abriu uma fresta de luz entre as nuvens. Era o sol, abrindo caminho para seus raios em meio à chuva. Tudo era exatamente como no interior de Anny…”

“De um lado, estava o exército preto, e de outro, os súditos de cristal do exército branco.

As peças marchavam em direção ao enorme tabuleiro central, tudo era gigante aos olhos de Anny. Os passos coordenados das peças ecoavam por todo o reino, anunciando o duelo de xadrez que se formaria em instantes.

Quando tudo estava organizado, Anny perguntou:

— Com quem irei jogar?

E foi nessa hora que se ouviu o galopar de um cavalo ao longe, e ele surgiu entre as colinas quadriculadas: o cavaleiro bondoso que Anny conhecera na primeira vez em que estivera no reino.

À medida que ele se aproximava, seu rosto se tornava mais familiar. Com suas bochechas rosadas e seu lindo sorriso. Anny sabia que era ele: seu fiel cavaleiro, aquele a quem ela tanto amava. Aquele que a salvou da tristeza e da solidão diversas vezes e a ensinou a ouvir o coração.

Ele fez uma demorada reverência à rainha, dizendo:

— A partida pode começar.”

Fontes:
Fabiane Ribeiro. http://www.fabianeribeiro.com.br/
Ana Lucia Santana. http://www.infoescola.com/livros/jogando-xadrez-com-os-anjos/
http://gossinp.blogspot.com.br/2012/09/resenha-jogando-xadrez-com-os-anjos.html
Cris Toledo. http://livronasmaos.blogspot.com.br/2013/02/resenha-jogando-xadrez-com-os-anjos-de.html

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John Banville (O Mar)

O escritor e crítico literário irlandês John Banville, 61 anos, é quase um desconhecido do público brasileiro. O que não chega a ser surpresa: ele também não goza lá de grande fama entre os leitores anglófonos. Considerado um autor “difícil” por sua prosa poeticamente trabalhada e pelo ritmo lento de suas narrativas, Banville nunca teve vendas além de uns poucos milhares de exemplares – tiragem de ficcionista brasileiro – até ganhar o Booker Prize de 2005, e com ele uma avalanche de manchetes, por este “O mar”. O romance é narrado de forma não linear por um crítico de arte de meia-idade que, tentando se recuperar da morte da mulher, retorna à cidadezinha praiana onde passava férias na infância e mergulha num mar de memórias dolorosas. A maior parte da crítica internacional saudou o livro como a obra-prima de Banville, e os elogios, embora eu ainda esteja no início da leitura, me parecem fundados.

A sinopse do livro nos conta o seguinte: “Neste romance, John Banville constrói uma narrativa emocionante, trabalhando a linguagem como um grande artista. Em ‘O mar’, Banville conta uma história com vários momentos, na qual o narrador, Max Morden, procura viver o presente e o futuro no passado, na busca por recuperar-se da constante presença da morte.”

Banville constrói sua narrativa com idas e vindas em seu passado, presente e por assim dizer a projeção do futuro. Narrativa entrecortada, mas que com as palavras certas, e um certo tom irônico e às vezes cômico, nos leva a participar da história, da sua dor, da construção da sua vida e dos momentos por vezes imaginário.

Lidar com perdas, com dor, não é tarefa simples, mas não o torna um livro pesado e arrastado, pelo contrário, apesar de ter deixado em mim algumas marcas, é uma narrativa que nos faz pensar em algumas coisas sim, acerca da vida e da morte.

Em alguns trechos do livro, nos identificamos, pois a linguagem simples e clara do autor, nos leva a essa imediata empatia.

A beleza hipnótica de sua prosa, conservada pela tradução, brilha no trecho abaixo, que abre o livro:

Os deuses partiram no dia daquela maré estranha. Durante toda a manhã, sob um céu leitoso, as águas da baía foram subindo, subindo, atingindo alturas inauditas, com pequenas ondas lambendo a areia ressecada que, por anos a fio, não soube o que era umidade, a não ser pela chuva, e chegando até a base das dunas. Os despojos enferrujados do velho navio encalhado lá na entrada da barra, e que, para qualquer um de nós, estavam naquele lugar desde sempre, devem ter achado que tinha chegado a hora de voltar a navegar. Depois daquele dia, nunca mais nadei. As aves gritavam e mergulhavam do céu, parecendo perturbadas pelo espetáculo daquela imensa bacia cheia de água que inchava como uma bolha de um azul quase chumbo malignamente reluzente. Naquele dia, os pássaros estavam mais brancos, com uma cor nada natural. As ondas iam deixando uma faixa de espuma amarelada na areia. Nenhuma vela manchava a linha do horizonte. Não, não voltei a nadar depois desse dia. Nunca mais.

Acabou de passar alguém sobre o meu túmulo. Alguém.

A casa se chama Os Cedros, como antigamente. Um punhado eriçado dessas árvores, de um marrom cor-de-macaco, um cheiro rançoso de resina e os troncos assustadoramente retorcidos, ainda cresce à esquerda da casa, diante de um gramado maltratado que fica defronte da grande janela abaulada do cômodo que era a sala de visitas, mas que Miss Vavasour, como boa profissional do ramo, preferia chamar de saguão. A porta da frente fica do outro lado, dando para um pátio quadrado, recoberto de cascalho manchado de óleo, logo depois do portão ainda pintado de verde, embora a ferrugem tenha reduzido aquela pomposa grade a uma frágil filigrana. Fiquei impressionado ao ver como tudo mudou tão pouco nos mais de cinqüenta anos que se passaram desde que estive aqui pela última vez. Impressionado, e desapontado. Diria até horrorizado, por razões que não consigo descobrir; afinal, por que eu desejaria que as coisas houvessem mudado, logo eu, que voltei a viver em meio aos escombros do passado?

Não sei por que a casa foi construída desse jeito, de lado, com uma parede branca e sem janelas virada para a rua; talvez, em outros tempos, antes da construção da estrada de ferro, o traçado da rua também fosse diferente, passando bem diante da porta da frente. Tudo é possível… Miss V. é bastante vaga quanto a datas, mas acha que, de início, construíram ali uma casinha pequena, em princípios do século passado, quero dizer, do anterior, estou perdendo a noção dos milênios, e, depois, foram fazendo obras e aumentando a casa meio aleatoriamente ao longo dos anos. Isso explicaria o ar caótico daquela construção, com salinhas que dão passagem para outras salas maiores, janelas que se abrem para paredes cegas, e tetos baixos de ponta a ponta da casa. O assoalho de pinho dá um toque náutico ao local, assim como a minha cadeira de rodinhas, com encosto de ripas de madeira. Posso até imaginar um velho lobo-do-mar, cochilando ao pé da lareira, finalmente assentado em terra firme, e o vento do inverno fazendo as janelas baterem. Ah, ser esse marinheiro… Ter sido ele…

Quando estive aqui tantos anos atrás, no tempo dos deuses, Os Cedros era uma casa de veraneio, alugada por quinzena ou por mês. Todo ano, em junho, um médico rico e sua família estridente infestavam o lugar — não gostávamos dos seus filhos esganiçados, que riam de nós e ficavam nos atirando pedras, protegidos pela barreira impenetrável do portão. Depois deles, vinha um casal misterioso, de meia-idade, que não falava com ninguém e quase toda manhã levava, sempre de cara amarrada, o cachorro salsicha para passear, descendo a Station Road até a praia. Para nós, agosto era o mês mais interessante naquela casa. A cada ano, havia inquilinos diferentes, gente da Inglaterra ou do Continente; uns casais esquisitos em lua-de-mel, que ficávamos tentando espionar, e, certa vez, veio inclusive uma trupe de teatro ambulante que estava se apresentando na matinê do cinema do vilarejo, com o seu telhado de zinco. E, então, naquele ano, veio a família Grace.

“Há momentos em que o passado tem tanta força que parece que vamos ser aniquilados por ele.” página 43

E mais um trecho que faz pensar bastante:

“Os últimos raios de luz do dia, que eu podia ver em parte pela metade superior da janela do bar que não era pintada, tinham aquela tonalidade raivosa de um marrom-arroxeado que acho comovente, mas, ao mesmo tempo, perturbadora, e que é a própria cor do inverno. Não que eu tenha algo contra o inverno; na verdade, é a minha estação favorita, juntamente com o outono; mas, este ano, esse brilho de novembro parecia o presságio de algo mais do que o inverno, e mergulhei num clima de amarga melancolia.” página 212

Os livros nos escolhem e sempre nos impregnam com suas linhas e palavras, para mim é mágico, por vezes curativo, por vezes arrebatador e também serve de alerta.

Fontes:
Letícia Alves in  http://www.minhastempestades.com.br/2013/04/o-mar-john-banville.html
Sérgio Rodrigues in http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/primeira-mao/john-banville-o-mar/

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Milton Hatoum (Relato de um Certo Oriente)

A obra de estreia do escritor amazonense Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente, nasceu em 1989, quando o autor apresentou à então editora da Companhia das Letras, Maria Emília Bender, o manuscrito de seu livro. Aprovado por Luiz Schwarcz, proprietário da Cia das Letras, o romance foi finalmente publicado, depois de um longo percurso de escrita, iniciado em 1982, na capital francesa.

 Busca mostrar as dificuldades presentes na convivência diária de familiares e amigos entre si, com seus diferentes segredos e comportamentos, faz deste um grande enredo.

O romance mostra que o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido e isolado na sua própria história, quase que incomunicável com outro mundo que não seja o dele.

A memória, a identidade e a reconstituição de lembranças são os temas principais deste romance. A personagem protagonista consegue, por meio da rememoração de seu passado e com a ajuda das lembranças de outros, enriquecer sua vida, dar sentido e valor à sua origem.

A (re)construção do passado é interessante, pois a narradora utiliza de diferentes recursos para reanimá-lo, seja por um odor, seja por uma voz, seja por um lugar. Esses e outros recursos são utilizados como meios de recuperar a memória perdida.

O enredo do romance é uma tessitura de retalhos narrativos que se alinham em oito capítulos. São várias histórias que se entrelaçam e se completam, lembrando assim o estilo da narrativa oral. Estas várias narrações, que em muito lembram a estrutura das Mil e Uma Noites, se desenrolam em um cenário que lembra constantemente as estruturas de passagem que compõem a existência humana.

A trama se passa numa cidade marcada pelo hibridismo cultural e atravessada pelas ideias de fronteira e trânsito: Manaus, uma capital que se separa da floresta pelas águas fluviais e se situa num estado que faz divisa com três outros países. Ela também é a cidade natal do escritor. No livro também estão presentes a diversidade de costumes, línguas, e a convivência entre indivíduos de diferentes nacionalidades.

Nesta busca incansável da personagem principal por sua identidade e suas origens, em uma Manaus que é mais margem do que propriamente uma metrópole, apesar de ser a capital amazonense, o leitor vai desvelando junto com a protagonista um passado repleto de segredos e revelações inimagináveis, relembrando e descobrindo histórias do seu passado e da família que a criou.

Retornando a Manaus, após estar internada em uma clínica de repouso em São Paulo, a narradora chega na noite que precede o dia da morte de Emilie, sua mãe adotiva.

Inicia-se, então, o trabalho de recuperar Emelie através da memória, não apenas a sua, mas também a de outros personagens que entrelaçaram seu percurso de forma significativa ao daquela família: o filho mais velho, o único a aprender o árabe e que também irá se distanciar de todos, ao mudar-se para o sul; o alemão Dorner, amigo da família e fotógrafo; o marido de Emelie, recuperado, mesmo depois de morto, através da memória de Dorner, e Hindié Conceição, amiga sempre presente, a partilhar com a conterrânea a solidão da velhice. Muitas vozes a compor um mosaico, nem sempre ordenado, nem sempre claro naquilo que revela, mas sobretudo rico em pequenos detalhes de extrema significação.

No intuito de enviar uma carta ao irmão, que se encontra em Barcelona, a fim de lhe revelar a morte de Emilie, escreve um relato com depoimento de membros da família e de amigos, conforme o irmão lhe pedira na última correspondência que lhe enviara. Esses testemunhos proporcionam uma verdadeira viagem à memória, com regresso à infância e aos fatos marcantes da vida familiar.

No primeiro capítulo, a narradora descreve uma parte da casa na qual acabara de acordar, em Manaus. A descrição das duas salas contíguas é repleta de marcas identificatórias do Oriente, indicando uma representação estilizada desse local: tapete de Isfahan, elefante indiano e reproduções de ideogramas chineses são alguns dos objetos de consumo dos ocidentais, tomados como símbolos, que estão presentes nos cômodos.

No romance as histórias falam das possibilidades e das dificuldades do trabalho com a memória, das tensões e da convivência de culturas, religiões, línguas, lugares, sentimentos e sentidos diferentes das personagens em relação ao mundo. A casa de Emilie, matriarca da família na narrativa do Relato, é um microcosmo onde estas tensões aparecem e são vividas cotidianamente.

O que mantêm a tensão no romance é a narrativa centrada em incidentes – o atropelamento de Soraya Ângela, o afogamento de Emir.

A obra, em sua estrutura e estratégia de composição, parece oscilar entre a narração – em que a figura do narrador é extremamente importante e o relato é feito principalmente com base nas tradições orais, como uma tentativa de rememorar as experiências coletivas do passado – e o romance, que surgiria como um gênero literário devido as transformações da sociedade capitalista, que destrói cada vez mais a possibilidade de que a experiência comum viva e se revele no relato dos narradores.

Este mosaico narrativo é também influenciado por outro retrato memorialístico, tecido pelo francês Marcel Proust no seu clássico Em Busca do Tempo Perdido. Para Hatoum a memória é uma peça fundamental, sem a qual não se tece a verdadeira literatura. E esta obra é, sem dúvida, uma das maiores apologias ao seu poder.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/relato_de_um_certo_oriente
Ana Lucia Santana. http://www.infoescola.com/livros/relato-de-um-certo-oriente/

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Isabel Furini (Relançamento do Livro de Poemas: “Os Corvos de Van Gogh”)

Terça-feira, 26 de novembro, a partir das 19 horas, será relançado o livro de poemas “Os Corvos de Van Gogh” da escritora e poeta premiada Isabel Furini, no Palacete dos Leões, Av. João Gualberto, 570, Alto da Glória, Curitiba.

Van Gogh foi um artista obstinado, um mestre, um pintor genial.  Ignorado pelos homens de sua época, sua obra foi reconhecida depois da sua morte. Isso o torna ainda mais fascinante. 

O livro de poemas “Os Corvos de Van Gogh” procura perceber os movimentos da alma de Van Gogh e os corvos da tristeza e da frustração presentes na sua vida. 
A obra é apresentada pelo poeta Benilson Toniolo, nas orelhas as artistas plásticas Sandra Hiromoto e Cláudia de Lara também dão a sua visão. 
No final do livro o escritor José Feldman faz uma breve biografia do pintor. 

O livro fala dos “corvos de Van Gogh”, além daqueles eternizados no quadro “Trigal com Corvos”, quadro pintado pelo artista pouco tempo antes de sua morte, os poemas representam o medo, a frustração, a solidão, ou seja, os “corvos” interiores.

Na continuação, um poema do livro:

CAMPO DE TRIGO (Van Gogh, 1890)

Corvos ferinos, mímicos ferinos,
sombras da genialidade.

Murmúrio
de rios subterrâneos,
canal das águas do inconsciente,
campo de trigo com pretos corvos
moendo
as tenebrosas horas.

O vento sussurra
entre os ouvidos e a tela.
– quase um ulular de morte.

Fonte:
A Autora

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Sérgio Sant’Anna (A Senhorita Simpson)

A narrativa A Senhorita Simpson, de Sérgio Sant’Anna, foi publicada em 1989. A obra serviu de inspiração para o cineasta Bruno Barreto produzir “Bossa Nova”, filme lançado em 2000.

 O assunto deste conto envolve o choque de valores que se dá entre a puritana protagonista, que parece ter saído das páginas do romancista americano Henry James, e a burguesia carioca com quem convive nas aulas de inglês que ministra em Copacabana.

 Em A Senhorita Simpson o ponto de partida é um cursinho de inglês, o Piccadilly, que serve como motivo principal para a narrativa. As inter-relações vitais para o enredo vão surgindo como decorrência dos encontros noturnos para as aulas, tendo como narrador-protagonista Pedro Paulo Silva, um dos alunos da turma, 29 anos, funcionário-público no Tribunal de Justiça, separado da mulher, um casal de filhos, habitando sozinho um pequeno apartamento na Prado Júnior e profundamente envolvido com uma dependência por Valium, como soporífero, e por mulheres, como carência de afeto. De certa forma sugerindo em tom de paródia o tipo romântico: a crise existêncial, uma espécie de obsessão pelo encontro intermeada por um ligeiro temor, a fuga das responsabilidades ‘morais’ e a fragilidade das relações não duradoura.

 A narrativa sugere um pequeno espaço brasileiro, essencialmente urbano: a zona sul da cidade do Rio de Janeiro, Copacabana, a classe-média, o inglês como língua de mercado e da moda, a mulher no trabalho, a separação conjugal, o misticismo oriental e a utopia da trilha pela Bolívia e Peru rumo a Cuzco e Machu-Pichu (roteiro seguido por tantos jovens da época). Tudo isto trabalhado com muita ironia e consciência crítica sobre o ato de narrar, por parte de um autor que certamente esteve no contexto, olhando desconfiado para alguns modelos, apreciando o sabor e a possibilidade do encontro e parecendo ter nunca se submetido ao vício.

 Assim, mantendo-se fora do interior da narrativa, Sérgio Sant’Anna distancia-se do mundo de seu protagonista, não se identifica enquanto narrador e através da alteridade transfere para a personagem a vivência da história (em seu duplo sentido: ficção e experiências do passado). A intertextualidade metaficcional enquanto reflexividade consciente do papel da ficção na contemporaneidade, é feita através do ‘pastiche’ em relação às histórias do gênero “meu tipo inesquecível”, que aparecem na “Seleções do Reader’s Digest”, conforme apresentação feita na epígrafe da obra. E esse roteiro problematizador confunde-se com a própria narração enquanto técnica e modo de compor a narrativa. Como característica pós-modernista, no entanto, em tomo de uma superposição crítica e paródica, ficcional e historiográfica, Sérgio Sant’Anna procura reconstituir o estilo (gênero) ao invés da sensibilidade compositiva mais do que sob uma conceituação estética que privilegie o contexto puramente ideológico do discurso.

 O gênero “meu tipo inesquecível” instala-se na figura de Miss Simpson, faixa etária dos 40, sobrevivente de Woodstock, professorinha de inglês no Picadilly e que por um instante se converte na mãe desejada no auxílio geral e no sexo. E aqui também, como em toda história do gênero, aparece um final de “agradeço por tê-lo(a) conhecido”, em deferência à importância da personagem narrada para a vida de quem com ele(a), de algum modo, um dia conviveu. Para o protagonista Pedro Paulo Silva, trata-se de Miss Simpson, que “lhe restará sempre na memória” enquanto forma de encontro necessário e vital.

 Assim, como técnica de narração, o tema e o enredo parecem juntar-se enquanto arranjo de linguagem e artificio cênico da mera banalidade do ato de viver: a linguagem é simples, objetivando uma aceitabilidade fácil e sugerindo o efeito comum de representação da vida enquanto dissolução do cânone maior. Ao mesmo tempo, no entanto, realçando o caráter da importância do fato para o narrador que tem na vivência do texto elaborado um motivo a mais para viver. Como pretexto de ter o que contar e lembrar. Não importa que quem narre seja deveras um escritor (no sentido de autor em alto grau), mas um narrador cônscio da sua própria fragilidade, um que se identifica (ou pelo menos pode fazê-lo) com tantos outros que pretendem também participar da ação de terem um dia narrado. Desta forma, vivência e ficção se confundem já que o gênero “meu tipo inesquecível” reproduz a verossimilhança com o vivido. E diante da extinção na contemporaneidade da experiência de narrar”, quando o ser humano está diluído no meio da multidão e se torna presa fácil da tecnologia, as vivências históricas (não mais experiências propriamente)” tornam-se ocasionais, dissolvidas nos fragmentos colhidos pelos meios de comunicação de massa. Este é o lugar da narrativas do gênero “meu tipo inesquecível”: um último refúgio que possibilite às gerações terem ainda o que e onde contar.

 O ponto de vista do narrador não é onisciente. Ele não mergulha na vida das demais personagens, que só se formam enquanto incursão cotidiana de relacionamento. Personagens opacas, portanto, sem aprofundamento psicológico. Apresentadas não em si mesmas, mas em relação às demais. Delas só se conhecem as superficialidades que estão presentes no contexto da ação. O próprio Pedro Paulo Silva é construído a partir de migalhas: pequenos detalhes aqui e ali. Assim, através de uma sugestão cênica fragmentada em episódios, o leitor vai se apropriando aos poucos de todo o enredo, o qual também é desprovido de profundeza. E as inter-relações pessoais no contexto da obra se esgotam rápido e fácil. O Piccadilly é quase que o único local de encontro. Nele os alunos da turma de Miss Simpson (sete no total) se conhecem e se entretêm como se fossem jovens adolescentes, possivelmente como um pretexto para o rompimento com o estado diurno do trabalho. As aulas noturnas de inglês funcionam, assim, como um espaço lúdico: próprio para o relaxamento e a desrepressão. Brincadeiras acontecem, num constante passar de bilhetinhos em classe, além das gozações mútuas.

 Evidente que a trama maior se dá em tomo do narrador e protagonista Pedro Paulo Silva: seu relacionamento remoto com a ex-esposa Antonieta; sua visita ocasional aos filhos quando lhes conta estórias inventadas; seu ligeiro contato com o pai e amigo advogado, alcoólatra e depois suicida, que vive com a quarta mulher, Maria de Fátima (nome artístico: Mara Regina), num apartamento em Laranjeiras; seu distanciamento da mãe agora casada “com um joalheiro careca e chatísismo”; seu encontro com o misterioso e suspeito Wan-Kim-Lau chinês, amigo de Antonieta, impregnado com a sabedoria oriental e professor de tai-chi-chuan numa academia; sua dependência por Valium antes de dormir e seu infatigável apetite sexual por mulheres movido por uma espécie de descontrole emocional baseado no desejo de livrar-se do tédio.

 Em forma de flashes momentâneos, a ação e o cenário vão se compondo, quando a narrativa se propõe a realçar a similitude com as histórias do gênero “meu tipo inesquecível”. Assim, o estilo é claro, sem maior ostentação retórica e técnica, a não ser pelo recurso utilizado na passagem em que Pedro Paulo Silva conta para o Gordo sua transa com Ana e o autor sobrepõe simultaneamente e de modo engenhoso três focos narrativos diversos. Também algumas frases de efeito aparecem: “A gente sempre morre antes da última dose” (deixada pelo pai suicida dentro de uma “garrafa quase vazia”, antes de se matar); “meu reflexo de passageiro da vida no espelho” (em conotação com a contemporaneidade); “a fragrância de um perfume na memória” (parecendo Marcel Proust); “o alvorecer das utopias” (em analogia ao sonho hippie); “A história se repetia como comédia; esperava-se que não se repetisse como tragédia” (parodiando Karl Marx).

 No interior da narrativa uma proposta intertextual aparece enquanto uso constante de um inglês básico, que aqui e ali postula do leitor um mínimo de domínio. E esse cruzamento interlinguístico deriva do Picadilly, onde, através de Miss Simpson, Pedro Paulo Silva e o resto da turma preenchem o vazio de suas próprias histórias com as aventuras vividas pelos Dickinsons, Harrisons e Jones, personagens de uma outra história; o livro didático utilizado.

 Por outro lado, as questões sociais e políticas são abandonadas ou, no mais, deixadas à imaginação do leitor enquanto apelo irônico; como exemplo, o episódio da greve no Piccadilly, ironizando maio de 68 e o movimento político brasileiro pós-64. O Matoso, um dos alunos da turma, é pego fumando marijuana no banheiro da escola e um ruidoso Mr. Higgins, o diretor, pretende expulsá-lo pois, embora fosse uma droga leve e que “se disseminara por todas as escolas”, conforme argumentara Miss Simpson assumindo a defesa dos alunos, em “- Escolas só de inglês, não -“, receoso de que “se aquilo se tomasse um hábito”, “o nome do Piccadilly (…) iria por água abaixo”. Como se fosse um ‘É proibido proibir’ a greve então é proposta. No entanto não acontece; Miss Simpson convence o diretor.

 Mas, tem-se a alusão a “um marco histórico no movimento estudantil”, ao “dinheiro da CIA no negócio”; o eco das “palavras liberty and democracy” e a ovação para que o protagonista Pedro Paulo Silva seja elevado à categoria de “líder revolucionário”. A ironia se faz presente, então, de forma completa: em seu caráter ideológico contraditório, já que estabelece um vínculo com a história ao mesmo tempo em que sugere o tema como um passado perdido. Assim, o que ocorrera em termos reais até em desprendimento (enquanto abnegação = sacrifício dos próprios interesses em beneficio de uma causa maior) torna-se agora fragmentos do passado, memória apenas de uma vivência de se ‘ter ouvido falar’.

 A partir dessa analogia intertextual entre o passado e o presente, entre a novela e as histórias do gênero “meu tipo inesquecível”, percebe-se na composição cênica de A Senhorita Simpson a vida aparecendo como o grande intertexto. Já não mais em torno de um ‘eu’ utópico, indivisível e potente enquanto projeto “liberal humanista”, mas de um ‘eu’ fragmentado e, de repente, se vê no vazio. Vale, então, a lembrança de ‘roteiros’, não mais como um enredo coeso em tomo de um princípio, um meio e um fim. Mas, enquanto possibilidade de apego a um presente de imagens meio-ambientais (natureza – indivíduo(s) – objetos) que se arranja ou se compõe como ajuntamento de estilhaços visuais: como “um tremendo pôr-do-sol sobre o mar de Copacabana”, a “porta pantográfica” do elevador, ou os “reflexos luminosos que estampavam tonalidades fantasmagóricas na pele de Miss Simpson”.

 O arranjo cênico então sugere ‘os olhos a se alimentarem de luz’, fixos na possibilidade que o meio-ambiente oferece, uma vez que o passado virou migalhas e já não há mais experiências reais para se narrar: somente vivências ou lembranças momentâneas. Neste ponto, a intertextualidade entre ficção e historiografia propõe a reflexão de que todo o jogo político do passado foi apenas um modo de constructo ideológico enquanto jogo de poder. E a identidade histórica torna-se qualidade apenas narrativa, na arte da composição. Para Pedro Paulo Silva, esse recurso significa procurar a lembrança de seu ‘tipo inesquecível’ e, conforme sugere Walter Benjamin, “começar tudo de novo”, “contentar-se com pouco”, operando “a partir de uma tábula rase’. E ele assim faz: fura uma das orelhas para “colocar nela um brinco dourado” e ao completar 30 anos estará deixando para trás não a sua juventude, mas a sua velhice, rumo à Bolívia, Peru, Cuzco e Machu-Pichu.

A senhorita Simpson é o exemplo da terceira fase do autor, onde continua fazendo exercícios metalinguísticos, mas os subordina ironicamente à história que conta. A obra transgride as próprias “convenções” do autor: o diálogo é ágil, mais “realista”, sem as massas verbais típicas da sua representação do mundo; há uma nitidez, uma luminosidade que atravessa a narrativa inteira; e, o mais significativo, no final da novela encontramos um dos raros momentos em que o narrador, com simplicidade, endossa o ponto de vista de seu personagem, entregando-se ao texto sem atravessá-lo de ironia: “Aos trinta anos, eu estaria deixando para trás não a minha juventude, mas a minha velhice”.

Créditos:
Carlos Eduardo Vieira de Figueiredo, Mestre em Literatura Brasileira, UFSC. Disponível em Passeiweb

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Ponti Pontedura (Livro de Poesias: A Palavra Sabe)

Muitas pessoas ainda se espantam diante de um livro de poesias, como se houvesse nesse estilo um grande mistério a ser desvendado. De fato há. O poder e o mistério da palavra ao ser tornar poesia é a possibilidade de ser lida e relida de formas diferentes, com outros olhares, outros sentidos. Essa é a maior charada da poesia, e também seu maior trunfo e é com esse jogo de imagens que nos deparamos em A Palavra Sabe.

Pontedura apresenta sua criação com palavras, e nos convida para participar com ele dessa descoberta da força da palavra versátil, da palavra-poesia.

Pleno de versos livres, de rimas brancas que surpreendem pela expressividade, A Palavra Sabe não deixa nada a desejar, afirmando-se como uma coletânea de poemas bem dosados e cadenciados.

Prontos para nos surpreender, os poemas são variados, se dividem em temas que permitem que diferentes públicos se sintam atraídos pelo livro, tantos os leitores assíduos de poesia, quanto aqueles que estão para descobrir o que a palavra poética realmente sabe e faz.
—————
Ponti Pontedura nasceu em Londrina, Paraná, em 1953, pseudônimo de Lourivaldo Pontedura, é jornalista, diretor e roteirista de cinema. Vive em São Paulo.

A Palavra Sabe (ou) Clareiras na Escrita

Invento céu chão caminho lugares
a casa onde eu moro.

Ninguém vem bater, que porta não há.
É casa de palavras minha moradia.

Imagino dia, e o sol me envia claridades.
Imagino escurecer, e minha sombra enorme
— maior que a noite — enche o espaço escuro.

Procuro no espaço escuro
o claro sentido da luz:
abrir em mim clareiras na escrita.

O meu punhal — sedento de sangue —
penetrasse a carne da poesia plácida

e a ferida abrisse seu corpo carnudo.

Um corte na veia da palavra sanguinea
lançasse sangue na minha face

e extirpasse o tempo flácido.

Poema abatido, animal prostrado,
vertesse seu sangue para a minha língua.

Mormaço de poesia ao meio dia
escalda o chão por onde passo, descalço.

Passo pela palavra gasta,
gasto o chão por onde passo,
e gasta a palavra me corrompe.

Passo pela palavra devastada,
devasto a terra por onde passo,
e devastada a palavra só faz ruínas.

Passo pela palavra sussurro,
sussurro um poema por onde passo,
e sussurrada a palavra é um segredo.

Ele segreda ao meu ouvido,
soletra palavras silenciosas,
onde se esconde o poema infinito.

Tranque-se em seu segredo,
guarde-se num poema oculto,
esconde esta palavra esconde.

Não se revela nada.
À palavra dada
não se abre a boca.

A palavra guarda todo sentido,
encerra em si o que há em mim,
entra muda e sai significada.

Palavra calosa tem a mão pesada.
Era a mão do meu pai
que se estendia e pousava
para o beijo da benção.

Fontes:

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Alvaro Posselt (Lançamento do Livro: Um Lugar Chamado Instante)

No próximo dia 23/11, sábado, no Paço da Liberdade, Praça Generoso Marques, Centro, Curitiba/PR, das 14 às 17 horas, lançamento do segundo livro: Um lugar chamado instante.

*Alvaro Posselt nasceu em 1971, em Curitiba. É professor de português e revisor de texto. Participou de antologias de poetrix, haicai e miniconto. Teve haicais e miniconto classificados em concursos. Colaborador do Jornal Memai – Letras e Artes Japonesas. Seu primeiro livro de haicais foi “Tão breve quanto o agora”.

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Aíla Sampaio (A Leste da Morte, de Nilto Maciel: Veredas Diversas e Apurado Trabalho de Linguagem)

Quando se fala na ficção cearense contemporânea, o nome de Nilto Maciel desponta como um dos mais prodigiosos. Não à toa. Sua estreia, em 1974, com Itinerário (livro de contos) já marcou a chegada de um escritor maduro no cenário literário, cujas fronteiras alargaram-se com sua mudança para Brasília. Mesmo longe da terra natal, ele se manteve ligado às raízes, embora sua produção nada tenha de regionalista. Sua visão de mundo é sempre universal. Inquieto, ele exercitou outros gêneros, como o romance, a novela, a poesia e o ensaio, confirmando seu domínio das palavras. (…) Senhor das técnicas das narrativas curta ou longa, em todas as obras ele mostrou fôlego e talento, e afirmou-se como um dos mais produtivos ficcionistas brasileiros da nossa época.

(…) Às vezes leves, às vezes mais densas, suas histórias percorrem um universo temático bastante amplo. Seu processo criador, visivelmente consciente, foge do experimentalismo, mas não se enreda na tradição. As frases curtas e o discurso sutilmente fragmentado são visíveis em praticamente todos os contos, especialmente em “O livro infinito”, conto com vários blocos narrativos intercalados, nos quais um mesmo narrador, em discurso indireto, mostra o pensamento dos três personagens que formam o triângulo amoroso: dois escritores e uma moça apaixonada por livros. Eles vivem uma história sem fim, entre livros, visitas a livrarias e inúmeras indagações sobre os sentimentos e atitudes do outro.

Também a forma como tempo e espaço se delineiam em alguns enredos não é tradicional. Em “Trem fantasma”, por exemplo, os planos temporais e espaciais são bem escamoteados e o leitor que, no princípio, vê o maquinista tentando deter o trem, descobre o homem/menino só brincando… aparentemente tão simples, mas tão bem construído que o leitor se enreda na brincadeira. A confusão temporal e espacial também se dá em “Paisagem celeste”, cujo protagonista, um homem cansado da rotina adversa, foge para a serra e acorda em seu quarto. A realidade ficcional se funde à atmosfera onírica (pesada) que se revela no final.

O mundo alucinatório do homem contemporâneo se delineia em vários momentos. “A fila”, narrativa que ironiza o excesso de filas para todos os serviços procurados, traz à cena o atordoamento ante o tumulto que se forma quando para todos os lados que o personagem se volta encontra a impossibilidade de resolver o que pretende, inclusive de dialogar com as pessoas (que parecem estar concorrendo com ele). Em “Sombra não identificada”, o protagonista, perturbado com a avalanche de más notícias dadas pela TV, escuta o anúncio de sua própria morte. Já no enredo de “Restos de feijoada”, a morte do folião é a impossibilidade de aceitação dos limites: ele prefere morrer brincando na festa de carnaval a padecer doente entre os lençóis. A ironia está no vômito final: o expurgo do inaceitável é escatologicamente metaforizado na (indigesta) feijoada. E assim vão desfilando situações comuns, casos sobretudo urbanos (Fortaleza, Brasília, Palmas… o mundo) em que se sobressaem injustiça, pressa em arranjar culpados (“A Leste da morte”, “O último troiano”), malandragem (“O descanso do criador”, “Mundoca e Mundico”), crianças perdidas dentro de sua própria casa, sem a atenção dos pais (“O invisível Isaías”), loucura (“Aníbal e os livros”),  falta de memória do povo para reverenciar ‘heróis’ do passado (“Maneco, futebol e cerveja”), opressão (“Mancha na parede”), enfim, um universo de problemas banais transplantados do mundo real.

Há uma ironia velada na voz de cada narrador; em “Livre-Arbítrio”, ao associar-se a punição de um assassino aos ensinamentos bíblicos, são os preceitos religiosos o alvo de alfinetadas. A religião volta a ser ‘moral da história’ em “Caça e caçador”, na mesma perspectiva de questionamento quanto aos valores pregados. Em “Mancha na parede”, a decisão da reclusão no mosteiro simboliza opressão e sofrimento; em “Caim e Abel”, os pólos se invertem: o bom vira assassino e o mal transforma-se em vítima, como a representar a inversão de valores que hoje se presencia.

O discurso literário muitas vezes cede espaço ao relato jornalístico, imprimindo ao texto um estilo-reportagem, a exemplo de “Maneco, futebol e cerveja”: (morreu ontem Maneco, ou Manuel dos Santos Pereira. Há anos fora dos gramados e da mídia, desde a fratura de uma perna) e “Para que esses olhos arregalados?”, conto que intertextualiza, de passagem, o clássico Chapeuzinho Vermelho e tem um final inesperado, como, aliás, a maioria dos que compõem a coletânea.

Já “O perdão” e “Águas de Badu” investem nos diálogos com textos consagrados na literatura brasileira. O primeiro retoma “Os anões” do Moreira Campos, redimindo a pequena Lourdinha do trauma do assédio nojento dos assaltantes que invadem o armazém em que ela mora com seu parceiro. A influência de Campos é assumida neste enredo e se mostra no estilo hiper-realista de “Os urubus e Deus”, narrativa cruel, que lembra os relatos naturalistas do romance A fome, de Rodolfo Teófilo. É também moreiriano o início de “Águas de Badu” – “Moscas voejavam ao redor do cadáver” – recriação da história de “O burrinho pedrês”, de Guimarães Rosa. O narrador, um cronista grato pelas histórias sertanejas que Badu lhe passava, conta a saga do velho vaqueiro de Sagarana, após deixar Minas até chegar ao Ceará com as lembranças da travessia do rio, quando ele, bêbado, foi salvo pelo burrinho. Entre as reminiscências do passado mineiro de Badu e sua morte, dormindo em casa, dá-se o velório e, no final, vê-se o carinho do cachorro Chué que, na imaginação de um menino, lambe o cadáver, em despedida, metamorfoseado no burrinho herói do conto épico de Rosa.

Há a mão do ensaísta em “Lilith segundo Paspa Tordre” e “Para escrever A caminho do nada”. A literatura está toda no processo criador; Nilto cria, acho que até sem perceber, personagens que são leitores, escritores, amantes dos livros, da poesia, como a velha Bartira (“Hora de despertar”), paralítica que sobrevive, ouvindo poemas de Anacreonte, Bilac, Camões, Francisco Carvalho e Florbela Espanca. Morre sozinha quando as leituras param e seu filho, ainda na farra, esquece-a aos cuidados de um ‘gravador’.

O gênero Fantástico se configura em “O menino e o lobo”, “A música”, “Sombra não identificada” e “O sétimo aniversário de Branca de Neve”. Nos três primeiros, o fantástico parece naturalizado, sem a inserção do mal; no último, a atmosfera é mais pesada e o que poderia ser simplesmente uma história do Maravilhoso degenera-se na inexplicabilidade do evento final: a brincadeira do teatro vira ‘verdade’ e a bruxa se corporifica, arrancando medo de crianças e adultos, à meia-noite.

O Surrealismo se faz presente em “Os dez dias de Raimundo”, cujo personagem, um homem criado em laboratório, tem seu ciclo de vida iniciado e concluído em apenas dez dias; na mesma linha está “Palmas e tochas”, história em que o pianista é, estranhamente, aos olhos de um expectador, um Lobo. Nada de automatismo na linguagem, apenas os motivos das narrativas transpõem a lógica natural, sem, entretanto, encenarem mistérios inexplicáveis.

Assim, fundindo observação, memória e imaginação, vários enredos dão ao leitor a ilusão de verdade; em “Apontamentos para um ensaio” e “Meu filho Matias Beck”, especialmente, ouve-se a voz do autor nos relatos, e chega-se a crer que são reais. O equilíbrio está no talento de Nilto Maciel para amalgamar realidade e ficção. Munido de vasta bagagem de leituras e domínio das técnicas de construção do texto literário, ele percorre veredas diversas e, com seu apurado trabalho de linguagem, dá unidade ao que é diverso, puxa o leitor por caminhos inusitados e consegue, sem exauri-lo no longo percurso que se impõe da primeira à última página, prendê-lo espontaneamente ao universo de seres alucinados e fatigados de sua aventura existencial. Sem falseamento da realidade, mas sem exatamente copiá-la, ele fala, na maioria das vezes ironicamente, das feridas abertas de todos os seres extraviados que, de alguma forma, encontraram-se, encontram-se ou encontrar-se-ão a leste da morte.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br

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Marciano Lopes (A Poética do Solarium, de Rodrigo Garcia Lopes)

Solarium, primeiro livro individual de Rodrigo García Lopes, reúne o fruto de mais de dez anos de caminhada poética, o que explica a variedade de influências e identidades literárias muitas vezes contraditórias – entre as quais se encontram poetas ingleses e americanos, incluindo a geração beatnik e autores mais contemporâneos, como Sylvia Plath (de quem é tradutor); os poetas fundadores da modernidade, tais como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud (de quem também é tradutor); o concretismo brasileiro e a poesia oriental, representada principalmente pela poética do haicai. E na alquimia resultante de todas estas leituras, duas grandes vertentes temáticas se sobressaem em seu livro de estréia: por um lado, uma poesia que tematiza o caos da modernidade, trazendo à tona os conflitos e a barbárie do mundo urbano, massificado pela tecnologia e pelo mercado; por outro, uma poesia que recusa a massificação e o narcisismo comuns ao homem moderno, buscando na filosofia do zen-budismo o caminho reto para a iluminação e a ascese. Nas próprias palavras de Rodrigo Garcia Lopes (1996, p. 139-140), é possível afirmarmos que a tensão dominante em sua poética resulta, em parte, do “diálogo entre o impulso apolínio à forma-objeto de Mallarmé e o impulso dionisíaco à imagem-música de Rimbaud”, nos quais se encontram dois dos principais procedimentos (não antagônicos, em sua opinião) da poética contemporânea.
  
Dioramas e Polaróides

Nas duas primeiras partes de Solarium – intituladas “Dioramas” e “Polaróides” – predomina uma poesia sintética e racionalmente elaborada que busca uma linguagem poética autônoma, pois regida por uma sintaxe própria que valoriza principalmente o espaço em branco da página – conforme a lição pioneira que Mallarmé nos deu com seu poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard.

Em vários poemas, como Phanums, Outro outono, Zen Breakfast Club, Morning Glory e Tempestade invisível, encontramos a eleição de uma sintaxe espacial resultante de diferentes direções, sentidos e configurações da composição tipográfica no branco da página; e associado a esse primeiro passo rumo à desintegração do verso e da sintaxe linear através de uma “subdivisão prismática das idéias”, também encontramos o recurso da desintegração e do recorte das palavras, que e. e. cummings utilizava de maneira a ampliar-lhes o potencial significativo – conforme se vê no poema Não minto.

O predomínio da visualidade que estamos apontando na utilização de diversos recursos gráficos e espaciais em substituição à linearidade discursiva também nos remete ao concretismo, presença marcante nestas duas primeiras partes que compõem Solarium e que encontra uma bela realização artística no poema snow here. Nele, as letras da palavra neve (snows) são dispostas na página de maneira a representar visualmente o movimento de queda dos flocos de neve. À medida que se aproximam do solo/pé da página, os flocos maiores, que são as palavras, vão se desintegrando e assumindo novas formas-flocos que geram novas palavras e significados, pois as letras, soltas no branco da página, dançam um balé, ora se separando, ora se juntando, de modo a produzir novas e conflitantes palavras e significações. Paradoxalmente, a neve (snows) que cai agora (now), cai aqui e em algum/nenhum lugar (nowhere).
  
Seguindo a trilha que privilegia a significação através da imagem em detrimento da lógica linear, também é recorrente na poesia de Rodrigo G. Lopes o recurso ao ideograma. Um bom exemplo é o poema peônias negras, formado por sete haicais que, seguindo a  tradição oriental, desenvolvem seus temas a partir de imagens da natureza. Imagens que, nesse caso, constituem metáforas da transitoriedade da vida e das coisas:

peônias negras
serenas
quase secas

(…)

o inverno
furta a flor
a cor da fruta

(…)

a tarde passa
arrasta e deixa
um rastro prata.
                 (peônias negras)

É importante ressaltar que a importância dada à imagem e à utilização dos recursos espaciais e gráficos não ocorre em detrimento da sonoridade, pois a preocupação com a melopéia encontra-se presente em todo o livro. Dois exemplos são os poemas Cet obscur objet du désir e Montanhas:

no café del prado
em barcelona
um bando de pombas
rebolam pelas ramblas
                (Cet obscur objet du désir)

não são nuvens
mas tão brancas

solitárias
(mas são tantas)
                  (Montanhas)

Ainda considerando a melopéia, são dignos de nota o leminskiano tudo tem sentido, onde o poeta joga com os diferentes sentidos da palavra “sentido”; e os poemas você me toca e somos, nos quais reencontramos o tema da ausência do Eu e a conseqüente solidão que permanece existindo, mesmo quando estamos lado a lado com alguém que desejamos ou no meio da multidão, conforme se vê no poema você me toca. Nele, parodiando Baudelaire, o poeta deseja uma passante que se perde na multidão, inacessível ao seu desejo. A diferença com o poema de Baudelaire fica por conta da mudança de tom. No poema dele, esse é marcado pelo tormento resultante da efemeridade das relações e pela insatisfação do desejo; no poema de Rodrigo, é marcado pela aceitação da efemeridade e do caos da vida moderna que, ao invés de atormentar o flaneur/vouyer, docemente o entretém nas horas vagas. O desejo que antes expressava a angústia da solidão e do vazio em meio ao caos e à multidão do mundo moderno torna-se um sentimento tão passageiro e supérfluo quanto a sedutora passante:

você me toca

você me toca
como quem troca
de roupa

você me provoca
e troça
dessa minha doce
distração

pra que tanta pressa
você
mulher na multidão?

Solarium

Na terceira parte, intitulada “Solarium”, a busca de uma nova linguagem se faz principalmente através da vertente dionisíaca. Diversamente do que vimos nas duas primeiras partes, o autor deixa de privilegiar o planejamento racional e objetivo, que caracteriza o concretismo e a poesia de Mallarmé, em favor dos impulsos e divagações, nem sempre conscientes, que caracterizam uma dicção muito próxima daquela que marcou a poesia de Rimbaud e da geração beatnik. Nela, predominam longos poemas de versos livres, em que o texto, aparentemente linear, se desenrola de modo fragmentário como em um fluxo de consciência, sem que haja um único fio condutor do discurso e, portanto, sem maior coesão e coerência.

A menção ao uso de drogas, como acontece no poema Phanopium, cujo título pode ser interpretado como a aglutinação de phanus e/ou phanopéia mais opium = ópio, constitui um outro índice de afinidade com a poesia de Rimbaud e dos Beatniks. Na busca de uma nova linguagem, Rodrigo Garcia Lopes procura despersonalizar a linguagem através da negação de qualquer centro discursivo, de modo que a representação ocorra através de uma sintaxe descontínua e fragmentada – o que resulta em um processo esquizofrênico de captação alegórica, sinestésica e ideogrâmica do que costumeiramente chamamos de mundo real (o que é claramente tematizado no metapoema Processo). Com tais procedimentos, perde-se a noção de tempo e espaço, os sentidos se misturam e se espera que a personalidade desapareça.

Em vários poemas desta parte do livro, também encontramos a tematização da cidade como caos e a negação do consumismo, da mecanização, da violência e da exploração presentes na sociedade burguesa. A América urbana e tecnológica, massificada e violenta, é comparada à cidade de “Roma em chamas” (América # 2). Nas megalópolis – representadas no poema New York – não há mais espaço para a reflexão, o sentimento e a utopia. Nelas, “a serpente das ruas arrasta seus ruídos, raps & neons / devora um real que acumula seus pós / sobre nós, camadas / de civilização sem fim e sem saída”.
 

Caos urbano digno do cenário de filmes como Blade Runner, a cidade de New York representa a demência e a desumanização de uma sociedade regida pela racionalidade pragmática, pela idéia do progresso material e técnico que leva o homem à escravidão dos relógios. Nesse mundo fragmentado e sem sentido, que também encontramos no poema “M”, os seres humanos são reduzidos ao estado de mercadoria, cujas relações são medidas pelo moderno desing do corpo e pela produtividade do prazer tecnológico.

Em busca de phanus

 A constância dos temas da dissolução da realidade e do Eu não deve ser vista apenas como uma crítica ao padrão de vida moderno que, regido pela incessante produção de novas mercadorias e valores, dissolve e pluraliza as identidades em um caleidoscópio de máscaras. Outro importante aspecto que envolve o motivo da despersonalização  também se encontra na afirmação da primeira das quatro grandes verdades da mundividência budista, que perpassa todo o conjunto da obra.

Segundo a filosofia do budismo tudo é sofrimento, pois “não há coisa alguma que não esteja submetida a incessantes mudanças. E quanto mais o homem se esfalfa, procurando alguma coisa permanente a qual se possa apegar neste mundo efêmero, tanto mais sofre” (Gira, 1992:53). A verdade está no karma, que leva o homem ao infinito ciclo de renascimentos e mortes neste plano cósmico marcado pela imperfeição e pelo sofrimento. E outra não parece ser a lição que encontramos em tantos poemas de Rodrigo Garcia Lopes. A transitoriedade que marca a existência dos seres também se estende ao Eu do indivíduo, pois para o budismo esse não possui unidade e permanência, o que nega a idéia de uma essência humana. Para Buda, a busca de um Eu permanente, ou seja, da realidade interior e do Absoluto, “não era diferente da procura da Fonte da Eterna Juventude. (…) E na mesma proporção em que um homem gasta suas energias em uma busca dessa espécie, se afasta da possibilidade real que teria de se libertar do samsãra” (Gira, 1994:55). Daí resulta a constância dos temas da busca infrutífera do Eu e da sua ausência, assim como da solidão e da estranheza entre os seres, mesmo quando eles estão lado a lado, numa cama ou na multidão.

(…) O que
carregamos são espelhos que refletem sempre
o diferente, enquanto nós, eu e você
mudamos juntos. Nuvens
                                               (Outras praias).

Na caminhada em busca da libertação, de acordo com as outras três nobres verdades, deve o homem abrir mão dos seus desejos e ouvir o que o “(…) outono / tem pra nos dizer: / tempo de se desfolhar / – cores, peles, percepções”, conforme lemos em Um poema para o deserto.

Na busca da iluminação, deve-se renunciar ao desejo de possuir um Eu permanente através de um comportamento reto, de uma disciplina mental em que a concentração constitui o caminho para a “eliminação de tudo aquilo que alimenta a ignorância do homem” (Gira, 1994:91). Daí a necessidade de se eliminar os “cinco agregados” que constituem aquilo que percebemos como um indivíduo: a matéria, as sensações, as percepções, os desejos e a consciência, em suma, todos os vínculos que ligam o homem ao mundo material. Somente assim, por esse processo de ascese e meditação, em que “(…) é preferível / eliminar este pensamento e deixá-lo livre” (Improvisos), é possível o encontro com a sabedoria, com a iluminação que caracteriza o nirvãna.

É devido ao diálogo com a filosofia do zen-budismo que encontramos constantemente, nas três partes da obra, a presença das imagens do outono e das folhas secas que o vento leva e que sempre se renovam, revelando em sua alegoria o eterno movimento cíclico da vida – conforme vemos em O eterno renovo do mesmo (poema concreto e metalingüístico pertencente a Dioramas). Desta forma também se explica a obsessão pelo deserto “com seus rios secos desde o começo / com sua sede sonora / com o sal que não pergunta / do sentido / deste paraíso perfeito” (Um poema para o deserto) em que não há “nenhum milagre a não ser / as coisas como são” (Sedona), onde “tudo é phanus” (O fotógrafo), ou seja: templo, iluminação – conforme o significado grego.

 Como vemos, o orientalismo e especialmente o zen-budismo atravessam o livro inteiro, convivendo com a racionalidade ocidental – tão bem representada por Mallarmé e pelo concretismo –, com a contracultura do movimento beatnik, e com a fragmentação alegórica de um mundo moderno (ou pós-moderno?) em ruínas. Em meio a este caos e à esquizofrenia geral, fica, no fim, a sensação de que o poeta luta entre ser um zen-fotógrafo – procurando congelar em suas iluminuras o tempo eternamente cíclico da existência – ou então ser um câmera-zen, almejando registrar o fluxo ininterrupto e fragmentário da existência.
_________________________
Referências Bibliográficas
GIRA, Dennis. Budismo: história e doutrina. São Paulo: Vozes, 1992.
LOPES, Rodrigo Garcia; MENDONÇA, Maurício Arruda. Iluminuras: poesia em transe. In: Rimbaud, Arthur.  Iluminuras: Gravuras Coloridas (Tradução de Rodrigo Garcia Lopes & Maurício Arruda Mendonça). São Paulo: Iluminuras, 1996.

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 Nota:  
Texto escrito originalmente para a saudosa revista eletrônica No Meio do Caminho, em Maio/2004.

Fonte:
MetAArte http://marcianolopes.blogspot.com.br/

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Eça de Queirós (Análise Crítica do Conto “No Moinho”)

(Análise por Miriã Lira, em 30/08/2012)

O conto “No Moinho” de Eça de Queirós traz como personagem principal, Maria da Piedade que “era considerada em toda a vila como uma senhora modelo” que dava orgulho à vila por “sua beleza delicada e tocante; era loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros”, enfim, era considerada “uma fada”. Essa descrição denota a opinião da sociedade sobre a personagem e todas as características reforçam o ideal romântico de mulher apresentado logo no início da narrativa.

De família modesta, mãe “desagradável” e pai bêbado, Maria da Piedade vê como única saída casar-se com João Coutinho, um homem doente, mas rico, com quem teve três filhos, duas meninas e um menino que por herança genética todos nasceram doentes. Assim, restava-lhe viver como enfermeira, cuidando das doenças do marido e dos filhos. Como consequência sua vida é sombria, pois está sempre “vestida de preto” e sua casa parece “lúgubre”.

Então, João Coutinho recebe uma carta de quem tinha orgulho, seu primo Adrião, romancista de Lisboa, anunciando sua chegada para a venda de uma propriedade rural. Imediatamente João manda providenciar estadia para o primo e isso deixa Maria da Piedade apavorada por ter em casa um estranho que quebraria a rotina da residência, porém o primo chega e deseja ficar na estalagem de Tio André para não perturbar a ordem da casa de Coutinho.

Adrião desejava vendar uma fazenda, mas não encontrava comprador, então, João Coutinho ofereceu Maria Piedade para ir com ele à fazenda, pois era boa conselheira e entendia dessas coisas. O primo, então, comentou: um anjo que entende de cifras. E, pela primeira vez, Maria Piedade se sentiu valorizada com o dizer de um homem, pois “corou” com as palavras de Adrião. É nesse momento que ela começa a enxergar o primo com os olhos da alma.

No dia seguinte, encaminharam-se à fazenda e o narrador descreve o dia como “fresco e claro”, características que traduzem tranquilidade e metaforiza o paraíso que antes era inexistente, por ser lúgubre e cheio de trevas.

Decidiram, posteriormente, ir ao moinho para que Adrião conhecesse. “Já viu o moinho? – perguntou-lhe ela. Tenho vontade de o ver, se mo quiser mostrar, prima.” Essa parte do diálogo mostra que os dois já se sentiam atraídos e pouco faltava para que essa atração os unisse. Nesse dia, Adrião vai para a estalagem e percebe que está “interessado por aquela criatura tão triste e doce”, diferente das demais mulheres que ele conhecera, já que era um homem desejado por todas.

Ao descrever a mulher desejada, Adrião demonstra o conhecimento que tem da alma feminina, adquirido com seu último livro, Madalena, pois a obra exigiu “um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e sutil” que o consagrou como mestre na análise da mulher. Após observar aquela que ele chamava de anjo, pôde concluir que ela era presa àquele lugar, à tradição e “bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade”. Nesse trecho é possível perceber o que Adrião já planejava acontecer nos próximos dias.

Como combinado, foram ao moinho e cansada da caminhada, Maria da Piedade senta-se numa pedra e Adrião começa a comparar o moinho com o paraíso e a imaginar como seria se eles para sempre ficassem ali. Então, ela fica corada e ri. Mas, de repente, ele a abraça e a beija profundo e interminavelmente, colocando-a contra seu peito, “branca, como morta”. A palavra morta nesse trecho é usada de maneira dicotômica, representando a morte e a vida, pois até esse momento Maria da Piedade não vive para si e não é feliz, pois vive apenas para o marido e os filhos. Assim, Adrião com um beijo a desperta, como se fosse a Bela Adormecida, para a vida. Após beijá-la, ele fica contente com sua “generosidade” como se ele soubesse as possíveis consequências do beijo na prima, que se evidenciam no trecho onde ele afirma que “de resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe…”.

Maria da Piedade ao sentir e visualizar outras possibilidades para sua existência, além de ser enfermeira do marido e dos filhos, reflete sobre a vida que tem e começa a achar os seus “fardos injustos”, então, compreendemos que quando não se conhece outros “sabores”, resta o contentamento com o que se tem. A partir dessa conclusão a personagem começa a pensar em apressar a morte do marido e a deixar os filhos sujos e sem comida.

Injustiçada, restava-lhe o amor que sentia por Adrião e “refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa”, portanto, ela passara a sonhar, a imaginar aquele homem forte, extraordinário, belo como sendo a razão de sua vida, pois antes de conhecê-lo estava morta ao lado de um homem fraco e doente que era João Coutinho. Inclusive, é possível fazer uma comparação semântica entre o nome de Adrião que reflete expansividade, força, enquanto o de João Coutinho com o diminutivo o faz pequeno e fraco.

Amando Adrião, Maria da Piedade queria tudo “que era ou vinha dele”, por isso “leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara e morrera dum abandono”, nesse momento ela se identifica com Madalena, pois amara e também fora abandonada por Adrião. E lendo, se acalmava e revidava a vida que vivia, pois pegava emprestado essa vivência quando chorava “as dores das heroínas de romance”, logo, “parecia sentir alívio às suas”.

Ela passou a sentir necessidade de ler romances constantemente, assim “criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado”. É nesse momento que a personagem começa a idealizar, coisa que não fazia antes, também começam aparecer revoltas, ocasionadas pelas interrupções à suas leituras românticas.

“O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se a um ser vago que era feito de tudo que a encantara nos heróis de novela”, Maria da Piedade queria ser amada, importante como mulher e possuída pelos homens aos moldes dos romances que lia, pois assim ela preencheria seu vazio com seus amantes que, em geral, eram fortes, o oposto da figura raquítica de seu marido.

“À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.” O momento noturno propiciava reflexão e solidão à Maria da Piedade que mesmo rodeada de amantes, terminava solitária e chorosa à noite. Então, no moinho, a figura de Santa se transforma em Vênus, deusa do amor responsável pelo prazer, pelo sexo e pela satisfação de maneira inconsequente, sendo na Odisseia aquela que também trai.

É preciso reconhecer que Maria da Piedade desejou ser outra antes da sua transformação em Vênus, pois tinha “momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença…”, portanto, não se muda uma pessoa, apenas lhe mostra o caminho, as escolhas e Adrião lhe mostrou um mundo novo, cheio de opções além das enfermidades, a fez livre e por se tornar livre, acabou escandalizando “toda a vila” que tinha princípios morais opostos aos adotados por Vênus.

A traição ocorrida em “No moinho” tem uma mera semelhança com o romance, do mesmo autor, “O Primo Basílio”. No conto, Maria da Piedade mesmo tendo um marido, não tem um companheiro, pois este vive enfermo, assim como Luísa no romance, que tem um marido ausente. Ambas sofrem por essa condição e com a chegada dos primos Adrião e Basílio, respectivamente, a situação é intensificada, culminando no adultério. As duas mulheres, antes vistas como anjos, caem em traição e viram “Vênus”, sendo malvistas pela sociedade a que pertencem.

Ao abordar esse tema (adultério), Eça de Queirós pretende criticar a influência dos romances nas traições matrimoniais, fato bastante evidenciado no conto, onde o narrador afirma que “o romantismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços”. Devido a essa crítica ao idealismo romântico o conto se encaixa na perspectiva naturalista, pois o instinto prevalece à razão, por meio do espaço corrompido moralmente pela traição, assim, provando que o meio é capaz de influenciar o homem.

Fonte
http://www.coladaweb.com/resumos/no-moinho-analise-do-conto-de-eca-de-queiros

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José Feldman (Francisco Pessoa: “Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso”)

Esta semana recebi o livro de um brilhante escritor brasileiro, que devorei (metaforicamente falando… o livro) até hoje. Talvez eu seja meio suspeito por tal afirmação, pela amizade que vimos desenvolvendo no decorrer do tempo, desde que tivemos contato há poucos anos, atualmente irmãos de glicose.

O poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935) dizia: “O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem.  Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”

Eu, como grande parte da população daqui do Paraná, sempre pelo pouco que estudamos e lemos, acreditamos que os grandes escritores além dos paranaenses, estivessem no eixo Rio-São Paulo, mas o Brasil é tão vasto, e nossa crença em nosso conhecimento ser enorme, é ledo engano. Vai muito além, e confesso que em minha ignorância de sulista, tomei conhecimento que o nordeste do Brasil possuía grandes escritores, no caso que especifico agora, os cearenses. Romancistas, contistas, cronistas, poetas, trovadores, uma lista de nomes que mostra que a literatura não é somente uma estrela, mas uma constelação enorme de pessoas que enobrecem as páginas da cultura brasileira. O fato é que simplesmente por falta de acesso, por falta de divulgação, enfim por diversos fatores que nos obstruem a ampliação de nossa consciência, ou em palavras mais tecnológicas, não são inseridos dados no HD de nosso cérebro.

Fernando Pessoa foi um grande poeta português que é do conhecimento de boa parte da população brasileira, mas sem querer desmerecer o nome deste poeta que sempre fez parte de minha biblioteca particular, também possuímos o nosso Pessoa. No caso, Francisco Pessoa, um cearense que no livro que lançou recentemente “Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso”, coloca-nos seja em trovas, poesias, décimas, cordéis, crônica e contos a sua arte, que divide conosco.

Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, nos diz: Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. / Põe quanto és no mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive.

Nosso Pessoa segue este poema, e se mostra grande no que faz, e faz com que o brilho do lago, seu reflexo se estenda muito além de si mesmo, de sua cidade (Fortaleza) e ilumine quem quiser ser iluminado.

Francisco, Chico para os amigos, nos diz : Meus sonhos por si navegam/ levando-me ao transcendente, / por mil estradas enxergam /bem mais do que enxerga a gente.

Nos mostra como na trova acima, que buscamos novos caminhos, mas tão enraizados que estamos em nossas visões, não vemos todos os caminhos que podemos seguir. Este é Chico, mostrando a sua arte de versejar, percorrendo o caminho entre o lírico/filosófico e o humorístico: Feliz da vida se logra/O Zeca exibe o caneco/que ele trocou pela sogra/  na feira do cacareco.

Sempre temos a visão do médico, aquela pessoa que de certo modo acredita ser Deus, arrogantes, contudo existem exceções. Chico é uma delas. Médico oftalmologista, uma pessoa simples, calma, alegre e sempre pronta a amizades, que com seu falar eloquente parece querer abraçar o mundo.

Segundo Alberto Caeiro (outro heterônimo de Fernando Pessoa): Sejamos simples e calmos, / Como os regatos e as árvores, / E Deus amar-nos-á fazendo de nós / Belos como as árvores e os regatos, / E dar-nos-á verdor na sua primavera, / E um rio aonde ir ter quando acabemos!…

Somos o que somos, mas nem sempre o demonstramos para as pessoas que nos rodeiam. Muitas vezes usamos máscaras para disfarçar o que nos vêm no íntimo. E a cada situação, uma nova máscara, um novo eu, que não mostra a sua verdadeira face. Em seu livro, Chico em uma décima nos diz em “O Palhaço”: A vida se nos faz meros palhaços…/Sorriso solto num choro prendido, / Querer que é dado nunca agradecido / Saltar ao vento sem pisar os passos. / Tragar o fumo dos prazeres baços / Embebedar-se tanto pra esquecer, / Sentir-se ser alguém, mesmo sem ser, / No picadeiro, o aplauso, a falsa glória, / Imagem tão real quanto ilusória / Pranto da morte rindo pra viver!

Mais uma do Fernando Pessoa: “Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”

Mas Chico vai além, ele vive e cria. Cria a vida e vive a criação, este é o ideal do verdadeiro artista. Faz que “Não há placa de chegada/na minha estrada da vida…/faço de cada parada/ novo ponto de partida.

Ele segue adiante, cria, sonha, deseja:
“Se eu fosse…
Um Malba Tahan, calcularia cm segundos as horas de alegria que a vida nos dá./ Um Einstein, criaria um antídoto para entibiar a bomba que certo dia flamejou o céu de Hiroshima./ Um Alexandre, o grande, teria conquistado o coração do incrédulo, fazendo-o crer no Grande Arquiteto./ Um Ataúlfo Alves, no meu arrependimento, diria como ele disse: aquilo sim, é que era mulher,/ Um Graham Bell, teria inventado um telefone que, pudesse eu, sentir o odor dos teus lábios, e que minhas frases ouvisse maviosas./ Um Braille, transportaria os dedos para uma zona do cérebro./ Um Barnard, só transplantaria coração de um homem bom para um homem de bem./ Um Bill Gates, tornaria virtual a violência que envolve os povos.
(…) Um Salomão, eu seria um sábio e teria trezentas mulheres?., acorda, Pessoinha!!!”

Um outro amigo, o poeta potiguar Ademar Macedo (1951 – 2013) : “De todos os sonhos meus,/ realizei o mais fecundo: /ser um Poeta de Deus / e mandar versos pra o mundo!

Isto é que faz nosso Pessoa, pinta a aquarela das palavras com sua magia.

Chico em “De Pessoa pra Pessoa”
Poesia é um sonho e, se sonhado,/ Sobre nuvens volutas, pictóricas,/ Rédeas soltas sem bridas, metafóricas,/ Faz do poeta um ser místico e alado./ Quem o lê, leia certo ou leia errado, / Sempre os versos encontram seu intento…/ Lamentar cada um com seu lamento, / E sorrir cada um com seu sorriso, / Coração de poeta é sem juízo/ E a razão de fingir é seu talento!


Aproveitando o se falar em Pessoas, Clevane Pessoa, de MG nos diz neste trecho de seu poema Pensares: Meus pensamentos são mares/ De muita profundidade, / Mas que rasantes nas areias / Lambem o calor que encintram, / Ajudam a esfriar as orlas / Com suas ondas agitadas… / Às vezes fazem redemoinhos / Em caldeirão perigoso … / Podem chegar a maremotos, / Em fenômenos encadeados, / Mas a maré esperada / Somente depende dos ciclos / Caprichosos das faces de dona lua…
Chico mostra através de suas trovas o caminho que escolhemos seguir. Cada qual faz o seu destino. “Toda colheita contém/ uma lição de moral:/ quem planta o bem colhe o bem/ quem planta o mal colhe o mal”
Outro grande amigo meu, já falecido há muitos anos, Artur da Távola (1936 – 2008) dizia: “A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os pouco capazes de os sentir e entender. E….nessas moradas estão tesouros da ternura humana. De que só os diferentes são CAPAZES.”

Sem mais delongas, a pessoa que está na pessoa de Pessoa, FRANCISCO JOSÉ PESSOA DE ANDRADE REIS.

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Giselda Laporta (Livro: Pássaro contra a Vidraça)

Igor era um jovem que tinha quase tudo exceto o amor. Seus pais eram ricos e davam a ele tudo do mais caro mais que não preenchia o vazio no seu coração, sua mãe muito vaidosa mal olhava  para cara do seu filho, o seu pai  só trabalha e mal ficava em casa..

    Em um certo dia quando seus pais estavam viajando desesperado ele discou um número qualquer de sua imaginação, em busca de alguém que se dispusesse a ouví-lo. Pois ele estava na busca por algo ou alguém que lhe preenchesse o enorme vazio de sua alma, ele havia escolhido o caminho para as  drogas que era um caminho prazeroso no começo mais não no final. Essa Foi uma trágica e perigosa escolha da qual Igor já não poderia se livrar sozinho. Estava praticamente á mercê das drogas, chegando ao fundo do poço, de onde talvez não pudesse mais sair sozinho. Depois da alegria vinha o desespero e tudo poderia ser como um passo para a morte.

   Encontrou na moça que atendeu o telefone chamada  Juliana um conforto como se ela fosse sua segunda mãe e amiga que lhe ouvia sem  fazer criticas alguma ela simplesmente lhe abria os olhos pra que ele não se perdesse de uma vez, com jeito talvez ela tenha conseguido apenas acalmar o pobre jovem que lhe pedirá ajuda, mas é certo de que daquele dia em diante Igor seria ou tentaria ser uma nova pessoa, certamente uma pessoa bem melhor. Bastava-lhe apenas acreditar em si mesmo. Afinal, ainda tinha uma vida toda pela frente e depois de ter conversado com Juliana ao telefone, sentia-se mais confiante. Juliana também sentiu-se muito mais leve e calma por ter lhe aconselhado a um recomeço de vida. Juliana ficou muito feliz pois ela tinha um filho da idade de Igor, que poderia estar passando pela mesma situação, sem uma mãe para lhe aconselhar. Ela se sente muito bem por ajudar um jovem que tanto precisa de alguém para lhe ajudar a viver de novo.

Fonte:
http://clickdoscolegas.blogspot.com.br/2012/11/livropassaro-contra-vidraca.html

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Vera Carvalho Assumpção (Livro: Paisagens Noturnas)

Primeira Aventura do Detetive Alyrio Cobra

Um rico executivo tem a irmã assassinada próximo à escola de periferia em que lecionava. Dois alunos confessaram o crime e o motivo: a professora os perseguia e impedia a atividade de venda de drogas nas salas de aula. Existiam assassinos confessos e um bom motivo. No entanto, algumas dúvidas pairam na mente do irmão da vítima que contrata o detetive Alyrio Cobra.

Num crime aparentemente solucionado, Alyrio Cobra se embrenha num mundo onde uma série de quadros que retratam paisagens escurecidas pela noite e assombradas pela lua guia seus passos. O que a princípio parecia um caso resolvido vai se mostrar um desafio para o detetive.

Vera Carvalho Assumpção é pioneira na publicação de livros virtuais e criadora do detetive Alyrio Cobra, sobre o qual publicou “Caldeirão de Raças” e “Paisagens Noturnas”. Recebeu vários prêmios por contos publicados, como o “Gralha Azul” e o “Guimarães Rosa”. Participou de várias antologias, como a “Contemporary Brazilian Literature”, da Universidade de Colorado, e teve contos publicados na revista “Semente”, da Universidade de Évora.

Fontes:
Sobre o livro = a autora
Sobre a autora =http://www.kbrdigital.com.br/vera-carvalho-assumpcao.html

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Oscar Nakasato (Nihonjin)

Por José Castello

Oscar Nakasato nasceu em Maringá-PR (1963), graduado em Letras, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada, doutor em Literatura Brasileira.

Atualmente reside em Apucarana-PR e é professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

Premiado no III Festival Universitário de Literatura Xerox – Livro Aberto em 1999, com o conto
Olhos de Peri e Alô; ganhador do Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, Categoria Especial Paraná em 2003, com o conto Menino na árvore; do Prêmio Benvirá de Literatura em 2011; do Prêmio Bunkyô de Literatura em Língua Portuguesa em 2011 e do Prêmio Jabuti na categoria romance em 2012 com Nihonjin.
Autor do livro Imagens da integração e da dualidade: personagens nipo-brasileiros na ficção.

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“Nihonjin”, o primeiro romance de Oscar Nakasato – vencedor do prêmio Jabuti de 2012 em sua categoria – é, antes de tudo, um livro delicado, escrito com clareza e prudência. Através da saga de Hideo Inabata, um japonês que emigrou de Kobe, Japão, para trabalhar nas fazendas de café do interior de São Paulo, o romance relata, com elegância e sem excessos, a história da imigração japonesa para o Brasil, iniciada no alvorecer do século 20.

É um romance sutil, narrado com firmeza e sem qual qualquer interesse pelas ousadias estéticas. Um romance escrito como se todo um século – o de Joyce, Kafka, Faulkner – não importasse. Ao contrário: Nakasato (como ele mesmo declarou em entrevistas recentes) deseja, antes de tudo, contar uma história, resgatar um tempo que, embora recente, parece perdido. Neto, ele mesmo, de imigrantes japoneses, sua figura se mistura com a do narrador sem nome, neto do protagonista Hideo, que, com frieza e objetividade, recupera a aventura do avô e de seus descendentes.

Um romance simples que, fiel a um passado anterior à revolução modernista, no qual se ambienta, guarda a aparência de um álbum de recordações íntimas. Álbum composto não de fotografias, mas de relatos que têm como único objetivo registrar impressões e capturar nacos da memória. Mesmo nos momentos mais dramáticos, como a morte de Kimie, primeira e frágil mulher de Hideo, que faleceu com a esperança de ver os cafezais paulistas cobertos de neve, um prudente Nakasato não se permite o extravasar das emoções. A contensão que caracteriza sua escrita se expressa neste breve trecho: “A morte chegou lentamente. Há quanto tempo morria? Tranqüila, congelada pela neve, congelada pelo sol”.

O romance expõe, de modo igualmente sereno, a luta entre duas visões de mundo: entre aqueles que, mesmo vivendo do outro lado do mundo, se mantêm fiéis ao culto do Japão Imperial, e os que, cientes de que o tempo não volta atrás, preferem se agarrar às coisas do presente. Movido, mais uma vez, pela ponderação, e fiel a sua estética realista, Oscar Nakasato não toma partido, nem usa a literatura para desfraldar bandeiras. Como um retratista calejado, limita-se a registrar imagens e a reproduzir relatos, sem desejo algum de neles interferir.

A opção de Nakasato pelo estilo seco e pelo equilíbrio evoca, de certa forma, a mística a respeito do temperamento japonês, que seria sempre criterioso (“zen”), sem se deixar abalar pelos extremos, e que se caracteriza por um comportamento comedido e protocolar. O protocolo realista domina, de ponta a ponta, Nihonjin, como se, para o autor, as palavras fossem apenas um instrumento para a captura do real. Como se, indiferente às turbulências do modernismo, ele escrevesse ainda agarrado às calças do avô.

Não se pode negar que há uma beleza nessa atitude. Em nossos tempos velozes, quando vivemos hipnotizados pelo futuro, ousar um vigoroso passo atrás não deixa de ser uma prova, senão de coragem, pelo menos de independência intelectual. A certeza de si rege o romance de Oscar Nakasato, um escritor discreto, que faz da timidez e da cautela o seu estilo.

Fontes:
Biografia: SESC Maringá
artigo de José Castello: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/11/30/resenha-de-nihonjin-de-oscar-nakasato-477057.asp. 30/11/2012

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Marcelo Spalding (A literatura infanto-juvenil que vem de longe)

O livro sobre o qual escreverei hoje é um dos mais delicados, bonitos e profundos textos de literatura infanto-juvenil que já conheci. Por seus méritos literários e humanísticos (que talvez sejam os mais importantes), deveria figurar na lista de compra do MEC, entre os finalistas dos grandes prêmios, nas vitrines das livrarias. Não vai. Possivelmente (e isso é triste como o final da história) terá poucos e encantados leitores, alguns elogios como esse na internet, mas não conseguirá emergir da enxurrada de textos juvenis publicados.

Comecemos, então, por aí. A menina que veio de longe (2012, 82 p.) é o livro de estreia da contadora de histórias Andréa Ilha, professora da rede municipal de Caxias do Sul e moradora de Farroupilha, RS. Num tempo em que livros e mais livros são escritos para vender e distrair, distrair e vender, com histórias repletas de aventura e divertimento, A menina que veio de longe é um livro que faz pensar. Não que as palavras sejam difíceis; os temas é que o são. Difíceis — e complexos — como a vida.

Mas não é por isso que A menina que veio de longe não chegará aos tantos leitores que o amariam. E nem pela ausência de ilustrações internas, num mercado sedento por livros para serem vistos, não para serem lidos. O livro não vai ter o destaque merecido porque Andréa é uma escritora iniciante aqui no canto do Brasil; porque Andréa não faz salamaleques para a imprensa e não assina coluna em jornal; porque Andréa é professora municipal como tantas e trabalha muito; não é modelo, atriz, filha de famoso ou ex-BBB. E, talvez o mais decisivo, por tudo isso o livro foi lançado pela própria autora e não traz em sua capa um selo capaz de negociar com as livrarias, com o governo ou com os prêmios literários.

Sim, leitores, infelizmente em muito prêmios escolhe-se o livro sem ir além das capas (o festejado Portugal Telecom posso dizer que é um deles). E o governo só faz as generosas compras para o MEC das editoras por ele cadastradas (que além de não serem muitas, concentram-se sobremaneira no eixo Rio-SP). Mas aquele que abrir a capa e buscar o texto de Andréa Ilha terá uma das maiores e melhores surpresas que se pode ter no mundo literário: descobrir uma grande história.

A história começa fiel ao título, com a narradora saindo da cidade em que nasceu e vindo para Porto Alegre, cidade da família da mãe. A menina, sabe-se já pela capa, e é dito no começo, é mulata. Mas eis um dos primeiros méritos do livro: isso é uma informação, não o tema da história. A menina é mulata como poderia ser loira ou ruiva.

A mudança de cidade, aos poucos, se revela apenas a ponta do iceberg, consequência de problemas maiores, não causa. E a trama vai se tornando bem mais complexa. Logo no começo, depois de chegarem em Porto Alegre, os pais da menina Dulce partem para tentar a vida no Canadá, deixando a menina com muita saudade e sob cuidados da avó. O incrível é que, aos poucos, percebemos que esses pais não são exatamente os pais dos livros infanto-juvenis, sempre tão íntegros e amorosos e perfeitos. Não, os pais aqui somem, não têm tempo, têm medo, fraquezas. Os pais não são heróis, tampouco vilões. São personagens complexos como os pais de fora dos livros. Vejamos esse trecho em que um amigo de Dulce fala sobre sua família:

“— Sabe o que é, Dulce? — o Vítor saiu falando, com o rosto cada vez mais vermelho, e a voz um pouco trêmula — É que eu fui abandonado pela minha mãe. Quando eu e os meus irmãos, quando a gente era bem pequeno. A mãe conheceu um outro cara e foi embora com ele. Eu até me lembro de ter visto ela saindo com ele, indo embora no carro dele. Eu chorei muito, mas sempre fiquei esperando que ela ia voltar de novo. Mas ela não voltou. E ficamos só com o pai. Mas o pai trabalha tanto, tanto, que quase a gente não vê ele. É muito chato, e eu fico triste com isso, tem dias que eu chego até a ter saudade dele.”

É esse realismo sincero e sem melodramas que chama a atenção no livro. Não é o primeiro a fazer isso, claro, mas o faz com leveza, profundidade. A narradora menina é obrigada a lidar com sentimentos e problemas que passam longe de sua idade, mas perto demais de sua casa. E de tantas casas.

Engana-se, porém, quem espera uma leitura pesada. Andréa cria na história um espaço lúdico, um mato fantástico e um ser em forma de cone que convivem sem dificuldades com a narrativa realista, dando um tom de suspense e ajudando sobremaneira nas cenas mais densas. Nesse aspecto lembra filmes como O Labirinto do Fauno ou O Jardim Secreto.

Embora pareça paradoxal, o tom que predomina é de pureza. Tal pureza da narrativa é bem representada, por exemplo, na fala final de Vítor, o melhor amigo de Dulce, uma fala curta que talvez sintetize o grande sonho que todos nós tivemos um dia, e também nossos pais, avós, bisavós, de geração para geração:

“- Nunca na minha vida eu vou precisar de outra pessoa. Eu tenho tu! Quando a gente fizer quatorze anos, eu vou te pedir em namoro pra vó. Ela vai deixar, e a gente vai namorar, e, depois, com dezoito ou dezenove, a gente vai casar. Mas a gente só vai ter filhos bem mais tarde, que é pra gente estudar, se curtir um montão, só os dois, e juntar dinheiro pra ter uma vida bem legal com as crianças. E, daí, a gente nunca, mas nunca mesmo, vai deixar os filhinhos da gente! A gente vai ficar junto com eles, sempre junto, até eles crescerem felizes de serem amados pelos pais bons que a gente vai ser!”

As coisas, nós sabemos, às vezes não saem como o planejado. Mas o final do livro, para um leitor jovem, é reconfortante. E para um adulto, aparentemente previsível. Só aparentemente, porque esse não é o verdadeiro final, já é o epílogo, a corda de um final trágico, porém necessário. Realista.

Nem é preciso dizer que eu quero muito estar errado, quero muito que o livro seja descoberto e distribuído para as tantas e tantas crianças que não têm a família perfeita dos comerciais de TV. É possível que da mesma pena de Andréa saiam outros e outros livros e a obra consiga o merecido destaque nessa geleia geral que virou nossa literatura juvenil. Ou, quem sabe, que essa resenha caia nas mãos de um editor atento e ele pelo menos abra o livro, deixando-se cativar pela simplicidade do texto e emocionar-se pela profundidade da trama.

O problema maior é que A menina que veio de longe é, sem duvidas, apenas um símbolo da quantidade de belas obras publicadas em todo o Brasil que nós sequer conhecemos, já que não são lucrativas para as livrarias (sempre tão sedentas por blockbusters estrangeiros). O que pode estar acontecendo é que temos muitos bons escritores, mas talvez estejam rareando os bons leitores.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=707

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Luiz Eduardo Caminha (Livro: História do Stammtisch)

“Stammtisch, reinventando tradições” conta toda a história do resgate da tradição dos Stammtisch em Blumenau e no Estado de Santa Catarina, a partir do ano 2000, por ocasião dos 150 anos de fundação da cidade, além de relatar a história de invenção da festa conhecida como Encontro de Stammtisch (Strassenfest mit Stammtischtreffen) – sem precedentes no mundo – ou, simplesmente, Stammtisch, como ficou popularmente conhecida.

O autor, que é médico, escritor e comunicador, tem uma estreita ligação com os Stammtische já que foi através de seu Programa Stammtisch, na TV Galega de Blumenau, que a história da re-invenção desta secular tradição germânica começou na cidade. Hoje os Encontros de Stammtisch tomaram tal vulto que já ocorrem em mais de 60 municípios catarinenses.

Na grande Florianópolis a festa foi trazida pelo Promotor Cultural Mário Milton Müller, Presidente da Associação Cultural Deutsche Welt, e já se encontra presente em 10 municípios da região. Em São Pedro de Alcântara, Mário Müller contou com o incansável apoio de Diego Silva um dos responsáveis pela implementação da festa neste município.

Segundo o autor “fui convidado, durante um Stammtisch da Associação Deutsche Welt, em 2010, na Ponta de Baixo, em São José, pelos amigos Mário e Diego, com a anuência do Prefeito Municipal, Sr. Ernei Stähelin, para fazer o lançamento do livro, em São Pedro. Entretanto, face a problemas de saúde, em que acabei submetido a um transplante de fígado, tive que transferir toda a agenda de lançamentos e estou retomando-a a partir de agora. É uma grande honra comparecer à primeira cidade colonizada pelos alemães em Santa Catarina, uma das primeiras do Brasil, até porque foram eles que trouxeram, em sua bagagem, toda a rica gama de tradições germânicas da qual faz parte o Stammtisch”, afirma Caminha.

Segundo o autor e pesquisador, “a festa não tem precedentes no mundo, é uma invenção nossa, de Blumenau, e nasceu de uma simples idéia do jornalista Horácio Braun de um dia reunir os grupos existentes anonimamente na cidade para um encontro etílico-gastronômico nas dependências da Proeb (atual Vila Germânica). A festa nunca aconteceu até que, por ocasião dos 150 anos de Blumenau, a ideia ressurgiu e decidimos apoiá-la, através do Programa Stammtisch. O Encontro aconteceu na Rua XV em 26 de Agosto de 2.000 com 17 grupos durante a Strassenfest do Sesquicentenário da cidade”.

Fruto de uma pesquisa de 10 anos em 1068 documentos, dos quais foram referenciados 275, o livro está estruturado em três partes:

1 – A história do Stammtisch e dos Encontros de Stammtisch contada em relato jornalístico, com o testemunho dos personagens que vivenciaram a tradição no passado ou nesta sua nova re-aparição em Blumenau e no Estado de Santa Catarina;

2- A história das tradições desde que surgiram no mundo (800 anos a.C.), passando pelo surgimento do Stammtisch na Alemanha – criado pelo Rei Friedrich Wilhelm I, o Rei-Soldado, (Soldatenkönig), Rei da Prússia (1713 – 1740), mais de um século antes de se constituir o Império Alemão – até chegar aos Encontros de Stammtisch, em Blumenau,

3- As entrevistas de inúmeros blumenauenses e alguns personagens de outras cidades onde a tradição foi revivida, registrando um memorial da história oral desta tradição.

Além disto o livro é ilustrado por um encarte de fotos antigas e recentes extraídas do acervo do próprio autor.

Sobre o autor:

Luiz Eduardo Caminha é médico, escritor e exerce atividades  de jornalismo.Nasceu em Florianópolis, SC. Foi um dos responsáveis pelo resgate da tradição germânica do “Stammtisch”, de seus Encontros e dos Encontros de Amigos e Patotas, em Blumenau e em Santa Catarina.

Membro da Organização dos Encontros de Stammtisch, em Blumenau e em Santa Catarina. Escreve poemas e crônicas desde a adolescência, mas só resolveu publicar seu primeiro livro, “Reflexos” (poesias), em 1997; Depois vieram um “e-book” Poemas, em 2007, “Saboreando Crônicas” em 2008 e “ “Stammtisch, Reinventando Tradições”, em 2010. A par disto, publicou inúmeros artigos e crônicas na internet e na imprensa. Já teve alguns de seus escritos destacados e premiados em Concursos de Poesias e Crônicas Nacionais. Foi colunista de opinião e política da Folha de Blumenau. É mentor e editor do site “Stammtisch, Confrarias e Patotas” http://www.stmt.com.br , que permaneceu durante 10 anos em 1º. Lugar na referência do termo Stammtisch no mundo, nos principais sites de busca da internet. Hoje, perdeu esta posição para a Wikipédia e tem o site colocado nos 2º. e 3º lugares dos principais sites de busca.

É acadêmico – Cadeira nº. 18 da Academia Catarinenses de Letras e Artes, membro fundador do Capítulo Santa Catarina da SOBRAMES – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores; membro da Sociedade de Escritores de Blumenau; de “Os Confrades da Poesia” e do Portal CEN – “Cá Estamos Nós”e da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores. Ocupa a Cadeira nº. 11, Academicus Praeclarus, do Clube dos Escritores de Piracicaba. É membro titular do Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina.

Foi Coordenador do III Encontro Luso-Brasileiro de Escritores do Portal CEN em 2008.

Contatos com o autor:

(48) 3369.3115
(48) 9111.5550 (TIM)
e-mail: luizecaminha@gmail.com

Fonte:
Luiz Eduardo Caminha

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Heloisa Zanconato e José Fabiano (A Aurora e o Poente – Versos Líricos)

artigo por Sérgio Ferreira da Silva

Lançado em 2001, o livro “A Aurora e o Poente – Versos Líricos” traz sonetos e trovas dos poetas mineiros Heloísa Zanconato e José Fabiano, em parceria anterior àquela da postagem anterior, com José Ouverney.

O meu destaque, desta vez, vai para dois sonetos, um de cada autor, que, de certa forma, “dessacralizam”, primeiramente, a figura do fazer poético, negando a aura da inspiração e da sensibilidade pura como forças motrizes do poeta. Num segundo momento, o foco está nos próprios sentimentos “motivadores”, digamos assim, do poeta.

Novamente, chamo a atenção do leitor para a construção de ambos os sonetos. Ambos têm detalhes que os fazem figurar, pelo menos em minha estante, como poemas especiais, pela diferenciação dos temas  e, principalmente, da retórica envolvida. Vamos a eles…

SONETO

Quando a tristeza me arrebata o pranto
ou a alegria, o coração, me assalta,
busco na rima o aprimorado encanto
que, às vezes, sobra em tudo o que me falta…

Não é preciso a proteção de um Santo,
nem mesmo a voz da inspiração mais alta;
tampouco, as notas magistraiss de um canto
ou o esplendor das luzes da ribalta…

Basta uma folha em branco… e um pena
e a alma transborda, de venturas, plena,
do primo verso ao último terceto…

E após o parto… e alcançada a meta,
sente-se um Semideus, este poeta
que deu a luz a um clássico SONETO!

(Heloísa Zanconato)

A elaboração de qualquer texto, ou de um poema em especial, pressupõe uma relação existente de emissão e recepção de uma mensagem, de utilização e compreensão de signos.

Não há poeta que não idealize seu leitor, seja ele um outro poeta, ou um interessado, cultor da poesia. De outra parte, tão ou mais idealizado ainda é o poeta, na concepção do leitor.

O leitor sempre espera que o poeta escancare sua alma, desnude-se perante a plateia muda e dispersa. Se amou, ou se perdeu seu amor; se venceu, ou foi derrotado. Tudo deve estar no papel.

Porém, um poeta que foi muitos outros, Fernando Pessoa, quebrou estas expectativas recíprocas, ao escrever que “O poeta é um fingidor”.

Mas este “fingidor” não é sinônimo de mentiroso ou falso. A palavra fingidor nasce no latim (fingo, fictum, fingere), no sentido de “moldar o barro”. Então, o poeta não mente, molda. Toma uma massa disforme, o barro das sensações e o transforma em um conceito, em uma sensação primeiro pensada, trabalhada, moldada, entendida e, talvez, depois, sentida. 

É exatamente isto que Heloísa dispõe em seu SONETO: no primeiro quarteto, ela relaciona alguns prováveis elementos motivadores de sua poesia, sua massa disforme (tristeza, pranto, alegria, rima); no segundo, elimina todas as possibilidades de influências mágicas, espirituais, artísticas e estéticas, para dizer que, o que a impulsiona é a razão.

No primeiro terceto, reduz toda a elaboração do poema às questões materiais: um papel em branco, algo para grafá-lo e, num verdadeiro impulso criativo, ela escreve “do primo verso ao último terceto”.

No segundo terceto, então, desincumbida do árduo trabalho criativo, o poema, aí sim, é sacralizado (semideus) e ganha vida (parto). Espírito e matéria são o próprio soneto.

Três observações finais sobre este soneto: 1) seu nome é SONETO, ou seja o nome da própria forma lírica adotada; 2) É um poema metalinguístico, ou seja, em si mesmo discute a própria criação literária e a produção do poema; e 3) o emprego magistral da circularidade, vez que SONETO é a primeira e a última palavra utilizada no soneto! Outro detalhe da circularidade é o estabelecimento de um ambiente fechado, que ao mesmo tempo é restrito e infinito. Marca de gênio e de talento.

Não é por menos que Heloísa é considerada, e com justiça, uma das grandes sonetistas da atualidade. Essa foi a Aurora.

Nosso amigo Poente não deixa por menos…

O LIXO

Pela manhã de certos dias, passa
o caminhão de lixo em minha porta
e para longe, rápido, transporta
aquilo que, imprestável, me embaraça.

Vai carregando como coisa morta
de serventia para mim escassa,
mimos onde antes via brilho e graça,
cujo destino já não mais importa.

As ilusões e sonhos juvenis
de que seria célebre e feliz
conservei longos anos, por capricho.

Ante a verdade da fatal velhice,
hoje os desprezo, como se pedisse
que a vida me liberte deste lixo…

(José Fabiano)

José Fabiano constrói seu soneto negando, aparentemente, a própria condição de texto poético.

Os dois quartetos iniciais remetem ao gênero crônica. A relação autor/leitor dá-se pela proximidade fixada entre as pessoas reais envolvidas (poeta e leitor) e não nos seus papéis no estabelecimento do vínculo da linguagem (emissor e receptor). Explico: autor e leitor são pessoas que moram em lugares onde, em dias pré-determinados da semana passa um caminhão de lixo, que leva o lixo, ou seja, tudo aquilo que não tem mais serventia, ou estragou: tudo o que seletivamente descartamos de nossas vidas, materialmente falando (técnica invariavelmente utilizada pelos cronistas, que costumam chamar a atenção do leitor para aspectos comuns do cotidiano de ambos).

Primeiro ponto em comum entre os dois autores, Aurora e Poente: o estabelecimento de parâmetros materiais de comparação para falar de sentimentos. Claro que o ato de moldar o sentimento a partir da reunião de elementos e organização da massa disforme, em Fabiano, passa, primeiro, pelo estabelecimento desse elo identitário com o leitor.

Disposto o conceito e pressupondo que ele corresponda à verdade literária que o autor estabelece, nos tercetos finais José Fabiano arremata brilhantemente seu soneto, ao dizer que as ilusões e sonhos (imateriais) que não conseguiu concretizar (tornar matéria) são como o lixo ao qual ele fez menção no início e dele merecem apenas o desprezo, embora deles não esteja liberto.

Ora, a visão romântica do poeta que vive de sonho, é quebrada pelo próprio poeta. Não há esperança. O tempo passou e aquilo que era meta, ou anseio, perdeu-se no tempo. Mas continuam preservados “por capricho”.

Dessa forma, em Fabiano, a dessacralização é a de si mesmo, enquanto autor, enquanto poeta. Mas sua negação, antes de produzir este efeito (com a eliminação do sonho e da ilusão), é, mais, uma afirmação da mantença da esperança, porque feita poeticamente, em forma de soneto.

A metalinguagem, em “O lixo” é subentendida. Permeia todo o soneto, mesmo os quartetos, pela adjetivação positiva emprestada ao lixo, propriamente dito (mimos, brilho, graça).

Por fim, também neste segundo soneto a circularidade fica estabelecida porque a palavra “lixo” é repetida no início e no encerramento do soneto. Coisas de quem sabe o que faz!

Não abordei propositadamente as questões mais comesinhas da arte poética, como rima, ritmo, emprego de pausas e do campo semântico, visto que procurei chamar a atenção para aspectos que, geralmente são mais “sentidos” do que vistos.

Faço ressalvas às minhas próprias análises: além de serem pontuais, no emprego da técnica do recorte, são, também, leituras como quaisquer outras. Li, gostei e comentei da melhor maneira que pude, para torná-las mais palatáveis, bem entendido, aqui, que o problema está na leitura, que é  sempre parcial, sectária, por depender, sempre, dos paralelos estabelecidos pelo “postador”. Os poemas, estes sim, devem ser lidos/relidos e você, leitor idealizado/idealizador, deve trazer novas conclusões à luz.

Além disto, os poemas estão publicados e existem independentemente da leitura que deles se faça, seja ela profunda, rasa, ou em nível acadêmico. Importam mais como arte e expressão literária. Permanecerão.

Sobre os dois poetas abordados, José Fabiano, um mestre dos encontros e Heloísa, tenho a dizer, apenas, que desde que comecei seriamente a pensar a poesia tenho por eles um carinho muito especial. Heloísa Zanconato, em meus primeiros anos na trova, antecipou algumas conquistas futuras, e indicou caminhos preciosos. Só tenho a agradecer e render-lhe este singelo mimo, em forma de postagem.

Fonte:
Trovasecia

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Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 7

Dentre toda essa bela existência só uma coisa o contrariava sem que todavia deixasse o Coruja transparecer o menor desgosto contra isso: — Era a teimosa perseguição que lhe fazia D. Geminiana. A rezingueira senhora achava sempre um mau gesto ou uma palavra dura para lhe antepor aos atos mais singelos. Manifestou-se-lhe logo a impertinência a propósito da flauta do rapaz. André, coitado, não desmentia o mestre que lhe dera o acaso, e D. Geminiana, uma noite em que conversava com o noivo, depois de ouvir por algum tempo o fiel discípulo do Caixa-d’óculos arrancar do criminoso instrumento certas melodias bastante equivocas, foi ter com ele, sacou-lhe vivamente das mãos o corpo de delito e, atirando com este para cima de um canapé, tornou ao lado de Hipólito, sem dar uma palavra ao delinqüente, rico, porém, de gestos e caretas muito expressivas.

O homem das barbas ruivas e cabelo preto observou tudo isso em silêncio, contentando-se apenas com sacudir a cabeça e apertar os beiços em sinal de aprovação.

Coruja, quando os noivos mergulharam de novo no seu colóquio, retomou sorrateiramente a flauta e fugiu com ela para um caramanchão de maracujás, que havia a alguns passos da casa. Supunha que daí não seria ouvido pela ríspida senhora; mas, no dia seguinte, procurando o instrumento não o encontrou em parte alguma.

— Minha flauta?… Perguntou ele a D. Geminiana.

— Está guardada! Disse essa secamente. Só lha restituirei quando o senhor voltar para o colégio.

Coruja resignou-se, sem um gesto de contrariedade e não falou a ninguém sobre esse incidente, nem mesmo ao amigo. Com efeito, só tornou a ver sua querida flauta ao terminar das férias, quando se dispunham, ele e Teobaldo, a voltar para o internato do Dr. Mosquito.

O barão foi levá-los em pessoa ao colégio, e Santa, chorando pelo filho, despedira-se do Coruja, dizendo-lhe:

— Continue a ser amigo de Teobaldo e nós faremos com que você passe aqui as férias do ano que vem.

CAPÍTULO IX

Com o correr do seguinte ano, a dedicação do Coruja pelo amigo parecia crescer de instante para instante. Uma leoa não defenderia os seus cachorros com mais amor e mais zelos.

Já não se contentava André com resguardá-lo das ameaças e malquerenças dos colegas, como exigia também de todos que lhe rendessem a mesma estima e o mesmo respeito, que lhe tributava ele.

Teobaldo, vadio como era por natureza, quase nunca estudava as lições, e quando não lhe valiam os recursos do seu “proverbial talento” ou da sua astúcia, tinha de copiá-las quatro, cinco ou seis vezes, conforme fosse o castigo. Então se revoltava e queria protestar contra a sentença dos mestres, mas o Coruja puxava-lhe  a ponta do casaco e dizia-lhe baixinho:

— Não te importes, não te importes, que eu me encarrego de tudo…

E, com efeito, mal chegava a hora do recreio, enterrava-se André no quarto de estudo e, imitando a letra do amigo, aprontava as cópias; feliz com aquele trabalho, como se o descanso do outro fosse o seu melhor prazer. Muita vez perdeu com isso grande parte da noite, e no dia seguinte ainda encontrava tempo para tirar os significados da lição do amigo, para resolver-lhe os problemas de álgebra e fazer-lhe os temas de latim.

Uma vez, em que o Coruja se apresentou nas aulas sem haver preparado as próprias lições, o professor exclamou com surpresa.

— Oh! Pois o senhor, seu André, pois o senhor não traz a sua lição sabida!… Então que diabo fez durante o tempo de estudo o senhor que não larga os livros?…

Entretanto, o outro Teobaldo, estava perfeitamente preparado. Esta dedicação fanática de Coruja pelo amigo crescia com o desenvolvimento de ambos; mas em Teobaldo a graça, o espírito e a sagacidade eram o que mais florescia; enquanto que no outro eram os músculos, o bom senso, a força de vontade e o férreo e inquebrantável amor pelo trabalho.

Agora, o pequeno do padre já emitia opinião sobre várias coisas, já conversava; tudo isso, porém, era só com o seu amigo íntimo, com o seu Teobaldo. Parecia até que, à proporção que abria o coração para este, mais o fechava para os estranhos.

Quando terminou o ano, o filho do barão havia crescido meio palmo e o Coruja engrossado outro tanto; aquele se fizera ainda mais esbelto, mais distinto e mais formoso; este ainda mais pesado, mais insociável e mais feio. Afinal, assim tão completados, formavam entre os seus companheiros uma força irresistível. Teobaldo era a palavra cintilante e ferina, era a temeridade e o arrojo; o outro era o braço em ação, a força e o peso do músculo. Um provocava e o outro resistia.

Um era o florete aristocrático, fino e aguçado, que só tem a serventia de palitar os dentes do orgulho; o outro era o malho grosseiro e sólido, que tanto serve para esmagar, corno serve para construir.

Partiram de novo para a fazenda,, deixando atrás de si a solene gratidão do colégio pelo catálogo da biblioteca, que “eles” concluíram e ofereceram ao estabelecimento; e deixando também por parte de seus condiscípulos um rastro de ódios, ódios que serviram aliás durante o ano para melhor os aproximar e unir, acabando por constituí-los em uma espécie de ser único, do qual um era a fantasia e outro o senso prático.

Foi então que lhes chegou a notícia da morte do padre Estêvão; sucumbira inesperadamente a um aneurisma, do qual nunca desconfiou sequer, e, no testamento, legara o pouco que tinha a uma comadre e àquela criada de mau gênio que o servira.
Quanto ao Coruja, nem uma referência, nem um conselho ao menos; o que fazia crer fosse escrito o testamento antes da adoção do pequeno e nunca mais reformado.

Esta circunstância da morte do padre levou André a pensar em si, a pensar na sua vida e no seu destino. Interrogou o passado e o futuro e, pela primeira vez, encarou de frente a posição que ocupava ali, naquela fazenda do Barão do Palmar, esse protetor tão do acaso como o primeiro que tivera ele. Então notou que na sua curta e triste existência passara de uma para outra mão, que nem um fardo inútil e sem dono.

— Que será de mim? Perguntava o infeliz a si mesmo nas suas longas horas de concentração. Mas o amigo, com a prematuridade intuitiva do seu espírito, saltava-lhe em frente, antecipando razões, como se adivinhara todos os pensamentos de André.

— Em que tanto pensas tu, meu urso? Perguntava-lhe ele, quando se achavam a sós, no bosque; já ontem à noite não quiseste aparecer na sala e cada vez mais te escondes de todos, nem como se fosse um criminoso.

— E quem sabe lá?

— Quê? Se és um criminoso?…

— Sim. A necessidade, quando chega a um certo ponto de impertinência, que mais é senão um crime? Que direito tenho eu de incomodar os outros?

— Exageras.

— Não. A caridade é muito fácil de ser exercida e chega a ser até consoladora e divertida, mas só enquanto não se converte em maçada.

— Não te compreendo…

— Pois eu me farei compreender. Vou contar-te uma parábola, que o defunto padre Estêvão repetia constantemente.

— Venha a história.

— Senta-te aí nesse tronco de árvore e escuta:

Era um dia um sacerdote, que pregava a caridade.

“— A caridade, dizia ele, deve ser exercida sempre e apesar de tudo”. Vai um caboclo, que o ouvira atentamente, perguntou-lhe depois do sermão:

“— Ó sôr padre, é caridade enterrar os mortos”?

“— Decerto, respondeu o pregador; é uma obra de misericórdia”.

E o caboclo saiu, matou uma raposa e foi esperar o sacerdote na estrada; quando sentiu que ele se aproximava, pôs a raposa no meio do caminho e escondeu-se no mato. O padre, ao topar com ela e observando que estava morta, ajoelhou-se, e cavou no chão, enterrou-a e, depois de dizer uma sentença religiosa, seguiu o seu caminho. O caboclo, assim que o viu pelas costas, correu à sepultura, sacou a raposa e, ganhando por um atalho, foi mais adiante e jogou com ela ao meio da estrada, antes que o pregador tivesse tempo de chegar; este, porém, não tardou muito e, ao ver de novo uma raposa no caminho, fez o que fizera da primeira vez, enterrou-a, mas sem se ajoelhar, nem repetir a sua máxima latina. O caboclo deixou-o seguir, tomou de novo da raposa e foi depô-la mais para diante na estrada; o padre ao topá-la, enterrou-a já de mau humor e prosseguiu receoso de encontrar outras raposas mortas. Todavia, o caboclo não estava ainda satisfeito e repetiu a brincadeira; mas, desta vez, o padre perdeu de todo a paciência e, tomando a raposa ‘pelo rabo, lançou-a ao mato com estas palavras: “Leve o diabo tanta raposa morta!” Então o caboclo lhe apareceu e disse: “— Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!” Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido, era natural que o protetor se enfastiasse…

— Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar…

— Decerto, porque tudo cansa neste mundo.

— És injusto e, se meu pai e minha mãe te ouvissem, ficariam bravos comigo.

— Ah! Eles não me ouvirão, podes ficar tranqüilo. Só a ti falo porque nós nos entendemos e bem sabes que não sou ingrato.

— Meus pais te compreendem tão bem ou melhor do que eu.

— Mas não me perdoam, como tu perdoas, o fato de ser eu tão feio, tão antipático e tão desengraçado…

— Ora! Aí vens tu com a cantiga do costume. Deixa-te disso e vamos dar um passeio à rocinha do João da Cinta.

— Outra vez? Que diabo vamos lá fazer agora?

— Convidá-lo e mais a família para virem ao casamento da tia Geminiana.

— É sempre no dia 15 o casamento?

— Infalivelmente, e o alfaiate deve trazer-nos amanhã os nossos fatos novos. Mas, anda, vamos!

Coruja ergueu-se do lugar onde estava assentado e acompanhou o amigo, que já se havia posto a caminho.

Três quartos de hora depois chegavam a um grande cercado de acapu, a cuja frente corria um riacho quase escondido entre a vegetação. Teobaldo parou, disse ao amigo que esperasse um pouco por ele e, trancando pelos barrancos do riacho, foi ter à cerca e soltou um prolongado assobio. A este sinal, com a presteza de quem está de alcatéia, surgiu logo uma rapariguita de uns treze anos, forte, corada e bonitinha.

— Ah! Disse ela, vindo encostar-se às estacas.

— Não esperavas por mim?… Perguntou o rapaz. A pequena respondeu, entregando-lhe um ramilhete que trazia à sorrelfa. E perguntou depois como passava de saúde o Sr. Teobaldo.

— Com saudades tuas… Disse o moço, tomando-lhe uma das mãos.

— Mentiroso…

— Não acreditas?

Ela encolheu os ombros, a sorrir, de olhos baixos.

— Dize a teu pai que não deixe de ir com vocês ao casamento de tia Gemi. Vim convidá-los.

— Entre. Fale com mamãe. Ela está aí.

— Não; é bastante que lhe dês o recado.

E mudando de tom:

— Não faltes, hein, Joaninha?…

— Se me levarem, eu vou.

— Vá, que lhe tenho uma coisa a dizer…

Teobaldo havia conseguido passar o braço por entre duas estacas da cerca e segurava a cintura da rapariga; deu-lhe um beijo; ela o retribuiu com outro de igual sonoridade, fazendo-se muito vermelha e fugindo logo em seguida.

Este namoro, inocente de parte a parte, era o primeiro de Teobaldo. Nascera naquelas férias um dia em que ele, por acaso, encontrou a pequena a lavar no riacho em frente da casa as roupinhas do irmão mais novo. Desde então ia vê-la todas as tardes antes do jantar; falavam-se às vezes à beira do córrego, outras vezes com a cerca de permeio. De certa época em diante ela o esperava com um ramilhete; conversavam durante um quarto de hora e despediam-se com um beijo. O Coruja foi logo o depositário do segredo; Teobaldo contou-lhe a sua aventura e exigiu que ele o acompanhasse todos os dias à rocinha do João da Cinta, quedando-se a certa distância durante o tempo da entrevista.

André consentiu, sem mostrar o mais ligeiro espanto pelo que lhe revoltara o amigo.

Ainda inocente e deveras casto, não conhecia os meandros do amor e julgava dos outros corações pelo seu, que resumia toda a gama do afeto e da ternura em uma nota única. Não calculava a que podia chegar aquele inocente namoro originado entre o filho do Sr. Barão do Palmar e uma sertaneja, que nem ler sabia.
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continua…

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Ruídos e Rumores

As almas têm umas irradiações pouco observadas – sem nada de comum com a transmissão de pensamento, o magnetismo e análogas complicações etéreas, ódicas e místicas.

Não há uma ciência (e ainda bem, arre!) mas há uma arte, uma pequena arte sutil sobre a caça das irradiações da personalidade, através dos rumores e das vozes.

Tenho uns vizinhos esquisitos, um casal velho que vive fechado em casa e raramente se deixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço vozes, passos, tosses, assoadelas arrastamentos de móveis, bater de pregos, -tudo espaçado e abafado, passando através das paredes como vagas mensagens de um mundo sigiloso.

Ponho-me, às vezes, a escutar esses rumores e, à força de os ouvir e comparar, não só eduquei o ouvido para lhes perceber as menores variações, como consegui fixar o valor expressivo de alguns deles.

Cheguei à conclusão de que o homem é gordo, rude, voluntarioso, e talvez com um defeito numa das pernas. Pisa com força e peso, mas de um jeito claudicante; tosse de um modo rápido e sacudido; os ruídos que produz batendo pregos ou fechando portas são sempre céleres e inteiriços, e sua voz é robusta e serena.

Por que então não sai de casa? Provavelmente, algum incômodo ou lesão localizada, que o impede sem lhe afetar o estado geral.

Quanto à mulher, deve ser velhota, magra, tristonha a paciente. Seus passos apenas chiam no soalho, sua voz mal se ouve, assemelha-se a um arrulho monótono. De, quando em quando, escuto-lhe uns espirros longamente gemidos. Esses espirros por si sós ainda me fornecem uma indicação: a senhora é do interior de São Paulo, provavelmente de lugar pequeno, e talvez da zona sorocabana.

Outro dia, tive um susto: o homem entrou a falar alto e ríspido, a dar passadas por toda a casa.

Estaria a maltratar a pobre senhora? Apurei o ouvido. O vizinho andava, parava de quando em quando, falava falava, e depois punha-se a andar de novo, para de novo estacar e falar: o ritmo característico de uma crise de raiva recriminante.

Mas que poderia ter-lhe feito a pobre velhota, tão calma e resignada?

Ansioso, apurei ainda mais o ouvido, e só descansei quando ouvi um espirro da vizinha: atchiii!… Esse espirro, longo, pacífico, modulado pela forma exata do hábito, garantia que a zanga não era com ela.

Hoje, finalmente, viajei de bonde com o casal, que saiu conforme às revelações sonoras. O homem, alto, gordo e vermelho; ela, seca e sumida. Ao tratarem de descer, ele puxou a corda da campainha num golpe incisivo e forte. Desceram, e então vi que ele tinha um pé inchado em chinelo.

Pus-me a traduzir, pelo resto da viagem, os sons da campainha.

As vibrações indicam o sexo, a idade aproximada e o temperamento de quem as faz retinir. Há campainhadas tímidas, indecisas, distraídas, discretas, nervosas, indolentes, autoritárias, coléricas.

Umas previnem, refletidas, o motorista, a quase uma quadra de distância, declarando, calmas e incisivas: “Pare aí adiante; olhe que está avisado!”

Outras exprimem certa dúvida: “Deverei saltar aqui?… Será aqui mesmo o ponto que me convém?…”

Outras enfim, após tantas, deixam transparecer a surpresa de um apalermado que de repente se achou no ponto de parada sem ter dado por isso: “Oh, diabo, cá estou; pára aí!”

A linguagem das campainhas pode, porém, exprimir coisas ainda menos triviais.

Outro dia, vinha um passageiro novato no bairro, que mandou parar em certo ponto, e não desceu: tinha-se enganado. Ressoou surdamente a campainha, acionada pelo condutor, um português muito plantado em si mesmo: “Bom, vamos embora.”

Duas esquinas adiante, o homem dá nova ordem de parada, e ainda não desce: tinha-se enganado outra vez. Então, a correia da campainha fuzilou nos ganchos como uma chicotada, e o metal retiniu com tal expressão, que se entendeu perfeitamente: “Roda!. .. Raios o parta!”

Há um conto de Gautier O Ninho de Rouxinol, onde figuram umas jovens estranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons. Todo o universo, para elas, se traduz em música, e só em música elas traduzem o que sentem e pensam.

Realmente, não há nada que não se possa resolver em música, e é lícito conceber-se um mundo em que fosse essa a linguagem universal das coisas e das almas. Sem irmos, porém, às alturas da imaginação, é fácil reconhecer que tudo trivialmente, em redor de nós, se manifesta por sonoridades, ruídos e silêncios.

Sabe disso toda a gente que dispõe da integridade do seu aparelho auditivo. O que pouca gente sabe é como se podem obter impressões novas, surpreendentes e divertidas das coisas e das almas que nos rodeiam, – apenas aplicando o ouvido à sondagem e interpretação dos sons.

Nós vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a missão de observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo quase a um simples papel de serviçal obediente às determinações da vontade. Vemos tudo, mas só ouvimos o que queremos. É incrível a capacidade de que dispomos para eliminar as impressões do ouvido, no meio do rumor infernal das ruas, do bruaá de um café regurgitante de palradores.

Ainda hei de escrever um artigo sério para um jornal sério, um artigo científico, cheio de termos técnicos como um queijo cheio de saltões, a propugnar a educação e a aplicação mais racionais das faculdades auditivas. Quantos afluxos de sensações sistematicamente rejeitados, e que poderiam ser tão úteis á inteligência, e úteis à própria defesa do indivíduo!

E depois, se a moda pegasse, se começássemos todos a fazer um uso mais consciente, mais constante e mais largo desse aparelho receptor, seria impossível que um grande número de cidadãos não se insurgissem afinal, indignados, exigentes, furiosos, contra a pandemônica, vertiginosa e martirizante barulheira da cidade, contra este caos sonoro que nos engole e nos aniquila.

Fonte:
Domínio Público

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Hilda Mendonça (O Alerta, de Charles Pereira)

O Alerta foi dado. A Vela ainda acesa. E um alerta requer certo cuidado. Tenho em mãos o livro do advogado Charles Pereira, vice-presidente da Escritores & Companhia, O Alerta. A curiosidade despertada, examino a capa, confecção gráfica impecável (Com cara de best-seller!). Vejo uma vela acesa, certos planos piramidais de fundo induzem ao mistério. Nas orelhas, citações bíblicas já nos dão um pouco a direção do fio condutor que envolve o romance. Embora obra de ficção, este Alerta nos leva a repensar realidades que estão a ocorrer no dia a dia da humanidade e à reflexão sobre os fins dos tempos. Trata-se de um romance de 190 páginas, com boa diagramação, editado em 2011 pela All Print-Editora, do autor Charles Pereira. Charles não se deixou prender a superstições que rondavam o imaginário popular sobre o terceiro Milênio, contudo não consegue fugir totalmente às indagações do tema.

Há um escritor nascido em Passos e que se assina João Passos, que também escreveu um livro profundo nesta linha: Os seis últimos dias, se não me falha a memória, pois já o li há algum tempo. Contudo, este Alerta de Charles Pereira não usa a pesquisa com documentos comprobatórios, como o caso de João Passos. Charles Pereira conseguiu, com este seu Alerta, construir uma trama bem amarrada, mantendo fidelidade ao tema proposto do início ao final, o que nem sempre é fácil, e arrematar o livro com a consciência de dever cumprido.

No capítulo 1 é interessante a descrição da cidade, não sei se imaginária ou real, pois em obra de arte às vezes nos perguntamos onde começa e termina o real ou o imaginário, tomando como real aquilo que de fato existe. Do momento em que o autor apresenta um fato ou cenário, ele existe, então perguntamos: o que é real na arte literária?

O livro O alerta nos apresenta o personagem Josué, advogado, profissão que Charles conhece tão bem, visto que também é advogado. Josué encantou-me sobremaneira, não sei se o fato de trabalhar em uma mineradora, sempre admirei essas pessoas de mineradoras e hidrelétricas, por achar que são ocupações de muita adrenalina. Josué já me é simpático de início, e é naquela noite alegre de Réveillon que tem início o mistério, mistério esse que mudaria a sua vida e a de muitos que com ele conviviam. O personagem Josué, ainda naquele torpor de que se lhe acometeu, naquela noite de Réveillon, ouviu misteriosa voz a dizer-lhe: “Estás no celeiro de meu pai”. A partir daí, o texto muito bem delineado, vai envolvendo o leitor e todo autor sabe que o leitor, uma vez “fisgado”, não mais o abandonará.

Depois deste acontecimento, ou seja, aquele estranho episódio, que não vou entrar em detalhes, para não me antecipar ao leitor, fatos estranhos ou nem tanto, pela habilidade do autor, preparam-nos para mais e mais acontecimentos inesperados. A trama flui habilmente e muito bem amarrada, e são ações e mais ações que nos remetem a certo realismo fantástico, entre ficção e realidade, na trajetória de Josué que nos leva a segui-lo até o final proposto.

O alerta não é um livro que se propõe religioso, no entanto, é todo ele recheado de religiosidade, em que o autor está muito seguro do que diz, como se para isso houvera se preparado por longas datas, mesmo sendo uma pessoa jovem.

Não vou aqui me imiscuir em recontar a história, pois isto Charles já o fez com mestria, e tiraria a surpresa do leitor. Posso dizer, entretanto, que valeu por mais esta experiência de leitura que me levou a muitas e salutares reflexões.

Charles Pereira é passense, advogado e o vice-presidente da Escritores & Companhia.

Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

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Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 6

Assim subiram a pequena alameda de mangueiras que conduzia à casa e, dentro em pouco, penetravam todos na sala de jantar. A despeito de se achar naquelas alturas, Emílio cercava-se de todas as comodidades que lhe permitia a época. O seu primeiro casamento abrira-lhe o gosto pelos objetos do luxo asiático e trouxera-lhe uma riquíssima coleção de louças, de sedas e cachemiras, charões, marfins, pinturas, objetos de goma-laca, tetéias de sândalo e tartaruga, e tudo mais que era de costume nesse tempo introduzirem no Brasil os portugueses vezeiros no comércio das Índias.

Viam-se ai também, pelas paredes, quadros antigos, de santos, alguns dos quais haviam pertencido a D. João VI, e das mãos deste passado às do avô de Teobaldo. Viam-se igualmente estalados retratos de damas e cavalheiros da corte de D. José e D. Maria I, detestavelmente pintados, nas suas pitorescas vestimentas do século XVIII e defronte de cujas telas inutilizadas e ressequidas pelo antiaristocrático sol brasileiro, habituara-se o velho Caetano a possuir-se de todo o respeito, porque lhe contava que entre aqueles figurões havia parentes do seu rico amo. E, ao lado da mobília, relativamente nova, descobriam-se clássicas peças de madeira preta, que juntavam ao aspecto daquelas salas uma nota religiosa e grave. Na biblioteca, aliás bem guarnecida, destacavam–se, por entre as estantes, antigas armas portuguesas, dispostas em simetria e caprichosamente entrelaçadas por arcos e flechas do Brasil. Na sala de jantar, dominando a larga e longa mesa da comida, havia um grande retrato de Cromwell, representado na ocasião em que ele invadiu o parlamento inglês de chicote em punho.

O Coruja passou por tudo isso, às cegas, sem ânimo de olhar para coisa alguma. O desgraçado sentia perfeitamente que agora, à luz das velas, a sua antipática figura havia de produzir sobre todos uma impressão ainda muito mais desagradável do que a primeira; sentia-se mais feio, mais irracional, posto em contraste com aquela gente e com aqueles objetos.

Mal se assentaram à mesa, D. Geminiana continuou a observá-lo fixamente e concluiu afinal o seu julgamento franzindo os cantos da boca em um trejeito de repugnância; Santa, porém, não se mostrou tão desagradada e chegou a sorrir para o Coruja, quando lhe passou o prato de sopa.

O barão que havia tomado a cabeceira, fizera sentar o filho ao seu lado e, segundo o costume, conversava com ele, como se estivesse defronte de um homem. Entretanto, o Coruja continuava tão mudo e tão fechado, que do meio para o fim do jantar ninguém mais se animava a dirigir-lhe a palavra.

Depois do café, Santa ergueu-se da mesa e foi pessoalmente dar suas ordens para que nada faltasse ao taciturno hóspede; mandou acrescentar uma cama no quarto do filho e disse ao outro que podia recolher-se quando quisesse. Coruja apertou a mão de todos, um por um, e meteu-se no quarto.

Já vais? Perguntou-lhe o amigo. És um mau companheiro!

Na sala, onde ficou ainda a família, a conversar por algum tempo, veio o Coruja à discussão. Emílio contou o diálogo que ouvira entre o padre e o diretor do colégio, e Geminiana, que parecia disposta a não perdoar ao órfão o ser tão desengraçado, acabou ela própria louvando o procedimento do cunhado.

CAPÍTULO VIII

Ninguém seria capaz de descrever a comoção que se apoderou do Coruja na sua primeira manhã daquelas férias. Ergueu-se antes do despontar do sol, vestiu uma roupa de Teobaldo, que lhe mandaram pôr ao lado da cama, e, com as calças e as mangas dobradas, saiu mais o companheiro ao encontro do barão, que já esperava por eles à margem de um rio, situado a cinqüenta passos do fundo da casa. Era aí que Emílio dava ao filho as suas lições de natação. Mas não houve meio de conseguir que o Coruja se despisse na presença dos outros. Já em casa do padre, e também no colégio, observava-se a mesma coisa; tinha o Coruja um pudor exageradíssimo, uma invencível vergonha da nudez; não podia admitir que ninguém lhe visse a pele do corpo. E só depois que o barão e o filho se banharam, consentiu ele, bem certo de que não era espiado, em meter-se n’água.

Sem dar demonstração, o Coruja estava maravilhado com tudo que ia se patenteando em torno dele. Seu coração puro e compassivo, abria-se para receber amplamente aquela grande paz do campo tão simpática às precoces melancolias de sua pobre alma. E as castas propensões do Coruja, os gostos imaculados que dormiam a sono solto dentro dele, tudo isso acordou alegremente aos primeiros rumores da floresta e as primeiras irradiações da aurora como um bando de pássaros quando vai amanhecendo.

Nunca se julgou assim feliz. Todas aquelas, vozes da natureza. todo aquele aspecto tranqüilo das matas e das montanhas, tudo o fascinava secretamente, como se ele tivera nascido ali, entre aquelas coisas tão calmas, tão boas, tão comunicativas. Os currais, os trabalhos agrícolas, o gado grosso e o gado miúdo, a criação dos animais domésticos, a cultura dos legumes e hortaliças, tudo isso tinha para ele um encanto muito particular e muito suave.

— Então? Que tal achas isto aqui? Perguntou-lhe Teobaldo, depois de mostrar ao amigo as benfeitorias da fazenda.

— Tudo muito bom, respondeu ele.

— E o velho? Que tal!

— Bom, muito bom.

— E Santa?

— Uma Santa.

— E a tia Gemi?

— Não é má.

— Um pouquinho resingueira, não e verdade? Mas não faças caso, que ela se chegará as boas. Olha! Se a quiseres agradar, faze-te devoto; reza-lhe dois padre-nossos e tê-la-ás conquistado.

E mudando logo de tom;

— Depois do almoço temos um passeio com o velho. Vais ver o que é bom! Sabes montar a cavalo?

— Não, mas aprendo. Onde é o passeio?

— À fazenda, do Hipólito. Não é longe.

— Que Hipólito?

— Um vizinho nosso, amigo do velho e pretendente à mão da tia Gemi.

— Ah!

— Vem comigo à estrebaria.

Defronte dos animais, Teobaldo chamou a atenção do amigo para um belo cavalo alazão, meio sangue, que o pai lhe havia comprado ainda o ano passado.

— Eu preferia aquele burro… Disse o Coruja, depois de examinar minuciosamente as bestas.

— Quê? Pois preferes o jumento àquele belo alazão?…

— Decerto.

— Mas, por quê?

— Não sei: gosto mais do burro que do cavalo.

— Que gosto! Antes andar a pé.

E acrescentou ainda apontando para o alazão:

— Olha só para aquilo! É um animal nobre! Parece que tem consciência do seu valor!

Terminado o almoço e vestido o Coruja pelo melhor que se pôde arranjar, o barão, os dois meninos e o velho Caetano abandonaram a casa e encaminharam-se para a estrebaria.

— Sabes, papai? O André prefere ir no burro.

— Porque não é cavaleiro. O burro com efeito é muito menos perigoso para ele. Anda com isso, ó Caetano.

Prontos os animais, o velho criado ajudou Coruja a cavalgar o burro.

— Não tenha medo! Gritou-lhe, a segurar a brida. Esta besta é mais mansa do que uma pomba!

André, todo vergado sobre o peito e a segurar as rédeas com ambas as mãos, não conseguia endireitar-se na sela do animal, por mais que o amigo lhe gritasse.

— Espicha as pernas, rapaz! Levanta a cabeça! Pareces um macaco!

O barão e o filho, uma vez montados, meteram entre os seus cavalos o jumento em que ia o Coruja, e puseram-se a caminho, seguidos a certa distância pelo criado, cuja libré dava à modesta cavalgata um ligeiro colorido de aristocracia. Os primeiros minutos do passeio foram todos gastos com André, que, diga-se  a verdade, fazia o possível para bem aproveitar as lições.

— Assim! Assim! Gritou-lhe Teobaldo, metendo as esporas no animal; afrouxa um pouco mais a rédea e mete-lhe o chicote com vontade! Não tenhas medo! Coruja foi pôr em prática esta ordem, mas com tal precipitação o fez que o burro se espantou e, dando um salto, cuspiu-o por terra.

— Ó diabo! Exclamou Emílio, fazendo parar o seu cavalo.

— Ficaste magoado? Perguntou Teobaldo ao amigo.

— Foi nada! Disse o Coruja, erguendo-se a segurar o asno pela rédea, e, antes que lhe pusessem embargos, tomou o estribo, galgou de um pulo a sela e, tocando o animal com certa energia, gritou aos companheiros:

— Vamos adiante!

E às quatro da tarde, sem nenhum outro incidente desagradável, voltavam à fazenda, trazendo consigo o tal Hipólito, que parecia embirrar com o Coruja ainda mais do que a própria noiva.

Mas com quem não embirraria aquele demônio de barbas pretas e cabelo ruivo, eterno maldizente, capaz de encontrar pontos de censura na vida de Santa Maria e nas de S. José?

O barão suportava-o, tão somente para não prejudicar a trintona cunhada, que arriscava-se a ficar solteira se lhe escapasse ocasião de ter marido. Hipólito era já um bom arranjo, tinha algum dinheiro e prometia ir muito mais longe com o seu sistema de economia que orçava sensivelmente pela avareza.

A política era talvez a sua paixão dominante; ele, porém, a disfarçava quanto possível e não se metia com os partidos, receoso de gastar alguma coisa. Aparecia freqüentemente na fazenda de Emílio e estava sempre a criticar, em segredo com a noiva, a educação que davam a Teobaldo.

— Deus queira que não venham a amargar mais tarde! Dizia Hipólito, cheio de repreensão. Nunca vi em dias de minha vida semelhante gênero de ensino! Pois se até o fedelho trata aos pais por tu, como se estivesse a falar com os negros! Enfim cada um faz o que entende; eu, porém, tenho o direito de achar bom ou mau.

 Outro pretexto constante para a sua indignação era a vida dispendiosa de Emílio.

— Para que tanta prosápia e tanta galanice? Resmungava frenético. Ora eu, que sei perfeitamente com que linhas ele se cose, não posso ver isto a sangue frio!  As conseqüências deste esbanjamento bem sei eu quais são: os parentes que se apertem! Mas, não há de ser comigo que ninguém se arranjará: Cá sei quanto me custa a conservar o que tenho! E já não é pouco!

Que importava, porém, a mastigação do serrazina, se ela ficava sepultada nas discretas orelhas de D. Geminiana? Não seria por isso que as matilhas do Sr. Barão deixariam de acordar as florestas com seus latidos, à madrugada, em busca de anta ou do porco bravo; não seria por isso que a mesa do fidalgo seria menos farta. os seus cavalos menos de raça e os seus vinhos menos escolhidos e generosos.

Assim se abria para o Coruja uma existência completamente nova e imprevista, mas muito ao sabor do seu gênio rústico e simples. A certos divertimentos ia entretanto só pela satisfação de acompanhar o amigo, porque, à medida que ele se familiarizava com o campo, acentuavam-lhe os gostos e as preferências. Não trocaria, por exemplo, a mais modesta pescaria pela melhor caçada; desagradava-lhe o alvoroço, o grito dos batedores, o barulho dos cães e não gostava de ver cair ao tiro das escopetas a pobre besta foragida e tonta de terror.

A pesca, sim, era um prazer afinado pelo seu temperamento calmo e silencioso; passava horas esquecidas, de caniço em punho, à espera que se chimpasse um peixe no anzol. Teobaldo às vezes o acompanhava ao rio por condescendência, mas levava sempre consigo uma espingarda passarinheira. Era interessante de ver aqueles dois meninos tão contrários e tão unidos, partirem de madrugada para o mato, onde passavam quase sempre as melhores horas do dia. André carregava consigo os utensílios da pesca e raro dizia uma palavra enquanto matejava; o outro, com a sua passarinheira a tiracolo, falava por si e por ele, descrevendo entusiasmado as façanhas do pai ou do avô, que muitas vezes, em noite de invernada, ouvira da boca do velho Caetano.

Todavia, um adorava o sossego, a doce e morna tranqüilidade dos vales ou as margens frondosas e sombreadas do rio, para onde levava os seus livros favoritos, entre os quais Robinson Crusoé tinha o primeiro lugar; o outro, não; o outro só queria da floresta aquilo que ela lhe pudesse dar de imprevisto e aventuroso: queria a sensação, o perigo, o romanesco e o transcendente.

Às vezes, enquanto o Coruja lia ou pescava à beira d’água, Teobaldo, ao seu lado, deitado sobre a relva, olhos fitos na verde-negra cúpula das árvores, sonhava-se herói de mil conquistas, cada uma do seu gênero; tão depressa se via um grande poeta, como um político inexcedível ou um divino orador. Idealizava-se em toda as atitudes gloriosas dos grandes vultos; não lhe passava pela vista a biografia de qualquer celebridade, fosse esta conquistada pelo talento, pela energia, pela fortuna, pela intrepidez ou pela grandeza d’alma, que ele não descobrisse logo em si muitos pontos de contato com o biografado.

Teobaldo não amava o campo, aceitava-o apenas como um fundo pitoresco em que devia destacar-se maravilhosamente a sua “extraordinária figura”, aceitava-o como simples acessório das suas fantasias. Nunca lhe compreendera as vozes misteriosas nem jamais comunicara a sua alma com a dele. Tanta assim que naqueles passeios, o que mais o preocupava não era a contemplação da natureza e sim os pequenos detalhes elegantes que diziam respeito particularmente à sua pessoa, como a roupa, o aspecto do animal que montava e a distinção do exercício que escolhia.

Ele nunca saía a passear sem as suas trabalhadas botas de polimento, sem o seu calção de flanela, a sua blusa abotoada até ao pescoço e cingida ao estômago por um cinturão com fivela de prata; não saía sem o seu chapéu de pluma, a sua bolsa de caça, o seu polvarinho, o seu chumbeiro e, ainda que tivesse a certeza de não precisar da espingarda, levava-a, porque a espingarda fazia parte do figurino.

Um dia exigiu que o pai lhe desse uma pistola e um punhal.

– Para que diabo queres tu todo esse armamento? Perguntou-lhe o barão, sem poder deixar de rir.

— Para o que der e vier…

— Descansa, que por aqui não terás necessidade disso.

— Mas eu queria…

— Pois bem, havemos de ver.

E, para não contrariar de todo o filho, o que não estava em suas mãos, Albuquerque estabeleceu nos fundos da casa um tirocínio de pontaria ao alvo e consentiu que o rapaz nos seus passeios à mata trouxesse à cinta um rico punhal de ouro e prata que pertencera ao avô.

— Tu não queres também uma arma? Perguntou Teobaldo ao Coruja.

— Não; só se fosse um facão para cortar mato.

— Ora, vocês não querem também uma peça de artilharia? Exclamou o barão, quando o filho lhe foi pedir o que desejava o amigo.

Enquanto Teobaldo fazia tanta questão das aparências e das exterioridades, André, enfronhado em um fato de ordinária ganga amarela, que nem era dele, com um grande chapéu de palha na cabeça e às vezes descalço, comprazia-se em percorrer a fazenda, não em busca de aventuras como o amigo, mas de alguém que lhe ensinasse o nome de cada árvore, a utilidade e a serventia de todas elas, assim como o processo empregado na cultura de tais e tais plantações, o modo de semear e colher este ou aqueles cereais; qual a época para isto qual a época para aquilo; queria que lhe explicassem tudo! Uma de suas mais arraigadas preocupações era a obscura existência dos insetos; interessava-se principalmente pelos alados, procurando acompanhar-lhes as metamorfoses, desde o estado de larva à mariposa.

Se lhe despejassem as algibeiras, haviam de encontrar aí várias crisálidas, besouros e cigarras secas, como encontrariam igualmente vários caroços de fruta e pedrinhas de todos os feitios.

Algumas semanas depois de sua estada na fazenda era ele quem mais se desvelava pelos carneiros e pelos porcos e quem ia dar quase sempre a ração aos cavalos. E, quando havia uma ferradura a pregar ou qualquer tratamento a fazer nos animais, mostrava-se tão afoito que parecia o único responsável por isso.

No fim do primeiro mês das férias já o Coruja sabia nadar, correr a cavalo, atirar ao alvo e, por tal forma havia-se familiarizado com a vegetação, com a terra viva, com o sol e com a chuva, que parecia não ter tido nunca outro meio que não fosse aquele.

Em geral acordava muito mais cedo que o amigo e ainda dormia este a sono solto, já andava ele a dar uma vista d’olhos pelo serviço das hortas e dos currais.
––––––––-
continua…

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Adelto Gonçalves* (A Influência Russa na Literatura Brasileira)

I

Que a literatura russa influenciou boa parte da literatura produzida no Brasil, especialmente no final do século XIX e na primeira metade do século XX, nenhum crítico de bom senso pode colocar em dúvida. Até que ponto chegou essa influência e como seu deu, pois, na maioria, por desconhecimento do idioma russo, os autores tiveram acesso apenas a traduções de segunda mão do francês, é que nunca ninguém havia estabelecido.

Essa questão, porém, já está devidamente esclarecida e aprofundada, depois da pesquisa de proporções ciclópicas empreendida pelo professor Bruno Barretto Gomide em sua tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em junho de 2004, que saiu em livro em 2011 pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp): Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), Prêmio Jabuti 2012, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria Teoria e Crítica Literária.

As fontes deste livro foram extraídas de arquivos particulares de escritores e de uma extensa pesquisa que o estudioso fez em jornais, revistas e livros publicados entre 1887 e 1936, valendo-se também de consulta não só em arquivos públicos e de universidades em Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro como nos Estados Unidos, especialmente nas bibliotecas das universidades de Illinois, Indiana, Stanford e Califórnia.

Neste livro, a recepção da literatura russa no Brasil é estudada a partir de dois eixos: pesquisa documental da recepção crítica do romance russo e estudo da vasta bibliografia comparatista que lida com outros casos de recepção da literatura russa no Ocidente. Tudo isso acompanhado pelas discussões específicas fornecidas pela crítica literária e pela historiografia da cultura brasileira, como observa o autor na introdução.

Os primeiros textos que utilizavam os romancistas russos como contraponto a questões literárias candentes no Brasil datam da segunda metade da década de 1880. Já o final da década de 1930 marca um momento em que tais discussões perdem sua força e deixam de ser relevantes para a crítica. O trabalho conta ainda com um anexo que reproduz algumas fontes significativas, privilegiando as de mais difícil acesso.

II

É observar que a chegada do romance russo ao Brasil foi uma consequência marginal de um processo internacional iniciado na França, que o tornou uma sensação europeia em meados da década de 1880. Foi quando surgiram as traduções em escala industrial e livros de crítica que assinalavam a recepção desses romances em língua francesa.

Gomide aponta o ensaio O Romance Russo, de Eugène-Melchior de Vogüé (1848-1910), publicado em 1886, como o elemento basilar dessa recepção, pois era a ele que recorria a maior parte dos ensaístas, inclusive no Brasil. Entre os romancistas brasileiros, Lima Barreto (1881-1922) foi o que mais se deixou influenciar pelas ideias que os romances russos traziam implícitas, especialmente a partir do prefácio que Vogüé escreveu para Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski (1821-1881).

O pesquisador observa que já havia conhecimento da literatura russa no Brasil antes mesmo da década de 1880, mas esses contatos se davam em escala diminuta. A partir daquela data, o seu “surgimento súbito” no País, em função do que ocorria na França, passou a atiçar a criação de uma literatura genuinamente nacional, como observaram ao tempo José Carlos Jr. (?-?), um crítico paraibano hoje quase esquecido e justamente “ressuscitado” por Gomide, e Clóvis Bevilacqua (1859-1944). Mas, como constata Gomide, essa interpretação não foi unânime. Para Tobias Barreto (1839-1889), por exemplo, os romancistas russos eram a negação de tudo o que a cultura francesa representava.

Para Silvio Romero (1851-1914), os russos seriam também o melhor exemplo antípoda de Machado de Assis (1839-1908). Se o escritor fluminense construía delicados estados psicológicos de suas personagens à maneira do francês Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), Romero fazia o contraste com a estética radical do choque, exemplificada por Edgar Allan Poe (1809-1849) e Dostoiévski, observa Gomide. E acrescenta: para Romero, o autor fluminense ficava “bem abaixo de Dostoiévski, Poe e até de Hoffmann (1766-1822), quando este envereda, como o próprio Machado diria, pelo distrito da patologia literária”.

Portanto, o caráter inovador da prosa russa foi imediatamente detectado pelos críticos brasileiros, que passaram a utilizá-lo largamente como termo de comparação em suas críticas e recensões. E até a apresentá-lo como um modelo de emancipação para a literatura brasileira.

III

Na primeira parte de seu livro, Gomide trata da divulgação dos romancistas russos a partir da metade dos anos 1880, especialmente de 1883 a 1886. E apresenta exemplos do aumento vertiginoso do número de traduções e do entusiasmo nos meios intelectuais pelo novo fenômeno literário. Mostra ainda que, quando a revolução de 1917 assustou o mundo, já havia no Brasil uma tradição de três décadas de discussão do romance russo em periódicos e livros de crítica.

Portanto, associar autores como Dostoiévski, Turgueniev (1818-1883), Leon Tolstói (1828-1910) e Alexandr Pushkin (1799-1837) ao bolchevismo só podia partir de mentes obnubiladas, o que não é de admirar, pois, à época da última ditadura militar (1964-1985), o livro Juan Rulfo: Autobiografia Armada (Buenos Aires, Corregidor, 1973), de Reina Roffé, teve a sua importação barrada, por volta de 1975, porque o censor fez uma interpretação beligerante da palavra “armada”, quando o título queria dizer apenas que a autobiografia havia sido “armada” com declarações do escritor retiradas de entrevistas publicadas em épocas diversas. Santa ignorância…

Na segunda parte de seu trabalho, Gomide estuda as décadas de 1920 e 1930, quando era flagrante o impacto da revolução bolchevique. E mostra claramente que, ao contrário do que se supõe, a literatura russa nunca foi uma espécie de patrimônio da esquerda, pois intelectuais católicos, como Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), Tasso da Silveira (1895-1968) e Jackson Figueiredo (1891-1928), já discutiam sua influência na literatura mundial, especialmente a partir de Dostoiévski, Máximo Górki (1868-1936) e Leon Tolstói.

A segunda parte do livro apresenta, além de um panorama do mercado editorial da década de 1930, textos que desconfiam abertamente das interpretações geradas no fim do século e tentam cercar os romancistas russos por outros ângulos. E contestam a ideia de que o niilismo de Dostoievski e de outros escritores russos teria preparado terreno para o avanço do comunismo e a vitória dos bolcheviques em 1917, apenas porque a literatura russa sempre esteve associada a questões sociais. Na conclusão, Gomide defende que é anacrônico reler os primeiros momentos da recepção da literatura russa no Brasil de acordo com os resultados posteriores à revolução de 1917.

Como o livro vai até 1936, fora da análise de Gomide fica o recente renascimento do interesse do leitor brasileiro pelo romance russo que, a rigor, deu-se depois do lançamento, em 2001, da primeira tradução de Crime e Castigo, de Dostoiévski, feita diretamente do russo por Paulo Bezerra, pela Editora 34, de São Paulo. Em seguida, saíram vários livros traduzidos diretamente do russo por Paulo Bezerra, Boris Schnaiderman, Fátima Bianchi, Lucas Simone e outros. Em 2011, saiu também Gente Pobre, de Dostoiévski, com tradução de Luíz Avelima, pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP.

IV

Bruno Gomide (1972) é doutor em Letras pela Unicamp, com estágio de doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Realizou cursos nas universidades de Illinois, Indiana, Cambridge e Linguística de Moscou. Foi pesquisador-visitante no Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp). É o organizador do grupo de trabalho de Literatura Russa da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).

Organizou a Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998), lançada recentemente pela Editora 34, que reúne nomes conhecidos no Brasil como Pushkin, Gógol, Dostoiévski, Tchekhov, Tolstói, Pasternak, Bábel e Nabókov e outros menos conhecidos, como Odóievski, Grin, Chalámov, Kharms, Platónov e Sorókin, num total de 40. Tem publicado artigos em periódicos internacionais, como Tolstoy Studies Journal e Vopróssi Literaturi, e participado dos principais congressos de eslavística.
_______________________________
DA ESTEPE À CAATINGA: O ROMANCE RUSSO NO BRASIL (1887-1936), de Bruno Barretto Gomide. 1ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 768 págs., 2011.
E-mail: edusp@usp.br

____________________________________
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

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Herberto Sales (Os Pareceres do Tempo)

Herberto Sales (Andaraí, BA, 1917- Rio de Janeiro,RJ,1999) surge no panorama literário brasileiro, em 1944, com o seu primeiro romance, Cascalho, a nos apresentar os crimes e lutas inerentes aos garimpos, num contexto de violência e aventura, numa moderna retomada da temática de Lindolfo Rocha, regionalista do princípio do século XX. Quarenta anos depois de Cascalho, precedidos pela publicação de contos e outros romances do autor, surgem Os Pareceres do Tempo, “romance de duas velhas famílias que se enredam em episódios vividos por uns tantos membros dela: os Golfões e os Rumecões, na antiga região denominada Cuia d’Água.” O cenário principal de Os Pareceres do Tempo é a Bahia do final do século XVIII.

O romance tem como ponto de partida a vinda para o Brasil do português Antônio José Pedro Policarpo Golfão – “mais crescido nos prenomes, que no sobrenome” (LIVRO I, p. 11) – que recebe uma sesmaria no município de Cachoeira, como reconhecimento do rei de Portugal por seu pai, um fidalgo, cujo nome não nos é dado a conhecer, ter morrido ainda no mar, indo para a Índia, em missão portuguesa. Ou numa “outra versão da morte do fidalgo: a que ele, entre os da família do tão célebre apelido Golfão, o mais antigo ancestral na tradição referido, encontrou a morte, não no mar, mas na batalha de Alcácer-Quibir, batendo-se contra o gentio, no elevado propósito de no incréu incutir a Fé, com a ajuda eficaz da Espada; isso, sob o comando superior e piedoso de El-Rei D. Sebastião, que ali, desgraçadamente, também pereceu”.

Este é, pois, fato cuja veracidade é incerta:

Conquanto não haja documentos que indiquem, sob a grave proteção dos arquivos, haver existido em qualquer tempo esse fidalgo, não ousamos pôr em dúvida tão respeitável versão, que até nos chegou sem discrepância, robustecida por mais de dois séculos de tradição local”. (LIVRO I, p.11)

E, como está nos REGISTROS FINAIS (p. 409), segundo o narrador:

“Estes registros fizemo-los depois de visitarmos em Cuia d’Água a antiga fazenda do capitão Policarpo, já praticamente em ruínas. Braulino José foi o nosso principal informante. Levou-nos até ao cemitério da fazenda, em parte já invadido pelo mato”.

O enredo de Os Pareceres do Tempo é construído com base na tradição oral interna da obra, através do depoimento do filho de Policarpo – Braulino José, aos 132 anos de idade – dado ao narrador; depoimento este aliado à dinâmica do panorama da Bahia dos anos de setecentos. Mas

“a dualidade de versões do óbito infortunado fidalgo e – já agora, por que não dizer? – também possível guerreiro, de quem em linha direta descendia Policarpo Golfão, não alterou o desfecho do reconhecimento póstumo que por justiça a pátria lhe tributou, aquinhoando, como de fato aquinhoou, o seu filho único e legítimo com a já competentemente citada sesmaria no alto serão da Bahia, então sede do governo colonial do Brasil”. (LIVRO I, p. 13)

Eram, portanto, as terras do Brasil de quem aqui chegasse munido de documento de doação concedido pelo rei de Portugal.

Desde Cascalho, verificamos esse gosto do autor pela oralidade popular:

“Nos barulho do Coxó
Briga até as lagartixa
– Os calango de combléia
E elas de manulicha…” (p. 47).

“Viva Santa Rita,
Que é Santa mulher,
No céu e na terra,
Ela faz o que quer!” (p.78).

Em Os Pareceres do Tempo, a construção da vida de Policarpo, refletida no seu estado de espírito, nos vai sendo apresentada pela ótica popular, em pequenos versos:

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão”. (LIVRO XVII, p. 94)
“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Com Liberata no coração”. (LIVRO XLIX, p. 350)

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
De volta da sua vingança
Com Liberata na lembrança (LIVRO LII, p. 372)

“Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Levando com devoção
A sua igreja no coração”. (LIVRO LIV, p. 398)

Conta-nos o narrador – tão ironicamente distanciado do autor no prefácio – como as três raças que compõem a mestiçagem brasileira conviviam, mas não se misturavam, procurando conservar suas características sociais e culturais.

“E foram todos, depois, para a mesa, com o Fidalgo sentado à cabeceira, e Policarpo a seu lado. O padre Gumercindo e o padre Salgado, e mais o Quincas Alçada, ocuparam os outros lugares. Isto no corpo principal da mesa; porque, continuando-a, no seu desdobramento festivo, democraticamente franqueado aos principais auxiliares de Policarpo na fundação da fazenda e na edificação da casa-grande, outros lugares havia, reservados ao mestre-de-obras Dinis e a seu filho Serafim, e ao capitão-do-mato José do Vale e ao seu auxiliar Bertoldo. E abriram-se garrafas de vinho, e com generosidade o serviram, as garrafas transitando na mesa e esvaziando-se no degustado e comovido suceder dos goles, que o vinho, a todos apetecendo, também lhes lembrava, no enlevo de seus vapores, o tão distante quanto amado Portugal. (…)

(…) Os escravos e os índios comiam à parte, servindo-se duns fumegantes caldeirões comandados pelo índio Nicodemus (ex-Sinimu), disso encarregado por Quincas Alçada. (…)” (LIVRO XXIII, p. 134-5)

Ainda neste almoço, os escravos cantaram e dançaram:

“Taratatara kundê / Ogum de lê / Oyá jamba / Maion gangê / Kawô / Kawô / Oyá ajô”

E comenta o narrador:

“Ninguém entendia o que diziam, o que cantavam eles; mas as palavras, os sons da cantoria deles impressionavam pela tristeza profunda e doce, pela dorida melancolia que comunicavam, ao mesmo tempo em que eram carregados duma aspereza de imprecações dramáticas”.

E diz mais o narrador:

r“Ao contrário dos negros, os índios conservavam-se em silêncio, no mesmo lugar onde desde o começo estavam. Trocavam entre si, às vezes, um olha, mas, entre si, não se falavam. Ou falavam entre si com os olhos.” (LIVRO XXIII, p. 135-6)

Essa reação dos índios de não se deixarem dominar nem aculturar é-nos mostrada mais à frente da narrativa de modo decisivo:

“Policarpo reconheceu-o:
– Gonçalo!
– Não sou Gonçalo! – respondeu o índio, evidentemente zangado. Meu nome é Icurê. Gonçalo foi o nome que padre botou em índio. Gonçalo é nome de branco. Icurê não é branco. Índio é índio. Meu nome é Icurê.” (LIVRO I, p. 358)

Nessa narrativa nós, leitores, somos conduzidos pelos passos do tentacular Policarpo – “consta que era alto, e corpulento; era branco, e louro, com viçoso bigode e barba farta, emparelhados com basta cabeleira cacheada. Um homem bonito; um soberbo varão, segundo registro da mais fundamentada tradição oral.” (LIVRO I, p. 12) – até a cruel realidade de um contexto onde “o levar ou o trazer escravos assim acorrentados e amarrados, (…) era fato assaz corriqueiro naqueles tempos, nas ruas da Bahia; ninguém lhes prestava atenção, ou quase ninguém”. (LIVRO XI, p. 58).

Nesse mundo antiético, onde o caos e o cotidiano se justapõem – o vai-e-vem de escravos acorrentados, estranhos transeuntes traficados da África nas ruas da Bahia, a esbarrarem-se com as famílias portuguesas que, se por um lado mostravam religiosidade, temor a Deus, por outro, faziam tráfico de escravos, na sua maioria:

“Explicou, ainda, o Almeidão a Policarpo Golfão que, tendo em vista que a hospedaria não lhe proporcionava a ele satisfatórios lucros, resolvera, para não ter de resignar-se ao ganho dum sustento sem futuro, buscar em outra atividade a necessária complementação de renda. E que a escolha dessa atividade recaíra no tráfico de escravos, por ser ela, além de lucrativa, de muita respeitabilidade na Bahia. Ademais, quase todos que a ela se entregavam eram portugueses, não os de inferior condição, mas, ao contrário, os de mais representação na colônia; e, tanto isto era verdade, que os portugueses traficantes de escravos tinham mesmo a sua Irmandade própria, que cuidava dos seus interesses deles na sociedade civil e no Foro; e que constituía a dita Irmandade, em suma, uma respeitabilíssima entidade sócio-jurídica, que se organizara sob a grave invocação de São José. Enfim, a ninguém repugnava – fosse português o sujeito, fosse ele até mesmo brasileiro – a ninguém repugnava traficar com escravos, visto ser esta atividade, no comércio baiano, quiçá do Brasil, um dos ramos mais lucrativos.” (LIVRO III, p. 20)

O tráfico de escravos praticado pelo padre Salviano Rumecão é por ele cinicamente narrado ao seu amigo Quincas Alçada; justificando-se:

“A propagação da fé, dos ensinamentos da Igreja; o empenho em manter os fiéis à salvaguarda do Demônio, pregando-lhes a palavra de Jesus, e ensinando-lhes a serem justos uns para com os outros: o piedoso pastoreio das almas, para manter em fervorosa união o rebanho de Deus – se, de fato, todas essas altas atribuições dignificavam e elevavam a missão do sacerdote, não havia, na prática, como preterir, no exercício delas, a pecúnia, a remuneração, o santo e rico dinheirinho (…) E os mártires, como se sabia, tendiam, com o progresso, a desaparecer de todo.” (LIVRO V, p. 27-8)

Tudo a transcorrer dissimuladamente, num misto de profanação e religiosidade, compondo o decoro hipócrita de uma sociedade impudentemente barroca.

Os Pareceres do Tempo são também uma história de amor. Duas mulheres amam Policarpo: Liberata Rumecão e a escrava Gertrudes. Mas o triângulo amoroso não se consolida de fato, em nenhum momento da narrativa, talvez por preconceito ou por ser Poli carpo realmente fiel ao seu amor por Liberata, até mesmo depois da morte dela. Em determinado momento ele diz à Gertrudes:

“- Sabes que podias ter tido um filho meu? – perguntou-lhe Policarpo, olhando-a com ternura.
Ela baixou a cabeça. Ele, com um sorriso embaraçado:
– Esquece o que te disse. Hoje somos compadres. Hoje somos apenas amigos. De resto, Liberata te estimava muito, e sabia que eu te estimava. Esquece o que te disse. Liberata estará sempre entre mim e ti”. (LIVRO LIV, p. 393)

E é pelo amor de Liberata que Policarpo se enche de vigor, de coragem, de energia para realizar todos os seus empreendimentos, para viver. Liberata vivia no Solar dos Sete Candeeiros e a sua presença, com seus “cabelos muito negros” que “caíam-lhe em tranças sobre o busto, emoldurando-lhe o rosto gracioso” (LIVRO VI, p. 32) é sempre, para Policarpo, a luz que ilumina a áspera realidade daquele contexto “uma formosa jovem que, mostrando-se ao sol, e tendo por ele realçada a sua beleza (…) pareceu-lhe ela a Policarpo Golfão como se fora uma flor, ou uma luz, porque era luzente como uma estrela a sua figura gentil.” (LIVRO VI, p. 32)

E, no decorrer da narrativa:

“Era a donzela Liberata que entrava. Então, a nave acendeu-se em ouro e púrpura, e em ouro acesa iluminou nos altares os crisântemos, no teto a fímbria das cornijas, na capela-mor os tocheiros perfilados. (…)
– Liberata… As letras daquele mágico nome: forma e cor e luz saindo ordenados dum resplandecente maço de emoções que uma fita desatasse” (LIVRO XXVIII, p. 172-3). “Como uma luz que na sombra de repente se acendesse.” (LIVRO XXXVIII, p. 250)

Herberto Sales incorpora ao seu romance a figura de mestre Manuel, do saveiro Viajante Sem Porto – personagem de Jorge Amado

– “que nasceu em saveiro e morou sempre em saveiro, aparenta trinta anos, ninguém lhe dá os cinqüenta que traz no costado, todo ele é de uma cor só, um bronze escuro, e é tão difícil dizer se é branco, negro ou mulato; é um marinheiro que raramente fala e que é respeitado em toda a zona do cais do porto da Bahia e em todos os pequenos portos onde pára seu saveiro.”

Configura-se, aqui, uma personagem mítica, alegórica, semelhando-se, em alguns aspectos, a Caronte, o barqueiro que transportava as almas para o Hades, o inferno grego.

Em Os Pareceres do Tempo, mestre Manuel, num diálogo com Policarpo, explica a origem do nome do seu barco:

“- Mas, Manuel, que te deu na telha para batizares o teu barco com o nome de Viajante Sem Porto? Olha que estranhei esse nome! Então não tens tu um porto para ti e o teu barco? – tornou Policarpo Golfão, sorrindo e fazendo sorrir também o Almeidão e Quincas Alçada.
– É que esse nome foi dum barco do meu pai – disse mestre Manuel. Enfim, se isto é verdade, também verdade é que vivo de porto em porto com o meu barco, como se porto não tivéssemos ele e eu: quando chego a um, já tenho que partir para outro. Não me parece mau esse nome Viajante Sem Porto. Não o acho nada estranho. E só espero é que o Manuelzito, meu único filho homem, quando mais tarde lhe houver chegado a vez de me substituir, que seja também um mestre e que tenha também o seu Viajante Sem Porto, que haverá de tomar o lugar do meu.” (LIVRO X, p. 55)

E comenta o narrador de Os Pareceres do Tempo, numa clara referência a Jorge Amado:

“Praza a Deus que, em dias que hão de vir, encontre essa bela região do Recôncavo baiano um escritor que a descreva num livro tão belo quanto ela, que corra o Brasil e o próprio mundo; e que, captando toda a poesia que docemente a impregna, fale dos seus saveiros e da sua gente, talvez dum novo Viajante Sem Porto, talvez dum novo mestre Manuel”. (LIVRO XII, p. 66)

Conclusão

Os Pareceres do Tempo são uma obra de ficção, cujo contexto narrativo é a Bahia do final do século XVIII. O enredo deste romance é tecido aliando ficção e realidade; uma ficção construída com base na tradição oral interna da obra.

Os Pareceres do Tempo conta-nos histórias de amor, de dominação, mas, sobretudo, a história da formação de um povo; da construção de um país, do Brasil.

Herberto Sales, em Os Pareceres do Tempo, através da humanidade de suas figuras, apresenta-nos uma história cheia de força, vigorosamente atual, numa expressão e linguagem tão equilibradas, que fazem deste romance uma síntese da narrativa genuinamente brasileira.

Fonte:
http://www.seruniversitario.com.br

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José Lins do Rego (Fogo Morto)

José Lins do Rego é um dos escritores mais importantes do chamado Neo-Realismo Regionalista Nordestino, que integra a segunda fase do Modernismo brasileiro, ao lado de nomes como Graciliano Ramos, na prosa, e Drummond, na poesia.

O romance modernista dos anos 30 recebeu muitas sugestões da sociologia de Gilberto Freire, um dos organizadores do Congresso Regionalista do Recife, que, em 1926, apresentou um amplo projeto de estudo e compreensão da sociedade local. O livro mais importante de Gilberto Freire é Casa Grande e Senzala (1933).

Fogo Morto (1943) é a obra-prima de José Lins do Rego. Como romance de feição realista, esse livro procura penetrar a superfície das coisas e revelar o processo de mudanças sociais por que passa o Nordeste brasileiro, num largo período que vai desde o Segundo Reinado, incluindo a Revolução Praieira e a Abolição, até as primeiras décadas do século XX.

O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. O romance conta a história de um poderoso engenho, o Santa Fé, desde sua fundação até o declínio, quando se transforma em “fogo morto”, expressão com que, no Nordeste, designam-se os engenhos inativos. Retomando o espírito de observação realista, o autor produz um minucioso levantamento da vida social e psicológica dos engenhos da Paraíba. Em virtude do apego ao cotidiano da região, Fogo Morto apresenta não apenas valor estético, mas também interesse documental.

Fogo Morto não se esgota na classificação de romance regionalista, embora essa seja uma noção correta. Há outros componentes importantes na obra, a partir dos quais se pode enquadrá-la numa tipologia consagrada. Talvez o mais ilustre antecedente de Fogo Morto na literatura brasileira seja O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Em que sentido? No sentido de tomar uma personagem coletiva como objeto de análise. Assim como Aluísio investiga o nascimento, vida e morte de um cortiço do Rio de Janeiro, José Lins penetra no surgimento, plenitude e declínio do Engenho Santa Fé, localizado na zona da mata da Paraíba. Com efeito, o engenho parece possuir vida própria, embora suas células sejam as pessoas que o formam. Como análise quer dizer decomposição, o autor decompõe as pessoas como forma de expor a constituição do todo. Por essa perspectiva, Fogo Morto tanto pode ser entendido como um romance social quanto psicológico. Em rigor, uma categoria não existe sem a outra. O livro é forte em ambas as dimensões.

Embora Fogo Morto apresente uma estória muito movimentada, não se trata de um romance de ação: pretende atrair pela problematização social e existencial, e não pela surpresa dos acontecimentos. O estilo da obra é modernista, pois baseia-se na linguagem cotidiana, revestindo-se de oralidade espontânea, isto é, o autor procura escrever como se fala. Resulta daí a impressão de vivacidade e dinamismo. Possui força dramática e senso do real. Poucas vezes um autor obteve tanto êxito na manipulação da frase curta e elementar, com palavras extraídas do uso diário. Seu ritmo sintático e narrativo é nervoso, quase frenético, imitando o vaivém das pessoas pelas estradas do engenho. Pertence ao Regionalismo Nordestino, porque aborda a paisagem específica dessa região, mas as questões abordadas transcendem os limites regionais, o que é comum nas obras bem realizadas.

Em Fogo Morto, o autor soube transformar em ficção a vida real dos engenhos nordestinos. Trata-se de uma sociedade decadente, marcada pelo ressentimento, pelo desajuste e pela revolta. Domina em tudo uma atmosfera de ruína social e depauperamento psicológico, embora persistam aqui e ali sinais de uma felicidade antiga, restrita aos habitantes da casa-grande. Sem pertencer propriamente ao famoso Ciclo da Cana-de-Açúcar, Fogo Morto é uma retomada mais densa da matéria dos romances que o compõem: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), e Usina (1936). Neste último romance, José Lins retrata a decadência dos engenhos por força do processo industrial das usinas, que suplantam a produção artesanal. Todavia, em Fogo Morto, ainda não há sinais de industrialização na produção de açúcar. Quanto a José Amaro, sim, sua decadência decorre em parte do processo de industrialização das selas, que já ocorre nos centros urbanos.

A fábula do livro não apresenta rigorosa unidade, isto é, não conta apenas uma estória, mas diversas, porque o propósito do romance é investigar e revelar o variado tecido social de um engenho típico da Paraíba. Assim, o livro divide-se em três partes: “O Mestre José Amaro”, “O Engenho de Seu Lula” e “Capitão Vitorino Carneiro da Cunha”.

Na primeira parte domina a figura do seleiro Zé Amaro, morador revoltado do Engenho Santa Fé, que enfrenta enorme problema de inadaptação com o mundo. Na verdade, está praticamente se despedindo da vida. Em aguda crise existencial, pressente a morte nos mínimos detalhes. Permanece sentado na tenda de trabalho em frente de casa, à beira da estrada, por onde passam os diversos moradores do engenho.

A segunda parte de Fogo Morto traça os antecedentes da situação de José Amaro, que é semelhante à de seu compadre Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, cujo destino também se confunde com a vida do engenho. Nesta parte, há um longo flashback ou retrospectiva da formação do latifúndio, em que se evocam as lutas do fundador, Capitão Tomás Cabral, para o estabelecimento daquela unidade econômica.

A terceira parte concentra-se nas aventuras do Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo de justiça. Nesse particular, irmana-se a José Amaro. Mas é radicalmente contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, empregava a valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua figura resulta numa mescla de momentos sublimes com momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões, é a única personagem gloriosa no romance.

Personagens que não sofrem alteração são consideradas sem profundidade psicológica. Por isso são chamadas planas, das quais os tipos são uma variação. José Passarinho é personagem plana, pois mantém sempre o mesmo estatuto, do princípio ao fim do romance. Por outro lado, trata-se de personagem secundária, cuja função é apoiar a existência das demais. Assim são o pintor Laurentino, o aguardenteiro Alípio, o negro Floripes e outros coadjuvantes.

Tipo é a personagem que se confunde com o estereótipo, no qual se condensam características genéricas de uma certa categoria de pessoas. Capitão Antônio Silvino é um tipo revestido de significação alegórica. Funciona como uma espécie de emblema, representando a força da subversão, o poder de uma justiça ilegal porém legítima. Tira dos ricos para dar aos pobres. O Tenente Maurício é semelhante ao cangaceiro, pois também representa uma instituição, a força legal do governo, manchada de mando ilegítimo.

As personagens que sofrem mudança substancial possuem mais densidade psicológica, sendo por isso chamadas de esféricas. As três personagens principais de Fogo Morto são esféricas, pois toda a trama do romance decorre das transformações de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a personagem, mais rico o seu significado. Num certo sentido, essas três personagens podem ser consideradas loucas, embora em diferentes graus e com sintomas diversos.

A eficiência das situações e personagens de Fogo Morto decorre também do fato de o autor escrever em tom memorialístico, como se fizesse uma crônica sobre o que vivenciou em sua experiência com a realidade do povo da Paraíba, sua terra natal. Sendo um neo-realista, só poderia escrever sobre fatos observados empiricamente.

Fogo Morto é uma obra caracterizada pela captação da vida interior das personagens. Nela, a paisagem externa é importante, mas as vivências interiores recebem mais atenção do artista. Há muita ruminação psicológica no livro. Tal investigação do universo mental processa-se sobretudo através do discurso indireto livre, pelo qual se chega a densos monólogos interiores, que se confundem com o fluxo de consciência.

Fonte:
http://www.seruniversitario.com.br

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Tomás Antônio Gonzaga (Marília de Dirceu)

  

  É a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa. Segundo o autor do prefácio da obra (Lisboa – 1957), Rodrigues Lapa, não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal – foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo.”

    Dividido em liras que a partir da publicação do poema em livro, em 1792, foram declamadas, musicadas e cantadas em serestas e saraus pelo Brasil afora. Referindo-se à lira III da parte III, Manuel Bandeira escreveu : “Nessa lira esqueceu o Poeta a paisagem e a vida européia, os pastores, os vinhos, o azeite e as brancas ovelhinhas, esqueceu o travesso deus Cupido, e a sua poesia reflete com formosura a natureza e o ambiente social brasileiro, expressos nos termos da terra com um fino gosto que não tiveram seus precursores”.

    Existem três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.

    A obra se divide em duas partes (há uma terceira, cuja autenticidade é contestada por alguns críticos):

    Na 1ª parte estão os poemas escritos na época anterior à prisão do autor. Nela predominam as composições convencionais, as características arcádicas: o pastor Dirceu celebra a beleza de Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, entretanto, as convenções mal disfarçam a confissão amorosa do amor: a ansiedade de um quarentão apaixonado por uma adolescente; a necessidade de mostrar que não é um qualquer e que merece sua amada; os projetos de uma sossegada vida futura, rodeado de filhos e bem cuidado por suas mulher etc. Nesta 1ª parte das liras o autor denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade.

    Já a 2ª parte (e a terceira, se autêntica), foi escrita na prisão da ilha das Cobras, e os poemas exprimem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Encontramos aí a melhor poesia de Gonzaga. Entende-se aqui que as características pré-românticas se fazem sentir mais agudamente. O sentimento da injustiça, da solidão, da saudade de Marília, o temor do futuro e a perspectiva da morte rompem constantemente o equilíbrio clássico. As convenções, embora ainda presentes, não sustentam o equilíbrio neoclássico. O tom confessional e o pessimismo prenunciam o emocionalismo romântico. Nesta 2ª parte das liras, há o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas.

    Em Marília de Dirceu, há a refinada simplicidade neoclássica: uma dicção aparentemente direta e espontânea, cheia de imagens graciosas e de alegorias mitológicas; um ritmo agradável, suavizado pelos versos curtos, pela alternância de decassílabos e hexassílabos, pelo uso do refrão e dos versos brancos.

    A estrutura métrica das liras são a versificação pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo.

    Temas e formas

    I

    1 Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
    2  que viva de guardar alheio gado,
    3  de tosco trato, de expressões grosseiro,
    4 dos frios gelos e dos sóis queimado.
   5  Tenho próprio casal e nele assisto;
    6 dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
    7  das brancas ovelhinhas tiro o leite
    8 e mais as finas lãs, de que me visto.

    9 Graças, Marília, bela,
    10  graças à minha estrela!
   
11 Eu vi o meu semblante numa fonte:
    12    dos anos inda não está cortado;
    13    Os pastores que habitam este monte
    14 respeitam o poder do meu cajado.
    15    Com tal destreza toco a sanfoninha,
    16    que inveja até me tem o próprio Alceste:
    17    ao som dela concerto a voz celeste,
    18    nem canto letra que não seja minha.

    19 graças, Marília bela,
    20   graças à minha estrela!

    Uma leitura atenta do fragmento transcrito permite-nos identificar algumas constantes das Liras:

    1. Pastoralismo — bucolismo: na exaltação da vida pastoril, campestre; no entendimento de que a felicidade e a beleza decorrem da vida no campo. É da convenção arcádica o poeta identificar-se artisticamente como pastor e identificar sua musa como pastora. Observe estas palavras: “vaqueiro”, “gado”, “ovelhinhas”, “fonte”, “pastores”, “monte”, “cajado”.

    2. Otimismo — narcisismo: no estribilho, o poeta manifesta-se satisfeito com o próprio destino: “Graças, Marília bela, / Graças à minha estrela”. É evidente o propósito de auto-valorização (narcisismo): nos versos 11 e 12; na afirmação da juventude: nos versos 13 e 14; na alusão à virilidade; e na exaltação da sensibilidade artística: nos versos 15 e 16.

    3. Ideal burguês de vida: na afirmação da condição de proprietário, no orgulho pela posse da terra (versos de 5 a 8), apóia-se o poeta para expressar a consciência de superioridade sobre “o vaqueiro que viva de guardar alheio gado”, que o poeta deprecia (versos 3 e 4). Observa-se esse ideal também no verso 19:

    Que prazer não terão os pais ao verem
    Com as mães um dos filhos abraçados;
    Jogar outros a luta, outros correrem
    Nos cordeiros montados!
    Que estado de ventura!

    4. Simplicidade: observe o predomínio da ordem direta da frase e a clareza da expressão, sem muitas figuras de linguagem, próxima do ritmo da prosa.

    II

    A minha amada
    é mais formosa
    que branco lírio,
    dobrada rosa,
    que o cinamomo,
    quando matiza
    co’a folha a flor:
    Vênus não chega
    ao meu amor.

    Vasta campina,
    de trigo cheia,
    quando na sesta
    co vento ondeia,
    ao seu cabelo,
    quando flutua,
    não é igual.
    Tem a cor negra,
    mas quanto val!
    (…)

    III

    (…)

    Aqui um regato
    corria, sereno,
    por margens cobertas
    de flores e feno;
    à esquerda se erguia
    um bosque fechado;
    e o tempo apressado,
    que nada respeita,
    já tudo mudou.

    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    o mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    5. Os dois textos revelam a vertente mais convencional da poesia de Gonzaga: a aproximação com o estilo rococó, marcado pela graça, leveza e frivolidade, pelos idílios campestres, pela natureza delicada e aprazível (locus amoenus). Observe os metros curtos, melódicos que emolduram a suavidade do quadro descrito, como os movimentos sutis de um minueto, dançado na Corte de Luís XV, na época de ouro do Rococó.

    6. Mas, em alguns momentos, avulta o realismo descritivo, captando a rusticidade da paisagem e da vida da Colônia. Exemplo marcante é o fragmento que segue. Observe as referências à mineração e à agricultura:

    IV

    Tu não verás, Marília, cem cativos
    tirarem o cascalho e a rica terra,
    ou dos cercos dos rios caudalosos,
    ou da minada serra.
    Não verás separar ao hábil negro
    do pesado esmeril a grossa areia,
    e já brilharem os granetes de oiro
    no fundo da batéia.

    Não verás derrubar os virgens matos,
    queimar as capoeiras inda novas,
    servir de adubo à terra a fértil cinza,
    lançar os grãos nas covas.
    Não verás enrolar negros pacotes
    das secas folhas do cheiroso fumo;
    nem espremer entre as dentadas rodas
    da doce cana o sumo.

    (…)

      V

    Com os anos, Marília, o gosto falta,
    e se entorpece o corpo já cansado:
    triste, o velho cordeiro está deitado,
    e o leve filho, sempre alegre, salta.
    A mesma formosura
    é dote que só goza a mocidade:
    rugam-se as faces, o cabelo alveja,
    mal chega a longa idade.

    Que havemos de esperar Marília bela?
    que vão passando os florescentes dias?
    As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
    e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
    Ah! não, minha Marília,
    aproveite-se o tempo, antes que faça
    o estrago de roubar ao corpo as forças,
    e ao semblante a graça!

    7. O texto V, dos mais belos das liras, manifesta a atitude clássica, o carpe diem (= “aproveita o dia”). Na primeira estrofe, o poeta expressa a consciência da fugacidade do tempo. Na estrofe seguinte, propõe à Marília a fruição dos prazeres da vida, antes que o tempo fizesse o estrago de “roubar ao corpo [do poeta] as forças, e ao semblante [de Marília], a graça.

    8. Nas liras escritas no cárcere, predomina o lirismo lamuriento, pré-romântico, mas submetido ainda à disciplina e sobriedade neoclássicas. Nas últimas liras, nota-se que, ainda quando nem os céus acudiam o poeta em suas atribulações, a expressão de suas dores é contida:

       VI

    Porém se os justos céus, por fins ocultos,
    em tão tirano mal me não socorrem,
    verás então que os sábios,
    bem como vivem, morrem.
    Eu tenho um coração maior que o mundo,
    tu, formosa Marília, bem o sabes:
    um coração, e basta,
    onde tu mesma cabes.

    9. As contradições também ocorrem: ora Dirceu se diz pastor, ora se diz magistrado; Marília é muitas vezes pretexto para o exercício poético de Gonzaga e seus traços variam:

    Aqui Marília tem cabelos pretos:

    VII

    (…)

    Os seus compridos cabelos,
    que sobre as costas ondeiam,
    são que os de ApoIo mais belos,
    mas de loura cor não são.
    Têm a cor da negra noite,
    e com o branco do rosto
    fazem, Marília, um composto
    da mais formosa união.

    (…)

    Aqui tem cabelos loiros:

    VIII

    (…)

    Os teus olhos espalham luz divina,
    a quem a luz do sol em vão se atreve;
    papoila ou rosa delicada e fina
    te cobre as faces, que são cor da neve.
    Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
    teu lindo corpo bálsamos vapora.
    (…)

    Na lira 64, Gonzaga refere-se a Tiradentes depreciativamente. Parece que as expressões ofensivas com que se dirige ao alferes foram ditadas pelo propósito de minimizar seu comprometimento na Inconfidência, já que o processo ainda estava em curso. É o que argumentam os admiradores do poeta, na tentativa de “salvá­lo” como vulto histórico e inconfidente.

    IX

    Ama a gente assisada  (1)
    a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
    que ponha uma ação destas (2)
    nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? (3)
    E quando a comissão lhe confiasse,
    não tinha pobre soma,
    que por paga ou esmola lhe mandasse?

    X

    O mesmo autor do insulto
    mais a riso do que a terror me move;
    deu-lhe nesta loucura,
    podia-se fazer Netuno ou Jove.
    A prudência é tratá-lo por demente;
    ou prendê-lo, ou entregá-lo,
    para dele zombar a moça gente.

NOTAS:
(1) ajuizada
(2) a Inconfidência
(3) Tiradentes

Fonte:
Passeiweb

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Franklin Jorge (Nilto Maciel: O Universo Mágico dos Gregotins)

Publiquei neste domingo na coluna que assino no Novo Jornal e o reproduzi em minha página na web, pequeno e despretensioso comentário contendo minhas impressões de leitura de Nilto Maciel, um prolífico escritor de Baturité que se recolheu à Fortaleza, de onde irradia-se em sortilégios literários de que é prova cabal esse livro que não pode faltar na biblioteca dos pesquisadores e dos amantes da literatura.

Em Gregotins de Desaprendiz [Editora Bestiário, Porto Alegre, 2013], uma compilação que creio bastante resumida da colaboração do autor em diversos veículos que acolhiam a literatura contemporânea. Nesse livro que constitui um grato reencontro com autores e companheiros de geração, escritores que estrearam naqueles anos 70 do século passado, por todo o país. À página 140 e na segunda orelha, transcreve Nilto palavras de admiração que tenho escrito sobre sua atividade intelectual ímpar e benfazeja.

Nilto leu centenas de livros, milhares talvez; leu e opinou sobre os mesmos, e agora, em edições bem cuidadas, os divulga, cônscio de que a arte começa com o exercício da generosidade. Nesse livro, reitero, o leitor arguto e sensível, perspicaz e infatigável, desperta-nos a curiosidade por esses autores circunscritos, majoritariamente, em suas províncias natais, autores sem editoras, sem distribuição, sem mídia e sem leitores, que predominam nos escritos desse escritor cearense que há mais de 40 anos difunde a literatura brasileira contemporânea.

Devotou-se o autor de Gregotins a devorar e divulgar os impressos recebidos como doação, presente, mimo, como o confessa na apresentação à pág. 7: “Poucos dos escritores por mim lidos naquele período tiveram sobras divulgadas por editoras de grande porte”. Desde aquele ano de 1976, quando pôs em circulação e editou O Saco que colocou a literatura marginal no circuito das discussões, Nilto não parou mais e com isso tem prestado inestimável serviço às letras.

Assim, graças aos seus registros sobre autores, deparei-me à pág. 14 com uma curta e perspicaz resenha sobre a escritora Socorro Trindad, enfocada a partir da leitura do livro Cada Cabeça uma Sentença e descobre, na autora nascida em nossa pacata e ilustre Nísia Floresta, a antiga Papary (RN), duas virtudes essenciais: a capacidade de misturar o trigo e o joio e esplêndida cultura literária. E fico imaginando o que diria o autor – se é que não o disse em um outro texto – sobre o livro de estreia de Trindad, Os Olhos do Lixo, que eu possuía com o autógrafo da autora.

Nessa colaboração advinda de publicações diversas, algumas já extintas, o registro de uma atividade intelectual que se destaca e encoraja-nos a pesquisar e conhecer esse movimento que deu vida à produção literária da época. Resenhas e ensaios dispersos em publicações como o Suplemento Minas Gerais; O Povo e O Unitário [Fortaleza]; Suplemento da Tribuna da Imprensa [Rio de Janeiro]; Correio Braziliense e Jornal de Brasília; Suplemento Cultural O popular, Folha de Goiaz e Opção [Goiânia]; Jornal da Semana e Diário do Comércio [Recife], estão reunidas aqui, por Nilto Maciel, que enumera 42 autores dentre os inumeráveis que perfilou em centenas de resenhas que suponho ainda inéditas em livros. São eles, assim nominados em Gregotins: Francisco Carvalho: um poeta maior; O universo fabuloso de Juarez Barroso; Socorro Trindad: misturando o joio e o trigo; Joanyr de Oliveira: um poeta quase bíblico; Miguel Jorge: veias e vinhos; Nagib Jorge Neto: cordeiros e lobos; José Alcides Pinto: ordem e desordem; Caio Porfírio Carneiro: a incandescência do sal; Adrino Aragão: o suor da escrita; O pássaro de luz de Guido Heleno; Carlos Emílio Corrêa Lima: epopeia e mito; Emanuel Medeiros Vieira: desespero e morte; O engenho poético de Batista Lima; Aguinaldo Silva: reflexos grotescos; Enéas Athanázio: histórias catarinenses; Salomão Sousa: a lógica do pessimismo; Glauco Rodrigues Corrêa: literatura policial com L maiúsculo; Silveira de Souza: nós e o fogo; Dimas Macedo: poemas das lavras de um poeta; José Lemos Monteiro: crônica de uma era monstruosa; Avarmas de Miguel Jorge; Luís Martins da Silva: a fertilidade da poesia; O filão de Luciano Barreira; Valdomiro Santana: concisão e profusão no dia do juízo; Diogo Fontenelle: um topógrafo da poesia; Naomar de Almeida: o homem como natureza; O laboratorista Paulo Nunes Batista; Ubirajara Galli: êxtase fabular; O. G. Rego de Carvalho: entranhas da alma; Wilson Pereira: narrativas poéticas; Floriano Martins: poesia da paisagem; W. J. Solha: a lucidez possível; José Peixoto Júnior: sobre o Cariri; A poesia de Sérgio Campos; Jesse Navarro Jr: o poder da síntese ou a síntese do poder; Antonio Possidônio Sampaio: documentário do ABC.

O livro conclui com a publicação de alguns pequenos e consistentes ensaios sobre temas correlatos, a saber: 64 D.C. (antologia); Elefante enjeitado; Outros poetas do Ceará; Mais nove romancistas; Outros poetas de Goiás; Outros contistas; Duas antologias de poemas; Duas antologias de contos; e, mais, informações precisas sobre o autor [dados biográficos, livros publicados, fragmentos da volumosa Fortuna Crítica que bem a merece o escritor Nilto Maciel.
(O santo ofício, http://www.osantoofício.com, 21/4/2013)

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2013/04/o-universo-magico-dos-gregotins.html

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Joyce Cavalccante (O Cão Chupando Manga)

Sob o provocativo título de O Cão Chupando Manga, foi publicado pela editora Bertrand Brasil mais um surpreendente romance de Joyce Cavalccante. O Cão Chupando Manga é uma expressão muito usada no nordeste para definir qualquer coisa superlativa. Zezito, personagem maior dessa história, é feio ao ponto de ofender mas incrivelmente capaz de se dar bem, daí a autora ter se apoderado dessa frase característica do colorido e imagético linguajar do povo lá de cima do mapa, para oferecer à literatura brasileira este delicioso e divertidíssimo romance que tem como cenário a cidade de São Paulo entre os anos 1971 e 1985, movimentada pela ambição dos políticos, pela ganância dos empresários, pelo amor livre dos jovens e por um audacioso garçon cearense.

Narrada em linguagem fluente e agradável, a exemplo das melhores obras clássicas, essa ficção faz seus personagens atravessarem quase quinze anos de real história brasileira, que aqui é usada como pano de fundo para as fortes emoções tecidas nos corações das personagens. O final é surpreendente, comprovando título tão bem escolhido.

Joyce sempre foi conhecida como autora de obras, no mínimo, polêmicas que envolvem temas transgressores como a sexualidade feminina, a luta da mulher para se afirmar num mercado de trabalho adverso, os problemas enfrentados por elas quando tentam sobreviver num mundo concebido apenas no masculino. Aqui, além de confirmar essa tendência, a autora confirma também seu estilo literário maduro e estimulante que vem encantando os leitores, não só do Brasil, mas também do exterior.

322 PÁGINAS.
web page da autora:
http://www.JoyceCavalccante.com

Fonte:
REBRA

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Adelto Gonçalves (Ramalho Ortigão: vencido e vencedor da vida)

RAMALHO ORTIGÃO: UM MARCO NA LITERATURA PORTUGUESA, de Ednilo Soárez. 

Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 382 págs., 2008.

I

No Brasil, entre os autores clássicos da Língua Portuguesa, Eça de Queirós (1845-1900) talvez só perca em popularidade para Machado de Assis (1839-1908). Já Ramalho Ortigão (1836-1915), que foi professor de Francês de Eça no Colégio da Lapa, no Porto, e deixou uma obra tão importante quanto a do ex-aluno, ainda é bem pouco conhecido.

Foi para ajudar a reparar esse desconhecimento e “por uma questão de justiça” que Ednilo Soárez, de 69 anos, diretor acadêmico da Faculdade Sete de Setembro, de Fortaleza, e membro da Academia Fortalezense de Letras, escreveu Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa (Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, 2008), que traz ainda prefácio assinado pelo professor doutor Ernesto Rodrigues, do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e textos de apresentação de Linhares Filho e Dimas Macedo.

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto e estudou Direito na Universidade de Coimbra. De regresso ao Porto, dedicou-se ao ensino, dando aulas de Francês no Colégio da Lapa, do qual seu pai era diretor. Estabeleceu-se em Lisboa ao ser nomeado oficial da secretaria da Academia das Ciências, começando a colaborar em vários jornais e revistas. Fez várias viagens ao estrangeiro, idas que influenciaram o seu modo de ver Portugal, mas residiu durante a maior parte de sua vida na Calçada dos Caetanos, na freguesia da Lapa, em Lisboa.

Ortigão e Eça foram amigos da vida inteira e, inclusive, escreveram As Farpas, opúsculos de capa alaranjada que começaram a aparecer nas bancas e quiosques de Lisboa a 17 de junho de 1871. Na verdade, a publicação teve a colaboração de Eça de Queirós pelo menos até o número de setembro-outubro de 1872, quando o escritor partiu como cônsul para as Antilhas espanholas.

Já a de Ramalho estender-se-ia ao longo de 11 anos. Para quem quiser conhecer o que foi esta colaboração a quatro mãos dos escritores, diga-se que saiu em 2004 uma nova edição de As Farpas – crônica mensal da política, das letras e dos costumes, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, livro editado sob coordenação-geral de Maria Filomena Mônica (Cascais, Principia).

Em Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa, Soárez traça um retrato da vida literária portuguesa do século XIX, indo do Romantismo, de Alexandre Herculano (1810-1877), ao Realismo, de Eça de Queirós, além de abordar as três principais obras do autor, A Holanda, John Bull e As Farpas, na impossibilidade de analisar uma obra imensa que reúne pelo menos 21 livros, dos quais três em dois volumes. Para o autor, esta obra é um reconhecimento pelo que o povo português fez pela nação brasileira, pois “foi graças a Portugal que temos essa dimensão territorial, essa miscigenação característica e essa diversidade de religiões no Brasil”.

II

Como observa Dimas Macedo num dos textos de apresentação, Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa não constitui uma biografia no sentido clássico de uma descrição cronológica dos fatos de uma vida, mas “um tributo à historiografia das ideias que determinaram a formação e a autonomia de voo de Ramalho Ortigão”. É, acrescente-se, mais uma “viagem sentimental”, um pouco à maneira de Laurence Sterne (1813-1868), em que o ensaísta percorre de maneira figurada o Portugal dos séculos XVIII e XIX para explicar como o país caiu na chamada “questão coimbrã” que resultou da reação de uma plêiade de jovens intelectuais, insatisfeitos com a situação de inferioridade à que estava reduzida a nação.

A essa época, Ramalho Ortigão surge, ao lado de Eça de Queirós, Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845-1894) e Guerra Junqueiro (1850-1923), formados em Coimbra, como um dos espíritos mais lúcidos e representativos deste momento da literatura portuguesa. Foi contra a paralisia à que estaria relegado Portugal que esta geração turbulenta, a chamada Geração de 70, revoltou-se, voltando os olhos especialmente contra Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), que representava todo o status de tradição e autoridade que os jovens de então não queriam mais aceitar. Por isso, o grupo começou a idealizar um programa de reforma social e política.

Como disse Antero de Quental numa das famosas conferências do Cassino, em duzentos anos, a Península não produzira um só único homem superior, que se pudesse colocar ao lado dos grandes criadores da ciência moderna. Para Antero e para os seus companheiros de geração, enquanto as grandes nações européias fixaram sua riqueza na indústria e na agricultura, portugueses e espanhóis, com a conquista, teriam arruinado seu comércio, indústria e agricultura, propiciando as condições para o surgimento de gerações que haviam condenado Portugal ao atraso.

Como mostra Soárez, se essas conferências inflamadas serviram para incendiar o ambiente cultural e político de Lisboa, o foi por pouco tempo porque logo, com a passagem dos anos, esses jovens veriam que não seria possível, por meio da literatura, devolver a Portugal as glórias (ainda que hiperbólicas) das grandes navegações do século XVI. Frustrados, os antigos jovens de Coimbra formaram o grupo dos Vencidos da Vida, fixado em onze componentes porque Eça de Queirós, por pura superstição, não queria que fossem treze nem doze (para evitar qualquer associação com o número considerado fatídico).

III

Munido de vasta bibliografia, Soárez recupera os caminhos cruzados de Ortigão e Eça, detendo-se especialmente no ódio que ambos devotavam à classe política portuguesa do tempo que, como no Brasil, ainda não é muito diferente da de hoje– é bem provável que, tanto lá como cá, seja ainda pior. Lembra o autor que Ortigão criticava os políticos porque usavam frases de efeito, sem consistência prática, além de cometer muitos erros. “O plebeísmo da palavra torna rasteira a opinião. Uma Câmara que fala mal é impossível que proceda bem”, dizia.

Quem quiser, por exemplo, usar esta frase, ao se referir ao Congresso brasileiro, por certo, não agirá mal. Ou ainda esta desta Eça de Queirós: “O corpo legislativo há muitos anos que não legisla. (…) vem apenas a ser uma assembléia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim”.

Soárez, porém, não só louvaminha Ortigão e Eça, pinçando as suas melhores frases aqui e ali. Destaca também que Ortigão não escapou aos preconceitos de seu século, embora tivesse sido um dos espíritos mais lúcidos de uma geração brilhante, deixando-se trair pelo espírito machista, quando afirma: “(…) Nada a prende ao colégio: nem a serenidade da vida – porque é o sangue buliçoso e sacudido dos seus quatorze anos que aspira a repousar: nem o estudo – porque a mulher pela constituição de seu cérebro não adere aos interesses do estudo e da ciência”.

Para Soárez, a vida e a obra de Ramalho Ortigão representam uma síntese perfeita do que foi o século XIX, especialmente com As Farpas, que ocupam um capítulo especial no conjunto de sua produção literária, tal a mestria com que maneja a ironia. Um exemplo pinçado por Soárez é a maneira sarcástica como pinta os diplomatas portugueses de seu tempo, que passariam apertados em razão da pouca disponibilidade do erário régio para sustentá-los no exterior. “(…) E se eles não podem alcançar bons tratados para o país – é porque andam ocupados em arranjar mais roast-beef para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. Lá fora sabe-se isto: e é sempre com terror que os donos da casa vêem entrar o embaixador português, à frente do seu pessoal esfomeado”.

IV

O livro de Soárez foi apresentado no dia 8 de novembro de 2008 na Reitoria da Universidade de Lisboa, em sessão que contou com a participação do professor Ernesto Rodrigues, autor do prefácio, e com a presença do reitor António Nóvoa, e do embaixador do Brasil, Celso Marcos Vieira de Sousa, abrindo o ano acadêmico da instituição.
Soárez é ainda membro da Academia Cearense de Retórica e sócio-efetivo do Instituto do Ceará e da Associação Brasileira de Bibliófilos. Escreveu o livro didático Idéias gerais para uma sala de aula feliz, a biografia Edilson Brasil Soárez, um marco na Educação, o romance A brisa do mar e o ensaio Miscigenação nos Trópicos.

Fonte:
Revista Storm

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Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 3

CAPÍTULO XIV / A INSCRIÇÃO

Tudo o que contei no fim do outro Capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, e sim dispostos:

BENTO
CAPITOLINA

Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro… Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.

Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos outros… Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálix, os lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrilégio, leitora minha devota a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nossas mãos, unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mm uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer cousas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham…

CAPÍTULO XV / OUTRA VOZ REPENTINA

Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:

–Vocês estão jogando o siso?

Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escritos.

— Capitu!

–Papai!

–Não me estragues o reboco do muro.

Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal, a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra cousa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto podia ser dele como da mãe – fê-lo rir, era o essencial. De resto, ele chegou sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso, ou menos que duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe pôs. Ninguém lhe chamava assim lá em casa; era só o agregado.

–Vocês estavam jogando o siso? perguntou.

Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto: Capitu respondeu por ambos.

–Estávamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não agüenta.

–Quando eu cheguei à porta, não ria.

–Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?

E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente sério – eu estava ainda sob a ação do que trouxe, entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há cousas que só se aprendem tarde é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, após duas voltas, foi ter com a mãe, que continuava à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:

–Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.

–Está.

–Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição, em casa; escrevo todas as noites que é um desespero; negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo? Está ali no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.

Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo céu nem pela terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canários, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava pássaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no próprio quintal, armando alçapões. Também, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente.

CAPÍTULO VI / O ADMINISTRADOR INTERINO

Pádua era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. A primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpétua de família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a tia, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Pádua. Escutai; a anedota é curta.

O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dous meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a cousa nenhuma.

–Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família, tornar atrás… Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?

–Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre se que sua mulher não tem outra pessoa… e que há de fazer? Pois um homem… Seja homem, ande.

Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova,–ou então no quintal, ao pé do poço, como se a idéia da morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava:

–Joãozinho, você é criança?

Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha… Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe.

–Vontade minha, não; obrigação sua.

–Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.

Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversa e dar notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na figura de – dous amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo.

Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou s falar da administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a hégira, donde ele contava para diante e para trás.

–No tempo em que eu era administrador…

Ou então:

–Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, ou um dous meses antes… Ora espere; a minha administração começou. É isto, mês e meio antes; foi mês e meio antes, não foi mais.

Ou ainda:

–Justamente; havia já seis meses que eu administrava…

Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o Padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com o vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: “Não desprezes a correção do Senhor; Ele fere e cura”

CAPÍTULO XVII / OS VERMES “ELE FERE E CURA!”

Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.

–Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhermos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.

CAPÍTULO XVIII / UM PLANO

Pai nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falávamos do seminário. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notícia era a que me afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera.

–Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários; não entro, é escusado teimarem comigo, não entro.

Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me animo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras furiosas:

–Beata! carola! papa-missas!

Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha explosão. É verdade que também gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, cousa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe é que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas… Quis defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça… Eu, assustado, não sabia que fizesse, repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminário.

–Você? Você entra.

–Não entro.

–Você verá se entra ou não.

Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não e ainda a Capitu do costume, mas quase. Estava séria, sem aflição, falava baixo. Quis saber a conversação da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia respeito.

–E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim.

–Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me há de pagar. Quando eu for dono d. casa, quem vai para a rua é ele; você verá; não me fica um instante Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção demais. Parece até que chorou.

–José Dias?

–Não, mamãe.

–Chorou por quê?

–Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era cousa de choro… Ele chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para não ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga!

Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembrá-las, não me acho ridículo; a adolescência e a infância não são, neste pontos ridículas; é um dos seus privilégios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na madureza e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça em ameaçar muito e não executar nada.

Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras de uns e de outros, e o tom delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da conversa, que era ela mesma, não lhe pude dar toda a significação. A tenção de Capitu estava agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga que ela, temente a Deus, não podia deixar de cumprir. Fiquei tão satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as injúrias que lhe saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão dela e apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tínhamos chegado à janela; um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:

–Sinhazinha, qué cocada hoje?

–Não, respondeu Capitu.

–Cocadinha tá boa.

–Vá-se embora, replicou ela sem rispidez.

–Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas.

Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que em meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeição. como imperfeição, mas o momento não é para definições tais; fiquemos em que a minha amiga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contrário, o pregão que o preto foi cantando, o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância:

Chora, menina, chora

Chora, porque não tem

Vintém,

a modo que lhe deixara uma impressão aborrecida. Da toada não era; ela a sabia de cor e de longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio que a letra, destinada a picar a vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse:

–Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.

Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não lhe disseram nada, ou só agradeceram a boa intenção. Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da aventura.

Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e hipotético de me mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera. Tal era a feição particular do caráter da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus projetos de resistência franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação de empenho, da palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podíamos contar. Rejeitou tio Cosme, era um “boa-vida”, se não aprovava a minha ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina era melhor que ele, e melhor que os dous seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não havia de trabalhar contra a Igreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação…

–Posso confessar?

–Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra cousa. José Dias…

–Que tem José Dias?

–Pode ser um bom empenho.

–Mas se foi ele mesmo que falou…

–Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra cousa. Ele gosta muito de você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que há de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser elogiado, D. Glória presta-lhe atenção; mas o principal não é isso; é que ele, tendo de servir a vocês falará com muito mais calor que outra pessoa.

–Não acho, não, Capitu.

— Então vá para o seminário.

— Isso não.

— Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; façam que lhe digo. Dona Glória pode ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra cousa, mete-se então o Padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao teatro pela primeira vez há dous meses D. Glória não queria e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se?

–Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.

–Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos dous… Ande, peça, mande. Olhe, diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São Paulo.

Estremeci de prazer. S. Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado um dia. em vez da grossa parede espiritual e eterna Prometi falar a José Dias nos termos propostos. Capitu repetiu, acentuando alguns como principais; e inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de água a pessoa que tem obrigação de o trazer. Conto estas minúncias cias para que melhor se entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete.

————–
continua

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Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 2

CAPÍTULO VIII / É TEMPO

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia… Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu… E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um Capítulo.

CAPÍTULO IX / A ÓPERA

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me faz mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. As vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto – vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:

–A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimirás, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimirás. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente…

–Mas, meu caro Marcolini…

–Quê…

E depois, de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Raiael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,–compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

–Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…

–Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.

–Mas, Senhor…

–Nada! nada!

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.

–Ouvi agora alguns ensaios!

–Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.

Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a além da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Aden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.

Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem c mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.

–Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados, poucos ao escolhidos”. Deus recebe eu ouro, Satanás em papel.

–Tem graça…

–Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia. quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver algum, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…

CAPÍTULO X / ACEITO A TEORIA

Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo tecnicismo, depois um trio, depois um quatro… Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.

CAPÍTULO XI / A PROMESSA

Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos.

Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz, contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele Padre Cabral, velho amigo do tio Cose, que ia lá jogar às noites.

Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe esperou que os anos viessem vindo. Entretanto ia-me afeiçoando à idéia da Igreja; brincos de criança, livros devotos. imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa,–um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: “Hoje há missa?” Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos as cerimônias. Dominus, non sum dignus… Isto, que eu devia dizer três vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do sacrifício.

Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, podiam antes o seminário do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.

CAPÍTULO XII / NA VARANDA

Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:

“Sempre juntos…”

“Em segredinhos…”

“Se eles pegam de namoro…”

Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas;

“Em segredinhos…”

“Sempre juntos…”

“Se eles pegam de namoro…”

Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze, ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estilo, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.

Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não estabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor – outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis – mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia. alguma frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus, eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava… Fez-se cor de pitanga.

Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com exclusivismo também.

Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a primeira.

CAPÍTULO XIII / CAPITU

De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:

E no quintal:

–Mamãe!

E outra vez na casa:

–Vem cá!

Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si mesma, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela- abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente o uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro cor, muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do Doutor João da Costa, tomava o pulso à doente e pedia-lhe que mostrasse a língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico.

–Capitu!

–Mamãe!

–Deixa de estar esburacando o muro – vem cá.

A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma cousa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:

–Que é que você tem?

–Eu? Nada.

–Nada, não; você tem alguma cousa.

Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.

–Que é que você tem? repetiu.

–Não é nada, balbuciei finalmente.

E emendei logo.

–É uma notícia.

–Notícia de quê?

Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não sei como…

–Então?

–Você sabe…

Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.
———

continua…

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Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 1

CAPÍTULO PRIMEIRO / DO TÍTULO

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

— Continue, disse eu acordando.

— Já acabei, murmurou ele.

— São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.”–“Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.”–“Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.”

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração – se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

CAPÍTULO II/ DO LIVRO

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia. há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos blocos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo… Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior, é outra cousa a certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal.

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência. filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma “História dos Subúrbios” menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?…

Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.

CAPÍTULO III/ A DENÚNCIA

Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.

–D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.

–Que dificuldade?

–Uma grande dificuldade.

Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.

–A gente do Pádua?

–Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.

–Não acho. Metidos nos cantos?

–É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as cousas corressem de maneira, que… Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma candida…

–Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dous criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta cousa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer?. . . Mano Cosme, você que acha? Tio Cosme respondeu com um “Ora!” que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São imaginações do José Dias os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?”

–Sim, creio que o senhor está enganado.

–Pode ser minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar…

–Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes.

–Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe e depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o Padre Feijó governou o Império…

— Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.

–Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.

–Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?

— É promessa, há de cumprir-se.

–Sei que você fez promessa… mas uma promessa assim… não sei… Creio que, bem pensado… Você que acha, prima Justina?

— Eu?

–Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme- Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos… Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta pois isto é cousa de lágrimas?

Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção… Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: “Prima Glória! Prima Glória!” José Dias desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo… “

CAPÍTULO IV / UM DEVER AMARÍSSIMO!

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado se era dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!

CAPÍTULO V / O AGREGADO

Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto ás bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.

–Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.

–Voltarei daqui a três meses.

Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais doentes.

–Mas, você curou das outras vezes.

–Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios indicados nos livros. Eles, sim, eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão… Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.

Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me; não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia. depois da missa, ele foi despedir-se dela.

–Fique, José Dias.

–Obedeço, minha senhora.

Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. “Esta é a melhor apólice”, dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.

–Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.

–Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.

E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.

CAPÍTULO VI / TIO COSME

Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos.

A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na antiga Rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser. sorria de persuasão.

Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo – a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.

Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dous anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: “Mamãe! mamãe!” Ela acudiu pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, pegou-me, afagou-me, enquanto o irmão perguntava:

–Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?

–Não está acostumado.

–Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, mana Glória.

–Pois que se queixe; tenho medo.

–Medo! Ora, medo!

A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. “Agora é que ele vai namorar deveras”, disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.

CAPÍTULO VII / D. GLÓRIA

Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes.

Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhas. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite.

Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.

Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dous bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: “Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!” O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: “Vejam como esta moça me quer…” Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.
—————-

continua..

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Jorge de Andrade (A Moratória)

O texto teatral A Moratória, de Jorge Andrade, aborda a ruína de uma família proprietária de cafezais no interior do estado de São Paulo, em decorrência da crise financeira e da produção cafeeira, por volta dos anos de trânsito da década de 1920 para a 1930. Escrita em 1954, encenada pela primeira vez no ano seguinte, a peça emerge como um dos “fantasmas” da infância do autor.

A obra constitui um ato de reflexão sobre a realidade paulista em seus aspectos sociais, morais e psicológicos. O tema da decadência dos latifúndios cafeeiro representa o fim de toda uma classe patriarcal e semifeudal de aristocratas sucumbidos à crise econômica de 1929 e a nova ordem social imposta por Vargas em 1930. Ao mesmo tempo, focaliza em seu interior o conflito de gerações, o conflito de valores tradicionais em uma sociedade que vive a rápida mudança provocada pelo êxodo rural, pelo dilatamento das cidades e pelas mudanças das elites.

Centralizando o conflito está o velho Quim, um coronel à antiga, que vê os filhos e a mulher minguarem, saudosos dos velhos tempos e sem perspectivas de futuro. Ambientada em dois momentos – os anos de 1929 e 1932, antes e depois do desastre econômico, a estrutura dramatúrgica intercala cenas na casa da fazenda e cenas na pequena casa da cidade, onde a família passa a viver dos modestos ganhos dos filhos, especialmente de Lucília, que se torna costureira. Esse recurso permite ao autor apresentar o verso e o reverso das situações, justificando comportamentos e projetando expectativas. A alternância entre os dois momentos, mostrados simultaneamente, constitui-se no trunfo maior da arquitetura cênica de A Moratória.

Os diálogos são curtos, diretos, ora carregados de tensão, revolta, ora de ternura. Há poucos monólogos um pouco mais longos. A linguagem simples, coloquial justifica-se pelas cenas familiares reproduzidas.

ESPAÇO

A peça ocorre em dois planos: em um, uma sala espaçosa de uma antiga e tradicional fazenda de café; em outro, uma sala modesta mobiliada onde se vê, em primeiro plano, uma máquina de costura. É através desses dois cenários que o autor consegue fazer o presente e o passado próximo. O espectador, em um mesmo instante, através da mudança de planos, entra em contato com duas realidades distintas, ligada somente pelas personagens. Para efeito do resultado, a estória será narrada linearmente.

O espaço está associado a um passado heróico, aos antepassados, às famílias fundadoras. Joaquim rememora:

[…] Era um lugar virgem! Era um sertão virgem! A única maneira de se ganhar dinheiro era fazer queijos. Imagine, Lucília, enchiam de queijos um carro de bois e iam vender na cidade mais próxima, a quase duzentos quilômetros! Na volta traziam sal, ferramentas, tudo que era preciso na fazenda. Foram eles que, mais tarde, cederam as terras para fundar esta cidade. (1º Ato, p. 124).

Mas é a fazenda que alimenta os sonhos do cafeicultor: Nós vamos voltar para lá… (1º Ato, p. 130). E, às vezes, de sua filha Lucília: Replantaremos o nosso jardim! (1º Ato, p. 146). Morando na cidade, o ex-fazendeiro compra sementes de dálias (aliás, falido, troca um prendedor de gravata pelas sementes), cultiva um pé de jabuticabeira, a árvore tão presente na obra de Jorge Andrade, em um forte simbolismo das raízes.

A cidade é o lugar em que fica o banco para o qual Joaquim deve. É o lugar, também, onde trabalha Marcelo, seu filho, no frigorífico dos ingleses. Matamos mil e quinhentos bois por dia, dona Helena! (1º Ato, p 133), se exibe o filho para a mãe, Helena. Mas a mãe estranha esta atividade: […] já imaginou a convivência que ele [Marcelo] tem lá no frigorífico? (1º Ato, p. 133). O filho, no entanto, ama a cidade, que “nunca esteve tão divertida!”

Ante a crise, aflora o temor da perda do lugar pelo que ele significa. Meu marido, meus filhos nasceram aqui…, se desespera Helena (1ºAto, p. 146). E aduz:
Sem a fazenda ele [o marido] não será ninguém. Vai se sentir inútil. (2º Ato, p. 151).

Helena tenta achar uma solução, explicando à filha o que a terra representa:

Se seu tio arrematar a fazenda, o Quim poderá continuar, trabalhar, morrer em suas terras. Há homens que não sabem, não podem viverfora de seu meio. Seu pai sempre morou na fazenda. Para nós, o mundo se resume nisto. Toda a nossa vida está aqui. (2º Ato, p. 151).

Mas Joaquim não aceita esta posição humilhante. A propriedade da terra, ser o dono dela fala tão mais forte que não entende como o seu endividamento poderia levá-lo à perda:

Meus direitos sobre essas terras não dependem de dívidas. Nasci e fui criado aqui. Aqui nasceram meus filhos. Aqui viveram meus pais. Isto é muito mais do que uma simples propriedade. É meu sangue! Não podem me fazer isto! (2º Ato, p. 166).

Várias leituras podem ser feitas deste trecho. Da manutenção de um status, a uma percepção de quem se considera com direito adquirido intocável e imutável até a incapacidade do ex-cafeicultor de compreender como a posição da sua classe havia sofrido um forte deslocamento, perdendo a posição na pirâmide social para outros segmentos que estão emergindo no mundo urbano. Como não compreende, Joaquim desdenha, desqualifica: […] Uma gentinha, que não sei de onde veio, tomou conta de tudo! […] Vivíamos muito bem sem elas. Gentinha! (2º Ato, p. 177).

TEMPO

Muitas marcas, ao longo do texto, apontam o confronto de tempos. Assim, no 1° Ato, Lucília, a filha do dono das terras de café, costura com pressa porque “meu serviço está atrasado”, enquanto o pai – Joaquim – responde: “Cada coisa em sua hora”, logo replicado pela filha: “Para quem tem muito tempo”. Ritmos de tempo diferenciados, entre a pressa e um tempo mais lento, encarnado em duas gerações diferentes.

O pai reafirma o seu tempo, quer prolongá-lo: “Pensa que sou igual a esses mocinhos de hoje?” “O médico disse que ainda tenho cem anos de vida”. Distingue-o
do tempo presente, por uma qualidade em detrimento deste: “Quando meus antepassados vieram de Pedreira das Almas para aqui, ainda não existia nada. Nem
gente desta espécie”. Mas as mudanças estão acontecendo. E para pior, como neste trecho representacional, em que os personagens se posicionam de forma diferente:

HELENA (mulher de Joaquim): Não suporto mais essa incerteza (1º Ato, p. 127), expressando a dificuldade de entender o que se passa;

ELVIRA (a irmã de Joaquim): Você não pode imaginar a situação em que estamos; [dirigindo-se a Helena (sua cunhada)]: A situação não é boa […] São muito graves os acontecimentos. Vamos atravessar uma grande crise (1º Ato, p. 144), anunciando/enunciando o torvelinho que virá;

LUCÍLIA: Acontece que precisamos encarar a situação de frente, não há outra saída. […] Aos poucos a situação melhora (1º Ato, p. 140), expressa o enfrentamento da crise e a esperança que as coisas mudem;

JOAQUIM: Ainda somos o que fomos (1º Ato, p. 141), manifesta a permanência, ou a vontade de, não acreditando que as coisas mudem.

As marcas textuais sinalizam, sob a forma de diálogos, um tempo de crise. Na parte final do 1º Ato, no diálogo entre as quatro personagens acima referidas, se
explicita a historicidade da crise: a queda dos preços do café, a não continuidade da política de defesa do produto pelo Governo “do Ditador”, o endividamento dos cafeicultores junto ao “Banco” (assim mesmo, grafado com Maiúscula, significativamente).

Presentes diversos tempos e diversos espaços na narrativa, a sua inter-relação é construída de forma original, não linear, com a predominância de uma temporalidade ou de outra em cada cena, ora o presente ora o passado, porém, com o “atravessamento” de um pelo outro. Em quase todas elas, há um contraponto com a outra temporalidade, não predominante. Em quase todas as cenas, há um fio que junge os dois tempos e os entrelaça.

O movimento entre os tempos, quando parte do presente como predominante, recua para um passado bem próximo e vai deslizando para um passado cada vez mais distante [do mais presente ao mais passado]. Quando o passado é o predominante, o tempo caminha cada vez mais para o futuro [do mais passado ao mais presente]. Assim, o binômio presente-passado foi estruturado de forma vertical e horizontal. A vertical consiste na leitura de um só tempo (presente ou passado) de cena para cena, apontando esse recuo ou esse avanço, conforme se enfoque o presente ou o passado. A horizontal consiste na leitura entre presente-passado e vice-versa no âmbito da mesma cena, apontando como o intervalo entre os tempos vai se estreitando.

SÍNTESE DO MOVIMENTO DOS TEMPOS

1º ATO – No 1º Ato, Jorge Andrade coloca todos os personagens do drama: Joaquim, Helena, Lucília, Marcelo, Elvira, e dois ausentes, mas referenciados – Augusto e Arlindo – que, não casualmente, serão as duas figuras que, de modos diferenciados, se relacionam com a ruína de Joaquim. Este parte da trama articula o tempo e o espaço com as seguintes marcas: 1ª cena: o processo de Joaquim no presente – Helena rezando na fazenda; 2ª cena: a religiosidade de Helena – a crise e a dívida; 3ª cena: Marcelo e seu trabalho, o trabalho de Lucília – o recado de Helena a Elvira; 4ª cena: A preguiça de Marcelo e o recado para Elvira, a indagação por Olímpio; 5ª cena: o casamento irrealizado de Lucila – a conversa do pai com Marcelo; 6ª cena: a conversa de Joaquim com Marcelo sobre o trabalho e a notícia do namoro de Lucília – Joaquim lendo jornais; 7ª cena: crítica à política, ao “Ditador” e ao PRP – Elvira chega à fazenda; 8ª cena: a crise relatada por Elvira – a moratória.

2º ATO
– o 2º Ato, tempo e espaço são marcados por alguns acontecimentos preponderantes: 1ª cena: a alegria de Joaquim, esperançoso – o desânimo de Helena, desesperançada; 2ª cena: continua a situação da cena anterior; 3ª cena: a crise e a situação de Joaquim se perder a fazenda – a situação de Joaquim diante da irmã; 4ª cena: notícia da perda da fazenda e a relação com o casamento de Lucília – a expectativa da comemoração e o conflito com Marcelo; 5ª cena: o duro conflito entre Joaquim e Marcelo, com a ordem para sair de casa – simultaneamente, a ordem para Olímpio sair da casa de Joaquim; 6ª cena: a fuga de Arlindo, a briga com Augusto e a esperança de Joaquim – a desesperança de Lucília; 7ª cena: a sentença do Tribunal indeferindo o pedido de nulidade – o começo do trabalho de Lucília como costureira.

3º ATO – No 3º Ato, as marcações entre passado e presente deram relevo a: 1ª cena: a consumação da perda da fazenda e as evocações do lugar – a possibilidade de Lucília parar de trabalhar; 2ª cena: a perda do processo por Joaquim e o conflito com Elvira – Joaquim com o galho da jabuticabeira; 3ª cena: preparativos para a saída da fazenda – a expectativa de dar a notícia sobre o processo a Joaquim; 4ª cena: o desfecho da narrativa, deixando a dúvida se Joaquim sabe – a evocação da fazenda.

PERSONAGENS

Joaquim – Protagonista da peça. Aparentemente autoritário, estúpido, prepotente, é, na verdadem um personagem lírico, que só mantém suas atitudes em função do papel que representa – coronel e pai. É capaz de gestos ternos, como arrumar os figurinos da filha, catar alfinetes e falar com carinho da terra. Tudo gira em torno dele; os outros são secundários.

Helena
– Esposa de Joaquim. Mulher prática, acostumada à materialidade e à ceitação ou submissão, encara as mudanças da fortuna de forma mais natural. Compartilha o saudosismo do marido em relação ao passado, mas também têm consciência de que viveram afastados e não evoluíram.

Marcelo – Nunca se interessara pela fazenda. Não permanece em nenhum emprego e ainda gasta o dinheiro suado na boemia, explorando a mãe. É o filho desesperançado, inadaptado, aquele que vive uma outra realidade que não a do pai, aquele que é capaz de proferir palavras rudes e no entanto, verdadeiras, apontando a terrível realidade: ‘O senhor finge não perceber que não fazemos mais parte de nada, que nosso mundo está irremediavelmente destruído… As regras para viver são outras, regras que não compreendemos nem aceitamos… tudo agora é diferente, tudo mudou. Só nós é que não. Estamos aqui morrendo lentamente…’

Lucília – Realista diante dos reveses da sorte, trabalha para sustentar a família. A esta devotada, adia o casamento e ataca a tia por não ter ajudado o pai.

Elvira
– Tia de Lucília e Marcelo, irmã de Joaquim. Pouco aparece, mas representa a aristocracia que faz pequenas caridades humilhantes e se nega a ajudar o irmão na necessidade.

Olímpio
– Noivo de Lucília, é bacharel. Conseguiu cortar o cordão umbilicar da terra, saiu, viajou, e vê a situação com objetividade e senso crítico.

RESUMO

Quim [Joaquim] é fazendeiro de café, afeiçoado a terra, mas acaba sendo levado à ruína, por maus negócios. Tem setenta anos e representa o orgulho de um nome, já sem encontrar respaldo entre os cidadãos de uma cidade que está transformada com a presença de elementos estranhos à casta tradicional. Diz Joaquim: ‘Não sei como, minha filha, mas de repente, senti como se estivesse só naquela cidade. Parecia que todas as portas estavam fechadas para mim. Eu não conhecia mais ninguém. Percebia que atrás das janelas todos me olhavam e… ninguém… ninguém…’ Mergulhado em sua solidão, nutrido pela esperança de recuperação, só encontra amparo na família. A mulher Helena é a mais corajosa, soube enfrentar melhor a situação, e a filha Lucília tornou-se o arrimo da família, agora vivendo dos proventos de sua costura, uma vez que o irmão, Marcelo, não se adapta a nenhum emprego.

Fora da família estão Olímpio, advogado, filho do rival político de Quim, mas apaixonado Poe Lucília. Elvira, irmã de Quim, mulher rica e ‘caridosa’ que entrega café e outras coisas que vêm da fazenda em troca das costuras ‘grátis’ da sobrinha. Não tem filhos e vive envolvida com a assistência dada a um asilo. Nesse pequeno universo, as personagens vão sendo colocadas à mercê de um destino cruel. Quim, em torno do qual a história gira, alimenta uma esperança de retornar à fazenda, que foi à praça, para saldar as dívidas. A crise do café não permitiu a venda, a florada não foi boa; a chuva tardou, o governo não fixou um teto mínimo para o café, não há dinheiro. Só resta a esperança de poder recuperar a fazenda, a esperança de uma moratória que todos sabem não vir.

Lucília é filha solteirona que vê seu casamento com Olímpio frustrado pelo autoritarismo paterno. Não se entrega aos sonhos e às esperanças do pai, que acha poder reaver a fazenda. É ela que, com força e convicção, recupera a dignidade da família, costurando furiosamente. É ela que procura lutar pela realidade bruta, protegendo o pai contra as intempéries:

Se a senhora [Elvira] merecesse respeito, teria tido um pouco de amor por seu irmão, piedade ao menos. Gostaria que tivesse assistido à chegada deles, quando vieram da fazenda. Só aí poderia compreender até que ponto sofreram! Com o relógio, os quadros e esse… esse galho de jabuticabeira nas mãos… pareciam duas crianças assustadas, com medo de serem repreendidas. Através de cada gesto, de cada olhar, havia um pedido de perdão, como se eu… eu pudesse censurá-los em alguma coisa. Egoísta! A senhora é uma mulher má. Papai é mesmo de boa-fé, tem bom coração, caso contrário teria posto à senhora daqui para fora. O que eles sofreram, você e tio Augusto hão de pagar.

Com simplicidade, Jorge Andrade vai chegando ao clímax da peça, a hora da revelação e, conseqüentemente, a hora em que Joaquim se depara com a verdade / realidade, que nós, espectadores, conhecemos desde o primeiro momento. É pujante a dor de homem e a ela estamos irmanados pela indescritível capacidade da arte de fazer o tempo / espaço identificar-se com outro espaço / tempo do espectador.

Fonte:
Rosa Maria Godoy Silveira, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado em História do Brasil – Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Profª Célia A. N. Passoni, Editora Núcleo | Itaú Cultural
Disponível em Passeiweb

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Alexandre Dumas Filho (O Enforcado de La Piroche)

Alexandre Dumas Filho
 O leitor conhece La Piroche? Certamente não. Nem eu. Portanto, não se preocupe em que eu abuse de minha ciência, fazendo uma descrição. Sobretudo porque — digamos, cá entre nós — as descrições são muito aborrecidas. A menos que se trate das selvas virgens da América, como em James Fenimore Cooper, ou do Mississippi, como em Chateaubriand. Isto é, países que não estão ao alcance da mão, e para os quais a imaginação precisa da ajuda dos viajantes poetas, que os visitaram a fim de poder descrevê-los melhor em todos os detalhes.

 Em geral, as descrições não servem para grande coisa, e estão aí para que o leitor as salte. A literatura tem sobre a pintura, a escultura e a música a tríplice vantagem de poder fazer por si só um quadro com um epíteto, uma estátua com uma frase, uma melodia com uma página. Mas não está certo que abuse desse privilégio, e deve-se deixar a cada arte o seu campo específico.

 De minha parte, confesso que — salvo melhor opinião — quando me acho no caso de ter de descrever um país que todo mundo pode ter visto, ou que todo mundo pode ver, seja porque está próximo, seja porque não difere em muita coisa do nosso, prefiro deixar ao leitor o prazer de recordá-lo, se já o viu, ou de imaginá-lo, se ainda não o conhece. O leitor gosta que lhe deixemos sua parte criadora, na obra que está lendo. Isso o lisonjeia, e o faz acreditar que poderia fazer todo o resto. Lisonjear o leitor tem suas vantagens. Além disso, todo mundo sabe o que é o mar, uma planície, um bosque, um pôr-de-sol, um efeito da lua, uma tempestade. Para que tornar o texto pesado com essas coisas? Mais vale traçar a paisagem com uma só pincelada, como Rubens ou Delacroix — digo-o sem querer estabelecer qualquer tipo de comparação — e guardar o valor do nosso pincel para os personagens aos quais queremos dar vida.

 Por mais que empanturremos páginas inteiras com descrições, jamais daremos ao leitor uma impressão igual à que experimenta o mais ingênuo burguês passeando um belo dia de abril pelo bosque de Vincennes; ou ainda a mais ignorante donzela que, às onze horas da noite, atravessa as avenidas sombrias do bosque de Romainville ou do parque de Enghien, de mãos dadas com seu noivo.

 Todos temos no espírito e no coração uma galeria de paisagens com nossas recordações, que podem servir de fundo a todas as histórias do mundo. Basta dizer uma simples palavra — dia ou noite, inverno ou primavera, tempestade ou bom tempo, planície ou montanha — para que logo imaginemos a paisagem completa.

 Só direi, portanto, que quando começa esta história o sol atinge o meio-dia, estamos em maio, o caminho por onde vamos passar tem à direita umas plantações e à esquerda o mar. Isso basta para entender o que quero dizer: que os plantações são verdes, o mar murmura, o céu está azul, o sol está bem quente e a estrada coberta de poeira. Só preciso acrescentar que a estrada corre ao longo da costa normanda, de La Poterie a La Piroche; que La Piroche é uma aldeia que não conheço, mas deve ser como todas as outras; que a ação se desenrola em pleno século XV, justamente em 1448; que um dos dois homens é o pai do outro, ambos camponeses, e vão trotando em seus cavalos a uma velocidade até razoável, tendo em vista que carregam camponeses.

 — Será que chegaremos a tempo? — perguntava o filho.

 — Sim. Vai ser às duas horas, e pela posição do sol deve ser ainda meio-dia.

 — Não quero perder, pois tenho muita curiosidade em ver como é. Vão enforcá-lo com a armadura que roubou?

 — Exatamente.

 — Onde já se viu, o sujeito ter a idéia de roubar uma armadura!

 — O difícil não é ter a idéia…

 — É ter a armadura, eu bem sei — atalhou o filho, aderindo à brincadeira do pai. — E a armadura era boa?

 — Dizem que era magnífica, toda marchetada de ouro.

 — E o pegaram quando a levava?

 — Sim. É fácil compreender que uma armadura não concorda em ser roubada sem montar um escarcéu de todo tamanho. Ela não queria abandonar o dono.

 — Era de aço, e deveria ser muito pesada.

 — O ruído que ela produzia despertou o pessoal do castelo.

 — E logo puseram a mão no ladrão?

 — Não exatamente assim. Primeiro ficaram com medo.

 — Quem é roubado sempre sente medo dos ladrões. Se não fosse assim, os ladrões não levariam nenhuma vantagem.

 — E também as vítimas não sofreriam nenhuma emoção. Mas o caso é que o pessoal do castelo não se julgava diante de ladrões.

 — Diante de quem, então?

 — De um fantasma. O infeliz era muito forte, e carregava a armadura de pé, na frente do próprio corpo, mantendo a cintura dela na altura da própria cabeça. Quem via, na obscuridade, tinha a impressão de um gigante. Acrescente a isso o ruído surdo que o ladrão ia fazendo por detrás da ferragem, e entenderá o espanto dos criados. Por azar dele os criados foram acordar o senhor de La Piroche, que não tem medo de vivos nem de defuntos. Ele sozinho o prendeu, amarrou-lhe as mãos e pés e o entregou à sua própria justiça.

 — E a sua própria justiça…

 — Condenou-o a ser enforcado, revestido da armadura em questão.

 — Por que puseram esta cláusula na condenação?

 — Ah! Porque o senhor de La Piroche, além de ser um valoroso capitão, é um homem de bom senso, engenhoso, e quis transformar a execução num exemplo para os demais e em proveito para si próprio. Segundo dizem, aquilo que esteve em contato com um enforcado se transforma em talismã para seu dono, e ele quis o delinqüente dentro da armadura para poder recolhê-la depois, e assim contar com uma proteção a mais durante as próximas guerras.

 — Bem engenhoso, de fato. Mas é bom nos apressarmos, porque não quero perder o espetáculo.

 — Não vale a pena cansar os cavalos, pois vamos prosseguir viagem uma légua depois de La Piroche, e depois ainda voltar a La Poterie.

 — Sim, mas como só voltaremos à noite, nossos cavalos poderão descansar umas cinco ou seis horas.

 Pai e filho prosseguiram caminho conversando, e meia hora depois chegaram a La Piroche. Havia grande afluxo de gente na ampla praça diante do castelo, onde se havia erguido o patíbulo: uma preciosa forca de madeira muito boa, na verdade pouco alta, mas o suficiente para que a morte desenvolvesse o seu trabalho entre o solo e a extremidade da corda.

 O condenado podia contar com um lindo panorama para morrer, pois ficaria com o rosto voltado para o oceano. Seria um consolo, embora me pareça bem insuficiente. O mar estava azul, e de vez em quando deslizava pelo azul do céu uma nuvem branca, como um anjo que dirigisse a Deus uma prece.

 Os dois companheiros se aproximaram do patíbulo o quanto puderam, para não perder nenhum detalhe do que ia acontecer. Tinham a vantagem de estar montados, e podiam ver melhor sem se cansar. Não esperaram muito. Pouco antes das duas horas abriu-se a porta do castelo e apareceu o condenado, precedido da guarda e seguido do carrasco. Vinha com a armadura, montado de costas em um burro sem arreios. As mãos estavam amarradas às costas. A julgar pela postura, tendo em vista que o rosto estava encoberto pelo elmo, devia estar pouco à vontade, e fazendo as mais tristes reflexões.

 Levaram-no até o patíbulo, e começou a desenrolar-se ante o réu uma cena pouco agradável. O verdugo acabava de encostar a sua escada na forca, e o capelão lia o processo do alto de um estrado. O condenado não se movia, e espalhou-se o boato de que ele resolvera morrer antes de ser alçado à forca, para desgosto dos espectadores. Mandaram que ele apeasse do animal e se aproximasse do verdugo, mas ele continuou imóvel. Indecisão que compreendemos facilmente. Então o verdugo o agarrou pelos cotovelos, desceu-o do burro e o pôs de pé no chão. Ao dizer que o pôs de pé, não mentimos, mas mentiríamos se disséssemos que permaneceu assim, pois em dois minutos havia percorrido dois terços do alfabeto, o que na linguagem corrente quer dizer que em vez de permanecer reto como um I, havia chegado ao Z.

 Durante esse tempo o capelão terminara a leitura da sentença.

 — O condenado tem algo a pedir? — perguntou.

 — Sim — respondeu o desgraçado, com voz rouca e triste.

 — O que deseja?

 — Quero meu indulto.

 Não sei se a palavra farsante já havia sido inventada, mas a ocasião para isso era sem dúvida muito boa.

 O senhor de La Piroche deu de ombros e ordenou ao verdugo que pusesse mãos à obra. Este começou a subir decididamente a escada do patíbulo, com toda a força de que dispunha para separar uma alma do corpo. Tratou também de fazer subir na frente o condenado, o que não era tarefa fácil, pois os condenados inventam toda sorte de dificuldades para morrer. Para fazê-lo subir, o executor da justiça teve de recorrer ao meio de que já se valera para fazê-lo descer do animal: agarrou-o pela cintura e o foi empurrando para cima.

 — Bravo! — gritou a multidão.

 Não havia recurso, e ele teve de subir. Então o verdugo passou destramente o nó corrediço da forca em torno do pescoço, deu um empurrão nas costas do condenado e o lançou no espaço. Um imenso clamor acolheu esse desenlace previsto, e um estremecimento correu a multidão.

 Por grande que seja o crime que tenha cometido, um homem que morre na forca está sempre, ao menos durante um instante, acima dos que o vêem morrer. O enforcado balançou durante dois ou três minutos na ponta da corda. Como tinha direito a isso, debateu-se, contorceu-se, e depois ficou imóvel — o caminho inverso do Z ao I. Os espectadores ficaram olhando ainda durante algum tempo, logo se dividiram em grupos e tomaram caminho de casa.

 Os dois camponeses também retomaram o caminho.

 — Ser enforcado por não ter podido roubar uma armadura é um pouco caro, não acha? — perguntou o pai.

— Gostaria de saber o que ele teria feito com a armadura, se tivesse conseguido levá-la.

 — De fato ele foi mais castigado por um crime que não cometeu.

 — Sim, mas teve a intenção de cometê-lo.

 — E basta a intenção para…

 — É perfeitamente justo.

 Chegando ao alto de uma montanha, olharam para trás, a fim de contemplar pela última vez a silhueta do desconhecido. Vinte minutos depois chegaram ao povoado seguinte, de onde deviam voltar à noite.

 Quando amanheceu o dia seguinte, dois soldados saíram do castelo para remover o cadáver do enforcado e recolher a armadura. Mas encontraram uma situação que nem de longe poderiam imaginar: tudo estava no lugar, mas o enforcado e a armadura haviam desaparecido. Julgaram que estavam sonhando, esfregaram os olhos, mas o fato era real. O enforcado e a armadura haviam sumido. E o mais extraordinário é que a corda não estava cortada nem rompida, permanecia como antes do enforcamento.

 Os soldados foram anunciar ao senhor de La Piroche o que viram, mas este não quis acreditar, e decidiu confirmar com seus próprios olhos. Sendo tão poderoso, pensava que um mísero enforcado não ousaria desobedecer-lhe, e o encontraria onde o mandara ficar. Mas não viu nada além do que os outros haviam visto. Que teria acontecido? Não havia dúvida de que na véspera o sentenciado ficara bem morto ante os olhos de todos. Teria um outro ladrão aproveitado as trevas noturnas para roubar a armadura? Mas se fosse assim, teria deixado o cadáver, que de nada lhe adiantaria. Será que os amigos e parentes do morto quiseram dar-lhe uma sepultura cristã? A hipótese não era absurda, mas o delinqüente não tinha amigos nem familiares. Mesmo se os tivesse, eles teriam se limitado a carregar o cadáver, deixando a armadura. O que pensar do ocorrido?

 Desolado pela perda da armadura, o senhor de La Piroche mandou publicar a promessa de uma recompensa de dez moedas de ouro, para quem entregasse o culpado, desde que com a roupa usada na execução. Ninguém se apresentou. Foram revistadas todas as casas, mas nada se encontrou. Fizeram então vir de Rennes um sábio, e lhe puseram a pergunta:

 — Como é que um enforcado morto pôde fazer para livrar-se da corda que o mantinha no ar?

 Depois de oito dias de meditação o sábio respondeu:

 — Ele não conseguiu soltar-se.

 Apresentaram-lhe então a seguinte pergunta:

 — Um ladrão que não conseguiu roubar enquanto vivo, e que foi condenado à morte por roubo, pode roubar depois de morto?

 O sábio respondeu que sim. Indagado como poderia ter conseguido essa façanha, respondeu que não sabia. E era o maior sábio da época, naquelas paragens.

 O sábio foi embora, e as pessoas preferiram ficar com a convicção de que o enforcado era um feiticeiro.

 Passou-se um mês de inquéritos, buscas e consultas, enquanto a forca permanecia no mesmo lugar, humilhada, triste e desprezada por sua atitude inominável de abuso de confiança. O senhor de La Piroche já se dispunha a resignar-se com a perda da armadura, quando num certo dia, ao despertar, ouviu um alarido na praça da execução. Logo depois o capelão entrou espavorido nos seus aposentos.

 — Senhor, sabeis o que aconteceu?

 — Não, mas gostaria de saber.

 — O enforcado reapareceu, e está lá na forca.

 — Com a armadura?

 — Sim, com a vossa armadura.

 — E está morto?

 — Completamente. Mas…

 — Mas o quê?

 — Quando foi enforcado ele usava esporas?

 — Não.

 — Pois agora usa. Além disso, agora o elmo não está na cabeça, como no dia da execução. Está enforcado com a cabeça descoberta, e o elmo está cuidadosamente colocado no chão.

 — Vamos ver logo tudo isso, senhor capelão.

 O senhor de La Piroche correu à praça, já cheia de curiosos. De fato lá estava o enforcado com o pescoço no laço da corda, e logo abaixo o corpo revestido da armadura. Era prodigioso.

 — Arrependeu-se e voltou a enforcar-se — dizia um.

 — Sempre esteve aí — dizia outro. — Nós é que não o víamos.

 — Mas por que usa esporas? — perguntou um terceiro.

 — Sem dúvida por que vem de longe, e quis chegar rápido.

 — Se fosse comigo, não importa se longe ou perto, eu não teria voltado de jeito nenhum.

 Entre comentários sérios e outros nem tanto, todos olhavam a cara contorcida do morto. Quanto ao senhor de La Piroche, só pensava em assegurar a posse da sua preciosa armadura. O cadáver foi descido, retirada a armadura, e depois o recolocaram para ser comido pelos corvos. O que sem dúvida nos lembra versos como os que colocávamos na primeira página dos nossos livros escolares:

 Morreu Pierrô enforcado
 Por ter um livro roubado.
 Não corra tão grande risco,
 Devolva este ao Francisco.

 Que teria acontecido, para possibilitar ao ladrão escapar depois de enforcado, e depois voltar a enforcar-se? Várias hipóteses foram levantadas, mas uma delas me parece a mais digna de crédito. Vou relatá-la como me foi contada.

 Quando os dois camponeses, pai e filho, regressavam à noite para casa, resolveram passar perto do castelo, para dar uma última olhada ao enforcado. Ao aproximar-se, ouviram gemidos e uma espécie de oração, que pareciam vir do cadáver. Um tanto apavorados, resolveram pegar a escada do verdugo, e o filho subiu por ela até a altura da cabeça do enforcado.

 — É você que está se queixando?

 — Sim.

 — Portanto você ainda está vivo?

 — Acho que sim.

 — E está arrependido do que fez?

 — Sim.

 — Então vou retirá-lo daí. Como o Evangelho manda socorrer os que sofrem, e você está sofrendo, vou socorrê-lo para que empregue a vida em fazer o bem. Deus prefere uma alma arrependida a um corpo castigado.

 O pai e o filho desataram a corda, e só então entenderam por que estava ainda vivo. Em vez de apertar o pescoço do ladrão, a corda apertava o pino de encaixe do elmo. Por isso ele ficara suspenso, mas não enforcado. A cabeça havia encontrado uma espécie de ponto de apoio dentro do elmo, permitindo-lhe respirar e viver até o momento em que os dois camponeses regressaram.

 Recolheram o enforcado com a armadura e voltaram para La Poterie, onde o ladrão ficou aos cuidados das mulheres da casa, mãe e filha.

 Mas não é coisa freqüente um ladrão mudar de condição. Na casa só havia duas coisas roubáveis: o cavalo e a moça, donzela de dezesseis anos. O ex-enforcado resolveu levar ambos, pois precisava de um cavalo e se enamorara da moça. Uma noite ele arreou o cavalo, vestiu a armadura, calçou esporas para fazer o cavalo andar mais depressa, e foi buscar a moça, com intenção de levá-la na garupa. A jovem despertou e começou a gritar. Pai e filho acudiram logo e o ladrão tentou escapar, mas era tarde. Os dois o pegaram e decidiram fazer justiça por sua própria conta, completando o mau trabalho do verdugo. Amarraram o ladrão montado no cavalo e o levaram à praça de La Piroche. Penduraram-no na mesma forca, mas desta vez pelo pescoço do condenado, e não pelo da armadura, que não tinha nenhuma culpa no cartório para ser enforcada, e o elmo foi cuidadosamente depositado no chão.

 Se alguém conhece uma explicação melhor para o mistério, estou pronto a aceitá-la, mas esta me pareceu suficiente.

Fonte:
Alexandre Dumas Fº, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953.

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 29. Uma Rosa

Ganhei uma rosa e uma experiência. Deu-me aquela, no bonde, um homem velho, rude e chambão. Contraiu a afeição das flores já entrado em anos, depois de desenganado de feminilidades há muitos. E eu tinha o amor das flores na conta de um puro reflexo de sentimentos sexuais, de uma ondulação distante do culto da mulher.

De fato o é; mas também pode ser outra coisa, como me prova este velho puído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando já iam muito longe as derradeiras fagulhas do outro amor.

Quem sabe se ele põe agora neste afeto um afã meio inconsciente de recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja, revelou-me como a natureza, contra toda lógica e toda expectativa, pode achar saídas novas e elegantes para as situações mais abatidas e ruinosas. Há nela uma capacidade virgem e indefinível de com que não costumam contar os analisadores de almas, que pensam desmontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senão jogar com esquemas e conceptos.

Tudo, neste homem, indicaria uma carreira fatal para o embrutecimeno e a prostração. Idade, doenças, decepções, rupturas, arrancamentos, saudades, rancores, desesperança. Devia acabar no desânimo e na tristeza aparvalhada do animal que procura um recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu ainda florir em si, de repente, um novo amor e uma alegria, uma doçura e uma esperança novas. Uma nova forma de ingenuidade fresca e gentil. Uma ressaca de mocidade.

Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido numa energia clara e imprevista de nascente gorgolejante Que todo o cisco do seu passado, em montão, a consumir-se ao sol e à chuva, fecundara a terra e dera-lhe sombra e umidade para que brotasse lá em baixo uma semente ignorada, e que a semente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os destroços apodrecidos para vir oferecer à luz a flâmula verde de uma frondezinha viçosa.

A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem de que é a Vida que vive em nós… A Vida, senhora eterna de todas as germinações.

Fonte:
Domínio Público

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Afonso Arinos (Assombramento) Parte IV, final

O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirão cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.

Venâncio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos freqüentes, por impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos, guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora, ecoavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.

Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à aurora que principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.

– Eh, gente! o orvalho ‘stá cortando, êta! Que tempão tive briquitando co’aquele macho “pelintra”. Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura as trilhas, por não deixar rastro.

– E a “Andorinha”? Isso é que é mula desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.

A rapaziada chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.

– Que é da giribita? Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo.

– Uma hora é frio, outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo ! – gritou o Venâncio.

– Largue da vida dos outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estávamos atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo, feito um cachorro velho.

– Tá bom, tá bom, não quero muita conversa comigo não. Vão tratando de chegar os burros às estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco e o patrão chega de uma hora para a outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! Mas eu não pude fechar os olhos esta noite ! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma que pudesse suceder a só Manuel. Deus é grande!

Logo-logo o Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.

Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.

Nesse instante, um molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.

Logo à saída, o velho tropeiro refletiu um pouco alto:

– É bom ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica você, Aleixo.

Seguiram os três, calados, pelo campo a fora, na luz

Suave de antemanhã. Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arneiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno, andando lépido e de rosto tranqüilo; cada qual, escondia do outro a angústia do coração e a fealdade do prognóstico.

José Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:

A barra do dia ai vem!
A barra do sol também,
Ai!

E lá foram, cantando todos três, por espantar as mágoas. Ao entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito Da véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e não cedeu.

Forcejaram os três e ela resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de um aríete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos cujo fragor se foi evolumando pelo casarão adentro em roncos profundos.

Em alguns instantes o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do sôlho. A caliça que caia encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros – e a porta escancarou-se.

Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada.

– Mau, mau, mau! – exclamou Venâncio não podendo mais conter-se. Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas do outro mundo.

Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra malefícios.

– Gente, onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de Deus? – exclamou o Venâncio.

Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se perdidos em conjeturas sinistras.

Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um conciliábulo em que somente se lhes comunicassem os espíritos. Mas, de repente, creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venâncio debruçou-se, sondando o porão da casa.

A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu um vulto estendido.

– Nossa Senhora ! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo, estirado!

Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetáculo estranho deparou-se-lhes:

O arneiro, ensangüentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia.

– Meu patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?!

Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lâmina se enterrara no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na pele.

– Sô Manuelzinho! Ai meu Deus! P’ra que caçar histórias do outro mundo! Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me livre!

– Qual, tio Venâncio – disse por fim José Paulista.- Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada para o terreiro. Aí é que está a Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto não topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condição de cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo! Na hora de ver a assombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p’r’amor de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!

E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam ê que quer que fosse – “para as ondas do mar” ou “para as profundas, onde não canta galo nem galinha”.

Enquanto conversavam iam procurando levantar do chão o corpo do arneiro, que continuava a tremer. Ás vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da garganta.

– Ah ! Patrão, patrão ~ Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! São Bom-Jesus do Cuiabá! Olha sô Manuel, tão devoto seu! – gemia o Venâncio.

O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chão o corpo do arneiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse ao José Paulista:

– Eu não pego nessas moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.

Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.

– É alto deveras! Que tombo! – disse de si para si. – Que há de ser do patrão? Quem viu sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro há de ser de pouca serventia. Para mim, eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!

O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De cá se via a fila dos barrotes estendendo-se para a direita até ao fundo escuro.

José Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chão o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo vagarosamente o arneiro.

As névoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.

Houve um instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno: “apanhasse-lhe o chapéu”.

Aí chegando, José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora.

À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.

Às vezes ouvia-se um grito: – Toma, diabo! – e um animal espirrava para o campo à tacada de um tropeiro.

Quando lá do rancho se avistou o grupo onde vinha o arneiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha do ôlho-d’água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e disparou também. Os animais já amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.

O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.

Foram chegando e José Paulista chegou por último. tropeiros olharam com estranheza a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para que saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?

O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. dos tropeiros chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido, banhava as feridas do arneiro cujo corpo vibrava, então, fortemente.

Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.

Então Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de lágrimas, exclamou aos parceiros:

– Minha gente! Aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! – E ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um – “Senhor Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!” – E trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa, afloram-lhe à boca.

Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensão de almas, um apelo fremente “in excelsis”, na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a própria voz do deserto mal ferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.

De feito, não pareciam mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que do seio largo do deserto às alturas infinitas: – “Meu coração está ferido e seco como a erva… Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões!… Atendei propicio à oração do desamparado e não desprezeis a sua súplica…”

E assim, em frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senão erguer um hino de glorificação ao “Agios Ischiros”, ao formidável “Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth”.

Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele.

Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capa-o, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma ema, abrindo as asas, galopava pelo campo… E os tropeiros, no meio de uma inundação de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.

Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta… e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça suprema:

– Eu mato!… Mato!… Ma…

FIM

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Alexandre Dumas (Caçada Russa)

O príncipe Troubetzkoi aproximou-se e deu-me a mão. Ele não vinha só para isso, mas também para me convidar a uma caça ao lobo no bosque de Gatchina, onde se diz que os lobos são tão abundantes como as lebres na floresta de Saint-Germain.

A caça aos lobos, juntamente com a caça ao urso, é uma das diversões favoritas dos russos. Apenas que, como os descendentes de Rourik gostam do perigo enquanto perigo, inventaram uma caçada que oferece dois perigos ao mesmo tempo: primeiro, o de ser devorado pelos lobos, como Balduíno I, imperador de Constantinopla; segundo, o de espatifar-se junto com o carro, como Hipólito, filho de Teseu.

Essa engenhosa invenção se realiza no inverno, é claro, época em que a falta de alimento torna os lobos ferozes. Entram numa troika três ou quatro caçadores, cada um com um fuzil de dois tiros. A troika é um carro qualquer (drojky, kibitk, caleça ou tarantass) com três cavalos atrelados. O nome lhe vem da atrelagem, e não da forma.

 O cavalo do meio não deve em nenhum momento deixar o trote, enquanto o da direita e o da esquerda não devem em nenhum momento deixar o galope. O do meio trota com a cabeça baixa, e é chamado comedor de neve. Seus dois parceiros, que não têm mais que uma rédea, são atrelados pelo meio do corpo ao varal do carro e galopam com a cabeça virada, um para a direita e o outro para a esquerda. São chamados furiosos. Assim conduzida, a atrelagem toma o aspecto de um leque.

 Um cocheiro que tenha segurança — se é que há no mundo um cocheiro seguro — conduz a troika. Detrás do carro, com uma corda ou uma corrente de uns dez metros, amarra-se um leitão. Inicialmente o leitão é cuidadosamente transportado dentro do carro, até a entrada do local onde se conta começar a caçada. Ali é descido, e o cocheiro solta os cavalos, que avançam, sendo o do meio trotando e os das alas a galope.

 O leitão, pouco habituado a essa marcha, lança queixas que degeneram logo em lamentações. A essas lamentações, um primeiro lobo mostra seu focinho e começa a ir ao encalço do porco, depois dois lobos, depois três, dez, cinqüenta lobos. Todos disputam o leitão e brigam entre si para se aproximar, um dando-lhe uma patada, outro uma dentada. Das lamentações o pobre animal passa aos gritos desesperados. Esses gritos vão despertar os lobos nas profundezas mais recônditas da floresta.

 Tudo o que há de lobo em três léguas ao redor acorre, e a troika vê-se perseguida por uma matilha de lobos. Nessa hora é importante ter-se um bom cocheiro. Os cavalos, que têm pelos lobos um horror instintivo, tornam-se aloucados. O que trota quereria galopar, os que galopam quereriam desembestar.

 Durante todo esse tempo os caçadores atiram ao léu. Nem há necessidade de apontar. O porco grita, os cavalos relincham, os lobos uivam, os fuzis troam. É um concerto que daria inveja a Mefistófeles no “sabbat”. Coche, caçadores, porco, matilha de lobos, são um turbilhão levado pelo vento. A neve voa em torno, como uma nuvem de tormenta deslizando no ar, lançando relâmpagos e raios.

 Enquanto o cocheiro é senhor de seus cavalos, por mais precipitados que sejam, tudo vai bem. Mas se ele perde o controle, se a atrelagem se detém, se a troika vira, então tudo acaba. No dia seguinte, no outro, ou oito dias depois, encontram-se os restos do carro, os canos dos fuzis, as carcaças dos cavalos e os ossos maiores dos caçadores e do cocheiro.

 No último inverno, o príncipe Repnin fez uma dessas caçadas, e pouco lhe faltou para que não fosse a última. Estava com dois de seus amigos, numa propriedade que limita com a estepe. Resolveram caçar lobos, ou melhor, fazer-se caçar pelos lobos. Preparou-se um amplo trenó, onde duas ou três pessoas podiam mover-se à vontade. Atrelaram-se três robustos cavalos, que foram confiados a um cocheiro nascido na região e muito experiente. Cada caçador tinha um par de fuzis duplos e cento e cinqüenta cartuchos.

 Os lugares foram distribuídos assim: o príncipe Repnin voltado para trás, e cada um de seus amigos voltado para um dos lados. Chegaram à estepe, ou seja, a um imenso deserto coberto de neve. Era uma caçada noturna. A lua, no seu pleno, reluzia com o mais vivo brilho, e seus raios, refletidos pela neve, difundiam uma claridade que podia rivalizar com a do dia.

 O porco foi baixado e o trenó partiu. Sentindo-se puxado contra sua vontade, o porco gritou. Alguns lobos apareceram, mas de início pouco numerosos, medrosos, conservando-se a uma grande distância. Pouco a pouco seu número aumentou, e à medida que aumentavam, aproximavam-se dos caçadores, que para iniciar não comunicaram à sua troika mais que uma marcha comum, apesar da impaciência medrosa dos cavalos. Eram vinte lobos, mais ou menos, quando se encontraram bastante próximos para começar o massacre.

 Um tiro de fuzil partiu, um lobo caiu. Um grande tumulto se fez, e pareceu aos caçadores que o bando ficara reduzido pela metade. Com efeito, contrariamente ao provérbio que diz que os lobos não se comem entre si, sete ou oito esfomeados ficaram atrás, para devorar o morto. Mas logo os vazios foram preenchidos. De todos os lados ouviam-se uivos respondendo a uivos; de todos os lados viam-se aparecer focinhos pontudos e faiscar olhos semelhantes a carvões acesos.

 Os lobos estavam ao alcance, e os caçadores faziam fogo continuamente. Mas por mais que os tiros acertassem, o bando ia sempre aumentando, em vez de diminuir. Em breve não foi mais um bando, foi uma matilha cujas fileiras cerradas seguiam os caçadores. Sua corrida era tão rápida que pareciam voar sobre a neve, tão ligeira que não fazia o menor ruído. A onda de lobos se aproximava sem cessar, como uma maré muda, e não recuava perante o fogo dos três caçadores, por mais nutrido que fosse. Formavam atrás da troika um enorme crescente, cujas duas pontas começavam a ultrapassar a linha dos cavalos.

 O número de lobos aumentou com tal rapidez, que se diria que saíam de debaixo da terra. Havia qualquer coisa de fantástico em sua aparição. Não se podia, com efeito, entender a presença de dois a três mil lobos no meio de um deserto onde, em toda uma jornada de viagem, descobrir-se-iam apenas dois ou três.

 Fizeram o porco cessar de gritar, puxando-o para dentro do trenó, uma vez que seus gritos redobravam a audácia dos perseguidores. O tiroteio não cessava, e já tinham usado mais da metade da munição. Restavam uns duzentos tiros, e estavam rodeados ainda por dois ou três mil lobos. Os dois cornos do crescente avançavam mais e mais, e ameaçavam fechar-se, formando um círculo do qual o trenó, os cavalos e os caçadores tornar-se-iam o centro.

 Se um dos cavalos caísse, tudo acabaria. Os cavalos, espantados, bufavam e davam saltos terríveis.

 — O que pensas disto, Ivan? — perguntou o príncipe ao seu cocheiro.

 — Penso que não está bem, meu príncipe.

 — Temes alguma coisa?

 — Os demônios provaram sangue, e quanto mais vós atirardes, mais seu número aumentará.

 — Qual é teu parecer?

 — Se vós permitirdes, meu príncipe, vou soltar rédeas aos meus cavalos.

 — Estás seguro deles?

 — Eu respondo por eles.

 — E de nós, tu respondes?

 O cocheiro não disse palavra. Era evidente que não queria se comprometer. Ele soltou rédea aos cavalos, em direção ao castelo. Lançados com todo fôlego, aguilhoados pelo terror, os cavalos dobraram a velocidade. A distância era literalmente devorada por seus ímpetos desesperados. O cocheiro os excitava ainda por um assobio agudo, ao mesmo tempo que faziam uma curva que devia cortar uma das pontas da meia-lua. Os lobos afastaram-se, para abrir passagem aos cavalos. Os caçadores iam disparar, mas o cocheiro gritou:

 — Por vossa vida, não atireis mais!

 Obedeceu-se ao cocheiro.

 Aturdidos com aquela manobra inopinada, os lobos permaneceram um instante indecisos. Durante esse instante a troika percorreu um quilômetro, e quando os lobos voltaram a persegui-la, já era demasiado tarde. Não a puderam alcançar.

 Um quarto de hora depois, estava-se à vista do castelo. O príncipe calculou que durante esse tempo os cavalos percorreram mais de duas léguas. No dia seguinte, visitou a cavalo o campo de batalha e encontrou as ossadas de mais de duzentos lobos.

 Como se vê, não faltam emoções nesse tipo de caçada.

Fonte:
Alexandre Dumas. En Russie: Impressions de voyage. Paris/France: Calmann-Lévy. Disponível em http://contosbemcontados.blogspot.com.br/search/label/ALEXANDRE%20DUMAS%20-%20Caçada%20russa

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Guimarães Rosa (Corpo Fechado)

(Conto de Sagarana)
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Análise do Conto

Corpo Fechado é a antepenúltima das nove novelas que compõem Sagarana, romance inaugural da obra ficcional de Guimarães Rosa. Este é um dos contos no qual evidencia-se o universo primitivo e fantástico do autor.

Narrado em primeira pessoa, com o narrador participando da história e tendo visão limitada dos fatos que narra. Quem narra a estória é um médico de um vilarejo do interior. Corpo Fechado começa propriamente no final, com Manuel Fulô contando outros casos para o doutor.

A técnica narrativa do conto é em forma de entrevista. O “doutor”, no decorrer da história, vai entrevistando Manuel Fulô, um valentão manso e decorativo, como mantença da tradição e para glória do arraial.

O cenário é Laginha, arraial monótono do interior de Minas Gerais e o espaço do conto é variado, deslocando-se a ação de um lugar para outro.

Corpo Fechado continua a problemática apresentada em São Marcos: mundo de feitiçarias e bruxarias. Um curandeiro fecha o corpo e anulando a fragilidade do protagonista que, imantado pela fé, vence o vilão, brutal e valente, mas sem o amparo do sagrado.

Além dessa temática, sobressai também a saga dos valentões das gerais, principalmente com o temível Targino, e a saga dos ciganos, muito freqüente no interior.

Personagens

Médico – Narrador, mora num arraial do interior de Minas. Fez amizade com Manuel Fulô. Gostava de ouvir-lhe as conversas.

Manuel Fulô – Sujeito pingadinho, quase menino, cara de bobo de fazenda, cabelo preto, corrido. Não trabalhava. Gostava de moça, cachaça e conversa fiada.

Beija-Flor – Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono, Manuel Fulô.

Das Dor – Noiva de Manuel Fulô; moça pobre, mas muito bonita.

Targino – O valentão mais temido do lugar. Era magro, feio, de cara esverdeada. Dificilmente ria.

Antônio das Pedras-Águas – Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro.

Resumo do conto

A amizade do narrador com Manuel Fulô nasceu do nada. Solidificou-se quando o narrador descobriu que Manuel comia cogumelo com carne. Manuel Fulô gostava de moças, de cachaça e de conversa fiada.

Beija-Flor era o orgulho de Manuel Fulô. Mais que isso: era uma espécie de complemento. Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono. Quando Manuel Fulô ficava bêbado – e isso acontecia todos os domingos – atracava-se ao pescoço de Beija-Flor, e a mula levava-o com todo o cuidado. Sabia abrir porteiras.

Manuel Fulô conta ao narrador que viveu uns tempos com uns ciganos só para aprender alguns truques. Os ciganos gostavam dele porque pensavam que ele era bobo de verdade. Com os ciganos, Manuel Fulô aprendeu tudo sobre cavalos. Sabia transformar animal ruim em bicho de valor em pouco tempo. Quando deixou os ciganos, passou a ganhar dinheiro negociando com animais.

Manuel Fulô contou ao narrador como conseguiu, certa vez, enganar os ciganos. Arranjou dois cavalos imprestáveis, preparou-os, fez-lhe maquiagens para disfarçar defeitos e trocou-os por dois cavalos bem melhores. Com isso, perdeu a freguesia. Ninguém quis mais negociar com Manuel Fulô porque ele era capaz de enganar até ciganos.

Uma noite, o narrador e Manuel Fulô estavam bebendo cerveja na venda. De repente, entrou Targino e caminhou na direção dos dois amigos. Pediu licença ao doutor: queria falar um particular a Manuel Fulô. Pura formalidade, pois Targino falou bem alto, na porta da venda, a três passos do narrador:

– Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho visitar sua noiva, amanhã… Já mandei recado, avisando a ela… É um dia só, depois vocês podem se casar… Se você ficar quieto, não te faço nada… Se não… – E Targino, com o indicador da mão direita, deu um tiro mímico no meu pobre amigo, rindo, rindo, com a gelidez de um carrasco.

Depois da ameaça, o doutor-narrador levou Manuel para a casa dele (do doutor). Que fazer? O próprio Manuel não via saída. Targino era valentão, ninguém podia com ele. No outro dia, enquanto Manuel ainda se recupera do porre, o doutor saiu à procura de ajuda. Primeiro, foi à casa do Coronel Melguério. O homem deu de ombros: se alguém tivesse coragem de enfrentar o Targino… Depois, foi a vez do vigário: prometeu rezar. De volta, o doutor encontrou a casa cheia: eram os parentes de Manuel Fulô. Pediam ao doutor que não fizesse nada. O correto era entregar para Deus. Maria das Dores estava sozinha com a mãe, chamando pelo noivo.

Chamava-se Antonico das Pedras ou Antonico das Águas. Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro. No meio da aflição, foi ter à casa do doutor. Ali, com ar de pressa, trancou-se no quarto com Manuel Fulô. Um tempo depois, a porta abriu-se, e Manuel anunciou com cara de defunto: entreguem a mula Beija-Flor para seu Antônio. O feiticeiro pediu um prato fundo, brasas, linha e cachaça. Os apetrechos apareceram, e os dois se trancaram no quarto.

Enquanto isso, Targino saiu à rua deserta e caminhava em direção à casa onde estava a Maria das Dores, a noiva ameaçada.

Manuel Fulô, depois de algum tempo trancado no quarto com Antônio feiticeiro, saiu teso, cara de mau, olhar fixo. E assim, caminhou para a rua: ia ao encontro de Targino. Todos ficaram assustados. Antônio Feiticeiro explicou: Manuel Fulô estava com o corpo fechado. Arma de fogo não tinha poder sobre ele. A mãe de Manuel pediu que segurassem o filho dela, pois seu Toniquinho pusera-o doido. “Mas ninguém transpôs a porta”. E lá estavam os dois, Targino e Manuel Fulô, frente a frente. Manuel falou primeiro, xingando a mãe do valentão. Mexeu na cintura e tirou dela uma faquinha quase canivete. Cresceu para cima de Targino. Foram cinco tiros, as balas zuniram. Manuel Fulô pulou sobre Targino e aplicou-lhe várias facadas pela altura do peito. O valentão capotou e morreu num átimo. Manuel Fulô ainda lhe deu mais facadas, sujando-se todo de sangue.

Manuel Fulô fez um mês inteiro de festa e até adiou o casamento, pois o padre teimou que não matrimoniava gente bêbeda. O narrador foi o padrinho.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/c/corpo_fechado_conto

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 28. Modéstia

Franklin Penha dera-me hoje a impressão de um grande fátuo. Viu-me no bonde e cumprimentou-me com excessiva amabilidade, com regozijada surpresa, como se tivesse descoberto em mim, de repente, algum encanto inédito. E eu nem sequer tinha a barba feita. O motivo não tardou a aparecer. O que Franklin pretendia era capturar a minha atenção e boa vontade para uma notícia de jornal que trazia recortada, no bolso, e lhe pesava como uma barra de ouro. A notícia era mais ou menos a seguinte:

“O Senhor Doutor Franklin da Costa Penha, conceituado advogado do nosso foro e futuroso cultor do nosso passado, acaba de ser nomeado sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de…, por indicação, unanimemente aprovada, do eminente historiógrafo brasileiro Sr….”

-“Parabéns, bichão.”

-“Oh!”

Apesar desse oh! Franklin estava realmente satisfeito, mais talvez do que o seu venerando xará depois que eripuit fulminen, etc. Guardou o retalho na carteira, quase a afagá-lo com as pontas dos dedos, como se fosse um aéreo tecido de seda; arrumou a carteira no bolso e, confidencial e grave:

-“Não; eu, de fato, para ser franco, fiquei muito contente. Eu sou assim. Tenho ainda alguma coisa do menino de colégio, que se ufana dos prêmios recebidos. Puerilidade. Pura, insofismável puerilidade. Eu podia contar-lhe esta nova assim com um arzinho de quem não ligava, negligentemente, como por uma lembrança de acaso. Podia ter-lhe dito que o fato me agradava por este ou por aquele motivo nobre; pelo prazer que teriam lá em casa, pela recomendação que estas distinções representam no seio de uma burguesia bobalhona… enfim qualquer coisa por esse gosto. Mas tudo isso não seria senão hipocrisia. A verdade pura é que fiquei contente por mim mesmo, pela própria distinção em si; contente deveras, cheio de contentamento como um balãozinho de goma elástica cheio de ar. Eu sou assim. “Mas também, amanhã ou depois, já estarei resfriado; nem me lembrarei mais de que fui eleito sócio correspondente. Depende de eu querer alcançar uma outra tetéia que no momento me seduza.”

Franklin dizia-me estas coisas com tanta simplicidade e com um lume tão sincero nos olhos, que tudo lhe aceitei como vera confissão. E absolvi-o. Não, ele não é fátuo. É talvez mesmo o oposto do fátuo, um grande modesto.

Modéstia, afinal, não é isso? A verdadeira não é aquela que se proíbe a mínima expansão de vaidade. Os indivíduos que se proíbem a menor demonstração de vaidade são quase sempre os mais vaidosos dos vaidosos. Pretendem, sonham, invejam, sofrem e gozam tanto quanto os outros, com a única diferença de que põem abafos a isso tudo e, além de tudo, ainda querem fruir a reputação de ser extraordinariamente modestos. Há mesmo cidadãos que devem a maior parte do seu renome à sua modéstia ou à sua preguiça. O pouco que dão de si, dão como passatempo, como capricho ou brinco de um momento, como efeito de imposições alheias, como necessidade ocasional. Por si mesmos, não, não querem nada, querem sossego! Mas o seu maior gozo é quando os admiradores exclamam: “Ah! se este safado se resolvesse a trabalhar!” Vaidosos dobrados, têm várias vaidades lá dentro, presas e gordas como perus de galinheiro, e ainda por cima se deliciam, epicuristicamente, com a vaidade de não ter nenhuma vaidade, que é a mais vá, a mais falsa, a mais loucamente ambiciosa de todas.

O modesto verdadeiro não é o que se envergonha das suas vaidades, é aquele que lhes dá expansão, reconhecendo-as porém com bonomia como tais, sem lhes emprestar outros nomes, nem estar com rodeios e mentirolas. Somente, possuir a clara consciência delas é automaticamente reduzi-las. Dar-lhes expansão, assim, é rarefazê-las. É torná-las exteriores, superficiais e passageiras, como um suor, como escamazinhas eruptivas da pele, como secreções, coisas que a economia orgânica de um corpo são, normalmente engendra e rejeita. Uma limpeza, uma “catársis”, um arejamento, um alívio.

Gozar as próprias vaidades com sincera e inocente imprudência é o melhor meio de lhes sentir a vacuidade, de as tornar inócuas, de acabar por desprezá-las e perdê-las. Permitir-lhes que levantem o vôo é deixar que se vão embora.

Alegrar-se alguém abertamente com os seus pequenos triunfos é um modo amável de se confessar bem gratificado. Saudável fusão de bonomia, conformidade e desprendimento: modéstia, enfim; a boa, a legítima, a pura. A única.

Todo o mal da vaidade está nos sentimentos e nos cálculos que se lhe ajuntam, que a mascaram, a pervertem, a envenenam, a entranham na alma, hipertrofiando-a, dando-lhe porvezes a figura hidrópica de virtudes austeras, dessas que merecem lápides em latim. -É assim que se formam esses veneráveis cavalheiros amargos que santamente odeiam todas as manifestações brilhantes e aladas da vida, esses grandes desambiciosos que se vingam em todo o mundo de não poderem confessar ambições, esses perpétuos caluniadores que enxameiam e zumbem, como varejeiras pesadas e tontas de sânie, em redor de cada desgraçado cujo nome não ficou soterrado como o deles na própria impotência.

Nietzsche teve razão – o que algumas vezes lhe acontece por maneira fulmínea -quando disse que as paixões, em seu estado puro, são boas. Apenas haverá nisso exagero. São boas porque são naturais, porque são o próprio homem. O que as torna más, corrompendo-as envilecendo-as, é a hipocrisia, que as dissimula intensificando-as no entanto; que as enfeita por fora, como serpentes, mas dá-lhes o veneno e a insídia; que as oculta e as desvia de seus fins imediatos, claros e geralmente saudáveis, para as pôr ao serviço de afetos nobres e de longos, tenazes e engenhosos ressentimentos.
Menos ousado, Augusto Comte apenas reconhece à vaidade -desejo de aprovação -direitos de cidade na sua moral sociocrática; mas…

… Mas que Nietzsche! que Comte! que Fulano ou Beltrano! Antes de todos eles, o Eclesiastes havia proclamado, para todo o tempo, que tudo é vaidade neste mundo.

Dessa e de outras afirmações se tirou apressadamente a ilação de que o cristianismo nascente votava um ódio entranhando à vida. Mas ele não fazia senão pôr o dedo na latejante verdade, na dolorosa e redentora verdade. Era uma libertação e um alívio que ele trazia: tornaram-no um torvo condenador da vida. Era uma reação contra o formalismo, a pedantaria, a artificiosidade hipócrita do judaísmo literalizante e manhoso, uma revolta do espírito, uma insurreição de veracidade heróica, alegre triunfal da nossa miséria”.

Sim, tudo é vaidade; sim, o homem é mau; sim, somos o verme da terra. Pois, sejamos vaidosos, sejamos maus, sejamos vermes, francamente, de cara descoberta, de alma leve, com a lavada e impudente sinceridade da flor e da fera, à luz do Sol e à face de Deus, na perpétua humildade de uma confissão total e tranqüila! Não queiramos converter velhacamente a larga realidade comum da nossa pobreza em falsas opulências de exceção. Quem se abaixa é que será exaltado: só quem se reconhece tal qual é, ou tal qual somos, achará em si mesmo a verdadeira força purificadora e ascensional, que não mente nem quebra. Confessemo-nos sinceramente a Deus, e Deus a todos os humildes perdoa e sustém.

Como é que a tola perversidade humana pôde converter a clara e benéfica fonte de liberdade e de alegria, que há no fundo dessa viril visualização cristã da vida, nesta coisa sombria e horrenda, nesta mascarada de mistificações, neste pesadelo de atrozes artifícios, neste abominável Santo Ofício de idealismos hipócritas e peçonhentos e de mútua espionagem, que a sociedade instituiu dentro de si mesma e carrega no seio como um rolo esfervilhante de víboras?

Jesus claro, natural e harmonioso como a Verdade, até fabricou vinho em Caná para a jovialidade simples dos homens…

A modéstia é uma virtude imensuramente prezada pelo grande número. Todos a veneram. Todos a exigem dos outros. Por que? Mas, evidentemente, por ciúme e inveja. Não há ninguém mais modesto do que as velha chupadas, arrependidas… de não haverem pecado. – Não podendo suprimir os méritos de quem os tem, quer-se que ao menos o possuidor não os reconheça, ou finja não os reconhecer; quer-se diabolicamente aguar, estragar, atormentar com dúvidas, com acanhamentos, com terrores e com escrúpulos o prazer natural, irreprimível e capitoso que ele possa provar. Assim, mais ou menos, falou Zaratustra.

A moral social é uma formidável conspiração de todos contra cada um, para o triturar, perverter, o desvirilizar, o reduzir a um ser lamentoso e tortuoso, um aleijado sofredor, grotesco e malfazejo. O pátio dos Milagres! O envaidecido enrosca-se e enclavinha-se em si mesmo. Em vez de lançar ao vento as suas pequenas fatuidades e libertar-se delas, ele as recolhe, as acumula, as afunda lá dentro, e as recoze, e as cultiva em sigilo, como um fabricante de venenos, com toda a sorte de cautelas, de temores, de desculpas, de artifícios, de equívocos, de dissimulações, e aí temos uma franqueza quase inocente convertida, pelo farisaísmo da virtude, numa podriqueira secreta!

Só o indivíduo que experimenta prazeres de vaidade, sem se enganar sobre a natureza deles, assistindo a essas experiências do sentimento como um lúcido espectador de si mesmo, só este é capaz de modéstia. Se algum há que não os conheça, esse não é propriamente um modesto, é um que nasceu com uma falha psicológica, como outros nascem privados da vista ou com um pé atrofiado. Não tem mérito algum. Tem um defeito de nascença.

A modéstia é a vaidade que sorri de si mesma. E nesse sorriso vai o quantum satis de contra-veneno.

A boa modéstia é a vaidade que sorri de si mesma para não se rir das outras, e que às vezes arde e se sublima na chama do sorriso -como um balão de papel se destrói e desaparece na própria chama que o eleva.

A vaidade paga regiamente as suas culpas. Quantos artistas crucificados na sua obra, vertendo sangue e clarões!

A boa modéstia é aquela que doma as suas vaidades e as subjuga ao domínio de uma paixão forte e bela, como os tigres que puxavam o carro de Dionísios.

A serpente, às vezes, gasta o seu veneno em botes aos raminhos que bolem ou às sombras que passam, e assim se torna inócua ao picar uma rês ou um homem. A vaidade é muitas vezes como a cobra.

À vaidade parece dever-se também uma quantidade de horrores: assassínios, roubos, atrocidades, suicídios. Na realidade, ela desempenha apenas o papel de um purgante orgânico da comunidade social. Em muitos casos, se a uma só causa se podem filiar coisas tão complexas, é a modéstia que deve ser responsabilizada. Convertida em mandamento irretorquível, comprime e abate a natureza humana e a obriga a esses longos desvios e absurdas transferências da paixão inextirpável, a vontade de se afirmar. O excesso de modéstia pode prolongar-se até ao cinismo, e à delinqüência.

Fonte:
Domínio Público

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Afonso Arinos (Assombramento) Parte 3

Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.

Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arneiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.

Era noite.

Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arneiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.

– Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato.

E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!

– Senhor! Por que seria? – inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.

Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.

Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.

Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.

– Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a virgem Maria…

O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.

O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.

Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.

– É o vento, talvez, no sino da capela.

E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.

– Acaba aqui – murmurou.

Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.

– Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver…

Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.

Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.

A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.

Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a principio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.

Meteu a binga no bolso e disse:

– Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.

Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.

No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arneiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.

Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.

Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casara-o escuro e a ventania – alcatéia de lbos rafados – investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios.

Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas… Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu… e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.

Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arneiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.

E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com o vento, os morcegos e a treva.

Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez cm quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de outro.

– Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não – exclamava o arrieiro para o invisível. – Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro!

E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.

Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.

Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um barra-o acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traia. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:

– Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!

De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.

A queda assanhou-lhe a fúria e o arneiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo.

Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venâncio armara na sala da frente.

Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro Manuel, Manuel, Manuel – em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.

Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.

O arneiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:

– Traiçoeiras ! Eu queria carne para rasgar com este ferro ! Eu queria osso para esmigalhar num murro.

As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d’acolá, açulando-o como a um cão de rua.

O arneiro dava saltos de úgre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coréia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.

Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.

O arneiro rugiu:

– Eu mato! Eu mato! Mato! – e acometeu com de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes. fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro.

Manuel lá no fundo, ferido, ensangüentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: – “Eu mato ! Mato! Ma…” – e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.
–––––––––––-
continua…

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Isaac Leib Peretz (Bontsha, o Silencioso)

(1852-1915 – Polônia)
Judeu polonês que escrevia em iídish, lsaac Leib Peretz deixou uma enorme influência em inúmeros escritores judaicos contemporâneos, pelo mundo todo. Seus contos constam em várias antologias mundiais, principalmente publicados nos Estados Unidos. Histórias como As Três Prendas, Dois Moribundos e este Bontsha, o Silencioso, retrato de um ser humano que nunca sentiu ódio e que nunca se queixa de Deus ou dos outros homens, são contos consagrados. De amor pela vida e de um humor (quase) pungente.
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Aqui, neste mundo, a morte de Bontsha, o Silencioso, não causou nenhuma impressão. Pergunte a qualquer um: quem foi Bontsha? Como viveu? Como morreu? Suas forças pouco a pouco o abandonaram, seu coração, com o tempo, desistiu de bater ou foram seus ossos que cederam debaixo do peso de seu fardo? Quem sabe? Talvez, por não comer, tenha morrido de fome.

Um cavalo, que caísse morto, puxando uma carroça pelas ruas, chamaria mais atenção. Curiosos viriam de longe para ver a carcaça. O local do acidente ficaria marcado. Os jornais noticiariam o fato. Mas se os cavalos fossem tão numerosos como os seres humanos não mereceriam tal honra. Afinal, quantos cavalos existem? Já os homens, são tantos – deve haver bilhões!

Bontsha era um ser humano. Viveu desconhecido, no silêncio, e no silêncio morreu, depois de passar pela vida como uma sombra. No dia em que Bontsha nasceu, ninguém ficou alegre, ninguém tomou um copo de vinho. Na sua confirmação, não houve discurso nem celebração. Viveu como o grão de areia na beira do grande oceano, entre milhões de outros, grãos como ele. E quando o vento, enfim, o levantou e levou com seu sopro para a outra margem, ninguém notou.

Durante sua vida, seus pés não deixaram marcas no pó da estrada; depois de sua morte, o vento derrubou a tabuleta que marcava sua sepultura, e quando a mulher do coveiro encontrou aquele pedaço de madeira, já longe do seu túmulo, usou-o para acender o fogo embaixo de uma panela de batatas. Três dias depois da morte de Bontsha ninguém mais, nem mesmo o coveiro, se lembrava onde fora enterrado. Se houvesse uma lápide no túmulo, alguém poderia, mesmo muitos anos depois, ler seu nome na pedra e Bontsha, o Silencioso, não teria desaparecido da memória dos homens como uma sombra.

Solitário viveu e solitário morreu. Não fosse a pressa e o barulho infernal em que vivem os homens, talvez alguém notasse que Bontsha também era um ser humano, que seus ossos se quebravam sob o peso das tarefas diárias, que ele tinha dois olhos assustados, que era trêmula sua boca silenciosa, que mesmo quando não tinha um pesado fardo nas costas ele caminhava curvado, olhando para o chão, como se já estivesse procurando a sepultura.

Quando o levaram para o hospital, dez miseráveis disputaram seu canto estreito que logo encontrou um inquilino. Quando foi para o necrotério, havia vinte doentes que só esperavam que ele morresse e vagasse seu leito na enfermaria. Eram quarenta os mortos a serem sepultados, quando o levaram para o cemitério. Quem sabe quantos esperam para roubar dele até mesmo aquele pedacinho de chão?

Silencioso quando nasceu, silencioso na vida, silencioso quando morreu, mais silencioso ainda foi seu enterro. Mas no outro mundo foi diferente. Ali a morte de Bontsha foi uma sensação. O som da trombeta messiânica ecoou pelos sete céus, anunciando: Bontsha, o Silencioso, morreu! Os anjos mais importantes voaram, com suas asas imponentes, para contar uns aos outros: Sabe quem chegou? Bontsha! Bontsha, o Silencioso, morreu.

Os anjinhos, com suas asas de ouro e seus sapatinhos prateados, os olhos brilhando e rindo de felicidade e de alegria, correram, cantando, para receber Bontsha. O rumor que fizeram com suas asas, o bater de seus pequenos sapatos e seu riso cristalino correram por todo o Paraíso, de forma que até Deus soube que Bontsha, o Silencioso, havia chegado.

Nosso pai Abraão esperava por ele no portão, com braços estendidos para abençoar e acolher:

– A paz esteja contigo! – disse com o rosto, patriarcal e vincado, iluminado por um doce sorriso.

Mas o que está acontecendo no céu? Dois anjos trazem um trono dourado para que Bontsha se sente nele e sobre sua cabeça colocam uma coroa de pedras preciosas.

– Mas por que o trono e a coroa? Antes mesmo que ele seja julgado? – se perguntam os santos com uma pontinha de inveja.

Os anjos respondem que aquele é Bontsha e que seu julgamento será apenas uma formalidade. Quem poderia dizer alguma coisa contra ele? Imaginem, Bontsha, o Silencioso!

Quando se viu recebido por um coro de anjinhos e abraçado pelo patriarca Abraão como se fossem velhos amigos, quando viu preparado para si um trono e sua cabeça coberta por uma coroa, quando ouviu que em seu julgamento final nada seria dito contra ele, Bontsha, como fazia em vida, ficou em silêncio. Ficou em silêncio de medo. Com o coração apertado e o sangue correndo gelado; sabendo que tudo isto só podia ser um sonho ou um terrível engano.

Ele estava acostumado às duas coisas, sonhos e enganos. Quantas vezes não sonhara ser rico, com muito dinheiro! Apenas para acordar na mesma cama de sempre e um pouco mais miserável. Quantas vezes alguém lhe dissera uma palavra gentil com um sorriso! Apenas para afastar-se com nojo e irritação ao perceber o engano.

Não ousava levantar os olhos, fazer um movimento, como não ousara responder à saudação do patriarca (seus lábios não conseguiram formar a palavra “paz”). Tinha medo que um gesto seu fizesse o sonho se dissipar e que ele acordasse num ninho de cobras. Medo que uma palavra o denunciasse por quem não era, e descoberto o engano fosse expulso dali. Medo que o impedia de ouvir o coro angelical e de ver dançar em volta dele os querubins. Quando o conduziram, enfim, diante de Deus no Tribunal do Juízo, não foi, ao menos, capaz de dizer “bom dia”. Estava paralisado de medo.

Olhando para o chão belíssimo, que só fazia aumentar seu terror quando via que eram seus pés que pisavam ali, tudo que conseguia pensar era: “Quem sabe com que ricaço importante ou sábio rabino me confundem? Ele aparecerá e será o meu fim E fechou os olhos para não ver.

Não conseguiu entender o que diziam quando chamaram seu próprio nome. Ouvia as vozes como quem houve um instrumento musical sem dar sentido às palavras. Uma voz de anjo dizia:

– Bontsha, o Silencioso, um nome que o cobre de glória como nem o mais rico e elegante dos mantos jamais cobriu um príncipe…

“O que será que estão dizendo? De quem estarão falando?”, pensava Bontsha, a quem parecia ter ouvido seu nome, enquanto outra voz interrompia seu anjo defensor:

– Rico manto! Príncipe! Poupe-nos as metáforas e o tempo.

– Nunca reclamou – continuou a defesa – nem de Deus nem da vida; em seus olhos nunca se viu traço de mágoa ou despeito. Nunca um protesto aos céus.

Bontsha continuava sem entender do que falavam quando outra vez ouviu a voz do promotor:

– Deixemos, por favor, a retórica!

– Seus sofrimentos foram indescritíveis, temos aqui um homem que padeceu mais que Job!

“Quem?” – pensava Bontsha – “Quem será este homem?”

– Fatos! Fatos! Deixe de lado os floreios e atenha-se, por favor, aos fatos! disse o juiz.

– No oitavo dia foi circuncidado…

– Tanta riqueza de detalhes é desnecessária.

– Fizeram um talho mal feito e nem ao menos lhe estancaram o sangue…

– Desnecessária e de mau gosto.

– Desde criança sempre silencioso. Não chorava sua dor, nem mesmo quando perdeu sua mãe e foi entregue à víbora, à bruxa, que era sua madrasta!

“Será que falam de mim?” – pensou Bontsha.

– Não é a madrasta quem está sendo julgada – advertiu o juiz.

– Eram contados os pequenos pedaços de pão bolorento e duro que lhe dava. Enquanto ela mesma tomava seu café com creme. A única coisa que Bontsha teve com abundância foram maus tratos. Equimoses e cicatrizes ficavam à vista de todos, através dos rasgos, nos trapos que lhe dava para vestir. No inverno fazia-o cortar lenha descalço no frio quintal coberto de neve. Suas mãozinhas eram fracas e se feriam nos troncos pesados demais para elas. Tantas vezes seus pés congelaram. Mas ele sempre em silêncio, sem nunca uma queixa, nem mesmo ao seu pai…

– Aquele bêbado? Imaginem queixar-se a ele! – a voz do promotor era cheia de escárnio enquanto o corpo de Bontsha tremia com a memória do medo antigo.

– Nunca reclamou e sempre tão só. Jamais teve um amigo, um companheiro. Jamais foi a uma escola. Nunca viu uma muda de roupa nova. Nunca soube o que era um momento
de liberdade.

– Objeção! Objeção! – gritou irritado o promotor. – Ele está apenas apelando para o sentimentalismo da Corte, com esses vôos de retórica.

– Silencioso! Mesmo quando seu pai, completamente embriagado, atirou-o para fora de casa, na neve fria de uma noite de inverno, ele não disse nada. Levantou-se em silêncio e andou para onde o levaram seus passos.

– Vagou pelo mundo na miséria e em silêncio; mesmo passando fome, ele implorava apenas com o olhar. Finalmente, numa noite chuvosa de início de primavera seus passos o levaram (como o vento transporta uma folha) para uma grande cidade. Lá entrou sem ser visto nem ser ouvido, mas, mesmo assim, o jogaram numa prisão. Sempre em silêncio não protestou nem perguntou: “Por quê?” “Que foi que eu fiz?” Quando as portas da prisão se abriram, ele saiu, como havia entrado, sem dizer uma palavra. Procurou um trabalho e deram-lhe o mais pesado e o que pagava menos. Ele aceitou em silêncio! Mais terrível que o trabalho era procurar por trabalho, suando frio, com o estômago torturado pela fome. Sempre em silêncio! Enlameado e sujo, era, com desprezo, expulso das calçadas e obrigado a andar pela rua, entre as bestas e os carros, com sua carga. Ele mesmo uma besta de carga, arriscando o pescoço a cada passo. Em silêncio.

– Nunca se preocupou em saber quantos quilos de carga devia carregar, .nem quantas viagens devia fazer, tropeçando a cada passo para ganhar uma moeda. Nunca levantou a voz para reclamar sua paga. Como um mendicante, esperava que lhe dessem o que de direito era seu. Esperava na porta em silêncio; se lhe diziam: “Volte mais tarde”, desaparecia como uma sombra, e mais tarde voltava como uma sombra para esperar. Nunca reclamou quando lhe pagavam menos ou davam-lhe, misturada às outras, uma moeda falsa. A tudo suportava em silêncio.

– Uma vez – continuou o anjo defensor – sua sorte pareceu mudar. Que milagre aconteceu? Quando cruzava a rua, Bontsha viu uma carruagem que vinha em disparada com os cavalos sem governo. Seu cocheiro estava caído lá atrás com a cabeça sangrando. Dentro dela um homem mais morto que vivo de pânico. Os cavalos assustados espumavam pela boca e em seus olhos selvagens brilhava uma luz que era como o fogo numa noite escura. Bontsha atirou-se às rédeas e conseguiu parar os cavalos. O homem a quem salvara era rico e generoso e não foi ingrato, pôs nas mãos dele o chicote do cocheiro morto e fez de Bontsha seu novo cocheiro. Um cocheiro! Não mais um carregador! Melhor ainda, seu benfeitor conseguiu-lhe uma esposa na qual, com grande generosidade, fez ele mesmo um filho para que Bontsha criasse. E Bontsha, em silêncio ainda desta vez, não reclamou.

“É de mim que falam” – pensou Bontsha – “é realmente de mim!” – Mas ainda assim não teve coragem para abrir os olhos e olhar seus juizes.

– Resignou-se em silêncio – prosseguiu o anjo – quando, falido, seu benfeitor deixou de pagar-lhe todos os salários atrasados. Aceitou sem uma queixa quando sua esposa o abandonou deixando-lhe seu filho, ainda pequeno, para que ele cuidasse. E permaneceu em silêncio, quando, quinze anos mais tarde, aquele mesmo menino que ele criara estava crescido e forte o bastante para botá-lo para fora de sua própria casa.

“É de mim que estão falando” – pensou Bontsha, ainda com medo – “é de mim mesmo!”

– Ficou em silêncio até mesmo quando – continuou o anjo que o defendia – o benfeitor, tendo resolvido seus problemas econômicos e novamente rico, pagou a todos seus credores e não se lembrou de pagar a ele. E, mais ainda, contratou um novo cocheiro para sua bela carruagem enquanto Bontsha trabalhava outra vez como carregador pelas ruas. E, quando foi atropelado, por esta mesma carruagem com seus belos cavalos, suas rodas de borracha e seu novo cocheiro, nem então, Bontsha, agonizando na rua, teve uma palavra amarga. Nem mesmo à polícia ele disse quem o havia atropelado e abandonado na rua. No hospital, onde todos têm o direito de gemer, Bontsha continuou em silêncio; quieto em seu leito, abandonado por médicos e enfermeiros, que não perdem tempo com quem não pode pagar. Sempre assim, sem um murmúrio! Quando a morte chegou, ele a esperava em silêncio. Nunca um protesto contra os homens, nunca um protesto contra Deus!

A defesa havia terminado e o pânico voltou a tomar conta de Bontsha; agora, ele sabia, viria a fala do promotor. Como o defensor, que o fizera lembrar de tantos detalhes de sua vida na Terra, seria agora a vez da acusação de tirar do passado seus pecados e faltas e trazê-los todos de volta à memória. Deus sabe o que ele iria lembrar!

– Senhores! – começou o anjo acusador, com uma voz seca e dura, mas logo fez uma pausa como se não soubesse como continuar. – Senhores! – começou outra vez e finalmente disse – Senhores, como Bontsha, que passou toda a vida em silêncio, eu também ficarei em silêncio.

Sobre o Tribunal caiu um grande silêncio que foi quebrado por fim por uma voz nova. Uma voz que vinha do mais alto trono. Uma voz terna e amorosa:

– Bontsha, meu filho! Bontsha – a voz era como música -, filho do meu coração!

Bontsha foi tocado, pela voz de Deus, no mais íntimo de seu ser. Sua alma começou a chorar. E era tão doce chorar. Nunca Bontsha pensara que chorar pudesse ser tão doce.

– Meu filho…

Nunca, desde que sua mãe morrera, ninguém o chamara assim. Com uma voz assIm.

– Meu filho – ele continuou ouvindo -, você sofreu tanto e nunca se queixou. Não existe um lugar em seu coração que não tenha sido ferido. Não existe lugar no seu corpo que não tenha sangrado. Nenhum lugar em sua alma que não fosse ofendido. Sem um protesto, sempre em silêncio.

– Em vida ninguém o compreendeu. Você mesmo não se compreendeu. Que não era necessário suportar tanto. Que tinha o direito de se lamentar. Que seu lamento chegaria ao céu. Que um gemido seu poderia chamar um exército de anjos vingadores e o próprio fim do mundo. Nunca entendeu o poder adormecido que havia em você. Lá, naquele mundo de ilusões, seu silêncio nunca foi recompensado, mas aqui no Paraíso, é tudo seu. Não apenas uma parte, não uma cota, mas tudo. O Paraíso é seu! O que você quiser, é tudo seu!

Então, Bontsha, ousou finalmente levantar os olhos. A luz o cegava. A luz esplendorosa que estava em tudo e em toda parte. Os anjos brilhando na luz, o trono iluminado.

Ele baixou novamente os olhos, ofuscados:

– Verdade? – Perguntou incrédulo e um pouco embaraçado.

– Sim, de verdade! – respondeu o Todo Poderoso, e com ele, numa só voz, todo o coro celestial – É tudo seu! Tudo no Paraíso é seu! Escolha! Tome! É tudo seu! Você estará tomando daquilo que já é seu!

– Nesse caso – disse Bontsha, sorrindo pela primeira vez -, nesse caso, Excelência, eu gostaria de ter todos os dias, no café da manhã, um pãozinho quente com bastante manteiga.

Um silêncio terrível tomou conta do Tribunal, mais terrível ainda do que tinha sido o silêncio de Bontsha durante toda sua vida. E Deus e os anjos baixaram a cabeça, envergonhados de terem criado na Terra tanta e tão desnecessária humildade.

Então o silêncio foi quebrado pela gargalhada amarga do anjo acusador.

(Tradução de Octávio Marcondes)

Fonte: Os 100 melhores contos de humor da literatura universal / Flávio Moreira da Costa (org.).Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

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Afonso Arinos (Assombramento) Parte 2

Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão erma.

As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.

Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.

E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistório das almas penadas – outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes:

– Ché, povo! Tá chegando a hora!

O último estribilho:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:
Rio Preto há de dar vau

Té pra cachorro passar!

– Tá chegando a hora!

– Hora de que, Joaquim?

– De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.

Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.

– Gente ! O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.

– Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o patrão sozinho?

– Que se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só, porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.

– O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá, não escapa nenhum.

– Qual, homem! Isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.

A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.

E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto.

– Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida – e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.

Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte.

Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.

Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:

– Até aí vou eu, gente ! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.

E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.
–––––––––––––-
continua…

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 27. Justiça

Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito rápida, nem propriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária -o bonde não correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou de repente com um automóvel, e surgiu uma grande discussão a respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista, se ao chauffeur.

Entrou em função o juiz que há dentro de cada indivíduo, e as sentenças divergiam.

-“Foi esse negrinho estúpido,” dizia um, indigitando o chauffeur.

-“O culpado é esse louco desse portuga,” asseverava outro, referindo-se ao motorista.

-“Cadeia com eles, é o que eu vivo a dizer.”

-“Qual! só a pau.”

-“Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina.”

-“Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos uma.”

-“Mas o bonde podia bem ter parado a tempo.”

-“Não podia, aqui é um declive.”

-“Seu guarda, o culpado é o chauffeur.”

-“Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro.”

E cada juiz era também um partidário, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito de nacionalidade ou de raça, por disposição mais favorável a uma das classes de automedontes, por ter ou não automóvel, por ter ou não ter um parente chauffeur ou automobilista, por mero palpite, cada um propendeu imediatamente para uma das bandas.

Mas, valha a verdade, havia também homens imparciais, por exceção. Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou tranqüilamente:

-“Ora, ora! Quem foi, quem não foi… Eu o que fazia era pegar nos dois e socá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja…”

Fonte:
Domínio Público

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Guimarães Rosa (O Burrinho Pedrês)

Conto de Sagarana

Análise da obra

Conto narrado em 3ª pessoa. A onisciência do narrador é propositalmente relativizada, dando voz própria e encantamento às narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética.

Em O burrinho pedrês, primeiro dos nove contos, Guimarães procura mostrar, tendo como pano de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a sua hora e sua vez de ser útil. É o caso do burrinho Sete-de-Ouros: a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo – ressalta Oscar Lopes.

O burrinho pedrês é uma estória que metaforiza a experiência da velhice, um burrinho experiente sabe se orientar onde cavalos de boa montaria sucumbem.

Neste conto, assim como em Conversa de bois e em A volta do marido pródigo, os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

A ironia do escritor vale-se do decadente burrinho para pôr a nu a onipotência presunçosa do homem, que julga controlar o próprio destino, ignorando as inesperadas surpresas que este lhe reserva. A perspectiva místico-religiosa, a luta entre o bem e o mal, os riscos morais que acompanham o homem no perigoso ofício de viver, são os temas preponderantes que alimentam a ficção.

Em Sagarana renasce o anônimo “contador de estórias”, o homem-coletivo que se enraíza nos rapsódias gregas e nas canções de gesta medievais. Desde o início do conto (“Era um burrinho pedrês…”) esboça-se claramente a atitude ingênua e espontânea da “palavra lúdica”, que não aprisiona o falar nos limites rígidos do individualismo, mas se identifica com a palavra anônima e coletiva.

Seja pela fórmula lingüística caracterizadora da narrativa elementar, da fábula, da lenda (“Era um burrinho…”), tempo e modo verbais que, de imediato, tiram à narrativa o caráter de coisa datada, para projetarem na esfera intemporal do universo de ficção; seja pela mescla de precisão e imprecisão documental no registro do espaço (vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão); seja pela dimensão antropomórfica (forma humana) que é dada à personagem central, o “burrinho-gente”, e que situa a narrativa na fronteira entre o real e o mágico; seja pela funcionalidade das cantigas inseridas no fluxo narrativo, tudo isso e muito mais nos revela, no universo da palavra rosiana, a presença do “homo ludens” (homem lúdico), descompromissado com as estruturas convencionais do pensamento lógico.

A trama desse conto, como nas demais narrativas de Guimarães Rosa, é relativamente simples. Publicado pela primeira vez em 1946, O burrinho pedrês é uma história sugerida por um acontecimento real, passado no interior de Minas Gerais, envolvendo um grupo de vaqueiros. É a história da condução de uma boiada em dia de fortes chuvas, em algum ponto indefinido do sertão, sob a tensão de uma maquinação ameaçadora de ciúme e crime. O seu desfecho, de todo surpreendente, só poderia ser ideado por um mestre da palavra e da criação literária. O foco da narrativa está centrado em um burrinho pedrês, que é testemunha de um trágico acidente. Em contraponto com a intriga que se desenvolve entre os boiadeiros, há episódios relacionados com o ciclo mítico do boi, onipresente na vida sertaneja. Pairando sobre tudo e todos, destaca-se a figura sábia e intensamente “humana” do burrinho pedrês, que aparece pouco na ação mas, como citado, domina o universo da narrativa.

O cenário é a Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.

O burrinho Sete-de-Ouros, protagonista da história, simboliza o peso da vida quando “Carregado de algodão”, o trabalho do burrinho, e metaforiza a carga dos homens, o peso do mundo, como fardos de algodão. “Preguntei: p’ra donde ia?” – a forma arcaica do verbo perguntar sugere a indagação permanente dos homens, sábios e filósofos: para quê?, por quê?, de onde?, para onde?. “P’ra rodar o mutirão” alude ao esforço coletivo, ao dever de solidariedade que o burrinho cumprirá na sua hora e na sua vez.

Desde esse primeiro conto, estão presentes os elementos fundamentais para compreendermos os contos de Sagarana. O nome do burrinho, Sete-de-Ouros, é recoberto pela magia de um número místico (sete) e pela força simbólica do ouro, indicador de superação e de transcendência paralquimistas. A travessia, a superação de obstáculos por ocultos caminhos é uma imagem freqüente em Guimarães Rosa, como também a presença de forças mágicas, da natureza, atuando sobre o mundo e mostrando as possibilidades de os fracos se tornarem fortes, de se saber uma vida no resumo exemplar de apenas um dia.

Personagens

Sete-de-Ouros – animal miúdo e resignado, idoso, muito idoso, beiço inferior caído. Outros nomes que tivera ao longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato e Capricho.
Major Saulo – corpulento, quase obeso, olhos verdes. Só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo. Estava sempre rindo: riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; riso mudo, de normal. Não sabia ler nem escrever, mas cada ano ia ganhando mais dinheiro, comprando mais gado e terras.
João Manico – vaqueiro pequeno que montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta, trocou de montaria. Na hora de entrar na água, refugou, alegando resfriado, e escapou da morte.
Francolim – espécie de secretário do Major Saulo, encarregado de pôr ordem nos vaqueiros. Obedece cegamente às ordens do Major. Foi salvo, na noite da enchente, pelo burrinho Sete-de-Ouros.
Raymundão – vaqueiro de confiança do Major Saulo. Enquanto tocam a boiada, vai contando a história do zebu Calundu.
Zé Grande – vai à frente da boiada, tocando o berrante.
Silvino – vaqueiro; perdeu a namorada para Badu e planejava matar o rival na volta, depois de deixarem a boiada no arraial.

Resumo do conto

Na Fazenda da Tampa, do Major Saulo, os homens estão ultimando os últimos preparativos para sair pelo sertão, tocando uma boiada de bois de corte. O dia é de chuva, mas ela ainda não veio. Major Saulo ordena que os homens preparem os animais. Por zebra, o burrinho Sete-de-Ouros, presente ali na varanda da casa grande, também é escolhido para a viagem. Para montá-lo, o Major escolheu o vaqueiro João Manico.

Raymundão conta a história do touro Calundu. Não batia em gente a pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. Certa vez, na proteção de um grupo de vacas com seus bezerros novinhos, Calundu enfrentou uma onça preta, amedrontando a fera e pondo-a para correr. Certa feita, o touro Calundu matou Vadico, filho do fazendeiro Neco Borges. O pai, vendo filho ensangüentado no chão, puxou o revólver para matar o touro. Vadico, antes de morrer, pediu que o pai não matasse Calundu. Neco Borges mandou o touro para outra fazenda para ser vendido ou dado a alguém. Raymundão foi quem levou o bicho. O zebu ficou uma noite apenas no curral. No outro dia, estava morto.

Depois da chuva grossa, a boiada chegou ao córrego da Fome. Estava cheio. A travessia era perigosa, e o Major Saulo pediu cautela. Ali já morrera muita gente. Mas a travessia é feita sem perda. Até o Sete-de-Ouros atravessou sem reclamar.

Em determinado ponto do caminho, Major Saulo ordenou que Francolim trocasse de montaria com João Manico. A ordem foi obedecida. Francolim fez um pedido ao Major: que, na entrada do povoado, a troca fosse desfeita. Não ficava bem para ele, encarregado do Major, ser visto montado no burrinho Sete-de-Ouros.

Badu está na fazenda há apenas dois meses e já tomou a namorada do Silvino. Por isso, os dois viraram inimigos, um querendo prejudicar o outro. Francolim já avisou o major sobre o perigo de um matar o outro. Raymundão acha que o caso não é para morte. A moça é meio caolha. O casamento com Badu já está marcado. Raymundão, em prosa com o Major, informou que Silvino vendeu umas quatro cabeças de gado por preço abaixo do normal. Outra informação que veio do Francolim: Silvino está com bagagem além do normal. O Major Saulo, antes da chegada ao povoado, determinou que Francolim, na volta, vigie Silvino o tempo todo. O Major está convencido de que Silvino já planejou a morte de Badu.

A chegada ao povoado foi uma festa. O povo, mesmo com a meia-chuva, foi para o curral da estrada de ferro ver o embarque. Depois, os animais ficaram descansando enquanto os vaqueiros andavam um pouco pelo povoado.

Na hora de ir embora, cada um pegou a sua montaria. Badu ficou por último: estava bêbado e tinha ido comprar um presente para sua morena. Por maldade, deixaram-lhe o burrinho Sete-de-Ouros. Na saída do povoado, alguém vaiou: Badu era por demais grande para o burrinho pedrês, os pés iam quase arrastando no chão. Já no fim do lugar, Francolim estava parado no meio da estrada, esperando Badu.

Francolim deixou Badu para trás e foi juntar-se ao grupo. Queria mesmo era ficar de olho em Silvino. Os dois, Silvino e o irmão Tote, iam bem na frente dos dois. Tote tentava dissuadir o mano para não matar Badu. Mas Silvino estava determinado. Esperava apenas o momento certo para fazer o serviço e cair no mundo.

João Manico, por insistência de todos, contou mais uma vez a história da boiada que estourou à noite, quando o Major Saulo, ainda novo, era tratado por Saulinho. No estouro, de madrugada, o gado passou por cima dos dois vaqueiros que estavam de vigia. Deles, só restou uma lama cor de sangue.

Viajavam à noite. De repente, os cavalos empacaram, pressentindo o mar de água. O Córrego da Fome transbordara, inundando tudo bem alem das margens. Todos aprovaram a idéia de esperar Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. Se o burro entrasse na água, todos o seguiriam. É que burro não entra em lugar de onde não pode sair.

Sete-de-Ouros entrou levando Badu ás costas. Os cavalos seguiram-no. E foi uma tragédia: oito vaqueiros mortos naquela noite. Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé Grande, Tote e Sebastião. O burrinho Sete-de-Ouros, com Badu agarrado às crinas e Francolim agarrado à cauda, conseguiu atravessar o mar de águas em que se transformara o pequeno córrego. Já em terra firme, livrou-se de Francolim e seguiu ligeiro para a fazenda. Ali, livraram-no do vaqueiro, que dormia, e dos arreios.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_burrinho_pedres_conto

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Nicoló Maquiavel (Belfagor)

O florentino Nicoló Bemardo Maquiavel (1469-1527 – Itália), diplomata, homem de Estado, historiador e escritor, virou um nome consagrado (a ponto de virar adjetivo: “maquiavélico) como autor de O Principe, obra que é um marco do Renascimento italiano, até hoje indispensável nos estudos das ciências políticas. Belfagor, sua única história curta conhecida, está presente em várias antologias do humor universal.
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Nas antigas memórias das crônicas de Florença lê-se uma história relacionada a um homem santíssimo que, em meio à devassidão da época, era mui respeitado por todos seus contemporâneos. Certo dia, absorto em suas piedosas meditações, conseguiu ver que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores e que iam para o inferno lamentavam – se não todos, pelo menos a maior parte – que a razão de tal desdita devia-se ao fato de terem-se casado. Minos e Radamanto, juntos com outros juízes do inferno, ficaram deveras admirados e, não podendo dar crédito às calúnias que tais almas lançavam ao sexo feminino, deram ciência disso a Plutão, tanto mais que tais lamentações só faziam crescer. Plutão então deliberou examinar o caso de perto com todos os príncipes do Inferno para, só depois, tomar partido do que fosse julgado o mais conveniente para descobrir a falácia e saber a verdade por inteiro. Convocou-os, pois, ao conselho, e falou nos seguintes termos:

– Embora eu, meus diletos amigos, por disposição celeste e vontade do destino, e ainda que me encontre acima do juízo de Deus e dos homens, no entanto, como maior prova de sabedoria e prudência, resolvi consultar-vos hoje sobre a conduta que devo seguir num caso que poderia redundar em infâmia para nosso império. Todas as almas dos homens que entram em nosso reino pretendem ter sido causa disso a própria mulher, o que não nos parece possível. Condenando tal afirmação, talvez os levianos nos acusem de maldade; caso não o fizermos, talvez os injustos nos considerem demasiado indulgentes e pouco afeitos à justiça. Querendo evitar uma e outra acusação, e não encontrando um meio para tal, decidimos convocar-vos a fim de que nos ajudeis com vossos conselhos e façais com que este reino continue a viver sem infâmia, como sempre tem vivido.

Nenhum daqueles príncipes das trevas deixou de considerar o caso importantíssimo e de grande monta. Estavam todos de acordo em que era necessário descobrir a verdade, mas discordavam quanto à maneira de assim proceder. Alguns julgavam que se devia mandar um deles ao mundo, outros que vários, para ali pessoalmente conhecerem, sob a forma humana, qual era a verdade. A outros parecia desnecessário tal transtorno: bastaria obrigar algumas almas, por meios de diversos tormentos, a confessá-la.

No entanto, como a maioria optasse pela primeira opinião, foi essa a adotada. Mas ninguém se ofereceu voluntariamente para a empreitada; assim, recorreram eles a um sorteio. A sorte recaiu sobre Belfagor, arquidiabo, que anteriormente – antes de cair do Céu – tinha sido arcanjo.

Foi com relutância que ele aceitou o encargo, mas o poder de Plutão o constrangera a executar o que o conselho deliberara e teve assim que consentir nas condições solenemente aceitas por todos. Fora deliberado que aquele em quem recaísse a sorte receberia imediatamente cem mil ducados, e com eles viria nascer no mundo. A casar-se sob a forma de um homem e a viver com a mulher dez anos; depois, fingindo morrer, voltaria e exporia a seus superiores a própria vivencia, quais eram os encargos e os incômodos do casamento. Deliberou-se também que, durante o tempo em apreço, ele ficaria submetido a todos os achaques e males a que os homens estão sujeitos, inclusive a pobreza, a prisão, as doenças e todas as desgraças que aos mortais ocorrem, salvo se por meio de engano e astúcia conseguisse livrar-se delas.

Aceitas pois as condições e os ducados, foi-se Belfagor ao mundo e, devidamente provido de cavalos e acompanhantes, entrou ele em Florença com o maior aparato. Escolhera esta cidade para domicílio, entre todas as demais, por lhe parecer a mais plausível para quem quisesse viver empregando seu dinheiro em negócios. Fez-se chamar Rodrigo de Castela e alugou uma casa no bairro de Todos os Santos [Ognissanti]. Para que não pudessem lhe descobrir os antecedentes, disse ter partido da Espanha ainda criança; dali fora à Síria e a Alepo, onde ganhara tudo o que possuía; de lá viajara para a Itália e a fim de se casar num lugar mais humano e mais conforme à vida civilizada e à sua própria índole.

Era Rodrigo um moço formoso, que aparentava trinta anos. Em poucos dias demonstrara ele quantas riquezas tinha e dera provas de sua liberalidade e humanidade; logo vários cidadãos nobres, providos de muitas filhas e pouco dinheiro, lhe ofereceram seus préstimos. Entre todas, Rodrigo escolheu uma belíssima donzela chamada Honesta. Filha de Américo Donati, que tinha mais três filhas, quase em idade de se casar, e três filhos já adultos. De família muito nobre e tido em bom conceito em Florença, era no entanto muito pobre, levando-se em conta sua numerosa prole e sua condição.

Rodrigo celebrou suas núpcias com esplendor e grandeza, não descuidando de nada que seja necessário em tais circunstâncias, pois entre as obrigações que lhe foram impostas ao sair do Inferno, estava a de sujeitar-se a todos os caprichos humanos; assim, logo passou a deleitar-se com as honrarias e pompas do mundo e a gostar de ser louvado entre os homens, coisas que o levaram a grandes gastos. Por outro lado, não tardou muito a apaixonar-se perdidamente por sua D. Honesta e quase não conseguia viver quando a encontrava triste ou aborrecida.

Com sua nobreza e formosura, a senhora Honesta levara consigo para a casa de Rodrigo um orgulho tão desmesurado que mesmo Lúcifer não o tivera igual. Rodrigo, que podia comparar um e outro, considerava o de sua mulher infinitamente superior, e consta que ainda chegou a ser maior quando percebera o amor que seu marido sentia por ela. Imaginando ser por todas as maneiras a dona absoluta, dava suas ordens sem consideração ou piedade, e se ele relutasse a fazer as suas vontades, desatava em recriminações e injúrias, o que era para o pobre Rodrigo motivo de viva pena e aflição. Sem dúvida, por consideração a seu sogro, a seus cunhados e demais parentes, por respeito aos deveres do casamento e pelo amor que dedicava à esposa, sofria seus males com a maior paciência. Quero passar em silêncio sobre os grandes gastos a que era obrigado para contentá-la, vestindo segundo os novos costumes e as modas mais recentes, que nossa cidade varia por hábito natural; nem lembrarei que, para ela o deixar em paz, teve ele de ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe fez despender também considerável importância. Depois, querendo manter-se em boa paz com a mulher, consentiu em mandar um dos irmãos dela ao Oriente com casimira e outro para o Ocidente levando sedas, ao passo que para o terceiro irmão abriu em Florença uma oficina de ourives, em que despendeu a maior parte do dinheiro que possuía. Além disso, nas festas de Carnaval e de S. João, celebradas pela cidade inteira segundo tradição antiga, quando grande número de cidadãos nobres e ricos se honravam uns aos outros com magníficos banquetes, D. Honesta, para não ficar atrás de outras damas, queria que seu Rodrigo superasse a todos os demais com suas festas. Tudo isso, suportava-o Rodrigo pelos motivos supracitados; apesar de gravíssimas, nem graves as teria achado se houvessem introduzido a paz em sua casa, permitindo-lhe aguardar em sossego o momento de sua própria ruína. Mas foi o contrário o que aconteceu, pois a índole insolente da esposa, além das despesas insuportáveis, carreara-lhe inúmeros aborrecimentos. Nenhum criado a agüentava, não digo por muito tempo, mas nem sequer por alguns dias. Para Rodrigo era o mais duro dos incômodos não possuir um criado que tivesse amor a sua casa. Os próprios diabos que trouxera consigo como domésticos preferiram voltar aos fogos do Inferno a viver no mundo sob as ordens daquela mulher.

Assim prosseguia a vida tumultuada e inquieta de Rodrigo. Tendo já consumido nos gastos desenfreados o que recebera em espécie, começou a viver à espera das entradas financeiras que aguardava do Ocidente e do Oriente. Como ainda tivesse bom crédito, pediu dinheiro emprestado para não ficar aquém de sua condição; e já certo número de letras sacadas por ele circulavam na praça, o que logo foi percebido pelos que trabalhavam neste ramo de negócios. Já era bem precária a situação de Rodrigo quando, de súbito, chegaram notícias do Oriente e do Ocidente: aqui, um dos irmãos de D. Honesta perdera no jogo todo o dinheiro de Rodrigo; ali, o outro, ao voltar de um navio carregado de suas mercadorias, que não estavam no seguro, naufragou com toda a carga.

Mal estas novas circulavam pela cidade, os credores de Rodrigo reuniram-se. Consideravam-no um homem liquidado, mas ainda não podiam tomar providências por não haver expirado o prazo das cobranças; resolveram, pois, que mandariam quem o observasse habilmente, para que num abrir e fechar de olhos não resolvesse fugir. Por sua parte, Rodrigo, sem ver outro remédio e sabendo das obrigações de seu pacto infernal, decidiu fugir a todo o transe. Certa manhã montou a cavalo e saiu da cidade pela porta do Prato, perto da qual residia. Espalhada a notícia de sua fuga, os credores recorreram alarmados às autoridades e puseram-se no encalço dele, acompanhados não apenas de meirinhos como também de muitos populares.

Mal se distanciara da cidade cerca de uma milha, souberam eles de sua fuga, de sorte que, vendo-se perdido, resolveu Rodrigo, para melhor se esconder, abandonar a estrada principal e tentar a sorte em outras direções; porém o terreno árduo e abrupto dificultava tremendamente a sua marcha. Percebendo que era impossível seguir a cavalo, decidiu-se salvar-se a pé mesmo, deixando o animal no meio do caminho, e depois de ter muito tempo andado por entre vinhas e canaviais que cobriam os campos, aproximou-se de Pretola, detendo-se na casa de Giovanni Matteo de Bricca, um dos colonos de Giovanni dei Bene. Felizmente àquela hora chegava também ao local o próprio Giovanni Matteo para alimentar o gado. A ele se recomendou o fugitivo, prometendo-lhe que, se o salvasse dos inimigos que o perseguiam para fazer com que morresse na prisão, o tornaria rico, coisa que lhe daria prova antes mesmo de sair de sua casa; se não o fizesse, concordaria que o próprio camponês o entregasse a seus adversários.

Embora simples camponês, era Giovanni Matteo homem de coragem. Pensou que nada tinha a perder se tentasse salvá-lo, e prometeu-lhe auxílio. Em frente à casa havia um monte de estrume: foi lá que o escondeu, cobrindo-o de caniços e ramos colhidos para fazer fogo.

Mal acabara Rodrigo de esconder-se, seus perseguidores chegaram. Por mais ameaças que fizessem a Giovanni Matteo, não conseguiram fazê-lo confessar o que tinha visto.

Assim, partiram, e depois de procurá-lo todo aquele dia e mais o seguinte, retomaram exaustos para Florença.

Afastada a agitação, Giovanni Matteo tirou Rodrigo do esconderijo e pediu-lhe que cumprisse a promessa, ao que Rodrigo lhe disse:

– Irmão meu, tenho uma grande obrigação para contigo e desejo cumpri-la de qualquer maneira; e para que acredites em que eu possa fazer, vou dizer-te quem sou.

Nisso revelou a sua identidade contando em que condições saíra do Inferno e como se casara. Em seguida, explicou-lhe como pretendia fazê-lo rico. O seu plano, resumindo, era o seguinte: quando Giovanni Matteo soubesse que alguma mulher estava tomada pelos espíritos, devia saber que era ele, Rodrigo, que se apoderara dela: nem sairia do corpo da vítima sem que Giovanni Matteo viesse a tirá-lo: assim, poderia o camponês pedir aos parentes da endemoninhada o preço que bem entendesse. Giovanni Matteo aceitou a proposta e Rodrigo partiu.

Decorridos alguns dias, propagou-se por toda Florença a notícia de que a filha de mestre Ambrósio Amadei, casado com Bonaiuto Tebalducci, estava tomada pelos maus espíritos. Não descuidaram os parentes de nenhum dos remédios a que se recorria em casos semelhantes; assim, puseram-lhe na cabeça o crânio de S. Zenóbio e o manto de S. João Gualberto. Rodrigo, no entanto, zombava de tudo aquilo. E para dar a entender a todos que o mal da moça era um espírito e não qualquer imaginação fantástica, falava em latim, discutia coisas de filosofia, descobria os pecados de muita gente, desmascarando-os, entre outros, a um frade que guardara em sua cela durante mais de quatro anos uma mulher vestida à maneira de um fradinho, coisas que a todos enchiam de espanto. Estava Mestre Ambrósio irritadíssimo e, havendo experimentado em vão todos os remédios, perdera já a esperança de curar a filha, quando Giovanni Matteo veio ter com ele, prometendo-lhe a saúde da filhinha se lhe dessem quinhentos florins para comprar uma propriedade em Pertola. Mestre Ambrósio aceitou a proposta. Então Giovanni Matteo, depois de mandar dizer certo número de missas e executar certas cerimônias para embelezar a coisa, aproximou-se da moça e segredou-lhe ao pé do ouvido:

– Rodrigo, aqui estou eu esperando que me cumpras a promessa.

Ao que Rodrigo respondeu:

– Com o maior prazer. Mas isto não chega ainda a te tornar rico. Eis por que, apenas saído daqui, entrarei na filha do rei Carios de Nápoles, e de lá não sairei sem que me chames. Exigirás então uma recompensa segundo a tua vontade, e depois disso não deverás mais me importunar.

Nisso saiu do corpo da moça doente, para a alegria e admiração de toda Florença.

Não tardou e espalhava-se por toda Itália a mesma desgraça ocorrida, desta vez com a filha do rei Carios. Como os remédios dos frades de nada adiantassem, o rei, que ouvira falar em Giovanni Matteo, mandou que ele fosse conduzido até ele. Chegando a Nápoles, o camponês, depois de algumas cerimônias de fachada, curou-a. Mas antes de sair do corpo da princesa, Rodrigo disse-lhe:

– Bem vês que hei cumprido a minha promessa de enriquecer-te. Agora que recompensei o serviço que me fizeste, nada mais te devo; assim, aconselho-te a que não mais apareças à minha frente, pois se te fiz benefícios até aqui, daqui por diante poderia causar-te dissabores.

Giovanni Matteo retornou a Florença muito rico, pois o rei lhe havia dado mais de 50 mil ducados, e não pensava senão em desfrutar de sua riqueza, com muito gosto e sossego, sem cogitar que Rodrigo pudesse, em qualquer época, lhe causar algum dissabor. Bem cedo, no entanto, se desiludiu, ante a notícia de que uma filha de Luís VIl, rei da França, estava possuída pelo demônio. Notícia essa que tumultuou de todo a alma de Giovanni Matteo, que não conseguia parar de pensar na autoridade daquele monarca e nas palavras que lhe dissera Rodrigo. De fato, o rei, não encontrando remédio para o mal de sua filha, e tendo ouvido falar da capacidade de Giovanni Matteo, mandou chamá-lo, primeiro através dos correios, simplesmente; mas em vista de que o homem alegava certa indisposição, viu-se o rei forçado a recorrer ao governo de Florença, o qual obrigou Giovanni Matteo a obedecer.

Desesperado, foi Giovanni para Paris, onde foi logo explicando ao rei que efetivamente curara já certas pessoas endemoninhadas, mas que isso de modo algum significava que soubesse ou pudesse curá-las todas, pois algumas havia de natureza tão pérfida que não temiam ameaças nem encantamentos, nem religiões, seja qual for; que, no entanto, estava disposto a fazer o que pudesse, mas pedia desculpa e perdão se não viesse a ser bem-sucedido. Enfastiado, o rei declarou que, se não lhe curasse a filha, mandaria enforcá-lo. Viu-se Giovanni Matteo em péssimos lençóis, mas fez de sua fraqueza sua força: mandou vir a possuída e, aproximando-se-lhe do ouvido, recomendou-se humildemente a Rodrigo, lembrando-lhe o benefício prestado e como seria ingrato se o desamparasse naquele imbróglio. Rodrigo então assim reagiu:

– Traidor infame! Como te atreves a aparecer perante mim? Acreditas que podes te vangloriar de ter enriquecido à minha custa? Pois hei de mostrar-te a ti e a todos que sei muito bem dar e tomar qualquer coisa, como melhor me prover; e antes que partas daqui, farei enforcar-te, custe o que custar.

Dando-se por perdido, Giovanni Matteo, não vendo outro remédio, resolveu arriscar a sorte por outro meio. Mandou que levassem dali a possuída e disse ao rei:

– Senhor, como falei a Vossa Majestade, há espíritos tão malignos que com eles ninguém pode; pois este é um dos tais. Mas quero fazer uma última tentativa: se for bem-sucedido, Vossa Majestade e eu teremos alcançado o nosso objetivo; caso contrário, estarei nas mãos de Vossa Majestade, que saberá ter comigo a compaixão que faz jus a minha inocência. Ordene Vossa Majestade que se erga na Praça de Notre Dame um grande palco onde caibam todos os barões e todo o clero desta cidade; mande orná-lo de panos de seda e de ouro, e mande erguer no meio dele um altar. Preciso que no domingo próximo Vossa Majestade se reúna no estrado do palco com todos os seus príncipes e barões, numa pompa real, vestidos de trajes ricos e esplêndidos. Depois da missa celebrada, Vossa Majestade fará vir a possuída. Preciso, além disso, que num ângulo da praça haja pelo menos vinte pessoas reunidas com trompas, cornetas, tambores, cornamusas, címbalos, timbales e outros instrumentos de toda sorte. Quando eu erguer o chapéu todos deverão tanger seus instrumentos e encaminhar-se na direção do estrado. Estas coisas, juntas com alguns remédios secretos, poderão fazer, julgo eu, com que o espírito maligno desapareça.

Tudo isso o rei ordenou. Chegou a manhã de domingo. O palco improvisado estava cheio de personalidades, e a praça, cheia do povo. Celebrada a missa, a endemoninhada foi conduzida ao estrado por dois bispos e muitos senhores. Ao ver tamanha multidão e tanto aparato, Rodrigo ficou meio tonto e disse consigo mesmo: “Que será que inventou esse traidor miserável? Será que está pensando me espantar com toda essa pompa? Ignora que estou acostumado a assistir as pompas do Céu e fúrias do Inferno? Haverei de castigá-lo de qualquer maneira.”

Quando, logo depois que Giovanni Matteo se aproximou novamente e lhe pediu que saísse, Rodrigo assim lhe falou:

– Bela idéia a tua, para dizer a verdade! Que pensas alcançar com todo esse aparato? Acreditas escapar assim ao meu poder e à ira do rei? Ladrão miserável, farei com que te enforquem haja o que houver!

Como não parasse de dizer tais palavras, acrescentando-lhes outras menos injuriosas, Giovanni Matteo houve por bem não perder mais tempo. Ergueu o chapéu, todas as pessoas encarregadas de fazer barulho tocaram seus instrumentos e com rumor que atingia o Céu foram-se aproximando do estrado. O barulho aguçou os ouvidos de Rodrigo que, sem entender do que se tratasse, pediu assombrado que Giovani Matteo lho explicasse, e Giovanni respondeu-lhe de forma bem perturbada:

– Ai, meu Rodrigo, é a tua mulher que vem te buscar!

Foi, em verdade, maravilhoso ver até que ponto Rodrigo horrorizou-se ao ouvir o nome de sua mulher. Tamanho lhe foi o espanto que, sem indagar a si mesmo se seria possível que ela ali estivesse, fugiu sem dizer uma palavra e assim deixou a princesa livre; preferiu voltar ao inferno para dar conta de suas ações a submeter-se outra vez ao jugo matrimonial, suportando tantos desgostos, aborrecimentos e perigos.

E eis aqui como Belfagor, de volta ao Inferno, pode dar testemunho dos males que uma mulher leva consigo a um lar, e como Giovanni Matteo, que foi mais astuto do que o diabo em pessoa, pôde retornar a sua casa cheio de alegria.

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (org.) . Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

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Afonso Arinos (Assombramento) Parte 1

História do Sertão

À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d’ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu.

Naquele escampado onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos.

E quem não fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho a fora.

Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e mourões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedra com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso, esponjadouros de animais vagabundos.

Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.

Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.

Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome “Fidalgo” – dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os receios do povo.

Dito e feito.

Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas; e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um mourão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.

Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.

As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, – denunciaram ao arneiro que a descarga fora feita com a ordem do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.

Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capa-o onde costumam crescer as ervas venenosas.

Dos camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos serões de pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma cantilena saudosa.

Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando ai, tramava alguma das dele.

– O macho lionanco está meio sentido da viagem, só Manuel.

– Nem por isso. Aquele é couro n’água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa.

– Pois olhe, não dou muito para ele urrar na subida do morro.

– Este? Não fale!

– Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.

– Ora!

– Vossemecê bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece desbarrigada que é um Deus nos acuda.

– Deixe de poetagens, Venâncio ! Eu sei cá.

– Vossemecê pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão e – Venâncio p’r’aqui, Venâncio p’r’acolá.

Manuel deu um muxoxo. Em seguida levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse:

– Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.

– Hum, hum! Está aí! Eia, eia, eia!

~ Não temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede.

– Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.

E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes.

– Que é que vossemecê determina agora?

– Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui também se vai cuidando do jantar..

O caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava à vasilha olhares ávidos e cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de água fresca; qual corria a lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.

Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes:

– Arre! Tem tempo, gente! Parece que vocês nuca viram feijão. Cuidem de seu que fazer, se não querem sair daqui a poder de tição de fogo!

Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com cozinheiro em momento assim melindroso.

Pouco depois chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.

Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam valentemente.

– Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.

– Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!

– Uai! É estúrdio!

– E vossemecê pousa lá mesmo?

– Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.

– Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas… é o diabo!

– Ora! Pelo buraco da fechadura não entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber amanhã.

– Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negócio com assombração. Isso de coisa do outro mundo p’r’aqui mais p’r’ali – terminou o Venâncio, sublinhando a última frase com um gesto de quem se benze.

Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos…. A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola e outro – namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do céu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, co’a voz tremente, à sua amada distante…
––––––––––
continua

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 26. Rufina

Encontrei-me hoje com o boticário, a quem não via desde a última vez que vira Rufina.

“Quem é aquela moça”, lhe perguntei, “que, há coisa de duas semanas, viajou conosco neste bonde? Aquela morenota de olhos grandes e úmidos? Aquela de bonitos dentes? Aquela espigadinha, de branco, a quem você, saltando do carro, deitou uma olhadela xaroposa?”

Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos no tejadilho, levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta.

-“Uma gorda, de cabelo ondado?”

-“Nada. Não ofenda.”

-“Não me lembro… Espere. Uma alta, de nariz grande?”

-“Já lhe disse que era morena, pequena, engraçada.”

Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças, atirou uma perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou o cenho. “Diabo!” De repente, riu-se, deu-me uma tapona no joelho e exclamou:

-“Já sei! Uma cabrochinha, não é isso?”

Conservei-me calado, mandando em espírito, o idiota do boticário a todos os mil demônios. Aliviado, voltei-me para ele, frio:

-“Desistamos, oh amigo Fabiano José de Figueiredo Alves.”

-“Figueiredo, não; Azevedo.”

-“Ou isso.”

Eu estava convencido de que Fabiano não queria era lembrar-se de Rufina. Impossível que se tivesse realmente esquecido dessa criatura maviosa e rara. Conhecia mulheres como um recenseador: uma gorda, uma alta, uma parda, fora muitas outras que não referiu; e não se recordava da única que valia a pena! Grande ordinário.

Percorremos umas quatro ou cinco quadras em silêncio. Eu nem sequer olhava para a cara de Fabiano. A certa altura, perguntou-me se sabia o nome da moça.

-“Rufina.”

-“Hein?!”

-“Rufina.”

Fabiano olhou para mim e disparou a rir.

-“Já sei, meu caro, já sei!”

-“Mas porque essa risada?”

-“Ah! já sei, meu amigo, já sei. .. Olhe, ela nunca se chamou Rufina. Qual Rufina, nem meia Rufina!… É boa! Ela é Augusta, meu caro amigo. Augusta, entendeu? Rufina… é boa! quiá, quiá, quiá…”

“Mas.. então, conhece-a?…”

– “Pchê! Há muito tempo. Uma rapariga magra, moreno-mate, com o nariz levemente rebitado, o queixo saliente, não é isso? Conheço muito. Chama-se Augusta, mora ali para as bandas do cemitério. Boa fazenda coitada!”

Desmoronei. Só ao cabo de longos e dolorosos minutos pude reconstruir-me um pouco, firmar-me um pouco em cima de mim mesmo, e perguntar com voz sumida:

-“Mas, então, esse nome de Rufina?”

-“Muito simples. Bestice do coronel Ferrão, um velho meio pancada -bem pancada, aliás – que tinha a mania de lhe dar esse nome.”

-“E por que?”

-“Por nada, burragem dele. Gostava de trocar os nomes, fazia isso com toda a gente. Tinha um sobrinho, o Bentoca, Bento Felizardo Ferrão, homem respeitável, atacadista ali no centro: chamava-lhe Esmeraldino, até diante dos empregados, na loja. O Viana, era para ele Pascoal, um dia; outro dia, era Bonifácio. A mim, quis-me uma vez batizar por Crispiniano, mas eu, pan! barrei-o logo: Às suas ordens, seu Januário. Danou-se -ora, imagine: danou-se, o bestiaga! -e não falou mais comigo.”

Emudeci. Fabiano continuava, mas já não o entendi daí por diante. A versátil indiferença do boticário chocava-me como uma sem-vergonhice irritante, de sujeito sem alma, sem o senso piedoso e comovido da miséria humana. Mas Fabiano afinal era um bom homem: isto é, um tipo fútil e feroz como soem ser os homens de juízo.

Oh! n’insultez jamais une femme qui tombe!

Mas não é isso, oh poeta, não é isso o pior. O horrendo é esta indiferença, esta sorridente indiferença, esta familiar e brincalhona ferocidade, aérea, difusa, impalpável, com que se considera um ser humano, com que se fala de uma pobre mulher – logo de uma mulher! de uma triste mulher e do seu destino, de uma mulher bela, graciosa e miseranda; de uma mulher que tem toda a massa de que se fazem as mães e os anjos da terra, -e com uns olhos tão grandes, tão úmidos, tão luminosos!

-“Mas porque é que queria saber” indagou o boticário, depois de uma pausa.

-“À-toa, Fabiano.”

-“Pois olhe, é fácil.”

Encarei-o de um modo que devia ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se e ficou sério. E não se falou mais nisto.

Fonte:
Domínio Público

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Homero (Batracomiomáquia – A Guerra entre Rãs e Ratos)


Ao iniciar, rogo ao coro de Helicon que assista a minha alma para entoar o canto que recém registrei nas tábuas sobre meu joelho – uma luta imensa, obra marcial plena de bélico tumulto -, desejando que chegue aos ouvidos de todos os mortais como os ratos se distinguiram ao atacar as rãs, imitando as proezas dos gigantes filhos da terra. Tal como entre os homens se conta, seu princípio aconteceu da seguinte maneira: Sedento, depois de se livrar de uma doninha, um rato submergia sua ávida barba ali perto, num lago, e se reconciliava na água doce como mel, quando viu uma rã tagarela, que no lago tinha suas delícias, e que assim lhe falou:

Inchabochechas: – Quem és tu, forasteiro? De onde chegastes nestas ribeiras? Quem te engendrou? Dize-me tudo honestamente, e que não perceba eu que mentes. Se te considerar digno de ser meu amigo, levar-te-ei a minha casa e te darei muitos e bons presentes de hospitalidade. Eu sou lnchabochechas e, no lago me honram como perpétuo guerreiro das rãs; meu pai Lodoso me criou e deu-me à luz Rainha-das-Águas, que com ele se juntara amorosamente às margens do Erídano. Observo que também és formoso e forte, mais ainda do que os demais; e deves ser rei e valoroso combatente nas batalhas. Mas, ande, revele-me já tua linhagem!

Roubamigalha: – Por que me perguntas por minha linhagem? Conhecida é e a de todos os homens e deuses, e até das aves que no céu voam. Eu me chamo Roubamigalha, sou filho do magnânimo Róipão e tenho por mãe Lambedentes, filha do rei Róipresunto. Mas… Como poderás conseguir que eu seja teu amigo, se minha natureza é completamente diversa da tua? Para ti, a vida está na água, mas eu costumo roer o quanto os homens possuem; não se me oculta o pão enfeitado que se guarda no redondo cesto; nem a grande torta recheada de gergelim; nem a talhada de presunto; nem o fígado dentro de sua branca túnica; nem o fresco queijo, de doce leite fabricado; nem os ricos doces, que até aos imortais apetecem; nem coisa alguma das que preparam os cozinheiros para os festins dos mortais, espargindo condimentos de toda sorte aos borbotões.

Jamais fugi da horrível gritaria insana das batalhas, mas sempre me encaminho para o tumulto e imediatamente me junto aos combatentes mais avançados. O homem com seu grande corpo é coisa que não me assusta, pois, imiscuído-me na cama em que repousa, mordo-lhe a ponta do dedo e até o pego pelo calcanhar, sem que sinta ele qualquer dor nem o desampare o doce sono enquanto eu o mordo. Dois são os inimigos a quem, em grande forma, eu temo sobre tudo o mais na terra: o gavião e a doninha, que terríveis pesares me causam; e também o lutuoso cepo onde se oculta a traidora morte. Mais temo porém a doninha, que é fortíssima e, ao me esconder numa toca, na própria toca vai ela me procurar. Não como rábanos, nem couves, nem abóboras; nem me alimentos de verdes acelgas nem aipo; que estes são vossos manjares próprios dos que habitam a lagoa.

lnchabochechas, sorrindo, respondeu:

Inchabochechas: – Ó, forasteiro, das coisas do ventre muito te envaideces; também nós, as rãs, temos muitas coisas admiráveis de se ver, tanto no lago como em terra firme, pois Zeus Cronion nos deu um duplo modo de viver, e tanto podemos saltar na terra como mergulhar na água, habitando moradas que de ambos elementos participam. Se desejares comprová-lo, mui fácil te há de ser: monta nas minhas costas, agarra-te a mim para não escorregares e chegarás tranqüilo ao meu palácio.

Assim falou – e deu as costas a ele. O rato, subindo de um salto ao lugar indicado, prendeu as mãos no pescoço macio. E a princípio regozijava-se contemplando os hortos vizinhos e deleitando-se com o nado de Inchabochechas; mas assim que se sentiu molhado pelas ondas cor de púrpura, brotaram-lhe copiosas lágrimas e, tardiamente arrependido, lamentava-se e arrancava os cabelos, apertando com suas patas o ventre da rã, com o coração aos pulos com o insólito da aventura, ansiando em voltar à terra firme; enquanto isso, um glacial terror fazia-o gemer. Estendeu então a cauda sobre a água, movendo-a como um remo; e, enquanto pedia às divindades que o ajudassem a chegar no chão firme, as ondas cor-de-púrpura iam banhando-o. Gritou finalmente – e estas foram as últimas palavras que sua boca proferiu:

Roubamigalha: – Com toda a certeza não foi assim que sobre seus ombros levou a amorosa carga o touro que, através das ondas, conduziu à Creta a ninfa Europa – como, nadando, a mim transporta sobre os seus esta rã que mal ergue seu amarelo corpo por entre a branca espuma.

De repente apareceu uma hidra com o pescoço sobre a água. Que amargo espetáculo para os dois! Ao vê-la, submergiu lnchabochecha sem lembrar da qualidade do companheiro que, abandonado, ia morrer. Foi-se portanto a rã ao fundo do lago e assim evitou a negra morte. O rato, quando a rã o soltou, caiu de costas na água; e apertava as patinhas; e, em sua agonia, soltava guinchos agudíssimos. Muitas vezes submergiu ele na água, muitas outras conseguiu flutuar, aos coices; não conseguiu no entanto escapar ao seu destino. O pêlo molhado aumentava seu peso. E, ao perecer nas águas, tais palavras pronunciou:

Roubamigalha: – Teu proceder não haverá de passar despercebido, ó lnchabochechas, que este náufrago fizeste despencar do teu corpo como uma pedra. Em terra, ó mui perversa, não me vencerias nem no vale-tudo, nem na luta, nem na corrida; mas te valeste da fraude para jogar-me nágua. Tem a divindade um olho vingador e pagarás teu crime ao exército de ratos, sem que consigas escapar.

E assim expirou ele na água. Mas aconteceu de vê-lo Lambeprato, que se achava sobre a branda relva da ribeira; e a proferir horríveis chiados correu para dar notícia aos ratos. Assim que estes a souberam, ficaram dominados de terrível ira. Ordenaram em seguida aos arautos que, ao romper da aurora, convocassem todos para uma reunião na morada de Róipão, pai do desditado Roubamigalha, cujo cadáver apareceu estendido na lagoa, pois o mísero já não se achava mais próximo da ribeira: ia flutuando no meio do charco. E quando, ao surgir da madrugada, todos acudiram ao encontro, Róipão, irritado com a sorte do filho, foi o primeiro a falar:

Róipão: – Amigos! Embora a mim em particular as rãs causaram tanta dor, a atual desventura a todos nós alcança. Sou muito desgraçado, pois perdi três filhos. Ao mais velho, matou-o a muito odiada doninha, pondo-lhe as garras em uma toca. Ao segundo, levaram-no à morte os cruéis homens, inventando uma engenhosa armadilha à qual chamam ratoeira e que é a perdição dos ratos. E o que era meu terceiro filho, tão caro a mim e a sua veneranda mãe, afogou-o lnchabochechas, levando-o para o fundo da lagoa. Mas eia, armai-vos, guarnecei vossos corpos com lavradas armaduras e saiamos todos contra as rãs.

Expondo tais razões, a todos persuadiu a que se armassem; e a todos armou Ares, que é quem cuida da guerra. Primeiro ajeitaram a seus músculos bainhas de verdes favas bem preparadas, que então abriram e que durante a noite haviam roído das plantas. Puseram-se couraças de peles hastes, dispostas com grande habilidade, depois de esfolarem uma doninha. O escudo consistia numa tampa, das que levam uma lamparina no centro; as lanças eram longuíssimas agulhas, labor de Ares em bronze; e o capacete era uma casca de ervilha por sobre as frontes.

Assim armaram-se os ratos. Ao perceberem isso, as rãs saíram da água e, reunidas, celebraram uma comissão para tratar do pernicioso embate. E, enquanto procuravam saber qual a causa daquele levante e tumulto, acercou-se deles um arauto com uma varinha na mão – Furaondas, filho do magnânimo Róiqueijo – e anunciou-lhes a funesta declaração de guerra:

Furaondas: – Ó, rãs! Os ratos nos ameaçam com guerra e me enviaram para vos dizer para se armarem para a luta e o combate, pois viram nágua a matar Roubamigalhas vosso rei lnchabochechas. Pelejai, pois, vós, os mais valentes entre as rãs.

Assim começou, e seu discurso penetrou em todos os ouvidos e mexeu com as mente de todas as rãs. E como sobrou a culpa para lnchabochecha, ele falou:

Inchabochechas: – Amigos! Não levei o rato à morte, nem o vi perecer. Deve ter-se afogado enquanto brincava às margens do lago, imitando o nadar das rãs; e os perversos me acusam – a mim, que sou inocente. Mas, adiante, busquemos de que modo nos será possível destruir os pérfidos ratos. Vamos cobrir o corpo com as armas e vamos nos colocar nos altos da ribeira, no lugar mais abrupto; e quando vierem eles nos atacar, fisguemos os que de nós se aproximarem pelos cascos e tiremo-los rapidamente do lago, dentro de suas próprias armadilhas. E depois que na água se afogarem, pois não sabem nadar, vamos erigir um alegre troféu que o ratocídeo comemore.

E assim a todos persuadiu que se armassem. Cobriram suas pernas com folhas de malca; puseram-se as couraças de verdes acelgas; transformaram habilmente em escudos folhas de couve; tomaram como se lança fosse cada qual os seus juncos longos; e cobriram a cabeça com elmos que eram conchas de caracóis. Vestida a armadura, enfileiraram-se no alto da ribeira, brandindo as lanças, cheios de furor.

Então, ao estrelado céu, chamou Zeus as divindades, e mostrando-lhe a batalha e os fortes combatentes, que eram muitos e manejavam longas lanças – como se pusesse em marcha um exército de centauros ou de gigantes -, perguntou sorridente quais deuses ajudariam as rãs e quais os ratos? E disse a Atenéia:

Zeus: – Filha! Irás por ventura auxiliar os ratos, já que todos saltam em teu templo, onde se divertem com o vapor da gordura queimada e com manjares de toda espécie?

E Atenéia respondeu-lhe:

Atenéia: – Ó pai! Jamais iria prestar ajuda aos aflitos ratos porque eles já me causaram um sem-número de males, destruindo os diademas e as lâmpadas para beberem o azeite. E ainda mais me atormenta o ânimo o fato de me roerem e ainda esburacarem uma túnica de sutil trama que eu mesma havia tecido; e agora a costureira me constrange pelo ocorrido – horrível situação para uma imortal! -, pois comprei fiado o tecido para tecer e agora não sei como irei devolver a ele. Mesmo assim, não pretendo defender as rãs, que tampouco elas têm juizo: recentemente, ao voltar de um combate em que muito me cansei, elas não me permitiram cerrar os olhos com seu alarido; e estive deitada, sem dormir e com a cabeça dolorida até ouvir o galo cantar. Portanto, ó Deuses!, vamos nos abster de dar-lhes a nossa ajuda, pois combaterão corpo a corpo mesmo que uma divindade se lhes oponha – vamos nos divertir todos contemplando aqui do céu a batalha.

Assim falou, e os restantes deuses obedeceram-na e todos juntos se encaminharam para determinado lugar estratégico. E então os mosquitos anunciaram, com grandes trombetas, o fragor horroroso do combate; e Zeus Cronida no céu troou, dando o sinal para a funesta luta.

Começou com Chiaforte ferindo Lambehomem com a lança, cravando-a no ventre e no fígado: o rato caiu de boca para baixo, os pêlos manchados e, ao tombar com grande baque, as armas ressoaram sobre seu corpo. Depois Habitatocas, como alcançara Lamacento, enterrou-lhe no peito a forte lança: a negra morte apresou o caído e voou-lhe a alma do corpo. Acelguívoro matou Penetraondas atirando-lhe o dardo no coração e nas mesmas margens matou também Róiqueijo.

Rãdojunco, ao ver Furapresunto, começou a tremer, tirou o escudo e fugiu, saltando na água. Descansanalama, o irrepreensível, matou o Comedordecapim e Gozadoraquático feriu também de morte ao rei Róipresunto, atingindo-lhe com o cabo da arma na parte de cima da cabeça: o cérebro do rato fluiu-lhe pelo nariz e a terra manchou-se de sangue! Lambepratos matou com a lança Descansanalama, o irrepreensível: a escuridão velou seus olhos. Ao vê-lo, Comealho agarrou Farejado pelos pés e, ao apertar o tendão com força, afogou-o no lago. Ladrãodemigalha quis vingar seu companheiro defunto e feriu Comealho no ventre, bem no meio do fígado: caiu a rã a seus pés e o espírito dela foi para o Hades. Andaentrecouves atirou-lhe de longe um punhado de lama que lhe borrou o rosto todo e por pouco não o cegou. Ficou raivoso o rato e, colhendo com a mão uma enorme pedra, verdadeiro obus da terra, com ela feriu Andaentrecouves abaixo do joelho: partiu-se a perna direita da rã, que caiu de costas no pó. Tagarela veio em seu auxílio e, atacando Ladrãodemigalha, feriu-o no ventre: enterrou-lhe todo o afiado junco e, ao arrancar a arma, os intestinos esparramaram-se no solo. E, assim que o viu no alto da ribeira, habitatocas – o qual, sentindo-se bastante abatido, retirava-se coxeando do combate – saltou num fosso para escapar da horrível morte. Róipão feriu Inchabochechas na extremidade do pé; e este; aflito, jogou-se no lago. Ao vê-lo caído e exausto, Alguívoro abriu caminho por entre os combatentes dianteiros e avançou sobre Róipão com seu junco em lance, não conseguindo, porém, romper-lhe a couraça, na qual cravou a ponta da arma. Feriu-o, no entanto, no forte casco de reforço, fazendo-se êmulo do próprio Ares, o divinal Cataorégano, único combatente que se destacava por entre a multidão de rãs. Mas partiram contra ele que, ao perceber-se assim acuado, não quis esperar seus esforçados heróis e acabou submergindo na parte mais profunda do lado.

O mancebo Roubaparte, entre todos destacado e filho do irrepreensível Roedorqueespreitaopão, recebeu deste a ordem para que se juntasse ao combate, e o filho garantiu, esbravejando, que haveria de exterminar toda a linhagem das rãs. Foi a elas com ganas de luta; rompeu ao meio uma casca de noz e armou-se. Temerosas, as rãs retiraram-se para o lago. E haveria ele de levar a cabo seu propósito, pois grande era sua força, se não o houvesse percebido imediatamente o pai dos homens e dos deuses: Zeus,
que compadecido das rãs, moveu a cabeça e assim falou:

Zeus:        – ó Deuses! Enorme é a façanha que meus olhos vão contemplar. Muito perplexo deixou-me Roubaparte ao se vangloriar de que haverá de destruir as rãs do lago. Enviemos o quanto antes Palas Atenas, que é quem produz o tumulto da guerra, ou Ares, para que o retirem da batalha, independente de sua valentia.

Ares respondeu-lhe:

Ares:        – Nem o poder de Palas Atenas nem o de Ares haverão de bastar para livrar as rãs da horrível derrota. Mas mesmo assim sigamos em seu auxílio, ou então move tu a tua arma, com a qual mataste os titãs, que eram em muito melhores do que todos; e desta maneira será dominado o mais valente, tal como em outros tempos fizeste perecer o robusto varão Capaneo, o grande Enceladonte e as ferozes famílias dos Gigantes.

Assim disse, e Zeus arremessou seu brilhante raio. Antes, emitiu um trovão que fez estremecer o vasto Olimpo, e em seguida lançou o raio – a terrível arma de Zeus que voou serpenteando da sua soberana mão. A queda do raio a todos causou pavor, tanto às rãs quanto aos ratos; mas nem por isso o exército destes últimos abandonou o combate, talvez esperando ainda mais do que destruir a linhagem das beligerantes rãs, se Zeus, no Olimpo, compadecendo-se delas, não lhes houvesse imediatamente enviado ajuda.

De pronto apresentaram-se uns animais com ombros como bigornas, de garras curvas e andar oblíquo, pés torcidos, com bocas como tesouras, peles de crustáceos, com ossos consistentes, costas largas e reluzentes, cambaios, lábios prolongados, e que olhavam pelo peito e tinham oito pés e duas cabeças, indomáveis; eram caranguejos que puseram-se a cortar com suas bocas as caudas, pés e mãos dos ratos, cujas lanças se dobravam ao enfrentar os novos inimigos. Temeram-nos os tímidos roedores e, cessando qualquer resistência, puseram-se em fuga.

E assim, ao pôr-do-sol, terminava aquela batalha que só um dia durara.
       
Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (org.) . Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

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Autran Dourado (O Risco do Bordado).

Obra-prima da carpintaria literária, O risco do bordado vem percorrendo desde seu lançamento, em 1970, o caminho típico de um clássico contemporâneo, alcançando um notável sucesso de público e crítica, suscitando inúmeras teses universitárias e sendo adotado como leitura curricular. O próprio Autran Dourado considera-o o eixo central de sua obra pela forma com que conjuga sua obsessiva construção de uma mítica mineira. “Escrevo para compreender Minas”, declarou ele.

Ambientado na mítica Duas Pontes, cidade a que retornaria em outros livros como uma síntese do universo interiorano de seus personagens, O risco do bordado é uma viagem ao passado do escritor João da Fonseca Ribeiro, que volta ao cenário de sua infância. Ao encontrar antigos moradores da cidade, parentes e companheiros de infância, ele vai montando uma espécie de quebra-cabeças entre o vivido e o imaginado, completando e expandindo fragmentos de memória que são a narrativa de sua infância e adolescência.

Como num típico romance de formação, em que o principal interesse está no crescimento e desenvolvimento do protagonista, o leitor vai sabendo, aos poucos, como João se tornou o que é, sua dura trajetória na descoberta da sexualidade, da amizade, da traição e, também, da literatura. Prostitutas, jagunços, antepassados mortos, parentes velhos, figuras características de Duas Pontes cruzam o caminho de João, que desta forma vai enxergando, retrospectivamente, o risco sob o bordado que, afinal, é a sua própria história de vida.

Autran Dourado dá à narrativa o ritmo descontínuo da memória. Ele trabalha idas e vindas e histórias fragmentadas que, num primeiro momento, podem se assemelhar a contos sutilmente interligados. Arquitetado paciente e minuciosamente a partir de gráficos e esquemas, O risco do bordado tem um similar na obra do autor: Uma poética do romance. Neste ensaio, também reeditado pela Rocco, ele explica cada detalhe da construção do romance, publica os desenhos e plantas-baixas que auxiliaram sua construção e reflete sobre seu processo de criação como um todo.

Artigo:

O Herói Trágico em O risco do bordado, de Autran Dourado.
Por: Lilian Manes de Oliveira – Revista Saberes – Letras/Universidade Estácio, RJ.

Numa sequência cronológica linear, constata-se que o crescimento de João, protagonista de O risco do bordado, corresponde a um sucesso de mistérios que o levam a questionar-se, em sua trajetória de menino a homem. Por vezes as diferentes formas de questionamento revestem um mesmo mistério. O encontro de João com o mistério leva-o a um sentimento trágico da vida. Ele é um pessimista sombrio. A busca de um sentido existencial o conduz a uma atitude de tragédia.

Seu primeiro encontro é com a “Casa da Ponte”, que dá título ao primeiro capítulo da obra. Esta tem seu ciclo trágico iniciado e concluído por tal casa.

Segundo Albert Camus, “a tragédia é um mundo fechado”. “Mundo fechado” era a Casa da Ponte, “reino proibido” de pequenas e grandes tragédias, que despertavam a curiosidade do menino. Dividido entre dois sentimentos, a vontade de ver Teresinha Virado (o despertar do sexo) e o medo de ser descoberto pela mãe, seu Bernardino ou outra pessoa, João é um personagem tenso: “nunca para ele uma espera durou tanto num átimo assim tão pequeno. O coração carregado, lampejos, vislumbres”. “Metade dele queria ir logo embora, a outra metade fincava pé”.

O problema ainda semiconsciente do garoto, diante do sexo, vai reaparecer num sentimento irrealizado de amor incestuoso, em “O salto do touro”.

Num outro momento, João se defronta com a morte. “… agora que o velho Maximino estava para morrer – aquela agonia lenta que chegava a dar nos nervos e que deixava os meninos, o colégio, a cidade, suspensos de angústia, de medo”.

“É limpa a tragédia, é repousante, é certa” (Jean Anouilh). Limpa? Como um terreno após a explosão de uma bomba atômica. Repousante e certa? Como a morte inelutável.

Os colegas de João, a empregada do tio-avô desempenham, cada um, seu papel. Dir-se-ia que correspondem ao coro da tragédia grega, que anuncia a morte do velho, que não deixa nenhuma margem à esperança. Não há surpresa nessa morte. Ela é esperada, longamente esperada. Não atinge João. O que o atinge é a agonia, a situação que se prolonga, a angústia resumindo todos os seus sentimentos: contar ou não à vovó Naninha? Ir ou não ao enterro? A morte já estava decidida. O desenlace, irremediável. Eis o verdadeiro efeito da tragédia. Ela é limpa; é pura, porque é fatal.

Outra vez ela aparece. A fatalidade previsível; a “ananké” dos gregos, o “fatum” latino vai-se repetir em “A volta do filho pródigo” e em “Assunto de família”.”Às vezes vovô Tomé achava que tio Zózimo tinha puxado ao pai dele, era muito parecido com o bisavô Mariano”. Eis a premonição trágica. O desempenho de Zózimo e Zé Mariano é descrito, como se João tivesse sempre presente no espírito o trágico futuro que os aguardava. Zé Mariano trancou-se num barraco e suicidou-se. Tio Zózimo também, enforcado. Em “As voltas do filho pródigo”, João ainda é personagem, o que serve de ligação deste grupo com os dos capítulos precedentes. Em “Assunto de família”, João é sujeito oculto, apenas ouvinte, pois o caso é narrado em falsa terceira pessoa, sendo o avô quem fala, o remorso e a culpa identificando os dois. A situação trágica se propõe pelo desdobramento do sujeito enunciante. João participa de ambas as tragédias, já que “presencia” a primeira como o “ouvido” do avô. O capítulo é escrito em terceira pessoa. A tragicidade do personagem se revela na busca da saída para uma angústia que o leitor apenas percebe, sem entender-lhe, a princípio, a razão. Vovô Tomé acha uma saída: comunica-se com o neto. Agora João carrega consigo a dúvida. Os tormentos do avô são seus. Todo esse capítulo poderia ser transposto para a primeira pessoa; mas, se tal ocorresse, não haveria mais o ouvinte: vovô Tomé continuaria incomunicável.

A busca se apodera de João. Incomunicável é ele. É trágico. O questionamento lhe pertence. Ele conscientiza o problema. As perguntas sobre o comportamento do tio nunca lhe são respondidas. Mas percebe a atmosfera trágica num crescendo quotidiano. As cartas que vovó Naninha oculta; o desespero de vovô Tomé; de novo, o coro trágico anunciando a João a volta do tio. Quando ele chega, a tragicidade aumenta; porém sofre uma interrupção. Como um parêntese entre a chegada e o fim de Zózimo, este volta à vida, a família se alegra, os habitantes da cidade o cumprimentam: é o trágico aberto. A um ciclo trágico que se fecha, segue outro ciclo trágico que se abre. Num de seus retornos ao lar, o filho pródigo se suicida. Sucessivamente, João se encontra com a loucura, com a morte. É o trágico cerrado.

Outra vez a figura da morte: a de Zé Mariano. O coro trágico – Teodomiro e Sá Vitoriana – pressentindo o desenlace trágico. A angústia de vovô Tomé: “não demorou três dias (três dias que foram a minha agonia, a minha morte temporã)”.

O que compõe a atmosférica trágica não é só a obra, é o leitor; o que conta são as relações dos personagens com o leitor. A atmosfera trágica implica adesão, engajamento, identificação. Daí chamar-se tensão dionisíaca ao estado no qual o leitor se sente ligado ao destino dos personagens, seja por identidade, seja por vontade de ruptura, tão intimamente que ele perde consciência de que este destino não é o seu. Assim a morte, destino comum a todos, pode constituir um tema de tragédia, quando o leitor se identifica com ela. A morte trágica é a minha morte, eu sou o sujeito da ação que se representa.

Entretanto, a morte não é somente o ponto extremo de um engajamento que pode encontrar sua força em outras circunstâncias. No trágico, pode representar um papel secundário. É uma das saídas. O homem é trágico, porque faz uma pergunta, respondida ou não. Só o homem é trágico, porque nunca encontrará uma resposta. As saídas não são A SAÍDA.

Vovô Tomé sofreu o tormento da incomunicabilidade. Não conseguiu penetrar no íntimo do pai, pois Zé Mariano lhe era de um mutismo monossilábico. O ciúme que sentia do meio-irmão foi provocado pelo distanciamento em que, embora filho legítimo, o pai o colocara. Em companhia de Teodomiro, parecia que o pai voltava à vida.

Um princípio de identidade estabelece o paralelismo. Também João não se comunica com o pai. Em seu mundo habitam mãe, avó, avô, tios, amigos. Referia-se ao pai de leve. O leitor sabe apenas que é mal sucedido nos negócios, não se dá bem com o sogro. João não deixa vir à tona os motivos. A incomunicabilidade está nas entrelinhas. Apenas, depois de morto ( “Sob a magia da dor”) , descobre-se o nome do pai: Tonico Nogueira. João ainda acrescenta: “remedando o tio que assim o apresentava às pessoas”. O silêncio sobre o pai é quase total.

O destino também é o inimigo de tia Margarida. O sobrinho não entende o porquê de uma existência estreita, daquele “mundo fechado”. “Querendo, ela podia ser bem bonita”. No entanto, um sentimento de culpa em relação a ela o acompanha desde menino. “Esse era o seu pecado mais fundo, a sua maior dor; embora ele nada tivesse feito, nenhuma culpa lhe coubesse. Porém, a culpa tudo tingia e envenenava”. “O salto do touro materializa essa culpa, dá-lhe razões de existir. O destino foi inimigo de João também. “Destino”, palavra criada por Hegel, para explicar a natureza profunda do tormento helênico, por ele próprio definida: “O destino é a consciência de si mesmo, mas como de um inimigo.”

Engloba, portanto, algo exterior e que se realiza no interior do ser humano. O mecanismo trágico existe desde o sempre. “Querendo” e “podia”: duas hipóteses. O risco do bordado impede de realizá-las. Prazer e dor, eis a tragédia pura; suas mil combinações refletirão as mil possibilidades de sofrer.
 

“Valente Valentina” retrata a magia e o deslumbramento, a necessidade apolínea do sonho que eleva o homem. Sonho que se esfuma na dualidade da tensão existencial. “Ah, meu Deus, como tudo se passou tão depressa! … Eu súbito descobri a verdade de que a gente só guarda para toda a vida aquilo que dói demais. Num instante chegou a hora do Circo Milano partir”. Valentina partira. “Eu nada podia fazer”. Não mais restava nenhuma esperança. O próprio princípio da tragédia se põe em causa. “O mundo é uma comédia para o homem que pensa e uma tragédia para o homem que sente” (Provérbio espanhol).

No capítulo final, “As roupas do homem”, o protagonista se liberta de suas dúvidas, recupera sua identidade. O simplesmente João a verbaliza: João da Fonseca Nogueira. Livra-se dos sentimentos de impotência diante do mistério existencial. O trágico o levou à descoberta de um universo misterioso e confusamente temido. Consegue a serenidade: os tormentos que o afligiam são apenas recordações.

O trágico termina num apaziguamento triste. João olha de frente seu destino. Liberta-se, pelo repouso que a tragédia da vida lhe trouxe.

Fonte:
Apostila 8 de Contemporânea da Lit. Brasileira. Disponível em http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Contemporanea/Autran_Dourado_O_Risco_do_Bordado_resumo.htm

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