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Clássicos do Cancioneiro Popular (Pitoco)

Pitoco era um cachorrinho
 qu’eu ganhei do meu padrinho
 numa noite de Natá-
 era esperto, muito ativo,
 tinha dois zóio bem vivo,
 sartando pra-cá, pra-lá.

 Bem cedo me levantava.
 Pitoco que me acordava
 c’os latido, sem pará,
 me fazia tanta festa,
 lambia na minha testa,
 quiria inté me bejá.

 Nos dumingo, bem cedinho,
 pegava meu bodoguinho, 
 os pelote no borná.
 Pitoco corria na frente,
 dano sarto de contente,
 rolano nos capinzá.

 Aquele devertimento 
 de grande contentamento
 ia inté no sor entrá.

 Era dumingo de mêis
 e dia de Santa Ineis: —
 tinha festa no arraiá.
 Minha mãe, as criançada
 tudo de rôpa trocada,
 na capela foi rezá;
 fugino por ôtra estrada
 c’o Pitoco fui caçá.

 Hoje, dói minha concência,
 pra morde a desobidiência.
 Pitoco latia… latia,
 mostrano tanta alegria,
 sem nada podê cismá;
 i eu tacava um pelote,
 fazeno virá cambóte,
 um pobre cara-cará. 

 Pitoco me acumpanhava;
 de veis in quano sentava
 e quiria adivinhá…

 De repente fiquei fria
 Gritei pr’a Virge Maria,
 que pudia me sarvá.
 Uma urutu das dorada,
 num gaio dipindurada
 tava pronta pra sartá!

 Pitoco ficô arrepiado,
 ficô c’o zóio vidrado
 e deu um sarto mortá: —
 se cumbateu c’a serpente,
 repicô tudo de dente,
 mais num pôde se escapá.

 Pitoco morreu latindo,
 os zóio vivo, tão lindo,
 foi fechano devagá;
 parece qu’inté se ria
 da minha patifaria
 de num podê le sarvá.

 E neste mundo tão oco,
 unde os amigo são pôco,
 despois que morreu Pitoco
 nunca mais tive outro iguá!

Fonte:
Nhô Bentico e Abílio Victor. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140.Edição Especial de Aniversário. 

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Clássicos do Cancioneiro Popular (Flor do Dia)

Colhida em Recife.
–––––––––––

Alevanta, meu amor
 Desse bom dormir
 Chame sua mãe
 Para me acudir

 Levantou-se ele
 Sem mais descanso
 Foi selando logo
 Seu cavalo branco

 — Deus vos salve, mãe
 No vosso estrado
 — Deus vos salve, filho
 No vosso cavalo
 Apeia pra baixo
 Jantar um bocado
 — Não quero jantar
 Que vim a chamado
 Que a Flor do Dia
 Lá ficou de parto
 — De mim para ela:
 Um filho varão
 De espora no pé
 E espada na mão
 Rebente por dentro
 Pelo coração

 — Flor do Dia
 Faça por parir
 Minha mãe está doente
 E não pode vir
 Alevanta, amor
 Desse bom dormir
 Chame minha mãe
 Para me acudir
 Que ela mora longe
 Mas sempre há de vir
 Grande dor, marido
 É dor de parir!

 — Deus vos salve, sogra
 No vosso estrado
 — Deus vos salve, genro
 No vosso cavalo
 Apeia pra baixo
 Jantar um bocado
 — Não quero jantar
 Que vim a chamado
 Que a Flor do Dia
 Lá ficou de parto
 — De mim para ela:
 Um filho estimado
 Que eu veja no trono
 Um bispo formado
 Espera lá, meu genro
 Deixa-me vestir
 Que ela mora longe
 Mas sempre hei de ir

 — Pastor de ovelhas
 Que sinal é aquele
 Que está dobrando?
 — É dona Estrangeira
 Que morreu de parto
 Sem haver parteira
 — Aquele sino
 Não cessa de dobrar
 Nem meus olhos
 Também de chorar
 Adeus, minha filha
 Do meu coração
 Que morreu de parto
 Sem minha bênção
 Adeus, milha filha
 Que eu vinha te ver
 Quem não tem fortuna
 Mais val ao nascer

Fonte:
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1954. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140.Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (A Sogra Enganando o Diabo)

 Dizem, não sei se é ditado,
 Que ao diabo ninguém logra;
 Porém vou contar o caso
 Que se deu com minha sogra.
 As testemunhas são eu,
 Meu sogro, que já morreu,
 E a velha, que é falecida.
 Esse caso foi passado
 Na rua do Pé Quebrado
 Da vila Corpo Sem Vida.

 Chamava-se Quebra-Quengo
 A mãe de minha mulher,
 Que se chamava Aluada
 Da Silva Quebra-Colher,
 Filha do Zé Cabeludo.
 Irmã de Vítor Cascudo
 E de Marcelino Brabo,
 Pai de Corisco Estupor;
 Mas ouça agora o senhor
 Que fez a velha ao diabo.

 Minha sogra era uma velha
 Bem carola e rezadeira,
 Tinha seu quengo lixado,
 Era audaz e feiticeira;
 Para ela tudo era tolo,
 Porque ela dava bolo
 No tipo mais estradeiro.
 Era assim o seu serviço:
 Ela virava o feitiço
 Por cima do feiticeiro!

 Disse o demo: — Quebra-Quengo,
 Qual é a tua virtude?
 Dizem que és azucrinada
 E que a ti ninguém ilude?
 Disse a velha: — Inda mais esta!
 Você parece que é besta!
 Que tem você c’o que faço?
 Disse ele: — Tudo desmancho,
 Nem Santo Antônio com gancho
 Te livra hoje do meu laço!

 Ela indagou: — Quem és tu?
 Respondeu: — Sou o demônio,
 Nem me espanto com milagre,
 Nem com reza a Santo Antônio!
 Pretendo entrar no teu couro!
 E nisto ouviu-se um estouro!
 Gritou a velha: — Jesus!
 Ligeira se ajoelhou
 E, depois, se persignou
 E rezou o Credo em cruz!

 Nisto, o diabo fugiu.
 E, quando a velha se ergueu,
 Ele chegou de mansinho,
 Dizendo logo: — Sou eu!
 Agora sou teu amigo
 Quero andar junto contigo,
 Mostrar-te que sou fiel.
 Minha carta, queres ver?
 A velha pediu pra ler
 E apossou-se do papel.

 — Dê-me isto! grita o diabo,
 Em tom de quem sofre agravo.
 Diz a velha: — Não dou mais!
 Tu, agora, és o meu escravo!
 Disse o diabo: — Danada!
 Meteu-me numa quengada!
 Sou agora escravo dela!
 E disse com humildade:
 — Dê-me a minha liberdade,
 Que esticarei a canela!

 Disse a velha: — Pé de pato,
 Farás o que te mandar?
 Respondeu: — Pois sim, senhora,
 Pode me determinar,
 Porque estou no seu cabresto
 Carregarei água em cesto,
 Transformarei terra em massa,
 Que para isso tenho estudo;
 Afinal, eu farei tudo
 Que a senhora disser — faça!

 Disse a velha: — Vá na igreja,
 Traga a imagem de Jesus.
 Respondeu: — Posso trazê-la,
 Mas ela vem sem a cruz,
 Porque desta tenho medo!
 Disse a velha: — Volte cedo!
 Ele seguiu a viagem
 E ao sacristão iludiu:
 Uma estampa lhe pediu
 Que só tivesse uma imagem.

 A velha, então, conheceu
 Do cão o quengo moderno,
 E, receando que um dia
 A levasse para o inferno,
 Para algum canto o mandou
 E em sua ausência traçou
 Com giz uma cruz na porta.
 Voltou o cão sem demora,
 Viu a cruz, ficou de fora,
 Gritando com a cara torta.

 Gritou o cão no terreiro:
 — Aqui não posso passar!
 Venha me dar minha carta,
 Quero pro inferno voltar!
 Disse a velha que não dava,
 Mas ele continuava
 A rinchar como uma besta.
 — Pois fecha os olhos! ela diz.
 Ele fechou e, com giz,
 Fez-lhe outra cruz bem na testa!

 Aí entregou-lhe a carta
 E o demo pôs-se na estrada,
 Dizendo com seus botões:
 — Não quero mais caçoada
 Com velha que seja sogra,
 Porque ela sempre nos logra!
 Foi, assim, a murmurar.
 Quando no inferno chegou,
 O maioral lhe gritou:
 — Aqui não podes entrar!

 — Então, já não me conhece?
 Perguntou ao maioral.
 — Conheço, porém, aqui
 Não entras com tal sinal:
 Estás com uma cruz na testa!
 Disse ele: — Que história é esta?
 Que é que estás aí dizendo?
 Mirou-se dum espelho à luz:
 Quando distinguiu a cruz,
 Saiu danado, correndo!

 E, na carreira em que ia,
 Precipitou-se no abismo,
 Perdeu o ser diabólico,
 Virou-se no caiporismo,
 Pela terra se espalhou,
 Em todo lugar se achou,
 Ao caipora encaiporando,
 Embaraçando seus passos
 E com traiçoeiros laços
 As sogras auxiliando…

 Deste fato as testemunhas
 Já disse todas quais são.
 Agora, quer o senhor
 Saber se é exato ou não?
 Invoque no espiritismo
 Ou pergunte ao caiporismo,
 Este que sempre nos logra,
 Se sua origem não veio
 Do diabo imundo e feio
 E do quengo duma sogra!

Fonte:
Barroso, Gustavo. Ao som da viola (folclore); nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140.Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (O Tatu)

 Eu vim pra contar a história
 Dum – tatu – que já morreu
 Passando muitos trabalhos
 Por este mundo de Deus

 O tatu foi muito ativo
 Pra sua vida buscar
 Batia casco na estrada
 Mas nunca pôde ajuntar

 Ora pois, todos escutem
 Do tatu a narração
 E se houver quem saiba mais,
 Entre também na função

 – Anda a roda
 O tatu é teu;
 Voltinha no meio
 O tatu é meu! – 

 O tatu foi homem pobre
 Que apenas teve de seu
 Um balandrau muito velho
 Que o defunto pai lhe deu!

 O tatu é bicho manso
 Nunca mordeu a ninguém
 Só deu uma dentadinha
 Na perninha do seu bem

 O tatu é bicho manso
 Não pode morder ninguém
 Inda que queira morder
 O tatu dentes não tem

 O tatu saiu do mato
 Vestidinho, preparado
 Parecia um capitão
 De camisa de babado!

 O tatu saiu do mato
 Procurando mantimento
 Caiu numa cachorrada
 Que o levou cortando vento!

 O tatu me foi à roça
 Toda a roça me comeu
 Plante roça quem quiser
 Que o tatu quero ser seu!

O tatu é bicho chato
 Rasteiro, toca no chão
 Inda mais rasteiro fica
 Quando vai roubar feijão

 O tatu de rabo mole
 Faz guisado sem gordura
 Ele é feio mas gostoso
 O que lhe falta, é compostura

 Depois de muito corrido
 Nos pagos em que nasceu
 O tatu alçou o poncho
 E proutras bandas se moveu

Eu vi o tatu montado
 No seu cavalo picaço
 De bolas e tirador
 De faca, rebenque e laço

 Onde vai, senhor tatu
 Emtamanha galopada?
 – Vou pra Cima da Serra
 Dançar a polca mancada! – 

 O tatu subiu a Serra
 No seu cavalo alazão
 De barbicacho na orelha
 Repassando um redomão

O tatu subiu a serra
 Pra serrar um tabuado
 Levou mala de farinha
 E um porongo de melado

 O tatu subiu a Serra
 Com ganas de beber vinho
 Apertaram-lhe a garganta
 Vomitou pelo focinho!

 Depois de grande folia
 Em que o tatu se meteu
 Deram-lhe muito guascaço
 E o tatu ensandeceu!

E logo desceu pra baixo
 Mui triste da sua vida
 Co’a casca toda riscada
 De orelha murcha, caída!

 O tatu foi encontrado
 No serro de Batovi
 Roendo as unhas, de fome
 Ninguém me contou, eu vi!

 O tatu foi encontrado
 Pras bandas de São Sepé
 Mui aflito e muito pobre
 De freio na mão, a pé

O tatu depois foi visto
 No serro de Viamão
 Com seu lacinho nos tentos
 Repassando um redomão

 O tatu foi encontrado
 Lá nos serros de Bagé
 De laço e bolas nos tentos
 Atrás dum boi jaguané!

 O tatu foi encontrado
 Na serra de Canguçu
 Mais triste que um socó
 E sujo como urubu

Ao chegar à sua casa
 Veio alegre e mui contente
 Por ver a sua tatua
 E quem mais era parente

 Minha comadre tatua
 Adeus, como tem passado?
 – Tenho passado mui bem
 Porém com algum cuidado – 

 Tatua, minha tatua
 Acuda, senão eu morro!
 Venho todo lastimado
 Das dentadas de um cachorro

Até chegar nesta idade
 Remédio nunca tomei
 Tatua, estou mui doente
 Faz remédio, eu tomarei

 Ela deu folhas d’umbu
 Co’a raiz de pessegueiro
 Mas coitado do tatu
 Morreu inda mais ligeiro!

 A tatua e os tatuzinhos
 Puseram-se a cavoucar
 Pra fazer a funda cova
 Pra o seu tatu enterrar

A tatua está viva
 O seu tatu já morreu
 Ela agora quer marido
 Travesso como era o seu

 A tatua está mitrada
 Quer marido doutro jeito
 Que não viva longe dela
 E seja tatu de respeito

 E se algum dos meus senhores
 Quer ser tatu preferido
 A tatua está viva:
 É só fazer seu pedido!

 O tatu desceu a Serra
 Com fama de laçador
 Bota laço, tira laço
 Bota pealos de amor

 Meu tatu de rabo mole
 Meu guisado sem gordura
 Eu não gasto meu dinheiro
 Com moça sem formosura

 Dei graças a Deus achar
 Uma toca já deixada
 Pois que vinha um caçador
 Co’ uma grande cachorrada

 O tatu foi encontrado
 No passo do Jacuí
 Trazendo muitos ofícios
 Para o general David

 O tatu subiu no pau!
 É mentira de você:
 Só que o pau fosse deitado
 Isso sim, podia sê

 O tatu caiu na roça
 Pelo cheiro da banana
 Também eu quero cair
 Nos braços de dona Ana

Fonte:
Lopes Neto, J. Simões. Cancioneiro guasca. Porto Alegre, Editora Globo, 1954. (Coleção Província, 6). Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140.Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (Boi Pintadinho)

Eu sou o boi Pintadinho

Boi corredor de fama
Que tanto corre no duro
Como na várzea de lama

Corro fora destes campos
Corro dentro da caatinga
Corro quatro, cinco léguas
De suor nem uma pinga

Corro fora nestes campos
Que o mesmo ar se arrebenta
Corro quatro, cinco léguas
Ninguém me vê dar a venta

Meu senhor Inácio Gomes
De mim já teve agravado
Porque onde eu estou
Não pode arrudiar gado

Ele fala com grande ira
E sente está magoado
Porque há mais de vinte vezes
Eu o tenho enrabado

Meu senhor Inácio Gomes
Fala com tanta ira
Que já dá vinte patacas
A quem me puser na embira

Eu darei tudo por nada
Pois dele, se não careço
Além da sua brabeza
Também tenho seu arremesso

O moço José de Almeida
Vagueiro do Clemente
Diz que nunca houve um cachorro
Que lhe pusesse o dente

E eu que o vi correr
Na lagoa das Mofadas
Deixou atrás o cavalo
E a sua cachorrada

Porque desde garotinho
Carreguei opinião
De não ter nenhum vaqueiro
Que me chegasse o ferrão

Estava eu certo dia
Na Carnaubinha maiado
Quando vi um cavaleiro
Em um tropel mui descansado

Estava seco de sede
E também morto de fome
Assim mesmo abri os olhos
Conheci Inácio Gomes

Saí logo na carreira
Não muito despedido
Porque Inácio Gomes
Já era meu conhecido

Ficou ele maginando
O que havia de fazer
Eu entrei bem para o centro
Bem pra dentro me esconder

No outro dia bem cedo
Saí a comer orvalho
Logo na volta que dei
Encontrei João Carvalho

Ele vinha bem montado
Bom cavalo e bom ferrão
E junto consigo trazia
O cabra Gonçalão

Traziam mais três cachorros
Que valiam três cidades
Que querendo matar um
Não se acha ruindade

Logo que avistei isto
Botei-me no catingão
A demora que tiveram
Foi gritar: arriba cão!

Corria de tal maneira
Que os ouvido me zunia
Na distância de três léguas
Três cachorros me gania

Tratei de me pôr em pé
Espiando pra confusão
Porém logo me enganei
Cada vez me foi pior

Porque eu estando em pé
Espiando pra confusão
Muito depressa chegou
O tal cabra Gonçalão

— Quer que vamos ao boi agora?
Ele está bem esbarrado…
Peguemos logo este boi
Enquanto ele está cansado

O cabra partiu a mim
Porém veio de meia-esgueia
Desviou-se da cabeça
Pressionou-me na sarneia

Eu com ardor do ferrão
A ele me encostei:
De debaixo de suas pernas
O cavalo lhe matei

O cabra se viu a pé
Ficou tão desesperado
Foi gritando logo ao outro:
— Matemos este malvado!

O cabra quando viu isto
Ainda mais se segurou
Puxou logo pela faca
Por detrás me rejeitou

Deram comigo no chão
Em riba de mim se escanchou
Logo o cabra Gonçalão
Bem depressa me sangrou

Ficaram muito contentes
De ter seu pleito vencido
Só assim Inácio Gomes
Aproveitaria o perdido

— Gonçalão tu vais à casa
Para buscar três cavalos
E mais alguma arrumação
E comeres alguma coisa
Que com certeza tens fome
Que vou pedir as alvissas
Ao compadre Inácio Gomes

Chegando ele então
Na fazenda Trucuinho
— As alvissas, meu compadre
Que é morto o Pintadinho!

— Venha me contar a estória
O que ele andava fazendo
Na lagoa das Mofadas
Bem cedo andando correndo

— Na lagoa das Mofadas
Naquele serrotinho de pedra
Bem na pontinha de cima
Fomos dar-lhe uma queda

Ou bicho forte! Correu
Correu mais de cinco léguas
E, se não são os cachorros
Ainda ninguém o pega

— Faça favor apeiar-se
Venha me contar a função
Se foi morto de chumbo
Ou a ponta de ferrão

— Sim, senhor, foi morto a chumbo
E a ponta de ferrão
Ajudado dos cachorros
E também do Gonçalão

Tenho agora três cachorros
Que vieram do Inhamuns
Que como estes três cachorros
Nesta terra não há nenhum

— Estão prontas as vinte patacas
Para lhe dar as alvissas
Tanto pelo seu trabalho
Como também pela notícia

Mande ver o Pintadinho
Aproveite ele todo
Faça dele matrutagem
Estimo que esteja gordo

Eu suponho que está capaz
De se comer com sossego
Porque julgo não terá carne
Tudo, tudo será sebo

Convide alguns amigos
Para bebermos um copinho
Principalmente celebrando
A morte de Pintadinho

* * *
Convidaram-se os amigos
Acudiu a gente toda
Receberam vinte mil réis
Comeram uma vaca gorda

Fonte:
Carvalho, Rodrigues de. Cancioneiro do norte. 3ª ed. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1967. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140.Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (O Casamento do Rato com a Catita)

No tempo em que os animais
 Seguiam civilidade
 O mundo era diferente
 Deste da atualidade
 Não havia a corrupção
 Que existe na humanidade

 Nesse tempo o senhor leão
 Era o rei dos animais
 O gafanhoto também
 Trazia insígnias reais
 O elefante, grande sábio,
 Fazia códigos legais

 O urso era juiz de direito
 O tigre era presidente
 O lobo era capitão
 A girafa era intendente
 O tamanduá era padre
 E o porco-espinho tenente

 O boi era juiz de paz
 Mestre burro era doutor
 O macaco era escrivão
 A lagarta cobrador
 A preguiça era fiscal
 Tatu-peba coletor

 O carneiro era mendigo
 Era o bode um almirante
 A raposa era correio
 Era o cavalo estudante
 O galo era um insolente
 E o punaré negociante

 A cobra, uma criminosa
 O cachorro, delegado
 O queixada, vagabundo
 O sapo, velho soldado
 E o peru era pobre preso
 Que vivia encarcerado

 Gato era cabo de esquadra
 Saguim era professor
 O veado era vaqueiro
 Periquito, promotor
 Camelo era viajante
 E o porco era criador

 O jacaré era dentista
 O morcego era barbeiro
 A ema era bom alfaiate
 O pica-pau, carpinteiro
 Guaxinim, senhor de engenho
 Mestre urubu, cozinheiro

 Vivia o abutre faminto
 A coruja era um profeta
 O cisne era um amante
 O rouxinol, um poeta
 A zebra, grande tratante
 O canguru era um pateta

 O castor era pedreiro
 O rato era namorado
 A barata era gatuno
 O pato era um empregado
 O pavão era um ourives
 E o canário, um advogado

 Era o mocó bom marchante
 A andorinha, comboeiro
 A formiga, agricultor
 Hiena, um sujo coveiro
 A cigarra era cantora
 E o besouro era bombeiro

 Afinal, tudo o que os homens
 São nessa atualidade
 Os brutos também já foram
 No tempo da antiguidade
 Quando o Destino era um deus
 De poder e majestade

 Nesse tempo, o jovem rato
 Habitava num chalé
 E namorava a Catita
 A filha do punaré
 Ela ainda era donzela
 E ele era um moço de fé

 O rato determinou-se
 A pedir a mão da amada
 Visitando o punaré
 Pediu-lhe a filha estimada
 Visto ela também já estar
 Bem por ele apaixonada

 — Meu tio, eu não venho aqui
 Só fazer-lhe uma visita
 Venho lhe pedir a mão
 De sua filha Catita
 Para casar-me com ela
 Pois acho-a muito bonita

 O punaré respondeu-lhe:
 — Só não te dou minha filha
 Porque ainda não tens recursos
 Pra sustentar a família
 E um pobre casar com um rico
 É mais do que maravilha

 — Meu tio, eu sei que sou pobre
 Não preciso que me diga
 A fazer-lhe este pedido
 É mesmo o amor quem me obriga
 Se me negar o que peço
 Haverá entre nós intriga

 — Eu darei o que me pedes
 Pois não te posso negar
 Já que a moça é tua prima
 Porém só podes casar
 Quando tiveres dinheiro
 Com que possas te aprontar

 — Se o senhor me proteger
 Eu proponho-lhe um negócio
 Faça de mim seu caixeiro
 Pois não sou muito beócio
 E, depois, quando casar
 Poderei ser o seu sócio

 — Aceito tua proposta
 Podes vir ser meu caixeiro
 Porém há uma circunstância
 Quero avisar-te primeiro
 Que não namores a moça
 Enquanto fores solteiro

 Então, fecharam negócio
 Passaram um documento
 E o rato tomou conta
 Dum estabelecimento
 Trataram para o fim do ano
 O tempo do casamento

 O punaré proibiu
 À filha de namorar
 Porém ela, às escondidas
 Ia com o rato prosar
 Toda noite, no jardim
 Tinham um particular

 Ao cabo de pouco tempo
 Sentiu-se a moça doente
 Estava bem descorada
 Com um olhar diferente
 Os peitos tinha crescidos
 E bastante inchado o ventre

 Foi receitar-se num médico
 E este, a vendo, logo disse:
 — Senhora, este seu incômodo
 Nada mais é que prenhice
 Remédio para este mal
 Nunca pôde descobrir-se

 O Rato desconfiou
 Tratou logo de fugir
 Roubou o cofre do tio
 Que, quando o quis perseguir
 Não o encontrou mais na loja
 Nem no quarto de dormir

 Vendo-se a moça ofendida
 Foi, correndo, se queixar
 Suplicando ao delegado
 Para este logo obrigar
 O Rato a casar com ela
 Pr’assim sua honra pagar

 Prometeu o delegado
 Que faria o que pudesse:
 Mandava prender o moço
 E, embora ele não quisesse
 Casar-se com a ofendida
 Casava houvesse o que houvesse!

 A moça voltou pra casa
 E o delegado apitou
 Em menos de uma meia hora
 Uma tropa se ajuntou
 O Gato chegou primeiro
 Dizendo logo: – Cá estou!

 Os soldados perguntaram:
 — Que quer, senhor delegado?
 Este respondeu: — Eu quero
 Que o Rato seja intimado
 Se ele fizer resistência
 Tragam morto ou amarrado!

 Logo os soldados se armaram
 Foram em busca do Rato
 Este, com medo da tropa
 Estava oculto no mato
 Porém isto o não livrou
 De cair nas mãos do Gato

 Cercou a tropa uma serra
 E, de cima dum penedo
 Avistou o criminoso
 Debaixo dum arvoredo
 Muitos soldados correram
 Outros morreram de medo!

 O Rato estava dormindo
 E acordou atordoado
 Com uma voz lhe dizendo:
 — O’ cabra esteja intimado!
 O Rato pensou consigo:
 — Ai! Ai! estou desgraçado!

 O Rato quis evadir-se
 Porém foi logo agarrado
 Ele se opôs e, na luta
 Deixaram-no bem pelado
 Pois assim mesmo o levaram
 Diante do delegado

 Este perguntou ao preso:
 — Que foi que fizeste tu?
 Que foi que te aconteceu
 Que estás aí quase nu?
 Para ti serve o ditado:
 Quem se vexa come cru!

 Disse o Rato: — Eu quis casar
 Com uma jovem mui bela;
 Mas, por ela me ser falsa,
 Eu disse para o pai dela:
 Que procurasse outro noivo
 Para casar-se com ela

 O delegado então disse:
 — Pois que o camarada me ouça:
 Por aí corre o boato
 Que tu ofendeste essa moça
 Agora, o que te acontece
 É morte ou casar à força!

 O Rato lhe respondeu:
 — Não é preciso matar-me!
 Eu já estou arrependido
 E, como quer castigar-me
 Mande chamar logo o padre
 Quero hoje mesmo casar-me

 O delegado respondeu-lhe
 — Não precisa se vexar
 Ainda falta correr banhos
 E a moça se preparar
 Eu dou-lhe um mês como prazo
 Para tudo se arranjar

 Com esse espaço dum mês
 Tudo estava preparado
 Todo o povo do lugar
 Tinha sido convidado
 Para ao grande baile vir
 Que havia de ser falado

 O Punaré, logo cedo
 Mandou ao padre chamar
 Pra fazer o casamento
 Que era em primeiro lugar
 Na manhã daquele dia
 Sem poder mais se adiar

 Convidou Mocó das Índias
 Pra ser do noivo o padrinho
 Visto ele ser seu parente
 E também ser seu vizinho
 Este não bebeu na festa
 Por gostar pouco de vinho

 Mandou chamar a Cotia
 Pra ser da noiva a madrinha
 Esta não comeu na festa
 Por não gostar de galinha
 E, como tinha inimigos
 Desconfiada é que vinha

 Convidou Mestre Urubu
 Para a festa cozinhar
 Este preparou guisados
 E, quando foram jantar
 O delegado chegou
 Para no baile dançar

 Ao chegar o delegado
 A festa foi acabada
 Pois a madrinha da noiva
 Era com ele intrigada
 O delegado agarrou-a
 Matando-a numa dentada!

 Numa guerra sanguinária
 Tranformou-se, então, a festa
 Tamanduá levantou-se
 Perguntou: — Que zoada é esta?
 Mas, quando viu que era o cão
 Se embrenhou pela floresta

 Na cabeceira da mesa
 Estavam Catita e Rato
 Quando ouviram o barulho
 Quiseram correr pro mato
 Mas, antes disso fazerem
 Foram mortos pelo Gato!

 Morreram nesse barulho
 Mais de dois mil convidados!
 Os que escaparam com vida
 Foram todos debandados
 Desde esse dia ficaram
 Os animais intrigados

Fonte:
Barroso, Gustavo. Ao som da viola (folk-lore); nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140.Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (A Vida de Pedro Cem)

Impressa em Recife, junho de 1932
–––––––

 Vou narrar agora um fato
 Que há cinco séculos se deu,
 De um grande capitalista
 Do continente europeu,
 Fortuna que como aquela,
 Ainda não apareceu.

 Pedro Cem, era o mais rico,
 Que nasceu em Portugal,
 Sua fama enchia o mundo
 Seu nome anda em geral,
 Não casou-se com rainha
 Por não ter sangue real.

 Em prédios, dinheiro e bens
 Era o mais rico que havia,
 Nunca deveu a ninguém
 Todo mundo lhe devia,
 Balanço em sua fortuna
 Querendo dar não podia.

 Em cada rua ele tinha
 Cem casas para alugar,
 Tinha cem botes no porto
 E cem navios no mar,
 Cem lanchas e cem barcaças,
 Tudo isto a navegar.

 Tinha cem fábricas de vinho
 E cem alfaiatarias,
 Cem depósitos de fazendas
 Cem moinhos e cem padarias
 E tinha dentro do mar,
 Cem currais de pescarias.

 Em cada país do mundo
 Possuía cem sobrados,
 Em cada banco ele tinha
 Cem contos depositados,
 Ocupava mensalmente
 Dezesseis mil empregados.

 Diz a história aonde eu li
 O todo desse passado,
 Que Pedro Cem nunca deu
 Uma esmola a um desgraçado.
 Não olhava para um pobre,
 Nem falava com criado.

 Uma noite teve um sonho
 Um rapaz o avisava
 Que aquele orgulho dele
 Era quem o castigava
 Aquela grande fortuna
 Assim como veio voltava.

 Ele acordou agitado
 Pelo sonho que tinha tido,
 Que rapaz seria aquele?
 Que lhe tinha aparecido
 Depois pensou, ora! Sonho,
 É devaneio do sentido.

 Um dia, no meio da praça
 Ele a uma moça encontrou,
 Essa vinha quase nua,
 Aos seus pés se ajoelhou
 Dizendo: senhor? Olhai!
 O estado em que estou.

 Ele torceu para um lado
 E disse: minha senhora?
 Olhe a sua posição!…
 E veja o que fez agora
 Reconheça o seu lugar,
 Levante-se e vá embora

 Oh! Senhor! Por esse sol
 Que de tão alto flutua,
 Lembrai-vos que tenho fome
 Estou aqui quase nua,
 Sou obrigada a passar,
 Nesse estado em plena rua.
 Ele repleto de orgulho
 Nem deu ouvido, saiu,
 A pobre ergueu-se chorando
 Chegou adiante caiu,
 Vinha passando uma dama
 Que com o manto a cobriu.

 Era a marquesa de Évora
 Uma alma lapidada,
 Tirando o seu rico manto
 Cobriu essa desgraçada,
 Ali conheceu que a pobre
 Foi pela fome postrada.

 Levante-se minha filha
 E pegou-lhe pela mão,
 Dizendo a criada a ela:
 Vá ali comprar um pão
 Que a essa pobre infeliz,
 Falta alimentação.

 Entregando-lhe uma bolsa
 Com quarenta e dois mil réis,
 Apenas tirou dali
 Um diploma e uns papéis
 Não consentindo que a moça
 Se ajoelhasse aos seus pés.

 E com aquela quantia
 Ela comprou um tear,
 Tinha mais duas irmãs
 Foram as três trabalhar
 Dali em diante mais nunca,
 Faltou-lhe com que passar.

 Vamos agora tratar
 Pedro Cem como ficou,
 E o nervoso que sentiu
 Uma noite que sonhou
 Que um homem lhe apareceu
 E disse olhe bem quem eu sou,

 Que tens feito do dinheiro 
 Que tomaste emprestado?
 Meu senhor mandou saber
 Em que o tens empregado?
 E por qual razão cumpriu
 As ordens que ele tem dado?

 Ele perguntou no sonho
 Mas que dinheiro eu tomei,
 Até aos próprios monarcas
 Dinheiro muito emprestei,
 O vulto zombando dele
 Disse: quem tu és eu sei.

 Que capital tinhas tu
 Quando chegaste ao mundo?
 Chegaste nu e descalço
 Como o bicho mais imundo
 Hoje queres ser tão nobre,
 Sendo um simples vagabundo.

 E metendo a mão no bolso
 Tirou dele uma mochila,
 Dizendo é esta a fortuna
 Que tu hás de possuí-la,
 Farás dela profissão,
 Pedindo de vila em vila.

 Pedro Cem sonhando disse:
 Ave agoureira te some
 Tua presença me perturba
 Tua frase me consome
 De qual mundo tu vieste?
 Diz-me por favor teu nome.

 Meu nome, disse-lhe o vulto
 És indigno de saber,
 Meu grande superior
 Proibiu-me de dizer.
 Apenas faço o serviço,
 Que ele me manda fazer.

 Despertando Pedro Cem
 Daquilo contrariado
 Ter dois sonhos quase iguais
 Ficou impressionado,
 Resolveu contrafazer,
 E ficar reconcentrado.

 Pensou em tirar por ano
 Daquela grande riqueza
 Sessenta contos de réis
 E dar de esmola à pobreza
 Depois refletindo, disse:
 Não me dá maior fraqueza

 Porque ainda mesmo Deus
 Querendo me castigar,
 Não afundará num dia
 Meus cem navios no mar,
 As cem fazendas de gado,
 Custarão a se acabar.

 As cem fábricas de tecidos
 Que tenho funcionando,
 Os parreirais de uvas
 Que estão todos safrejando,
 Cem botes que tenho no porto
 Todo dia trabalhando.

 Cem armazéns de fazendas
 As cem alfaiatarias,
 As cem fundições de ferro
 Cem currais de pescarias
 As cem casas alugadas,
 Cem moinhos, cem padarias.

 E as centenas de contos
 Nos bancos depositados,
 E tudo isso em poder
 De homens acreditados
 Ainda Deus querendo isso
 Seus planos eram errados

 Pedro Cem naquela hora
 Estava impressionado,
 Quando aproximou-se dele
 O seu primeiro criado,
 E disse: aí tem um homem,
 Diz vos trazer um recado.

 Mande que entre a pessoa
 Ele ao criado ordenou:
 Era um marinheiro velho
 Chegando ali o saudou,
 Que novas traz, meu amigo?
 Pedro Cem lhe perguntou.

 Disse o velho marinheiro:
 Venho-vos participar,
 Que dez navios dos vossos
 Ontem afundaram no mar
 Morreram as tripulações
 Só eu me pude salvar.

 Que navios foram esses?
 Perguntou-lhe Pedro Cem,
 Respondeu o marinheiro:
 Foi Tejo e Jerusalém
 E Douro e Penafiel
 Os outros eu não sei bem.

 Aquela inda estava ali
 Outro portador bateu
 O empregado das vacas
 Contou o que sucedeu;
 Incendiaram os cercados
 E todo o gado morreu.

 Pedro Cem nada dizia
 Ficando silencioso,
 Apenas disse: na terra
 Não há homem venturoso
 Quem se julgar mais feliz
 É pior que cão leproso.

 Chegou outro portador
 O empregado da vinha,
 Disse o depósito estourou
 Vazou o vinho que tinha
 Pedro Cem disse: meu Deus!…
 Que sorte triste esta minha.

 Saiu aquele entrou outro
 Era um cônsul norueguês,
 Disse nos mares do norte
 Andava um pirata inglês,
 Noventa navios vossos
 Tomou ele de uma vez.

 Meu Deus!… Meu Deus!… que fiz eu
 Exclamava Pedro Cem
 Não há homem nesse mundo
 que possa dizer vou bem,
 quando menos ele espera
 A negra desgraça vem.

 Dos cem navios que tinha
 Alguns foram afundados,
 E outros pelos piratas
 Nos mares foram tomados
 Acrescentou a pessoa:
 Vinham todos carregados.

 Ali mesmo veio o mestre
 Da barca Flor do Mundo
 Esse fitou Pedro Cem
 Com um silêncio profundo
 Depois disse: senhor marquês?!
 Dez barcaças foram ao fundo

 Quatros vinham carregadas
 Com bacalhau e azeite,
 Duas vinham da Suécia
 Com queijo, manteiga e leite,
 De todas as mercadorias
 Não tem uma que se aproveite.

 Quatro das dez que afundaram
 Traziam pérola e metal,
 Só da ilha da Madeira
 Vinham um milhão de coral
 Topázio, rubi, brilhante,
 Ouro, esmeralda e cristal.

 Pedro Cem baixou a vista
 Nada pôde refletir
 Exclamou que faço eu?
 Devo deixar de existir,
 Mas matando-me não vejo,
 Isso até onde pode ir.

 Chegou o moço do campo
 Tremendo e muito assustado
 E disse: senhor marquês
 Venho aqui horrorizado,
 Deu murrinha nas ovelhas
 E mal triste em todo gado.

 Naquele momento entrou
 Um rapaz auxiliar,
 Esse puxando um papel
 Disse: venho procurar,
 Tudo quanto se perdeu
 Na barca Ares do Mar.

 Pedro Cem perguntou quanto
 Tirou o moço uns papéis.
 Que se lia entre brilhantes
 Pulseiras, colares, anéis,
 Um milhão e quatrocentos
 E vinte contos de réis.

 Entrou outro auxiliar
 Disse eu quero pagamento,
 Por tudo que se perdeu
 No navio Chave do Vento
 Que vinha da América do Norte
 Com grande carregamento

 Chegou um tabelião
 Dá licença senhor Marquês?
 Venho lhe participar
 Que o grande banco francês,
 Dois alemães, três suíços
 Quebraram todos de vez

 Lá se foi minha fortuna
 Exclama Pedro Cem,
 Ontem fui milionário
 Hoje não tenho um vintém
 Só mesmo na campa fria,
 Eu hoje estaria bem.

 Dando balanço nos bens
 Quis até desesperar.
 Tudo quanto possuía
 Não dava para pagar
 Nem pela décima parte
 Os prejuízos do mar.

 Exclamava: oh! Pedro Cem
 Que será de ti agora!
 No pouco que me restava
 A justiça fez penhora,
 Pedro Cem de agora em diante
 Vai errar de mundo afora.

 Carpir esta sorte dura
 que a desventura me deu,
 Talvez muitas vezes vendo
 Aquilo que já foi meu,
 Em lugar que não se saiba
 Quem neste mundo fui eu.

 Ali no terraço mesmo
 Forrando o chão se deitou,
 As onze e meia da noite
 O sonho conciliou
 No sono sonhando viu
 O rapaz que lhe falou.

 Aquele perguntou, Pedro
 Como te foste de empresa,
 Já estás conhecendo agora
 Quanto é grande a natureza?
 Conheceste que teu orgulho
 Foi quem te fez a surpresa?

 Metendo a mão na algibeira
 Dali um quadro tirou.
 Onde havia dois retratos
 Que a Pedro Cem os mostrou
 Conheces esses retratos
 O rapaz lhe perguntou.

 Via-se naquele quadro
 Uma dama bem vestida
 Pedro Cem disse por sonho:
 Essa é minha conhecida
 A outra uma moça pobre
 Com fome no chão caída.

 Perguntava-lhe o rapaz:
 Quem é esta conhecida
 É a marquesa de Évora
 E esta que está caída?
 Essa? É uma miserável,
 Dessa classe desvalida.

 O rapaz puxa outro quadro
 Verde cor de esperança,
 Onde via-se uma monarca
 Suspendendo uma balança
 Estava pesando nela
 Caridade e esperança.

 Mostrou-lhe mais quatros quadros
 Que Pedro Cem conheceu,
 Tinha a Marquesa de Évora
 Quando a bolsa a pobre deu
 Que estirou a mão dizendo:
 Toma este dinheiro que é teu.

 No quadro via-se um anjo
 Assim nos diz a história,
 Com uma flor onde se lia:
 jardim da eterna glória,
 Presenteado por Deus,
 Esta palma de vitória.

 Quem planta flores tem flores
 Quem planta espinho tem espinho
 Deus mostra ao espírito fraco
 O que nega ao mesquinho,
 A virtude é um negócio
 A boa ação um pergaminho.

 Depois que ele acordou
 Triste impressionado
 Interrogava si próprio
 Porque sou tão desgraçado
 Achou na cama a mochila,
 Com que tinha sonhado.

 Será esta a tal mochila
 Que o fantasma me mostrou;
 É esta que o homem em sonho
 Em desespero exclamou:
 Na noite em que a cruel sina,
 Por sonho me visitou.

 De tudo restava apenas
 A casa de moradia,
 Essa mesma embargaram
 Antes de findar-se o dia
 Então disse Pedro Cem
 Cumpriu-se a profecia.

 Lançando a mão na mochila
 Saiu no mundo a vagar
 Implorando a caridade
 Sem alguém nada lhe dar
 Por uma cinco ou seis vezes
 Tentou se suicidar.

 Ele dizia nas portas:
 Uma esmola a Pedro Cem
 Que já foi capitalista
 Ontem tem, hoje não tem
 A quem já neguei esmola
 Hoje a mim nega também.

 Foi ele cair com fome
 Em casa daquela moça,
 Quando foi a porta dele
 Com fome, frio e sem força,
 Que ele não quis olhá-la
 A marquesa deu-lhe a bolsa.

 A criada o viu cair
 Exclamou: minha senhora!…
 Ande ver um miserável,
 Que caiu de fome agora,
 Onde? Perguntou a moça
 Ana disse: Ali fora.

 A moça disse à criada:
 Que trouxesse leite e pão
 Aproximando-se dele
 Disse: o que tens meu irmão
 Bateste em todas as portas
 Não encontraste cristão.

 Senhora! Se vós soubesseis
 Quem é esse desgraçado
 Não me abririas a porta
 Nem me davas esse bocado
 Respondeu ela: conheço
 Mas eu esqueço o passado.

 Me recordo que a marquesa
 Fez minha felicidade,
 Viu-me caída com fome
 Teve de mim piedade,
 Deu-me com que comprar pão
 E esta propriedade.

 Pedro Cem se levantou
 Disse obrigado e saiu
 Andando duzentos passos
 Tombou por terra, caiu
 E umas frases tocantes,
 Em alta voz proferiu:

 “Vai unir-se à terra fria
 O que não soube viver
 Soube ganhar a fortuna
 Mas não na soube perder
 Se tenho estudado a vida
 Tinha aprendido a morrer.

 Foi como a corrente d’água
 Que pela serra desceu,
 Chegou o verão a secou
 Ela desapareceu,
 Ficando só os escombros
 Por onde a água correu.

 Eu tive tanta fortuna
 Não socorria ninguém,
 A todos que me pediram
 Eu nunca dei um vintém,
 Hoje preciso pedir,
 Não há quem me dê também.

 Não desespero, pois sei
 Que grandes crimes hoje espio,
 Nasci em berços dourados
 Dormi em colchão macio
 Hoje morro como os brutos
 Neste chão sujo e frio.

 Foram as últimas palavras
 Que ali pronunciou,
 Margarida, aquela moça
 Que a marquesa embrulhou
 Botou-lhe a vela na mão,
 Ele ali mesmo expirou.

 A justiça examinando
 Os bolsos de Pedro Cem,
 Encontrou uma mochila
 E dentro dela um vintém
 E um letreiro que dizia:
 Ontem teve e hoje não tem.

Fonte:
Cascudo, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro, Ediouro, sd. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140. Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (A Velha Bizunga)

Colhido em Maricá, RJ
––––––––––-

Velha Bizunga,
 Casai vossa filha,
 Pra termos um dia
 De grande alegria.
 “Eu, minha filha,
 Não quero casar;
 Pois não tenho dote
 Para a dotar.

 Saiu a Preguiça,
 De barriga lisa:
 — Case a menina,
 Que eu dou a camisa.
 “Quem dê a camisa
 Decerto nós temos;
 Mas a saia branca,
 Donde a haveremos?

 Saiu a cabrita
 Do mato manca:
 — Case a menina,
 Darei a saia branca.
 “Quem dê saia branca
 De certo nós temos;
 Mas o vestido.
 Donde o haveremos?

 Saiu o veado
 Do mato corrido:
 — Case a menina,
 Que eu dou o vestido.
 “Quem dê o vestido
 De certo nós temos;
 Porém os brincos,
 Donde os haveremos?

 Saiu o cabrito
 Dando dois trincos:
 — Case a menina,
 Eu darei os brincos.
 “Quem dê os brincos
 De certo nós temos;
 Mas falta o ouro,
 Donde o haveremos?

 Saiu do mato
 Roncando o besouro
 — Case a menina,
 Qu’eu darei o ouro.
 “Quem nos dê o ouro
 De certo nós temos;
 Mas a cozinheira,
 Donde a haveremos?

 Saiu a cachorra
 Descendo a ladeira:
 — Casai a menina,
 Serei cozinheira.
 “Quem seja a cozinheira
 É certo já temos;
 Porém a mucama,
 Donde a haveremos?

 Saiu a traíra
 De baixo da lama;
 — Casai a menina,
 Serei a mucama.
 “Quem seja a mucama
 De certo nós temos,
 Porém o toucado,
 Donde o haveremos?

 Saiu o coelho
 Todo embandeirado:
 — Casai a menina,
 Darei o toucado.
 “Quem dê o toucado
 É certo que temos;
 Porém o cavalo,
 Donde o haveremos?

 Saiu do poleiro
 Muito teso o galo
 — Casai a menina,
 Que eu dou o cavalo.
 “Quem dê o cavalo
 De certo nós temos;
 Porém o selim,
 Donde o haveremos?

 Saiu um burro
 Comendo capim
 — Casai a menina,
 Darei o selim.
 “Quem dê o selim
 É certo que temos;
 Porém falta o freio,
 Donde o haveremos?

 Saiu uma vaca,
 Pintada no meio:
 — Casai a menina,
 Eu darei o freio.
 “Quem nos dê o freio
 Sim, senhores, temos;
 Porém a manta,
 Donde a haveremos?

 Saiu a onça
 Co‘a boca que espanta:
 — Casai a menina,
 Que darei a manta.
 “Quem nos dê a manta,
 É verdade temos;
 Mas quem será o noivo?
 Donde o haveremos?

 Saiu o tatu
 Com o seu casco goivo:
 — Casai a menina,
 Que eu serei o noivo.
 “O noivo tratado
 De certo nós temos;
 Porém o padrinho,
 Donde o haveremos?

 Saiu o ratinho
 Todo encolhidinho:
 — Casai a menina,
 Serei o padrinho.
 “Quem seja o padrinho
 De certo nós temos;
 Porém a madrinha.
 Donde a teremos?

 Saiu a cobrinha,
 Toda pintadinha:
 — Casai a menina,
 Serei a madrinha.
 “Quem seja a madrinha
 De certo nós temos;
 Mas quem pague o padre,
 Donde o haveremos?

 Saiu a cobrinha,
 Que era a comadre:
 — Casai a menina,
 Pagarei ao padre.
 Cada um dando o que pôde
 Todos se arrumaram:
 Chamado o padre,
 Logo se casaram.

 Caindo o sereno
 Por cima da grama,
 Debaixo da pedra
 Fizeram a cama,
 Se divertiram,
 Cantaram, dançaram;
 E diz o lagarto
 Que também tocaram.

 Se é verdade ou não,
 Isso lá não sei;
 O que me foi contado
 Eu também contei.

 O que sei só é
 Que tanto brincaram,
 Que todos também
 Se embebedaram.

 Até eu também
 Me achei na função,
 E pra casa truce
 De doce um buião.

Fonte:
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1954; Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 – Ano XII – nº 140. Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (A Nau Caterineta)

Aquarela de Tiago Taron (Portugal)
Colhida em Sergipe
––––––––––––-

Faz vinte e um anos e um dia
Que andamos n’ondas do mar,
Botando solas de molho
Para de noite jantar.

A sola era tão dura,
Que a não pudemos tragar,
Foi-se vendo pela sorte
Quem se havia de matar,
Logo foi cair a sorte
No capitão-general.
“Sobe, sobe, meu gajeiro,
Meu gajeirinho real,
Vê se vês terras de Espanha,
Areias de Portugal.

— Não vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal,
Vejo sete espadas nuas
Todas para te matar.
Arriba, arriba, gajeiro,
Aquele tope real,
Olha pra estrela do norte
Para poder dos guiar.

— Alvistas, meu capitão,
Alvistas, meu general,
Avisto terras de Espanha,
Areias de Portugal.

Também avistei três moças
Debaixo dum parreiral,
Duas cosendo cetim,
Outra calçando o dedal.
“Todas três são filhas minhas,
Ai! Quem mas dera abraçar!
A mais bonita de todas
Para contigo casar.”

— Eu não quero sua filha
Que lhe custou a criar,
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

“Tenho meu cavalo branco,
Como não há outro igual;
Dar-te-lo-ei de presente
Para nele passear.”

— Eu não quero seu cavalo
Que lhe custou a criar;
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

“Tenho meu palácio nobre,
Como não há outro assim,
Com suas telhas de prata,
Suas portas de marfim.”

— Eu não quero seu palácio
Tão caro de edificar;
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

“A nau Caterineta, amigo
É d’El-Rei de Portugal,
Mas não serei mais ninguém,
Ou El-Rei te há de dar.

Desce, desce, meu gajeiro,
Meu gajeirinho real,
Já viste terras de Espanha,
Areias de Portugal…”

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 – Ano XII – nº 140. Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (O Rabicho da Geralda)

Sou o boi liso, rabicho,

Boi de fama, conhecido,
Minha senhora Geralda
Já me tinha por perdido.

Era minha fama tanta,
Nestes sertões estendida…
Vaqueiros vinham de longe
Pra me tirarem a vida.

Onze anos morei eu
Lá na serra da Preguiça,
Minha senhora Geralda
De mim não tinha notícia.

Morava em cima da serra,
Naqueles altos penhascos,
Só davam notícias minhas
Quando me viam os rastos.

Ao cabo de onze anos
Saí na Várzea do Cisco,
Por minha infelicidade
Por um caboclo fui visto.

Quando o caboclo me viu
Saiu por ali aos topes,
Logo foi dar novas minhas
Ao vaqueiro José Lopes.

Quando o caboclo chegou
Foi com grande matinada:
— Oh! José Lopes, eu vi
O rabicho da Geralda.

Estava na Várzea do Cisco
C’um magotinho de gado,
Lá na pontinha de cima,
Onde entra pra talhado.

José Lopes chamou logo
Por seu filho Antonio João:
“Vá buscar o barbadinho,
“E o cavalo tropelão.

“Diga ao senhor José Gomes
“Que traga sua guiada
“E venha pronto pra irmos
“Ao rabicho da Geralda”.

Chegados eles que foram,
Montaram, fizeram linha,
A quem eles encontravam
Perguntavam novas minhas.

Encontrando Zé Tomás,
Que vinha lá da Queimada…
“Camarada, dá-me novas
“Do rabicho da Geralda?”

— Ainda mesmo que eu visse,
Eu não daria passada,
Pois será muito o trabalho,
E o lucro não será nada.

— Não senhor, meu camarada,
A coisa está conversada:
A dona mesmo me disse
Que desse boi não quer nada.

Uma das bandas e o couro
Fica pra nós de bocório;
A outra vai se vender
Pras almas do purgatório.

Despediram-se uns dos outros,
No carrasco se internaram,
Cacaram-me todo o dia
Porém não me alcançaram.

Deram de marcha pra casa,
Já todos mortos de fome,
Foram comer um bocado
Na casa do José Gomes.

Passados bem cinco dias,
Estando eu na ribanceira,
Quando fui botando os olhos,
Vejo vir Manuel Moreira.

Um dos vaqueiros de fama
Que naquele tempo havia,
Que muita gente supunha
Só ele me pegaria.

Olhei para o outro lado,
Para ver se vinha alguém:
Divisei Manuel Francisco
E seu sobrinho Xerém.

Fui tratando de correr
Pelo lugar mais fechado,
Quando o Moreira gritou-me
Aos pés juntos, enrabado,

Corra, corra, camarada,
Pise seguro no chão,
Que hoje sempre dou fim
Ao famanaz do sertão.

Tiremos uma carreira
Assim por uma beirada;
Eu mesmo desconfiei
Do rabicho da Geralda.

Mais adiante pus-me em pé
Para ver o zuadão:
Enxerguei Manuel Francisco
Caído num barrocão.

Estive ali muito tempo,
Ali posto e demorado;
A resposta que me deram
Foi dizer: vai-te malvado!

Toda vida terei pena
De correr atrás de ti;
Bem me basta minha faca,
E minha esposa que perdi!

Daí seguiu para trás
Ajuntando o que era seu,
E juntamente caçando
O Xerém, que se perdeu.

Nesse tempo tinha ido
A Pajeú ver um vaqueiro;
Dentre muitos que lá tinha,
Viera o mais catingueiro.

Este veio por seu gosto,
Trazendo sua guiada,
E desejava ter encontro
Com o rabicho da Geralda.

Chamava-se Inácio Gomes,
Era cabra curiboca,
O nariz achamurrado
Cara cheia de pipoca.

Na fazenda da Concórdia,
Chegou ele a uma hora;
Muita gente já dizia:
O rabicho morre agora.

Dizia que pra matar-me
Não precisava de mais:
Bastava dar-me no rasto
De oito dias atrás.

Deram-lhe então um guia
Que bem soubesse do pasto,
E que também conhecesse
Dentre todos o meu rasto.

Onze dias me caçaram
Com grande empenho e cuidada:
Não puderam descobrir
Nem novas e nem mandado.

Passados os onze dias
Lá no Riacho do Agudo,
Quando fui botando os olhos,
Vi o cabra topetudo.

Disse o guia me avistando:
— Venha ver, meu camarada,
Eis ali o boi de fama,
O rabicho da Geralda.

Bem cedo, ao sair do sol,
Vimo-nos de cara a cara,
E nos primeiros arrancos
Logo lhe caiu a vara.

Ele disto não fez caso,
Relho ao cavalo chegou
E em poucas palhetadas
Bem pertinho me gritou:

— Corra, corra, camarada,
Puxe bem pela memória
Que não vim da minha terra
Para vir contar estória.

Gritou-me da outra banda
O senhor guia também:
— Tu cuidas que sou Moreira,
Ou seu sobrinho Xerém?

Tinha um pau atravessado
Na passagem dum riacho:
O cabra passou por cima
E o cavalo por baixo.

Segui a meia carreira,
No meu correr costumado,
E antes de meia légua,
Ambos já tinham ficado.

Pôs-se o cabra topetudo
A pensar o que faria,
E quando chegasse em casa
Que estória contaria!…

Na fazenda da Botica
Tinha gente em demasia,
Esperando ter notícia
Do rabicho nesse dia.

Perguntou José de Góis,
Morador no Carrapicho:
— Amigo, seja benvindo!
Dá-me novas do rabicho?

— Eu o vi, mas não fiz nada,
Pois nunca vi correr tanto,
Como esse boi, o rabicho,
É coisa que causa espanto!

— Nesta terra eu não vejo
Quem o pegue pelo pé,
Aquele morre de velho
Ou de cobra cascavel.

Respondeu José de Góis,
Morador no Carrapicho:
— Eu pelos olhos conheço
Quem dá voltas ao rabicho.

— Já anda em dezoito anos
Que Zé Lopes o capou,
Era ele então garrotinho,
Por isso foi que pegou.

Foi-se o cabra topetudo
E não sei se lá chegou,
Só sei é que ele foi
Com os beiços com que mamou.

Chega enfim — noventa e dois —
Aquela seca comprida;
Logo vi que era a causa
De eu perder a minha vida.

Secaram-se os olhos d’água,
Não tive onde beber,
E botei-me aos campos grandes
Já bem disposto a morrer.

Desci por uma vereda
E disse: esta me socorra;
Quando quis cuidar em mim
Estava numa gangorra.

Fui à fonte beber água,
Refresquei o coração!
Quando quis sair não pude,
Tinham fechado o portão.

Corri logo a cerca toda
E sair não pude mais:
Quem me fez prisioneiro
Foi apenas um rapaz.

Este saiu às carreiras,
E, vendo um seu camarada,
Gritou logo: já está preso
O rabicho da Geralda.

Espalhando-se a notícia,
Correram todos a ver,
E vinham todos gritando:
O rabicho vai morrer!

Trouxeram três bacamartes,
Todos três me apontaram,
Quando dispararam as armas,
Todas três me traspassaram!

Ferido caí no chão!
Saltaram a me pegar
Uns nos pés, outros nas mãos,
Outros para me sangrar!

Disse então um dentre eles:
— Só assim, meu camarada,
Nós provaríamos todos
Do rabicho da Geralda

Assim findo-se este drama,
Tudo assim se findará,
Como este boi, nesta terra
Não houve, nem haverá.

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 – Ano XII – nº 140. Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (O Boi Surubim)

Estátua do Boi Surubim na cidade de Surubim
O boi Surubim
Nasceu um bezerro macho
No curral da Independência,
Filho de uma vaca mansa
Por nome de Paciência.
Quando Surubim nasceu
Daí a um mês se ferrou
Na porteira do curral
Cinco touros enxotou.

Na porteira do curral
Onde Surubim cavou
Ficou um barreiro tal
Que nunca mais se aterrou.

Na praça da cacimba
Onde o Surubim pisou
Ficou a terra acanhada,
Nunca mais capim criou.

Um relho de duas braças,
Que o Surubim amarrou,
Botou-se numa balança,
Duas arrobas pesou.

Fui passando num sobrado,
Uma moça me chamou:
— Quer vender o Surubim?
Um conto de réis eu dou.

“Guarde seu dinheiro, dona,
O Surubim não vendo não.
— Dou um barco de fazenda,
De chita e madapolão.

“Este é o meu boi Surubim
É um corredor de fama,
Tanto ele corre no duro,
Como nas vargens da lama.

Corre dentro, corre fora,
Corre dentro da caatinga;
Corre quatro, cincos léguas
Com o suor nunca pinga.

Quando Surubim morreu,
Silveira pôs-se a chorar:
Boi bonito como este
No sertão não nascerá:
Eu chamava ele vinha:
— O-lé, o-lô, olá…

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 – Ano XII – nº 140
Edição Especial de Aniversário

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Clássicos do Cancioneiro Popular (O Boi Barroso)

Meu bonito boi barroso
Que eu já contava perdido
Deixando o rastro na areia
 Foi logo reconhecido

Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora
E grite: aperta, gente
Que o meu boi se vai embora!

No cruzar de uma picada
Meu cavalo relinchou
Dei de rédea para a esquerda
E o meu boi me atropelou

Ajudai-me, companheiros
Não me deixem morrer só
Ali vem o boi barroso
Estralando o mocotó!

Nos tentos levava um laço
Com vinte e cinco rodilhas
Pra laçar meu boi barroso
Lá no alto das coxilhas

Mas no mato carrasquento
Onde o boi ‘stava embretado
Não quis usar o meu laço
Pra não vê-lo retalhado

E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré

E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga

E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse a meia-cara

Estribilho
Meu boi barroso
Meu boi pitanga
O teu lugar
É lá na canga

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 – Ano XII – nº 140
Edição Especial de Aniversário

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