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Daisy Melo (Uma Amizade Tão Delicada…)

Seus dias eram sempre os mesmos. Acordava na mesma hora quando o sol ainda não nascera e tampouco a lua caíra do horizonte. Tomava o café, saía de casa às sete e até pegava a tal condução que era dirigida pelo mesmo motorista. Trabalhava sempre igual, mecanicamente, todos os dias, até que chegava a hora de ir embora. Para fazer o quê? Comer o jantar congelado, assistir aquela novela de sempre que de nova só tinha o título, o programa de entrevista que usava a mesma fórmula tarimbada de sucesso e, finalmente, dormir na sua cama, a mesma, há tanto tempo.

Mas ela tinha que sair do trabalho e voltar para casa, então, descia a rua, olhando as casas, considerando se naqueles jardins teria nascido alguma flor que, então, faria sua vida ter um quê de diferença.

Naquele dia, enquanto contava as rosas do jardim da casa amarela, aquela com o pé direito alto e as janelas cremes sempre cerradas, a mulher o encontrou parado na esquina em frente à meia água mirrada onde plantada há uma romãzeira em flor.

Ele observava a mulher com nítido interesse, com uma certa curiosidade nos olhos castanhos. Ela tentou não demonstrar, mas sobressaltou-se. Não podia revelar que estava com medo. Sempre soube que eles percebem quando estamos com medo e aí atacam. Mas o coração batia descompassado e, apesar de mudo dentro do peito, ouvia-o nas têmporas. Respirou fundo, passou com ar de quem não estava nem aí, enquanto ele permaneceu sentado. Apenas os olhos a seguiam — será que percebeu um ar irônico?— e, quando a mulher sentiu-se segura, deu uma olhadela de soslaio e ele continuava lá, parado. Um Vira-latas com focinho e pernas amarelas, dorso e cauda negra, peluda, parecendo um ponto de interrogação. Tinha um porte médio e um certo jeitão de cachorro que sabe o que quer da vida.

A mulher esqueceu-se do acontecido durante toda a noite e durante o dia seguinte, até que ao sair novamente do trabalho, topou com ele, de novo, na mesma esquina. Olhava-a curioso, com a cauda movimentando-se lentamente de um lado para o outro. Fingindo não sentir medo, e tentando não correr, passou por ele tesa e, dessa vez o cachorro moveu-se e pôs-se a segui-la. “Ai, droga! O que será que ele quer de mim? Não tenho comida e nem ao menos gosto de cachorros!” Parecendo ler seus pensamentos, ele estancou com um ar decepcionado. E ficou ali até que, a mulher, um pouco surpresa, virou a esquina com pressa. Mas, no dia seguinte…

Lá estava ele parado no mesmo lugar! Ora, ela começou a ficar intrigada quando o cachorro a seguiu novamente, porém guardando uma distância respeitosa, tentando com certeza, não assustá-la. “Acho que estou ficando louca, pensou a mulher, como ele pode estar tentando não me assustar?”

E assim foi no dia seguinte e no outro e nos outros que se seguiram. O cachorro esperava a mulher na esquina. Ela não afagava sua cabeça e ele não abanava a cauda. Apenas a seguia, até que, ao chegar no ponto do ônibus, ele a esperava subir na condução que a levaria para casa.

Era um cachorro diferente, concluiu a mulher. Nada pedia. Nem comida, nem afagos. Queria somente a sua companhia naquele breve trajeto. Ia satisfeito, caminhando ao seu lado e só retornava quando tinha certeza que ela havia entrado no ônibus. Uma vez a mulher saltou um ponto adiante e voltou correndo para descobrir aonde o cachorro ia. E encontrou-o parado no mesmo lugar. Não se mexera. Como se soubesse de antemão as suas intenções. Muito estranho… sentia-se como em um episódio do além da imaginação. Ou será que é pegadinha? É pegadinha, só pode ser, concordou olhando discretamente para os lados para ver se encontrava a câmera. Ela nunca achou a câmera escondida…mas o cachorro, esse estava lá, sempre, todos os dias, na esquina, em frente a romãzeira que perdeu as flores e ganhou frutos. E seus olhos brilhavam quando via a mulher. Era como uma espécie de dever: esperar e proteger. Porque é assim que ela se sentia: protegida. Mas por quê? Construía mil fantasias: era um extraterrestre. Estava numa missão importante: estudar os terráqueos, e entender como podiam sobreviver com suas vidas solitárias, com suas mesmices e desilusões. Só podia ser…

O importante é que a mulher passou a colorir seus dias com um tom outro que não o cinza. E quando pensava no cachorro, com seu jeito manso e nobre de cachorro velho e sábio, com aquele sorriso discreto no focinho repleto de pêlos brancos, a mulher iluminava-se, seu coração pulsava de um jeito diferente e ela arriscava-se a trautear uma melodia há muito esquecida que a fazia lembrar de pique, de roda, amarelinha e cama de gatos.

E a romãzeira perdeu os frutos. Suas sementes serviram para fazer amuletos de boa sorte no dia de Reis e o cachorro estava sempre lá. E esperava.

Fontes:
Projeto releituras

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Olivaldo Junior (Um trovador)

Todas as horas são horas extremas!
Mário Quintana, in Pequeno Poema Didático
 

            Era uma vez um trovador que se perdeu quando tentou atravessar a própria sombra. Não sabia (coitado) que os trovadores não tem que perguntar, nem se indagar, mas, simplesmente, retratar o que eles veem pelo caminho. O caminho de um trovador não é mais o mesmo de antigamente. E mente quem diz outra coisa. Salvem Jorge, mas também os trovadores, que um trovador tem trovas onde antes não havia quase nada.

            Um trovador, distraído de tudo e de todos, perdeu-se quando foi atravessar a própria sombra e nunca mais voltou de lá. Lá é onde se perdem os que se põem a querer testarem o sim e o não de Deus. Deus não é de brincadeira, embora tenha muito senso de humor. Basta olhar o que Ele cria, sim, pois que o mundo não foi criado, o mundo é criado. Esse trovador sabia disso, e é por isso que ele ia ter com Deus assim que tudo ficasse mesmo insuportável. Leve, como se flutuasse, um trovador, sem cavalo, nem magrela, mesmo sendo gordo, flutuava pelo céu da consciência e não achava quem o trouxesse de volta: Deus. Se bem que teve aquela vez… Não, melhor que isso fique em segredo. O segredo é a alma do negócio, e o negócio é mesmo a alma. Um trovador, voando atrás de Deus, pensava que, finalmente, houvesse ganhado as asas que queria!

            Passado um tempo, depois de muito voar e de mais um tanto pensar sobre o que havia feito ao se atrever a ver além da própria sombra, um trovador resignou-se e pôs-se, enfim, a fazer trovas. Tem uma que ele fez que é bem assim, eu bem me lembro:

Ao perder a minha sombra,
me perdi na minha vida,
pois a morte só me assombra
quando a vida é dividida.

Pondo-se a escrever, ele esquecia um pouco de toda a dor que acumulara. Porém, como tudo tem fim (em todos os casos e sentidos), um trovador, tão jovem quanto um sonho não vivido, ao ver o reflexo dele nas águas de um lago (eram seis horas da tarde) tal e qual Narciso, pulou no sonho que teve, pois vira a sombra, a sombra dele ali. Lírios brancos, indicando a paz sem a virem, soluçaram baixo. E uma libélula, tarde, pousou.


Fonte:
O Autor
Sombra criada por J. Feldman a partir de imagem (colorida) obtida na internet

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Fanny Abramovich (Perdidos na Excursão)

Marquito desabou na poltrona. Completamente moído. Exausto! Agarrou o telefone, ligou pro Tiagão. Dos dois lados do fio, só queixas e reclamações. E altos xingos.

Bocas raivosas, por nada ter dado certo. Só confusão durante a excursão inteira.

Marquito relembrou a saída orgulhosa. Um final de semana ecológico-aventureiro. Certeza de voltar triunfantes! Muito pra contar e pra exibir. Turma animada e a fim de descobrir o esconderijo-paraíso dos micos-leões-dourados.

Tiagão ouvia rindo. Logo enfezou. Lembrou da primeira desviada. Um caminho lindo que deu numa cachoeira despencante. Puladas, procuras, nadadas, volta estropiada pra estrada arrebentada… Depois, só mancadas…

A chuva desviante da trilha. A paralisada hesitante se era pra virar à direita ou à esquerda.

Os em-frente-marche dando em barreiras fechadas, sem brecha pra passagem. As voltas, semivoltas, voltas inteiras. A parada pra comilança quase dentro duma fazenda murada e o dono surgindo com as armas em punho… Horror total!!

Marquito parou de sorrir. Partiu pros desabafos gritados. A armação das tendas no escuro e a descoberta rápida de o lindo lugar estar cercado de cobras… Berros desesperados!

O dar de cara com uma margem do rio sem nenhuma ponte para cruzar… O medaço de se afogar atravessando a pé.

Tiagão espirrou. Gripou bravo. Desligou avisando que foi a primeira e última excursão ecológica. Pra ele, fim de papo. Marquito resmungou enfezado. Jurou jurado. Outra, só sabendo antes por onde ia pisar. Chegava de perder tempo, perder a paciência, perder o ânimo.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Hélio Ziskind (Na Casa do Cozinheiro)

Panelinha
Panelão
Panelinha
Panelão
Panelinha pim pim
Panelão pão pão pão
Vivo entre panelas
Pim piririm pampam
Frigideiras e tigelas
Pão pão pim
Quem sou?
Quem sou?
O cozinheiro, acertou!
Minha casa é muito musical
Panelinha agudinha
Pim pim pim piririm pim pim
Panelão gravão
Pão pão pão pararão pão pão
Minha filha maior
Toca o instrumento maior
Enquanto o feijão cozinha
Minha filha menor
Toca um instrumento menor
Lá no andar de cima
Pepino com caramelo
Violino com violoncelo
Pepino com caramelo
Violino com violoncelo
Uôu uôu
A panela de pressão assobiou!
Pss psss
Pss psss
Panelinha linha
Panelão nelão
Panelinha linha
Panelão
Violino lino lino
Violoncelo celo celo
Violino lino lino
Violoncelo celo celo

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Monteiro Lobato (O Físico)

Conto de Natal
 
Prólogo

No princípio era o pântano, com valas de agrião e rãs coaxantes. Hoje é o parque do Anhangabaú, todo ele relvado, com ruas de asfalto, pérgola grata a namoricos noturnos, e Eva de Brecheret, a estátua dum adolescente nu que corre – e mais coisas. Autos voam pela vida central, e cruzam-se pedestres em todas as direções. Lindo parque, civilizadíssimo.

 Atravessando-o certa tarde, vi formar-se ali um bolo de gente, rumo ao qual vinha vindo um polícia apressado.

 Fogocitose, pensei. A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado, o gatuno são os micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório. O soldado de polícia é o glóbulo branco – o fogócito de metchenikoff. Está de ordinário parado no seu posto, circunvagando olhares atentos. Mal se congestiona o tráfego pela ação anti-social de desordeiro, o fagócito move-se, caminha, corre, cai afunda sobre o mau elemento e arrasta-o para o xadrez.

 Foi assim naquele dia.

 Dia sujo, azedo. Céu dúbio, de decalcomania vista pelo avesso. Ar arrepiado.

 Alguém pertubara a paz do jardim, e em redor desse rebelde logo se juntou um grupo de glóbulos vermelhos, vulgo passantes. E lá vinha agora o fagócito fardado restabelecer a harmonia universal.

 O caso girava em torno de uma criança maltrapilha, que tinha a tiracolo uma caixa tosca de engraxate, visivelmente feita pelas suas próprias mãos. Muito sarapantado, com lágrimas a brilharem nos olhos cheios de pavor, o pequeno murmurava coisas de ninguém atendidas. Sustinha-o pela gola um fiscal da Câmara.

 – Então seu cachorrinho, sem licença, heim? – exclamava, entre colérico e vitorioso, o mastim municipal, focinho muito nosso conhecido. – É um que não é um mas sim legião, e sabe ser tigre ou cordeiro conforme o naipe do contraventor.

 A miserável criança evidentemente não entendia, não sabia que coisa era aquela de licença, tão importante, reclamada assim a empuxões brutais. Foi quando entrou em cena a polícia.

 Este glóbulo branco era preto. Tinha beiço de sobejar e nariz invasor de meia cara, aberto em duas ventas acesas, relembrativas das cavernas de Trofônio. Aproximou-se e rompeu o magote com um napoleônico – “Espalha!”.

 Humildes elas se abriram àquele Sèsamo, e a Autoridade, avançando, interpelou o fisco:

 – Que encrenca é esta, chefe?

 – Pois este cachorrinho não é que está exercendo ilegalmente a profissão de engraxate? Encontrei-o banzando por aqui com estes troços, a fisgar com os olhos os pés dos transeuntes e a dizer “engraxa, freguês”. Eu vi a coisa de longe. Vim pé ante pé, disfarçando e, de repente, nhoc! “Mostre a licença”, gritei. “que licença?”, perguntou ele, com arzinho de inocência.

 “Ah, você diz que licença, cachorro? Está me debochando, ladrão? Espera que te ensino o que é licença, trapo!” e agarrei-o. não quer pagar a multa. Vou levá-lo ao depósito, autuar a infração para proceder de acordo com as posturas – concluiu um soberbo entono o cariado canino de Maxila fiscal.

 – É isso mesmo. Casca-lhe!

 E chiando por entre os dentes uma cusparada de esguicho, deu a sua sacudidela suplementar no menino. Depois voltou-se para os basbaques de ordenou com império de soba africano:

 – Circula, paisanada! É “purivido” ajuntamentos demais de um.

Os glóbulos vermelhos dispersaram-se em silêncio. O buldogue lá seguiu com o pequeno nas unhas. E o Pau-de-fumo, em atitude de Bonaparte em face das pirâmides, ficou, de dedo no nariz e boca entreaberta, a gozar a prontidão com que, num ápice, sua energia resolvera o tumor maligno formado na artéria sob a sua fiscalização.

 O Brás

 Também lá, no princípio, era o charco – terra negra, fofa, turfa tressuante, sem outra vegetação além dessas plantinhas miseráveis que sugam o lodo como minhocas. Aquém da várzea, na terra firme e alta, são Paulo crescia. Erguiam-se casas nos cabeços, e esgueiravam-se ladeiras encostas abaixo: a boa morte, o Carmo, o piques; e ruas, imperador, direita, são bento. Poetas cantavam-lhe as graças nascentes:

 Ó Liberdade, ó Ponte Grande, ó Glória…

 Deram-lhe um dia o viaduto do chá, esse arrojo… os paulistanos pagavam sessenta réis para, ao atravessá-lo, conhecerem a vertigem dos abismos. E em casa narravam a aventura às esposas e mães, pálidas de espanto. Que arrojo de homem, o Jules Martin que construíra aquilo!

 Enquanto São Paulo crescia o Brás coaxava. Enluravam-se naquele brejal legiões de sapos e rãs. A noite, do escuro da terra um coral subia de coaxos, pan-pans de ferreiro, latidos de miumbias, glus-glus de untanhas; e, por cima, no escuro do ar, vagalumes ziguezagueantes riscavam fósforos às tontas.

 E assim foi até o dia da avalanche italiana.

 Quando lá no oeste a terra roxa se revelou mina de ouro das que pagam duzentos por um, a Itália vazou para cá a espuma da sua transbordante taça de vida. E são Paulo, não bastando ao abrigo da nova gente, assistiu, Antonio, ao surto do Brás.

 Drenos sangraram em todos os rumos o brejal turfoso; a água escorreu; os evaporidos sapos sumiram-se aos pulos para as baixadas do Tietê; rã comestível não ficou uma para memória da raça; e, breve, em substituição aos guembês, ressurtiu a cogumelagem de centenas e centenas de casinhas típicas – porta, duas janelas e platibanda.

 Numerosas ruas, alinhadas na terra cor de ardósia, que já o sol ressequira e o vento erguia em nuvens de pó negro, margearam-se com febril rapidez desses prediozinhos térreos, iguais uns aos outros, como saídos do mesmo molde, pífios, mas únicos possíveis então. Casotas porvisórias, desbravadoras da lama e vencedoras do pó, à força de preço módico.

 E o Brás cresceu, espraiou-se de todos os lados, comeu todo o barro preto da Mooca, bateu estacas no Marco da Meia Légua, lançou-se rumo á penha, pôs de pé igrejas, macadamizou ruas, inçou-se de fábricas, viu surgirem avenidas e vida própria, e cinemas, e o Colombo, e o namoro, e o corso pelo carnaval. E lá está hoje enorme, feito a cidade do Brás, separado de São Paulo pelo faixão vermelho da várzea aterrada – Pest da Buda à beira do Tamanduateí plantada.

 São duas cidades vizinhas, distintas de costumes e de almas já bem diversas. Ir ao Brás é uma viagem. O Brás não é ali, como o Ipiranga; é lá do outro lado, embora mais perto que o Ipiranga. Diz-se – vou ao Brás, como quem diz – vou à Itália. Uma agregada como um bom bócio recente e autônomo a uma urbs antiga, filha do país; uma Itália função da terra negra, italiana por sete décimos e algo nuevo pelos restantes.

 O Brás trabalha de dia e à noite gesta. Aos domingos fandanga ao som do bandolim. Nos dias de festa nacional (destes tem predileção pelo 21 de Abril : vagamente o Brás desconfia que o barbeiro da inconfidência, porque barbeiro, havia de ser um patrício), nos dias feriados o Brás vem a São Paulo.

 Entope os bondes no travessio da várzea e cá ensardinha-se nos autos: o pai, a mãe, a sogra, o genro e a filha casada no banco de trás; o tio, a cunhada, o sobrinho e o pepino escoteiro no da frente; filhos miúdos por entremeio; filhos mais taludos ao lado do motorista; filhos engatinhantes debaixo dos bancos; filhos em estado fatal no ventre bojudo das matronas. Vergado de molas, o carro geme sob a carga e arrasta-se a meia velocidade, exibindo a Paulicéia aos olhos arregalados daquele exuberante cacho humano.

 Finda a corrida, o auto debulha-se do enxame no triângulo e o bando toma de assalto as confeitarias para um regabofe de spumones, gasosas, croquetes. E tão a sério toma a tarefa, que ali pelas nove horas não restam iscas de empada nos armários térmicos, nem vestígios de sorvete no fundo das galadeiras.

O Brás devora tudo, ruidosa, alegremente e, com massagens ajeitadoras do abdome, sai impando bem-aventurança estomacal. Caroços de azeitonas, palitos de camarões, guardanapos de papel, pratos de papelão seguem nas munhecas da petizada como lembrança da festa e consolo ao bersalherzinho que lá ficou de castigo em casa, berrando com goela de Caruso.

 Em seguida, toca para o cinema! O Brás abarrota os desessão corrida. O Brás chora nos lances lacrimogêneos da Bertini, e ri nas comédias a gás hilariante da L-Ko mais do que autorizam os mil e cem de entrada. E repete a sessão, piscando o olho: é o jeito de dobrar a festa em extensão e obtê-la a meio preço – 550 réis, uma pechincha.

 As mulheres do Brás, ricas de ovário, são vigorosíssimas de útero. Desovam quase filho e meio por ano, sem interrupções, até que se acabe a corda ou rebente alguma peça essencial da gestatória.

 É de vê-las na rua. Bojudas de seis meses, trazem um pepininho à mão e um choramingas à mama. À tarde o Brás inteiro chia de criançalha a chutar bolas de pano, a jogar pião, ou a piorra, ou o tento de telha, ou o tabefe, com palavreados mistos de português e dialetos de Itália . mulheres escarrancadas às portas, com as mãos ocupadas em manobras de agulha de osso, espigaitam para os maridos os sucessos do dia, que eles ouvem filosoficamente, cachimbando calados ou confiando a bigodeira à Humberto primo.

 De manhã esfervilha o Brás de gente estremunhada a caminho das fábricas. A mesma gente reflui à tarde aos magotes – homens e mulheres, de cesta no braço, ou garrafs de café vazias penduradas no dedo; meninas, rapazes, raparigotas de pouco seio, galantes, tagarelas, com o namorente.

 Desce a noite, e nos desvão de rua, nos becos, nas sombras, o amor lateja. Ciciam vozes cautelosas das janelas para os passeios; pares em conversa disfarçada nos portões emudecem quando passa alguém ou tosse lá dentro o pai.

 Durante o escuro das fitas, nos cinemas, há contatos longos, febricilantes; e quando nos intervalos irrompe a luz, não sabem os namorados o que se passou na tela – mas estão de olhos langues, em quebreira de amor.

 É o latejar da messe futura. Todo aquele eretismo por música, com cicios de pensamentos de cartão postal, estará morto no ano seguinte – legalizado pela igreja e pelo juiz, transfeita a sua poesia em choro de crianças e nas trabalhadeiras sem fim da casa humilde.

 Tal menina rosada, leve de andar, toda requebros e dengues, que passa na rua vestida com graça e atrai os olhares gulosos dos homens, não a reconhecereis dois anos depois na lambona filhenta que deblantera com verdureiro a propósito do feixe de cenouras em que há uma menor que as outras.

 Filho da lama negra, o Brás é como ela um sedimento de aluvião. É são Paulo, mas não é a Paulicéia. Ligados pela expansão urbana, separa-os uma barreira. O velho caso do fidalgo e do peão enriquecido.

 Pedrinho, sem ser consultado, nasce

 Viram-se ele e ela. Namoraram-se. Casaram.

 Casados, proliferaram.

 Eram dois. O amor transformou-se em três. Depois em quatro, em cinco, em seis…

Chamava-se Pedrinho o filho mais velho.

A vida

 De pé, na porta, a mãe espera o menino que foi à padaria. Entra o pequeno com as mãos abandonado.

 – Diz que subiu; custa agora oitocentos.

 A mulher, com uma criança ao peito, franze a testa, desconsolada.

 – Meus Deus! Onde iremos parar? Ontem era a lenha: hoje é o pão… tudo sobe. Roupa, pela hora da morte. José ganhando sempre a mesma coisa. Que será de nós, Deus do céu!

 E voltando-se para o filho:

 – Vá a outra padaria, quem sabe lá… se for a mesma coisa, traga só um pedaço.

 Pedrinho sai. Nove anos. Franzino, doentio, sempre mal alimentado e vestido com os restos das roupas do pai.

 Trabalha este no moinho de trigo, ganhando jornal insuficiente para manutenção da família. Se não fosse a bravura da mulher, que lavava para fora, não se sabe como poderiam substituir. Todas as tentativas feitas com intuito de melhorarem de vida com indústrias caseiras esbarram no óbice tremendo do fisco. A fera condenava-os à fome. Assim escravizados, José perdeu aos poucos a coragem, o gosto de viver, a alegria. Vegetava, recorrendo ao álcool para alívio de uma situação sem remédio.

 Bendito sejas, amável veneno, refúgio derradeiro do miserável, gole inebriante de morte que faz esquecer a vida e lhe resume o curso! Bendito sejas!

 Apesar da moça, 27 anos apenas, mariana aparentava o dobro. A labuta permanente, os partos sucessivos, a chiadeira da filharada, a canseira sem fim, o serviço emendado com o serviço, sem folga outra além da que o sono força, fizeram da bonita moça que fora a escanzelada besta de carga que era.

 Seus dez anos de casada… Que eternidade de canseiras!…

 Rumor à porta. Entra o marido. A mulher, ninando a pequena de peito, recebe-o com a má nova.

 – O pão subiu, sabe?

 Sem murmurar palavra o homem senta-se apoiando nas mãos a cabeça. Está cansado.

A mulher prossegue:

 – Oitocentos réis o quilo agora. Ontem foi a lenha; hoje é o pão… e lá? Sempre aumentaram o jornal?

 O marido esboçou um gesto de desalento e permaneceu mudo, com o olhar vago. A vida era um jogo de engrenagens de aço entre cujos dentes se sentia esmagar. Inútil. Destino, sorte.

 Na cama, à noite, confabulavam. A mesma conversa de sempre. José acabava gruninho rugidos surdos de revolta. Falava em revolução, saque. A esposa consolava-o, de esperança posta nos filhos.

 – Pedrinho tem nove anos. Logo estará em ponto de ajudar-nos. Um pouco mais de paciência e a vida melhora.

 Aconteceu que nessa noite Pedrinho ouviu a conversa e a referência à sua futura ação. Entrou a sonhar. Que fariam dele? Na fábrica, como o pai? Se lhe dessem a escolher, iria a engraxador. Tinha um tio no ofício, e em casa do tio era menor a miséria. Pingavam níqueis.

 Sonho vai, sonho vem, brota na cabeça do menino uma idéia, que cresceu, tomou vulto extraordinário e fê-lo perder o sono.. começar já, amanhã, por que não? Faria mesmo a caixa; escovas e graxa, com o tio arranjaria. Tudo às ocultas, para surpresa dos pais! Iria postar-se num ponto por onde passasse muita gente.

Diria como os outros “engraxa, freguês!” e níqueis haviam de juntar-se no seu bolso. Voltaria para casa recheado, bem tarde, com ar de quem as fez… E mal mãe começasse a ralhar, ele taparia a boca despejando na mesa um monte de dinheiro.

O espanto dela, a cara admirada do pai, o regalo da criançada com a perspectiva da ração em dobro! E a mãe a apontá-lo aos vizinhos: “Estão vendo que coisa? Ganhou, só ontem, primeiro dia, dois mil réis!” e a notícia a correr… e murmúrios na rua quando o vissem passar: “É aquele!”

 Pedrinho não dormiu essa noite. De manhãzinha já estava a dispor a madeira dum caixote velho sob forma da caixa de engraxate ao molde clássico. Lá a fez. Os preços, bateu com o salto de uma velha botina. As tábuas serrou pacientemente com um facão dentado. Saiu coisa tosca e mal-ajambrada, de fazer rir a qualquer carapina, e pequena demais – sobre ela só caberia um pé de criança igual ao seu. Mas Pedrinho não notou nada disso, e nunca trabalho nenhum de carpintaria lhe pareceu mais perfeito.

 Conclusa a caixa, pô-la a tiracolo e esgueirou-se para a rua, às escondidas. Foi à casa do tio e lá obteve duas velhas escovas fora de uso, já sem pêlos, mas que à sua exaltada imaginação se afiguraram ótimas. Graxa, conseguiu alguma raspando o fundo de quanta lata velha encontrou no quintal.

 Aquele momento marcou em sua vida um apogeu de felicidade vitoriosa. Era como um sonho – e sonhando saiu para a rua. Em caminho viu o dinheiro crescer-lhe nas mãos, aos montes. Dava à família parte e o resto encafuava.

Quando enchesse o canto da arca onde tinha suas roupas, montaria um “corredor”, pondo a jornal outros colegas. Aumentaria as rendas! Enriqueceria! Compraria bicicletas, automóvel, doces todas as tardes na confeitaria, livros de figuras, uma casa, um palácio, outro palácio para os pais. Depois…

 Chegou ao parque. Tão bonito aquilo – a relva tão verde, tosadinha… havia de ser bom o ponto. Parou perto de um banco de pedra e. sempre as futuras grandezas, pôs-se a murmurar para cada passante, fisgando-lhe os pés: “Engraxa, freguês!”

 Os fregueses passavam sem lhe dar atenção. “É assim mesmo”, refletia consigo o menino, “no começo custa. Depois se afreguesam.”

 Súbito, viu um homem de boné caminhando para seu lado. Olhou-lhe para as botinas. Sujas. Viria engraxar, com certeza – e o coração bateu-lhe apressado, no tumulto delicioso da estréia. Encarou o homem já a cinco passos e sorriu com infinita ternura nos olhos, num agradecimento antecipado em que havia tesouros de gratidão.

 Mas em vez de lhe espichar o pá, o homem rosnou aquela terrível interpelação inicial:

 – Então, cachorrinho, que é da licença?

 Epílogo? Não! Primeiro Ato…

 Horas depois o fiscal aparecia em casa de Pedrinho com o pequeno pelo braço. Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a mãe. O homem nesses momentos não aparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir do quarto o bate-boca.

 O fiscal exigia o pagamento da multa. A mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim, rompeu em choro.

 – Não venha com lamúrias – rosnou o buldogue. – conheço o truque dessa agüinha nos olhos, não me embaça, não. Ou bate aqui os vinte mil réis, ou penhoro toda essa cacaria.

Exercer ilegalmente a profissão! Ora, dá-se! E olha cá madama, considere-se feliz de serem só vinte. Eu é de dó de vocês, uns miseráveis; se não aplicava o máximo. Mas se resiste dobro a dose!

 A mulher limpou as lágrimas. Seus olhos endureceram, com uma chispa má de ódio represado a faiscar. O fisco, percebendo-o, mojetou:

 – Isso. É assim que as quero – tesinhas, ah, ah.

Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro existente – dezoito mil réis ratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso dalguma doença, e entregou-os ao fisco.

 – É o que há – murmurou com tremura voz.

 O homem pegou o dinheiro e gostosamente o afundou no bolso, dizendo:

 – Sou generoso, perdôo o resto. Adeuzinho, amor!

E foi à venda próxima beber dezoito mil réis de cerveja!

 Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia furiosamente no menino.

Fonte:
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/monteiro-lobato/monteiro-lobato-o-fisico.php

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Silvinha Meirelles (Se Assim É, Assim Será?)

Tudo era bem normal lá em Santantônio da Lamparina.

As crianças iam para a escola enquanto os pais trabalhavam. Todos riam, se divertiam e às vezes ficavam bem tristes também. Tomavam banho, soltavam pum e tinham coceira no pé; como toda gente em qualquer parte.

Só tinha um detalhe, mínimo, insignificante, que deixava tudo com cara de esquisito e diferente: lá, o dia era escuro como a noite, e quando era noite era noite também.

Os moradores estavam acostumados. Viviam à sombra da Lua, estudavam à luz de abajur, sabiam brincadeiras de escuro: gato-mia; cabra-cega, detetive…

Os mais velhos diziam que lá sempre foi assim e que, se é assim, assim será até o fim; sentiam-se cansados de imaginar como seria viver num lugar claro e diferente. Os mais jovens sonhavam e diziam que conhecer o Sol era o maior desejo que tinham no mundo, no universo.

Um desejo infinito.

Por que ninguém pensava em se mudar dali? Porque lá havia o mais lindo luar e o mais delicioso banho de mar e um povo com um sonho em comum. Às vezes, coisas assim são suficientes para nos fazer ficar.

Num dia noite, chegou um, chegaram dois e mais três ou cinco equilibristas. Era uma família de artistas! Enquanto uns tocavam, os outros faziam lances incríveis, coisa de especialista!

Há muito tempo o vilarejo não recebia visita tão animada. Os equilibristas estavam acostumados a se apresentar até o Sol raiar e estranharam: já se sentiam cansados e nada de o dia clarear.

– O Sol não vai aparecer?

E foi assim que souberam que em Santantônio da Lamparina o dia era tão escuro como a noite e que já estavam acordados fazia dois dias e meio.

– Daí o nome da cidade?

– Daí o nome.

– Mas por que é assim?

– Diz meu avô que o avô dele dizia que o seu tataravô ensinou que é assim porque sempre foi assim e assim será até o fim!

Os artistas acharam aquela explicação meio fraquinha, de quem já cansou de procurar solução. Avisaram que por cinco dias escuros e quatro noites noites treinariam um novo número exclusivo e então voltariam para o espetáculo de despedida!

Voltaram.

Voltaram com o número mais arriscado e sensacional de equilíbrio, coragem e precisão já visto em toda a história da humanidade!

Precisaram de muita concentração. Foram subindo, um sobre o outro e sobre o outro e sobre o outro e o outro sobre ainda… Até que o menino equilibrista mais levinho e muito craque, com o braço bem esticado, atingiu o céu.

Com a ponta do dedo fez um picote. Um pequeno rasgo no céu, por onde passou um facho de luz.

Era mínimo, mas suficiente para iluminar de alegria e expectativa cada santantonio-lamparinense. Podiam saber como era o Sol, a luz e o calor que vinham do céu.

Devagar o rasgo foi aumentando, sozinho; como furo de meia velha, que vai crescendo até virar um rombo…

E um dia, Santantônio da Lamparina amanheceu toda e completamente iluminada! Os moradores, que nem tinham venezianas e cortinas, acordaram sobressaltados com tanta luz.

Festejaram até o Sol raiar outra vez.

Até hoje, não se cansam de ver o Sol nascer e depois o Sol se pôr e de novo o Sol nascer e mais uma vez o Sol se pôr. Acham graça, agradecidos.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Lima Barreto (O Filho de Gabriela)

A Antônio Noronha Santos

“Chaque progrès, au fond, est un avortement
Mais l’échec même sert”.
Guyau

Absolutamente não pode continuar assim… Já passa… É todo o dia! Arre! — Mas é meu filho, minh’ama.

E que tem isso? Os filhos de vocês agora têm tanto luxo. Antigamente,
criavam-se à toa; hoje, é um deus-nos-acuda; exigem cuidados, têm moléstias… Fique sabendo: não pode ir amanhã!

— Ele vai melhorando, Dona Laura; e o doutor disse que não deixasse de
levá-lo lá, amanhã…

— Não pode, não pode, já lhe disse! O conselheiro precisa chegar cedo à
escola; há exames e tem que almoçar cedo… Não vai, não senhora! A gente tem criados pra que? Não vai, não!

— Vou, e vou sim!… Que bobagem!… Quer matar o pequeno, não é? Pois
sim… Está-se “ninando”…

— O que é que você disse, heim

— É isso mesmo: vou e vou!

— Atrevida.

— Atrevida é você, sua… Pensa que não sei…

Em seguida as duas mulheres se puseram caladas durante um instante: a
patroa — uma alta senhora, ainda moça, de uma beleza suave e marmórea — com os lábios finos muito descorados e entreabertos, deixando ver os dentes aperolados, muito iguais, cerrados de cólera; a criada agitada, transformada, com faiscações desusadas nos olhos pardos e tristes. A patroa não se demorou assim muito tempo. Violentamente contraída naquele segundo a sua fisionomia repentinamente se abriu num choro convulsivo.

A injúria da criada, decepções matrimoniais, amarguras do seu ideal amoroso, fatalidades de temperamento, todo aquele obscuro drama de sua alma, feito de uma porção de coisas que não chegava bem a colher, mas nas malhas das quais se sentia presa e sacudida, subiu-lhe de repente à consciência, e ela chorou.

Na sua simplicidade popular, a criada também se pôs a chorar, enternecida pelo sofrimento que ela mesma provocara na ama.

E ambas, pelo fim dessa transfiguração inopinada, entreolharam-se surpreendidas, pensando que se acabavam de conhecer naquele instante, tendo até ali vagas notícias uma da outra, como se vivessem longe, tão longe, que só agora haviam distinguido bem nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas.

No entendimento peculiar de uma e de outra, sentiram-se irmãs na desoladora mesquinhez da nossa natureza e iguais, como frágeis conseqüências de um misterioso encadear de acontecimentos, cuja ligação e fim lhes escapavam completamente, inteiramente…

A dona da casa, à cabeceira da mesa de jantar, manteve-se silenciosa, correndo, de quando em quando, o olhar ainda úmido pelas ramagens do atoalhado, indo, às vezes, com ele até à bandeira da porta defronte, donde pendia a gaiola do canário, que se sacudia na prisão niquelada.

De pé, a criada avançou algumas palavras. Desculpou-se inábil e despediu-se humilde.

— Deixe-se disso, Gabriela, disse Dona Laura. Já passou tudo; eu não guardo rancor; fique! Leve o pequeno amanhã… Que vai você fazer por esse mundo afora?

— Não senhora… Não posso… É que…

E de um hausto falou com tremuras na voz:

— Não posso, não minh’ama; vou-me embora!

Durante um mês, Gabriela andou de bairro em bairro, à procura de aluguel.

Pedia lessem-lhe anúncios, corria, seguindo as indicações, a casas de gente de toda a espécie. Sabe cozinhar? Perguntavam. — Sim, senhora, o trivial. — Bem e lavar? Serve de ama? — Sim, senhora; mas se fizer uma coisa, não quero fazer outra. — Então, não me serve, concluía a dona da casa. É um luxo… Depois queixam-se que não têm aonde se empreguem…

Procurava outras casas; mas nesta já estavam servidas, naquela o salário era pequeno e naquela outra queriam que dormisse em casa e não trouxesse o filho.

A criança, durante esse mês, viveu relegada a um canto da casa de uma conhecida da mãe. Um pobre quarto de estalagem, úmido que nem uma masmorra.

De manhã, via a mãe sair; à tarde, quase à boca da noite, via-a entrar desconfortada. Pelo dia em fora, ficava num abandono de enternecer. A hóspede, de longe em longe, olhava-o cheia de raiva. Se chorava aplicava-lhe palmadas e gritava colérica: ” Arre diabo! A vagabunda de tua mãe anda saracoteando… Cala a boca, demônio! Quem te fez, que te ature…”

Aos poucos, a criança torrou-se de medo; nada pedia, sofria fome, sede,
calado. Enlanguescia a olhos vistos e sua mãe, na caça de aluguel, não tinha tempo para levá-lo ao doutor do posto médico. Baço, amarelado, tinha as pernas que nem palitos e o ventre como o de um batráquio. A mãe notava-lhe o enfraquecimento, os progressos da moléstia e desesperava, não sabendo que alvitre tomar. Um dia pelos outros, chegava em casa semi — embriagada, escorraçando o filho e trazendo algum dinheiro. Não confessava a ninguém a origem dele; em outros mal entrava, beijava muito o pequeno, abraçava-o. E assim corria a cidade. Numa destas correrias passou pela porta do conselheiro, que era o marido de Dona Laura. Estava no portão, a lavadeira, parou e falou-lhe; nisto, viu aparecer a sua antiga patroa numa janela lateral. ” — Bom dia minh’ama,” — “Bom dia, Gabriela. Entre.” Entrou.

A esposa do conselheiro perguntou-lhe se já tinha emprego; respondeu-lhe que não.

“Pois olha, disse-lhe a senhora, eu ainda não arranjei cozinheira, se tu queres…”

Gabriela quis recusar, mas Dona Laura insistiu.

Entre elas, parecia que havia agora certo acordo íntimo, um quê de mútua proteção e simpatia. Uma tarde em que Dona Laura voltava da cidade, o filho da Gabriela, que estava no portão, correu imediatamente para a moça e disse-lhe, estendendo a mão: “a bênção” Havia tanta tristeza no seu gesto, tanta simpatia e sofrimento, que aquela alta senhora não lhe pôde negar a esmola de um afago, de uma carícia sincera. Nesse dia, a cozinheira notou que ela estava triste e, no dia
seguinte, não foi sem surpresa que Gabriela se ouviu chamar.

— O Gabriela!

— Minh’ama.

— Vem cá.

Gabriela concertou-se um pouco e correu à sala de jantar, onde estava a
ama.

— Já batizaste o teu pequeno? Perguntou-lhe ela ao entrar.

— Ainda não.

— Porque? Com quatro anos!

— Porque? Porque ainda não houve ocasião…

— Já tens padrinhos?

— Não, senhora.

— Bem; eu e o conselheiro vamos batizá-lo. Aceitas?

Gabriela não sabia como responder, balbuciou alguns agradecimentos e voltou ao fogão com lágrimas nos olhos.

O conselheiro condescendeu e cuidadosamente começou a procurar um nome adequado. Pensou em Huáscar, Ataliba, Guatemozim; consultou dicionários, procurou nomes históricos, afinal resolveu-se por “Horácio”, sem saber por quê.

Assim se chamou e cresceu. Conquanto tivesse recebido um tratamento médico regular e a sua vida na casa do conselheiro fosse relativamente confortável, o pequeno Horácio não perdeu nem a reserva nem o enfezado dos seus primeiros anos de vida. A proporção que crescia, os traços se desenhavam, alguns finos: o corte da testa, límpida e reta; o olhar doce e triste, como o da mãe, onde havia, porém, alguma coisa a mais — um fulgor, certas expressões particulares, principalmente quando calado e concentrado. Não obstante, era feio, embora simpático e bom de ver.

Pelos seis anos, mostrava-se taciturno, reservado e tímido, olhando interrogativamente as pessoas e coisas, sem articular uma pergunta. Lá vinha um dia, porém, que o Horácio rompia numa alegria ruidosa; punha-se a correr, a brincar, a cantarolar, pela casa toda, indo do quintal para as salas, satisfeito, contente, sem motivo e sem causa.

A madrinha espantava-se com esses bruscos saltos de humor, queria entendê-los, explicá-los e começou por se interessar pelos seus trejeitos. Um dia, vendo o afilhado a cantar, a brincar, muito contente, depois de uma porção de horas de silêncio e calma, correu ao piano e acompanhou-lhe a cantiga, depois, emendou com uma ária qualquer. O menino calou-se, sentou-se no chão e pôs-se a olhar, com olhos tranqüilos e calmos, a madrinha, inteiramente delido nos sons que saíam dos seus dedos. E quando o piano parou, ele ainda ficou algum tempo esquecido naquela postura, com o olhar perdido numa cisma sem fim. A atitude imaterial do menino tocou a madrinha, que o tomou ao colo, abraçando-o e beijando-o, num afluxo de ternura, a que não eram estranhos os desastres de sua vida sentimental.

Pouco depois a mãe lhe morria. Até então vivia numa semidomesticidade. Daí em diante, porém, entrou completamente na família do Conselheiro Calaça. Isso, entretanto, não lhe retirou a taciturnidade e a reserva; ao contrário, fechou — se em si e nunca mais teve crises de alegria.

Com sua mãe ainda tinha abandonos de amizade, efusões de carícias e abraços. Morta que ela foi, não encontrou naquele mundo tão diferente, pessoa a quem se pudesse abandonar completamente, embora pela madrinha continuasse a manter uma respeitosa e distante amizade, raramente aproximada por uma carícia, por um afago. Ia para o colégio calado, taciturno, quase carrancudo, e, se, pelo recreio, o contágio obrigava-o a entregar-se à alegria e aos folguedos, bem cedo se arrependia, encolhia-se e sentava-se, vexado, a um canto. Voltava do colégio como fora, sem brincar pelas ruas, sem traquinadas, severo e insensível. Tendo uma vez brigado com um colega, a professora o repreendeu severamente, mas o conselheiro, seu padrinho, ao saber do caso, disse com rispidez: “Não continue, heim? O senhor não pode brigar — está ouvindo?”

E era assim sempre o seu padrinho, duro, desdenhoso, severo em demasia com o pequeno, de quem não gostava, suportando-o unicamente em atenção à mulher — maluquices da Laura, dizia ele. Por vontade dele, tinha-o posto logo num asilo de menores, ao morrer-lhe a mãe; mas a madrinha não quis e chegou até a conseguir que o marido o colocasse num estabelecimento oficial de instrução secundária, quando acabou com brilho o curso primário.

Não foi sem resistência que ele acedeu, mas os rogos da mulher, que agora juntava à afeição pelo pequeno uma secreta esperança no seu talento, tanto fizeram que o conselheiro se empenhou e obteve.

Em começo, aquela adoção fora um simples capricho de Dona Laura; mas, com o tempo, os seus sentimentos pelo menino foram ganhando importância e ficando profundos, embora exteriormente o tratasse com um pouco de cerimônia.

Havia nela mais medo da opinião, das sentenças do conselheiro, do que mesmo necessidade de disfarçar o que realmente sentia, e pensava.

Quem a conheceu solteira, muito bonita, não a julgaria capaz de tal afeição; mas, casada, sem filhos, não encontrando no casamento nada que sonhara, nem mesmo o marido, sentiu o vazio da existência, a insanidade dos seus sonhos, o pouco alcance da nossa vontade; e, por uma reviravolta muito comum, começou a compreender confusamente todas as vidas e almas, a compadecer-se e a amar tudo, sem amar bem coisa alguma. Era uma parada de sentimento e a corrente que se acumulara nela, perdendo-se do seu leito natural, extravasara e inundara tudo.

Tinha um amante e já tivera outros, mas não era bem a parte mística do amor que procurara neles. Essa, ela tinha certeza que jamais podia encontrar; era a parte dos sentidos tão exuberantes e exaltados depois das suas contrariedades morais.

Pelo tempo em que o seu afilhado entrara para o colégio secundário, o amante rompera com ela; e isto a fazia sofrer, tinha medo de não possuir mais beleza suficiente para arranjar um outro como “aquele”. e a esse desastre sentimental não foi estranha a energia dos seus rogos junto ao marido para admissão do Horácio no estabelecimento oficial.

O conselheiro, homem de mais de sessenta anos, continuava superiormente
frio, egoísta e fechado, sonhando sempre uma posição mais alta ou que julgava mais alta. Casara-se por necessidade decorativa. Um homem de sua posição não podia continuar viúvo; atiraram-lhe aquela menina pelos olhos, ela o aceitou por ambição e ele por conveniência. No mais, lia os jornais, o câmbio especialmente, e, de manhã passava os olhos nas apostilas de sua cadeira — apostilas por ele organizadas, há quase trinta anos, quando dera as suas primeiras lições, moço, de vinte e cinco anos, genial nas aprovações e nos prêmios.

Horácio, toda a manhã, ao sair para o colégio, lá avistava o padrinho atarraxado na cadeira de balanço a ler atentamente o jornal: ” A bênção, meu padrinho! ” — “Deus te abençoe”, dizia ele, sem menear a cabeça do espaldar e no mesmo tom de voz com que pediria os chinelos à criada.

Em geral, a madrinha estava deitada ainda e o menino saía para o ambiente ingrato da escola, sem um adeus, sem dar um beijo, sem ter quem lhe reparasse familiarmente o paletó. Lá ia. A viagem de bonde, ele a fazia humilde, espremido a um canto do veículo, medroso que seu paletó roçasse as sedas de uma rechonchuda senhora ou que seus livros tocassem nas calças de um esquelético capitão de uma milícia qualquer. Pelo caminho, arquitetava fantasias; seu espírito divagava sem nexo. À passagem de um oficial a cavalo, imaginava-se na guerra, feito general, voltando vencedor, vitorioso de ingleses, de alemães, de americanos e entrando pela Rua do Ouvidor aclamado como nunca se fora aqui. Na sua cabeça ainda infantil, em que a fraqueza de afetos próximos concentrava o pensamento, a imaginação palpitava, tinha uma grande atividade, criando toda a espécie de fantasmagorias que lhe apareciam como fatos possíveis, virtuais.

Eram-lhe as horas de aula um bem triste momento. Não que fosse vadio, estudava o seu bocado, mas o espetáculo do saber, por um lado grandioso e apoteótico, pela boca dos professores, chegava-lhe tisnado e um quê desarticulado. Não conseguia ligar bem umas coisas às outras, além do que tudo aquilo lhe aparecia solene, carrancudo e feroz. Um teorema tinha o ar autoritário de um régulo selvagem; e aquela gramática cheia de regrinhas, de exceções, uma coisa cabalística, caprichosa e sem aplicação útil.

O mundo parecia-lhe uma coisa dura, cheia de arestas cortantes, governado por uma porção de regrinhas de três linhas, cujo segredo e aplicação estavam entregues a uma casta de senhores, tratáveis uns, secos outros, mas todos velhos e indiferentes.

Aos seus exames ninguém assistia, nem por eles alguém se interessava; contudo. foi sempre regularmente aprovado.

Quando voltava do colégio, procurava a madrinha e contava-lhe o que se dera nas aulas. Narrava-lhe pequenas particularidades do dia, as notas que obtivera e as travessuras dos colegas.

Uma tarde, quando isso ia fazer, encontrou Dona Laura atendendo a uma visita. Vendo-o entrar e falar à dona da casa, tomando-lhe a bênção a senhora estranha perguntou: “Quem é este pequeno?” — “E meu afilhado”, disse-lhe DonaLaura. “Teu afilhado? Ah! sim! É o filho da Gabriela…”

Horácio ainda esteve um instante calado, estatelado e depois chorou nervosamente.

Quando se retirou observou a visita à madrinha:

— Você está criando mal esta criança. Faz-lhe muitos mimos, está lhe dando nervos…

— Não faz mal. Podem levá-lo longe.

E assim corria a vida do menino em casa do conselheiro.

Um domingo ou outro, só ou com um companheiro, vagava pelas praias, pelos bondes ou pelos jardins. O Jardim Botânico era-lhe preferido. Ele e o seu constante amigo Salvador sentavam-se a um banco, conversavam sobre os estudos comuns, maldiziam este ou aquele professor. Por fim, a conversa vinha a enfraquecer; os dois se calavam instantes. Horácio deixava-se penetrar pela flutuante poesia das coisas, das árvores, dos céus, das nuvens; acariciava com o olhar as angustiadas colunas das montanhas, simpatizava com o arremesso dos píncaros, depois deixava-se ficar, ao chilreio do passaredo, cismando vazio, sem que a cisma lhe fizesse ver coisa definida, palpável pela inteligência. Ao fim, sentia-
se como que liqüefeito, vaporizado nas coisas era como se perdesse o feitio humano e se integrasse naquele verde escuro da mata ou naquela mancha faiscante de prata que a água a correr deixava na encosta da montanha. Com que volúpia, em tais momentos, ele se via dissolvido na natureza, em estado de fragmentos, em átomos, sem sofrimento, sem pensamento, sem dor! Depois de ter ido ao indefinido, apavorava-se com o aniquilamento e voltava a si, aos seus desejos, às suas preocupações com pressa e medo. — Salvador, de que gostas mais, do inglês ou francês? — Eu do francês; e tu? — Do inglês. — Por que? Porque pouca gente o sabe.

A confidência saía-lhe a contragosto, era dita sem querer. Temeu que o amigo o supusesse vaidoso. Não era bem esse sentimento que o animava; era uma vontade de distinção, de reforçar a sua individualidade, que ele sentia muito diminuída pelas circunstâncias ambientes. O amigo não entrava na natureza do seu sentimento e despreocupadamente perguntou: — Horácio, já assististe uma festa de São João? — Nunca. — Queres assistir uma? Quero, onde ? — Na ilha, em casa de meu tio.

Pela época, a madrinha consentiu. Era um espetáculo novo; era um outro mundo que se abria aos seus olhos. Aquelas longas curvas das praias, que perspectivas novas não abriam em seu espírito! Ele se ia todo nas cristas brancas das ondas e nos largos horizontes que descortinava.

Em chegando a noite, afastou-se da sala. Não entendia aqueles folguedos, aquele dançar sôfrego, sem pausa, sem alegria, como se fosse um castigo. Sentado a um banco do lado de fora, pôs-se a apreciar a noite, isolado, oculto, fugido, solitário, que se sentia ser no ruído da vida. Do seu canto escuro, via tudo mergulhado numa vaga semi luz. No céu negro, a luz pálida das estrelas; na cidade defronte, o revérbero da iluminação; luz, na fogueira votiva, nos balões ao alto, nos foguetes que espoucavam, nos fogaréus das proximidades e das distâncias — luzes contínuas, instantâneas, pálidas, fortes; e todas no conjunto pareciam representar um esforço enorme para espancar as trevas daquela noite de mistérios.

No seio daquela bruma iluminada, as formas das árvores boiavam como espectros; o murmúrio do mar tinha alguma coisa de penalizado diante do esforço dos homens e dos astros para clarear as trevas. Havia naquele instante, em todas as almas, um louco desejo de decifrar o mistério que nos cerca; e as fantasias trabalhavam para idear meios que nos fizessem comunicar com o Ignorado, com o Invisível. Pelos cantos sombrios da chácara pessoas deslizavam. Iam ao poço ver a sombra — sinal de que viveriam o ano; iam disputar galhos de arruda ao diabo; pelas janelas, deixavam copos com ovos partidos para que o sereno, no dia seguinte, trouxesse as mensagens do Futuro.

O menino, sentindo-se arrastado por aquele frêmito de augúrio e feitiçaria, percebeu bem como vivia envolvido, mergulhado, no indistinto, no indecifrável; e uma onda de pavor, imensa e aterradora, cobriu-lhe o sentimento.

Dolorosos foram os dias que se seguiram. O espírito sacolejou-lhe o corpo violentamente. Com afinco estudava, lia os compêndios; mas não compreendia, nada retinha. O seu entendimento como que vazava. Voltava, lia, lia e lia e, em seguida, virava as folhas sofregamente, nervosamente, como se quisesse descobrir debaixo delas um outro mundo cheio de bondade e satisfação. Horas havia que ele desejava abandonar aqueles livros, aquela lenta aquisição de noções e idéias, reduzir-se e anular-se; horas havia, porém, que um desejo ardente lhe vinha de saturar-se de saber, de absorver todo o conjunto das ciências e das artes. Ia de um sentimento para outro; e foi vã a agitação. Não encontrava solução, saída; a desordem das idéias e a incoerência das sensações não lhe podiam dar uma e cavavam-lhe a saúde. Tornou-se mais flébil, fatigava-se facilmente. Amanhecia cansado de dormir e dormia cansado de estar em vigília. Vivia irritado, raivoso, não sabia contra quem.

Certa manhã, ao entrar na sala de jantar, deu com o padrinho a ler os jornais, segundo o seu hábito querido.

— Horácio, você passe na casa do Guedes e traga-me a roupa que mandei consertar.

— Mande outra pessoa buscar.

— O que?

— Não trago.

— Ingrato! Era de esperar…

E o menino ficou admirado diante de si mesmo, daquela saída de sua habitual timidez.

Não sabia onde tinha ido buscar aquele desaforo imerecido, aquela tola má-criação; saiu-lhe como uma coisa soprada por outro e que ele unicamente pronunciasse.

A madrinha interveio, aplainou as dificuldades; e, com a agilidade de espírito peculiar ao sexo, compreendeu o estado d’alma do rapaz. Reconstituiu-o com os gestos, com os olhares, com as meias palavras, que percebera em tempos diversos e cuja significação lhe escapara no momento, mas que aquele ato, desusadamente brusco e violento, aclarava por completo. Viu-lhe o sofrimento de viver à parte, a transplantação violenta, a falta de simpatia, o princípio de ruptura que existia em sua alma, e que o fazia passar aos extremos das sensações e dos atos.

Disse-lhe coisas doces, ralhou-o, aconselhou-o, acenou-lhe com a fortuna, a glória e o nome.

Foi Horácio para o colégio abatido, preso de um estranho sentimento de
repulsa, de nojo por si mesmo. Fora ingrato, de fato; era um monstro. Os padrinhos lhe tinham dado tudo, educado, instruído. Fora sem querer, fora sem pensar; e sentia bem que a sua reflexão não entrara em nada naquela resposta que dera ao padrinho. Em todo o caso, as palavras foram suas, foram ditas com sua voz e a sua boca, e se lhe nasceram do íntimo sem a colaboração da inteligência, devia acusar-se de ser fundamentalmente mau…

Pela segunda aula, pediu licença. Sentia-se doente, doía-lhe a cabeça e
parecia que lhe passavam um archote fumegante pelo rosto.

— Já, Horácio? Perguntou-lhe a madrinha, vendo-o entrar.

— Estou doente.

E dirigiu-se para o quarto. A madrinha seguiu-o. Chegado que foi, atirou-se à cama, ainda meio-vestido.

— Que é que você tem, meu filho?

— Dores de cabeça… um calor…

A madrinha tomou-lhe o pulso, assentou as costas da mão na testa e disse-lhe ainda algumas palavras de consolação: que aquilo não era nada; que o padrinho não lhe tinha rancor; que sossegasse.

O rapaz, deitado, com os olhos semicerrados, parecia não ouvir; voltava-se de um lado para outro; passava a mão pelo rosto, arquejava e debatia-se. Um instante pareceu sossegar; ergueu-se sobre o travesseiro e chegou a mão aos olhos, no gesto de quem quer avistar alguma coisa ao longe. A estranheza do gesto assustou a madrinha.

— Horácio!… Horácio!…

— Estou dividido… Não sai sangue…

— Horácio, Horácio, meu filho !

— Faz sol… Que sol !… Queima…Árvores enormes… Elefantes…

— Horácio, que é isso? Olha; é tua madrinha!

— Homens negros… Fogueiras… Um se estorce… Chi! Que coisa!… O meu pedaço dança…

— Horácio! Genoveva, traga água de flor… Depressa, um médico… Vá
chamar, Genoveva!

— Já não é o mesmo… É outro… Lugar, mudou… Uma casinha branca…
Carros de bois… Nozes… Figos… Lenços…

— Acalma-te, meu filho!

— Ué! Chi! Os dois brigam…

Daí em diante a prostração tomou-o inteiramente. As últimas palavras não saíam perfeitamente articuladas. Pareceu sossegar. O médico entrou, tomou a temperatura, examinou-o e disse com a máxima segurança:

— Não se assuste, minha senhora. É delírio febril, simplesmente. Dê-lhe o purgante, depois as cápsulas, que, em breve, estará bom.

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará

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Ivan Jaf (A Gata Apaixonada)

 Gato sentado (Aldemir Martins)
Quando perguntam como é que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir Martins. O pintor famoso.

Eu estava, tranqüilo, estudando. Juro.

Lá pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.

A mãe morreu há uns quatro anos.
O pai é superciumento, não a deixa sair de casa nunca.

– Oi, Rodrigo… Você tem um gato grande, malhado?

– Tenho. O nome dele é Sorvete.

– Sorvete?

– Quando a gente encosta a mão, ele se derrete todo.

– Ele briga com a minha gata, a Tati.

– Já aconteceu várias vezes. Acho que é ciúme.

– De outro gato?

– Não. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.

Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. Só nós dois.

– Você vai ver ela disse.

– É sempre na mesma hora. Já ouviu falar do Aldemir Martins?

– Já. É um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em São Paulo.

– Morava. Morreu há pouco tempo. Minha mãe era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros, revistas, jornais… Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes…

– Tô sabendo. Desenhava até rótulos de maionese, de vinho…

– Minha mãe comprava tudo que podia.

– A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lençóis, tapetes, cortina de banheiro…

Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitação de lareira, havia uma tela do Aldemir Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme, mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnóticos.

– Minha mãe adorava esse quadro.

Então ela me puxou pra trás de uma cortina pesada, que cobria a vidraça que dava pro jardim.

Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado. Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. Até que ele apareceu. O velho Sorvete.

O gato mais descolado do pedaço. Veio gingando, passou entre os móveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto, e não gostou nada do que viu.

Carla segurou no meu braço.

Sorvete pulou pro beiral.

Briga de gato é mais rápido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim, com o Sorvete atrás.

– Minha mãe dizia que um artista é capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza é um artista. Mas acho que você vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo.

– Não gostei daquilo.

– Não, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa… têm de ter liberdade. Têm de ter uma janela aberta.

– Mas o Sorvete é meio selvagem…

– Isso. É assim que eu gosto dele. Eu também sou meio selvagem. Sabe o que eu faço?

– Eu como o tomate inteiro. Eu não fico esperando a minha mãe partir e colocar na salada!

Ela riu. Não sei de onde eu tirei essa história do tomate. Aí me empolguei, e ia dar mais exemplos de como eu era selvagem, mas a cortina abriu de repente e o pai dela apareceu.

O cara ficou nervoso, quase chamou a polícia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou até deixando a filha sair comigo.

Eu e a Carla estamos namorando. Juro.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Monteiro Lobato (Um Homem de Consciência)

Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens.

Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.
Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava com aperto no coração o deperecimento visível de sua Itaoca.

– Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons 

– Agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando…
João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

– É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.
Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. 

Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. 

Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada…
Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!…
João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalo magro e partiu.
– Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
– Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
– Mas como? Agora que você está delegado?
– Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.
E sumiu.

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José Roberto Torero (Tadeu x Maria Angélica)

À primeira vista, Tadeu e Maria Angélica formavam um casal normal. Gostavam de cinema, de música e de viagens. Mas, acima de tudo, amavam o futebol. Só que, infelizmente, torciam para times rivais. 

No começo, isso não era um grande problema. Maria Angélica não se importava quando Tadeu comemorava as vitórias do time dele e Tadeu até dava parabéns para Maria Angélica quando o clube dela vencia. Mas talvez isso só acontecesse porque os dois times eram muito ruins, e as vitórias, muito raras.

Então, no campeonato deste ano, as coisas mudaram. Novos reforços foram apresentados, técnicos foram contratados, as equipes melhoraram e as torcidas começaram a ter esperanças.

As coisas mudaram tanto que os dois times chegaram à final do torneio.

Tadeu comprou um uniforme azul e amarelo para ir ao estádio. Maria Angélica foi com uma enorme bandeira verde e branca.

Os dois sentaram lado a lado durante a partida. Para evitar brigas, tentavam não vibrar demais quando seus times acertavam um lance, nem zombar do outro quando a equipe adversária cometia algum erro.

O zero a zero vinha mantendo a paz do casal, porém, no último lance do jogo, quando o time de Tadeu marcou o gol da vitória, ele não se conteve e gritou: “Gooooooooool!”.

E assim mesmo, com dez letras “o”. 

Mas ele não parou por aí. Começou a dançar em volta de Maria Angélica enquanto cantava “Ê, ô, ê, ô, o meu time é um terror, ê, ô, ê, ô, o seu time é perdedor”.

Maria Angélica ficou verde de ódio. Então disparou:

– Tadeu, você passou dos limites. Cartão vermelho!

– Como assim, Maria Angélica, você está me expulsando de campo?

– E do casamento. Você pisou na bola!

– Tá, eu exagerei, mas também não precisa entrar de sola.

– Agora é tarde. Você chutou nosso amor para escanteio!

– Calma, eu não quero tirar o time de campo.

Vamos tentar um segundo tempo…

– Não, senhor. Você já estava na marca do pênalti.

Pode ir para o chuveiro!

– Quem sabe uma prorrogação? 

– Não. Fim de jogo.

Tadeu sentou na arquibancada, apoiou a cabeça nas mãos e disse: 

– Tudo bem, Maria Angélica, se você quer que eu pendure as chuteiras, é assim que vai ser. Mas isso me deixa muito triste, porque a gente fazia uma tabelinha e tanto. Eu acho que você bate um bolão e sempre que eu chegava em casa corria para o abraço. Sabe, eu vestia a camisa do nosso casamento… eu jogava por amor… 

Aquela declaração deixou os olhos de Maria Angélica encharcados como um Maracanã sem drenagem. Então ela jogou longe sua bandeira e pulou sobre Tadeu como se ele tivesse marcado um gol decisivo.

Tadeu olhou fundo nos olhos de Maria Angélica e, com voz emocionada, cantou: 

“Ê, ô, ê, ô, nosso amor é um terror!”

– Tadeu, foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Então os dois beijaram-se, fizeram as pazes e viveram felizes para sempre.

Ou, pelo menos, até a próxima final de campeonato.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Heloisa Prieto (conto recontado: Arthur, o Rei em Busca de um Mundo Ideal)

Noite de tempestade. Baixa Idade Média. Um castelo na Grã-Bretanha. A rainha Igraine abraça o filho recém-nascido. Capaz de prever o futuro, ela sabe que Merlim, o grande mago, está a caminho para buscá-lo. Chora porque seu filho será criado em segredo, na casa humilde de um camponês. 

Assim começa a história do grande rei Arthur. Sempre acompanhado de um falcão, que o protege à distância, o pequeno rei brinca, convive com os irmãos adotivos e trabalha como pastor, sem jamais desconfiar de sua verdadeira identidade. Porém, sua coragem e inteligência manifestam-se quando os pais enfrentam algum problema que ele, tão jovem, rapidamente é capaz de resolver. Ou quando a montanha fala à sua alma. Afinal, Arthur traz a magia no sangue, e a prática da geomancia, a arte de prever o futuro por meio da observação da natureza, era comum entre os celtas.

Quem teria realmente invocado o rei dentro do menino? A espada excalibur ou o espírito da rocha na qual ela fora colocada? O pequeno Arthur, para ajudar um cavaleiro cuja arma fora danificada, acidentalmente encontra uma espada enfiada numa rocha. Ele a retira sem ler as inscrições na pedra: “Aquele que extrair a espada da pedra será o novo rei”.

Menino, Arthur assume o trono e descobre que os pássaros que o protegeram durante toda a vida na verdade tinham sido enviados por seu mentor, o poderoso Mago Merlim. Conquistas e vitórias surgem na vida do jovem líder e seu sábio conselheiro. Estes são os tempos que o consagraram como rei mítico, porém, quando o rei se apaixona pela princesa Guinevere, nem mesmo as palavras de Merlim impedem que ele sofra como qualquer outro mortal. Se você casar-se com ela — alerta o Mago —, os ideais da cavalaria serão destruídos.

É nesse momento da vida de Arthur que a aura mágica se quebra e ele passa a viver sujeito a erros e desilusões. Ignorando o conselho de Merlim, Arthur casa-se com Guinevere que logo depois o trai com seu melhor amigo. A dor dilacera o coração de Arthur. No auge do sofrimento, o rei é vítima de um feitiço e concebe um filho com a meia-irmã, Morgana, hábil nas artes da bruxaria. Mordred, o príncipe maldito, é treinado para destruir o próprio pai. Quando Arthur cai, em campo de batalha, Merlim o abraça e chora, e o rei lhe pede: “Conte ao mundo minha história, Merlim!”

O Mago aceita a missão, sabendo que a vida de Arthur continha um toque divino. E que, além do sofrimento, restaria sempre seu sonho: a busca de um mundo de justiça, honra e fraternidade.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Maria Nascimento Santos Carvalho (Romance Inacabado)

      Romance Inacabado é uma história triste, como tantas outras que já escrevi, retratando não só o meu drama pessoal, mas, também, o de muitos seres humanos cujo romantismo, despreparo psicológico ou a carência afetiva os levam a acreditar nas mais absurdas utopias do Destino, como continuo, ingenuamente, acreditando.

      Um dia, que poderia ser qualquer um do mês de agosto, Maria, como fazia há algum tempo, saiu para fazer uma caminhada de fim de tarde, que lhe fora imposta pelo excesso de peso gerado pela vida sedentária que ultimamente levava.

      Mal chegou ao destino avistou, a meia distância, um cavalheiro que, em princípio, lhe pareceu muito familiar, mas depois de observar atentamente percebeu que era um estranho, uma daquelas pessoas que, à primeira vista, encantam e deixam uma impressão tranqüilizadora.

      O seu mais novo conhecido, anônimo, parecia um artista. Sua beleza negra era de tirar o fôlego de qualquer mulher desacompanhada ou encostada num “estaleiro”. Estava num papo animado com um amigo, simpático, com jeito brejeiro, rindo como se estivessem fazendo comentários maliciosos a respeito de alguma coisa ou de alguém.

      Estavam andando em posições opostas e Maria percebeu, ao passar olhando para o “artista”, que sua presença parecia fazer parte da paisagem das pedras do Calçadão, que ele estivesse acostumado a pisar todos os dias, sem se dar conta, sequer, de que ela poderia ser uma pedra com formato diferente.

      Ao voltarem, novamente se encontraram e Maria teve a sensação de ser a mesma pedra do calçadão que ele havia ignorado e pisado há menos de uma hora e por mais que ela olhasse em sua direção não foi nem notada, porque os dois amigos só tinham sorrisos um para o outro, o que reforçou a sua certeza de que andavam o tempo todo debochando de colegas ou de quem quer que por eles passasse.

      Mais uma vez, mesmo nunca tendo avançado um sinal em sua vida afetiva, olhou com admiração para o “artista” e o achou a “paisagem” mais interessante que já havia passado diante dos seus olhos e, instintivamente, desafiando a sua timidez e esquecendo todos os Mandamentos da Lei de Deus, pela primeira vez na vida se via transgredindo todas as normas de boa conduta e como se os seus olhos despertassem a sua mente, sua alma e o seu coração, como uma louca que perdeu a noção do raciocínio, pensou alto, pronunciando, imaginariamente : “- eu quero este artista para mim”.

      Maria era solteira e não pensava em se prender a ninguém, mas aquele “atleta” havia mexido com sua cabeça e por um momento pensou em tentar conquistá-lo, esquecendo sua meta principal : a liberdade … E, fugindo daquele pensamento brusco, pensou: como queria conquistar um homem que nem havia olhado para ela, que não sabia seu nome, que nada sabia a seu respeito, a não ser que a ignorara como se ela fosse mais um pedaço do calçamento embaixo da sola dos seus tênis?

      Maria, mesmo sem perceber, passou a observá-lo, e, por incrível que pareça, tinha sempre a mesma impressão do dia em que o conheceu. Seu colega parecia mais falante e ele mais observador, mas, no fundo, dava para notar que tinham sempre um bom repertório de coisas engraçadas para comentar enquanto malhavam e nada que considerassem errado ou ridículo passava despercebido por seus olhos críticos.

      O tempo foi passando e cada dia mais crescia a vontade de Maria ouvir a voz do ilustre “desconhecido”, de saber se era gentil, atencioso, se era romântico… essas coisas que mulher, geralmente, tem curiosidade de saber. Mas, mesmo quando uma vez ou outra estava sozinho, não lhe dava a menor chance de se sentir mais visível do que aquela pedra à qual já se reportou.

      Maria se sentia a pessoa mais insignificante da face da terra, mas jurava que, um dia, nem que tentasse o resto de sua vida, derreteria aquela pedra de gelo e falaria com o “dito cujo”, nem que fosse para ficar mais decepcionada do que já estava com a sua indiferença, ou seu preconceito inconcebível.

      Depois de poucos meses de tê-lo visto, Maria já estava tão escravizada à presença daquele ilustre desconhecido que nem sabia como andar, quando passava por ele. Tinha medo de parecer que estava rebolando para chamar a sua atenção, de que ele a interpretasse mal… mas como iria interpretar isso ou aquilo se não se dava conta da sua existência ?

      Maria, na ânsia de perder peso mais depressa, caminhava usando meias compridas, roupas grossas etc. o que, para eles, poderia dar a impressão de que estava com as pernas mais riscadas de varizes do que o Mapa do Brasil, uma vez que pareciam observar o que viam e o que imaginavam ver para aumentar o rol de assuntos engraçados para as longas caminhadas.

      Por isso, para não alimentar a má impressão, com o tempo Maria foi se desvencilhando dos excessos do vestuário, descobriu as pernas, passou a usar camisetas, como quase todos os “atletas” com excesso de peso, e só faltou pendurar uma melancia no pescoço para que aquele homem lhe dirigisse a palavra.

      Apesar de saber que estava agindo errado, ela não abria mão do seu desejo de ser notada, e comeu o pão que o Diabo amassou por conta dessa maluquice que se havia apoderado dela. Ela reconhecia o “seu artista” a uma distância incrível e seu coração começava a bater desordenadamente. Pouco tempo depois, passou a pensar nele vinte e quatro horas por dia e quase toda noite chorava e se desesperava pela sua incapacidade de falar com uma pessoa que via quatro ou cinco vezes por semana e não era vista por ele hora nenhuma.

      Às vezes, ele sumia uma, duas semanas, para o seu maior desespero e quando o revia era como se o céu se abrisse aos seus pés e ela pudesse entrar nele com o seu “admirador imaginário” que, magicamente, a tornava invisível, como se nunca tivesse passado por ele. Era como se Deus se lembrasse de lhe devolver uma felicidade que nem lhe pertencia e talvez nunca fosse pertencer. Seu coração disparava e ela já não tinha mais controle da situação.

      Em síntese, já estava com os nervos à flor da pele e só faltava agarrá-lo a força e dizer : — eu estou aqui, eu o amo, eu sou louca por você… só falta eu me pendurar no seu pescoço e você finge que nunca me viu ? Será que sou uma porcaria tão sem valor que você não inclina seu rosto nem para rir de mim ?

      Mas, felizmente, sua loucura, por milagre, não chegou a tanto, embora tenha faltado muito pouco para ter um ataque histérico e se jogar nos braços dele.

      Um dia, quase três anos já passados, após tanto sofrimento, Maria viu, de longe, que “seu artista” estava sozinho e, quase como um desafio, prometeu a si mesma: é hoje que vou fazer este homem falar comigo, custe o que custar … e ficou maquinando o que poderia fazer. De repente, quando ele se aproximou, fingiu que estava se sentindo mal, mas, nem assim ele parou para lhe perguntar se estava com algum problema de saúde, se precisava de ajuda.

      Foi a pior idéia que ela poderia ter, pois nunca pensou que mesmo fingindo que nunca havia cruzado com ela, ele fosse passar como um cometa, sem lhe dirigir uma palavra, nem perguntar se ela estava precisando de alguma ajuda. Parece até que sabia que a única coisa que ela estava precisando era ouvir sua voz e receber um gesto de carinho, por menor que fosse.

      Como não estava sentindo nada além da vontade de tê-lo mais perto, quando percebeu que nem olhou para trás para ver se alguém havia se importado com ela, recomeçou a caminhada e na volta, com voz trêmula, fingindo uma ousadia que não tinha, se atravessou na frente dele, quase o atropelando e foi logo perguntando, num fôlego só. — Porque você não deixa de ser metido a importante demais e não fala comigo? Só falta eu engolir você com os olhos e você finge sempre que não me vê ? Fingi que estava passando mal e você nem quis saber se eu precisava de auxílio… — Você já me viu algum dia aqui, por acaso ?

      Ele, surpreso, com voz pausada disse, com um ligeiro sorriso, não sei se de nervosismo pela reação de Maria ou de deboche pelo inusitado : — Eu conheço você, sim, e quando você usava aquelas meias grossas eu comentava com o meu amigo : — esta mulher, coitada, deve ter as pernas cheias de varizes, por isso, só anda com elas cobertas com estas meias ridículas. — Adorei quando você tirou as meias e passou a caminhar com roupas mais joviais. Aí, disse ele : — percebi como é uma mulher charmosa, interessante e sensual. Nesse momento ela se esqueceu de que era apenas uma pedra do calçadão e começou a se sentir uma pedra bruta, mas visível aos olhos do novo “amigo”.

      Seguiram batendo papo, embora ela estivesse morrendo de medo que alguém a visse com um estranho e a interpretasse mal. Mas estava tão feliz com o rumo que a conversa estava tomando que queria que o mundo parasse naquela noite.

      Depois desse dia, “seu príncipe”, o José, como se identificara, volta-e- meia aparecia sozinho e saíam conversando amenidades, separados como dois estranhos, com receio das línguas maldosas, uma vez que ele se revelara comprometido.

      Das amenidades passaram para conversas mais arrojadas, até que, um dia, chegaram ao ponto que ela queria : Ficar a sós com aquele deus negro, há tanto tempo dono dos seus sonhos, das saudades,de sua alma, dos maus pensamentos; enfim, do seu todo.

      Foi o que de mais bonito aconteceu em toda a sua vida. Ela se sentiu mulher de verdade, pela primeira vez, e abandonou aquela sensação de estar errada por amar tanto aquele adorável desconhecido.

      Em seus encontros e desencontros esporádicos foram descobrindo as suas afinidades… E quantas !

      Maria pensava que suas afinidades fossem capazes de aproximá-los cada vez mais, mas lhes faltava um fator em comum : ele a queria como amiga que aceitasse apenas uma “amizade colorida”; ela o queria como amigo, como homem e como o pai dos filhos que ela tanto sonhava ter, o que levava suas afinidades a um grande distanciamento, a um imenso abismo. O quase tudo em comum parecia muito pouco para um relacionamento mais sólido e, dia a dia, se perdeu na diversidade dos seus sentimentos, como nesses versos :

Coincidências

     Agora que conheço a tua infância,
      eu vejo que foi quase igual à minha :
      a falta de recursos, com constância,
      e tudo o que não tinhas … eu não tinha !
         
      Nós tínhamos irmãos em abundância,
      pais honrados que, às vezes, à noitinha,
      percorriam a pé longa distância
      para vermos um circo, na pracinha.
            
      Lutando, já formados, progredimos,
      mas os nossos destinos não unimos
      porque em teu peito não me dás guarida …
     
      Noventa e nove por cento há em comum …
      e eu não sei como apenas ” menos um “
      pode matar os sonhos de uma vida ! …


     Meses depois, José se desvencilhou de Maria como se tivesse se desvencilhado de um par de tênis desgastado pelo uso, sem um desentendimento, sem uma explicação … Apenas sumiu como havia aparecido, sem se importar com o que poderia estar acontecendo com ela, como se percebesse que ela estava precisando do seu apoio, de cuidados especiais para enfrentar uma gravidez de risco, uma vez que estava na primeira gestação, com quase quarenta anos de idade.
      José, que se dizia caixeiro viajante, durante muitos anos não foi visto por Maria, que criara seus dois filhos, Leonardo e Lena, os gêmeos gerados num relacionamento proibido e sem importância para José. Foi num momento de desânimo e decepção que expressou mentalmente as suas

Marcas na Alma

     Partiste sem aviso, às escondidas,
      sem promessa de um dia regressar..
      e, embora com saudades incontidas,
      eu me recusaria a te esperar.
   
      Se eu tivesse o milagre de outras vidas,
      e motivos de sobra para amar,
      com receio de novas despedidas
      eu jamais voltaria a te aceitar …
     
      Foram tantos projetos que ruíram,
      tantos sonhos de amor que se evadiram,
      tanto estrago em minha alma a vida fez
      
      que, farta de tristeza e desengano,
      queria que o destino desumano
      acabasse comigo de uma vez.


     Quando passou para a faculdade, num “trote de calouros”, Leonardo se feriu gravemente e sua colega de cursinho, Andressa, que estava com ele, ajudou a socorrê-lo e passou a noite no hospital aguardando notícias.

      Maria, avisada da tragédia, chegou pouco tempo depois e conversava com a coleguinha de seu filho quando José chegou preocupado, tentando levar a filha para casa, sem perceber que era a mãe de Léo que se encontrava de costas. Foi um choque muito grande para os dois.

      Léo estava sendo operado e José logo se ofereceu para doar sangue, se fosse preciso e para ficar com Maria, enquanto o pai do garoto não chegasse. Maria agradeceu, dizendo que não era preciso, mas José levou Andressa para casa e voltou para lhe fazer companhia, confessando que sua esposa estava doente, há muitos anos, e que ele era quem cuidava dos dois filhos : Andressa e Anderson, já quase adultos.

      Foi no hospital que José teve certeza de que Leonardo era seu filho, depois de se submeter a exames para descobrir se havia compatibilidade para doação de um rim, uma vez que o acidente havia comprometido os rins do novo universitário.

      Leonardo, depois de muito tempo hospitalizado, voltou à vida normal, mas, ainda muito magoado por não ter conhecido seu pai, leu uma poesia que havia encontrado num “livro de bolso”, e parecia a sua história :

Desilusão

     Ao ver um pai chegar na minha escola
      trazendo a mão do filho em sua mão,
      carregando, feliz, sua sacola,
      sinto uma enorme dor no coração…
      
      Penso em mais tarde os dois jogando bola
      e sinto até inveja da emoção
      daquele pai que, às vezes, se controla
      para não dar no filho uma ” lição ” …
      
      Agora, quase adulto como estou,
      nem ligo para o pai que me gerou
      e não dirige a mim um simples ai …
      
      Se esse pai não me deu nenhum conforto,
      não sabe se estou vivo, ou se estou morto,
      não quero nem saber se tenho um pai !…

    
      Hoje, com os filhos ultrapassando os vinte e um anos de idade, Maria olha para trás, revive todo o sofrimento porque passou e ainda encontra forças para agradecer a Deus por seus filhos, fruto de um amor proibido e inconseqüente, e reza para que seu “artista preferido” encontre o amor que teve e jogou fora, sem sequer tomar conhecimento da existência de seus filhos, que, inteligentemente, talvez pouco estão se importando se em suas certidões de nascimento existe apenas um pai ignorado, como costumam dizer nos momentos mais angustiantes, embora Maria tenha certeza de que dizem isto para não entristecê-la mais ainda.

      Leonardo e Lena freqüentam a mesma sala de aula, e num trabalho escolar, falando sobre o Dia do Papai, Lena resolveu apresentar seu

Sonho Adormecido …

     Sonhei com o meu pai a vida inteira,
      embora um pai que nem me viu crescer …
      pois encontrei, no sonho, uma maneira
      de encarar meu problema sem sofrer …
      
      E, filha de um ausente e mãe solteira,
      eu me humilhei demais para entender
      que o preconceito é a mais triste barreira
      que o mundo inteiro, um dia, há de vencer.
      
      Meu pai, que era caixeiro viajante,
      mudava de lugar a cada instante,
      deixou o seu ” produto ” e foi embora …
      
      mas mesmo sendo um pai desconhecido,
      se acordasses meu sonho adormecido
      eu seria, meu pai, feliz agora.

     Maria foi quase todos os gêneros de pedras no caminho de José, o seu príncipe, mas embora tenha rolado nas tempestades que o destino lhe impôs, continua com a mesma certeza do primeiro dia em que o viu, porque seu coração, seus olhos, sua mente, sua alma e todo o seu ser o escolheram para ser o homem de sua vida e, mesmo depois de tudo que já passou, mesmo com o coração sangrando por não havê-lo conquistado, ainda não perdeu a esperança de reencontrar a felicidade ao lado do homem que, um dia, sem conhecê-lo, sem nada saber da sua vida, pensou como quem reza em silêncio : — ” Eu quero este homem para mim”. Por enquanto, enquanto vive de esperança, faz de Contradição a sua prece de cada dia.    

Hoje, mais uma vez, desesperada
por ser injustamente preterida,
vejo que já nasci predestinada
a amar sem nunca ser correspondida …
     
       Mas o que mais me dói, na despedida,
      é saber que fui sempre desprezada
      porque foste o anjo bom da minha vida
      e eu da tua jamais pude ser nada.
      
      Se me pudesse ver da eternidade,
      chorando de tristeza e de saudade
      pelo amor que no tempo se perdeu,
     
       Carlos Drummond de Andrade me diria :
      ” E agora “, como vais viver, Maria,
      sem o José que achavas que era teu ? !


     Como a esperança é a última que morre, Maria espera, um dia, poder dizer :

      – E serão felizes para sempre…

Fonte:
http://www.marianascimento.net/contos/003.htm

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Arquivado em Conto, Contos, Rio de Janeiro

João Anzanello Carrascoza (E vem o sol)

Tinham acabado de se mudar para aquela cidade. Passaram o primeiro dia ajeitando tudo. Mas, no segundo dia, o homem foi trabalhar; a mulher quis conhecer a vizinha. O menino, para não ficar só num espaço que ainda não sentia seu, a acompanhou.

Entrou na casa atrás da mãe, sem esperança de ser feliz. Estava cheio de sombras, sem os companheiros. Mas logo o verde de seus olhos se refrescou com as coisas novas: a mulher suave, os quadros coloridos, o relógio cuco na parede. E, de repente, o susto de algo a se enovelar em sua perna: o gato. Reagiu, afastando-se. O bichano, contudo, se aproximou de novo, a maciez do pêlo agradando. E a mão desceu numa carícia.

O menino experimentou de fininho uma alegria, como sopro de vento no rosto. Já se sentia menos solitário. Não vigorava mais nele, unicamente, a satisfação do passado. A nova companhia o avivava. E era apenas o começo. Porque seu olhar apanhou, como fruta na árvore, uma bola no canto da sala. Havia mais surpresas ali. Ouviu um som familiar: os pirilins do videogame. E, em seguida, uma voz que gargalhava. Reconhecia o momento da jogada emocionante. Vinha lá do fundo da casa, o convite.

O gato continuava afofando-se nas suas pernas. Mas elas queriam o corredor. E, na leveza de um pássaro, o menino se desprendeu da mãe. Ela não percebeu, nem a dona da casa. Só ele sabia que avançava, tanta a sua lentidão: assim é o imperceptível dos milagres.

Enfiou-se pelo corredor silencioso, farejando a descoberta. Deteve-se um instante. O ruído lúdico novamente o atraiu. A voz o chamava sem saber seu nome.

Então chegou à porta do quarto — e lá estava o outro menino, que logo se virou ao dar pela sua presença. Miraram-se, os olhos secos da diferença. Mas já se molhando por dentro, se amolecendo. O outro não lhe perguntou quem era, nem de onde vinha. Disse apenas: Quer brincar? Queria. O sol renasceu nele. Há tanto tempo precisava desse novo amigo.

Fonte:
Revista Nova Escola

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Mário de Andrade (Vestida de Preto)

Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que freqüentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada de amores perigosos.

Maria foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está claro, ela como eu nos seus cinco anos apenas, mas não sei que divina melancolia nos tomava, se acaso nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava de tom, e principalmente as palavras é que se tornaram mais raras, muito simples. Uma ternura imensa, firme e reconhecida, não exigindo nenhum gesto. Aquilo aliás durava pouco, porque logo a criançada chegava. Mas tínhamos então uma raiva impensada dos manos e dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou modos de irritação. Amor apenas sensível naquele instinto de estarmos sós.

E só mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei nosso único beijo, foi maravilhoso. Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo, fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.

Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e armários cheios de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão.

Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, “pecado” que é como se dizia naqueles tempos cristãos… E por causa disso eu conseguira não pensar até ali, no travesseiro.

— Já é tarde, vamos dormir — Maria falou.

Fiquei estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração para o travesseiro quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim. Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a tarde, e depois deitou, arranjando o vestido pra não amassar.

Mas eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de travesseiro que ela deixou pra mim, me dando as costas. Restico sim, apesar do travesseiro ser grande. Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos cabelos assustados de Maria, citação obrigatória e orgulho de família. Tia Velha, muito ciumenta por causa duma neta preferida que ela imaginava deusa, era a única a pôr defeito nos cabelos de Maria.

— Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor, interrompendo o meu silêncio trágico.

— Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do armazém.

Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor intenção de.

Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu nariz, eu podia espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar seria muito ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá da sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho.

Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?… Me ajeitei muito sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim! só recordar… Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só beijava mamães, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual.

Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve. Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando.

Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espanto barulhento. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo era completamente feio.

— Levantem!… Vou contar pra sua mãe, Juca!

Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo!

— Tia Velha me dá um doce?

Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta, sem método — pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante, eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos antes era real.

— Vamos! saiam do quarto!

Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os pratos que ela viera buscar para a mesa de chá.

O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por Tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar diante de todos, fiquei zonzo.

Dez, treze, quatorze anos… Quinze anos. Foi então o insulto que julguei definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado, cheio de revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições de português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um, zero em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade: uma, duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado de apagar nos exames de segunda época.

Gostar, eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais, conscientemente agora. Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de mim, quem gostava de mim!… Minha mãe… Sim, mamãe gostava de mim, mas naquele tempo eu chegava a imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi sempre insuportável, incapaz de uma carícia. Como incapaz de uma repreensão também. Nem mesmo comigo, a tara da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso pra outro dia. O certo é que, decidido em minha desesperada revolta contra o mundo que me rodeava, sentindo um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer, tão absurdo o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um caso perdido, que não adiantava melhorar.

Esse ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor particular, quando enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais. Passei bastante encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão me denunciando, lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de caso perdido. Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no escritório pegado, esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar para o meio de todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que Tia Velha perdia com suas preferências:

— Passou seu namorado, Maria.

— Não caso com bombeado — ela respondeu imediato, numa voz tão feia, mas tão feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha dúvida nenhuma. Maria não gostava mais de mim. Bobo de assim parado, sem fazer um gesto, mal podendo respirar.

Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de minha sorte. Nós seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria, gente que até viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais tinham feito um papel bem indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que pobre mas ótimo. Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar. Tudo por causa do dinheiro.

Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a família dela não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete de loteria. “Não caso com bombeado”… Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.

Não tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com… os outros. Estava com uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde. Não, me parecia que já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de Matilde, o insulto partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva dela não, só tristeza, só vazio, não sei… creio que uma vontade de ajoelhar. Ajoelhar sem mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim, ajoelhar. Afinal das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha razão, tinha razão, que tristeza!

Foi o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando anos pulados. Acho que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu. Vamos por ordem: Pus tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus pensamentos me traíram. De resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender. Foi espantoso o que se passou em mim. Sem abandonar o meu jeito de “perdido”, o cultivando mesmo, ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me batera, súbito, aquela vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo. Era mesmo uma impaciência raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem nenhuma orientação. Mas brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas de rapazes, tinha idéias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam maldando que eu era muito inteligente mas perigoso.

Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou três meses e se desfez de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um diplomata riquíssimo, casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito no altar e partir em busca duma embaixada européia com o secretário chique seu marido.

Às vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados meio de longe, eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa infantilidade e devorar numa tarde um livro incompreensível de filosofia. De mais a mais, havia Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a Violeta. Meus amigos me chamavam de “jardineiro”, e eu punha na coincidência daqueles duas flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que topando numa livraria com The Gardener de Tagore, comprei o livro e comecei estudando o inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus livros que estudou o alemão por causa dum emboaba tordilha… eu também: meu inglês nasceu duma Violeta e duma Rose.

Não, nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria estava pra voltar pela primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha ausência, conversando com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de gorda desabrida:

— Pois é, Maria gostou tanto de você, você não quis!… e agora ela vive longe de nós.

Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num tiro de canhão. Percebi ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se atordoando com dinheiro e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim agora que principiava sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em versos que muita gente já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem Violeta, nem nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é que amara sempre, como louco: ôh como eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo, aprendendo a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por despique, me superiorizando em mim só por vingança de desesperado. Como é que eu pudera me imaginar feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria, era exclusivamente Maria toda aquela superioridade que estava aparecendo em mim… E tudo aquilo era uma desgraça muito cachorra mesma. Pois não andavam falando muito de Maria? Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de luz. Maria falada, Maria bêbeda, Maria passada de mão em mão, Maria pintada nua…

Se dera como que uma transposição de destinos… E tive um pensamento que ao menos me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em mim era Maria, se ela estava se transformando no Juca imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas uma projeção dela, como ela agora apenas uma projeção de mim, se nos trocáramos por um estúpido engano de amor: mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas bem ruim mesmo outra vez pra me igualar a ela de novo. Foi a razão da briga com Violeta, impiedosa, e a farra dessa noite – bebedeira tamanha que acabei ficando desacordado, numa série de vertigens, com médico, escândalo, e choro largo de mamãe com minha irmã.

Bom, tinha que visitar Maria, está claro, éramos “gente grande” agora. Quando soube que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: “ótimo, vou hoje logo depois de jantar, não encontro ela e deixo o cartão”. Mas fui cedo demais. Cheguei na casa dos pais dela, seriam nove horas, todos aqueles requififes de gente ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata etc. Os da casa estavam ainda jantando. Me introduziram na saletinha da esquerda, uma espécie de luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro, dando pro hol central. Que fizesse o favor de esperar, já vinham.

Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor, não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido.

— Ao menos diga boa-noite, Juca…

“Boa-noite, Maria, eu vou-me embora”… meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria, naquele se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na frente do corpo, toda vestida de preto. Um segundo, me passou na visão devorá-la numa hora estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não havia dúvida: Maria despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei afinal um boa-noite muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos outros que chegavam.

Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha vida uma grave condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham, cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que ficou pelas Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de mim, Maria… bom: acho que vou falar banalidade.

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Carlos Drummond de Andrade (Depois do jantar)

Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.

O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.

— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?

— Não fumo, respondeu o outro.

Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:

— 9 e 17… 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.

— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.

— Como?

— Já disse. Vai passando o relógio.

— Mas …

— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.

— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer… Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.

O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.

— Agora posso continuar?

— Continuar o quê?

— O passeio. Eu estava passeando, não viu?

— Vi, sim. Espera um pouco.

— Esperar o quê?

— Passa a carteira.

— Mas…

— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?

— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar…

— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?

— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.

— Diga.

— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.

— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?

— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?

— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?

— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.

— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.

— Não precisa, não precisa.

— Essa de rachar o legume… Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.

— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.

— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?

— Claro.

— Você, o assaltado. Certo?

— Confere.

— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.

— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.

— Tá bom, não se discute.

— Vamos, procure nos… nos escaninhos.

— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.

— Deixe ao menos tirar os documentos?

— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.

—  Nem uma de quinhentos? Uma só.

—  Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.

—  Nem eu ia aceitar dinheiro de você.

— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.

Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

Fonte:
“Os dias lindos”, Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977.

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Érico Veríssimo (trecho do livro Ana Terra )

Ana Terra, parte da obra O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo
(…) D. Henriqueta começou a servir o chimarrão ao marido e aos filhos. A cuia passou de mão em mão, a bomba andou de boca em boca. Mas ninguém falava. Maneco apagou a lamparina, e a luz alaranjada ali dentro da cabana de repente se fez cinzenta e como que mais fria. As sombras desapareceram do pano onde Ana tinha fito o olhar. Ela então ficou vendo apenas o que havia nos seus pensamentos. Seus irmãos tinham levado Pedro para bem longe: três cavalos e três cavaleiros andando na noite. Pedro não dizia nada, não fazia nenhum gesto, não procurava fugir, sabia que era seu destino ser morto e enterrado ao pé duma árvore. Ana imaginou Horácio e Antônio cavando uma sepultura, e o corpo de Pedro estendido no chão ao pé deles, coberto de sangue e sereno. Depois os dois vivos atiraram o morto na cova e o cobriram com terra. Bateram a terra e puseram uma pedra em cima. E Pedro lá ficou no chão frio, sem mortalha, sem cruz, sem oração, como um cachorro pesteado. Agora estava tudo perdido. 
Seus irmãos eram assassinos. Nunca mais poderia haver paz naquela casa. Nunca mais eles poderiam olhar direito uns para os outros. O segredo horroroso havia de roer para sempre a alma daquela gente. E a lembrança de Pedro ficaria ali no rancho, na estância e nos pensamentos de todos, como uma assombração. Ana pensou então em matar-se. Chegou a pegar o punhal que o índio lhe dera, mas compreendeu logo que não teria coragem de meter aquela lâmina no peito e muito menos na barriga, onde estava a criança. Imaginou a faca trespassando o corpo do filho e teve um estremecimento, levou ambas as mãos espalmadas ao ventre, como para o proteger. Sentiu de súbito uma inesperada, esquisita alegria ao pensar que dentro de suas entranhas havia um ser vivo, e que esse ser era seu filho e filho de Pedro, e que esse pequeno ente havia de um dia crescer… Mas uma nova sensação de desalento gelado a invadiu quando ela imaginou o filho vivendo naquele descampado, ouvindo o vento, tomando chimarrão com os outros num silêncio de pedra, a cara, as mãos, os pés encardidos de terra, a camisa cheirando a sangue de boi (ou sangue de gente?). O filho ia ser como o avô, como os tios. E um dia talvez se voltasse também contra ela. Porque era “filho das macegas”, porque não tinha pai. Tremendo de frio Ana Terra puxou as cobertas até o queixo e fechou os olhos.
Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Oliver Sacks (Memórias de uma Infância Química )

Trecho do livro Tio Tungstênio — Memórias de uma Infância Química, 
–––––-
Muitas das minhas lembranças da infância têm relação com metais: eles parecem ter exercido poder sobre mim desde o início. Destacavam-se em meio à heterogeneidade do mundo por seu brilho e cintilação, pelos tons prateados, pela uniformidade e peso. Eram frios ao toque, retiniam quando golpeados. 
Eu adorava o amarelo do ouro, seu peso. Minha mãe tirava a aliança do dedo e me deixava pegá-la um pouco, comentando que aquele material se mantinha sempre puro e nunca perdia o brilho. “Está sentindo como é pesado?”, ela acrescentava. “Mais pesado até do que o chumbo.” Eu sabia o que era chumbo, pois já segurara os canos pesados e maleáveis que o encanador uma vez esquecera lá em casa. O ouro também era maleável, minha mãe explicou, por isso, em geral, o combinavam com outro material para torná-lo mais duro.
O mesmo acontecia com o bronze. Bronze! — a palavra em si já me soava como um clarim, pois uma batalha era o choque valente de bronze contra bronze, espadas de bronze em escudos de bronze, o grande escudo de Aquiles. O cobre também podia ser combinado com zinco para produzir latão, acrescentou minha mãe. Todos nós — minha mãe, meus irmãos e eu — tínhamos nosso menorá de bronze para o Hanuca. (O de meu pai era de prata.)
Eu conhecia o cobre — a reluzente cor rósea do grande caldeirão em nossa cozinha era cobre; o caldeirão era tirado do armário só uma vez por ano, quando os marmelos e as maçãs ácidas amadureciam no pomar e minha mãe fazia geléias com eles.
Eu conhecia o zinco — o pequeno chafariz fosco e levemente azulado onde os pássaros se banhavam no jardim era feito de zinco; e o estanho — a pesada folha-de-flandres em que eram embalados os sanduíches para piquenique. Minha mãe me mostrou que, quando se dobrava estanho ou zinco, eles emitiam um “grito” espacial. “Isso é devido à deformação da estrutura cristalina”, ela explicou, esquecendo que eu tinha 5 anos e por isso não a compreendia — mas ainda assim suas palavras me fascinavam, faziam-me querer saber mais.
Havia um enorme rolo compressor de ferro fundido no jardim — pesava mais de 200 quilos, meu pai contou. Nós, crianças, mal conseguíamos movê-lo, mas meu pai era fortíssimo e conseguia erguê-lo do chão. O rolo estava sempre um pouco enferrujado, e isso me afligia — a ferrugem descascava, deixando pequenas cavidades e escamas —, porque eu temia que o rolo inteiro algum dia se esfarelasse pela corrosão, se reduzisse a uma massa de pó e flocos avermelhados. Eu tinha necessidade de ver os metais como estáveis, como é o ouro — capazes de resistir aos danos e estragos do tempo.
Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Edith Modest (Sonhos)

Finalmente os computadores chegaram à escola. Os alunos olhavam para eles com orgulho, curiosidade e respeito. 
Naquela noite, Marilena foi dormir feliz. Muito romântica, sonhava com um príncipe encantado e, para ela, o computador era como um super-herói. Acreditava que ele transformaria sua vida. 
“Mas como? Não entendo nada de computação…” — pensou, insegura. E, para espantar a preocupação, virou-se na cama.
De repente, ouviu um ruído estranho. Olhou para o canto do quarto e… iluminado por uma luz azulada, lá estava ele: o computador. Intrigada, a menina levantou-se, aproximou-se, pé ante pé, e qual não foi seu espanto quando surgiu na tela do monitor um jovem simpático que foi se apresentando:
— Oi, Marilena! Prazer, eu sou o S.O.
— Oi! — respondeu ela, bastante surpresa. E pensou: “S.O.? Só espero que não seja de Serapiano Osmundo…”
Como se tivesse adivinhado, o rapaz explicou:
— S.O., de “Sistema Operacional”, viu? E foi você mesma quem me escolheu…
Sorrindo ao perceber o olhar de espanto da garota, S.O. completou: — …para coordenar os trabalhos aqui.
A menina sorriu encabulada e tentou fingir que sabia da existência de outros “sistemas operacionais” e da possibilidade de escolher entre eles. Depois, resolveu confessar:
— É, é… que eu nunca tive um — gaguejou ela. 
E comentou, preocupada:
— Computador… parece só para homem…
Aí foi a vez de S.O. ficar admirado:
— Para homem? Você nunca ouviu falar de Ada Lovelace? Em meados do século 19, Ada criou o primeiro programa de computador. Ela foi a primeira programadora do mundo!
— Nessa época já existia computador? — perguntou a menina, surpresa. 
— Bem, computador, computador… — hesitou ele. — Os programas de Ada eram pra ser usados num avô dos micros… um precursor do computador, planejado por Charles Babbage, um matemático e cientista meio maluco.
E o rapaz acrescentou com um olhar sedutor:
— Dizem que eles eram apaixonados.
Para Marilena, descortinaram-se novas perspectivas. 
E ela sorriu.
Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Coelho Neto (Mano) Parte 5

FLORES 
Não há ainda um mês que adormeceu em Deus o ser do meu ser, a minha criatura de amor e o leito em que ficou, no dormitório silencioso, já se recama de flores.
As que o acompanharam, em ramos e em capelas, fanaram-se depressa; outras substituíram-nas e também feneceram; em compensação as sementes esparzidas pelo jardineiro funeral, que cuida dos pequeninos canteiros mortuários, mal lhe caíram das mãos na terra fria logo rebentaram em vida, formando uma colcha de verdura que veste e enfeita a melancolia do jazigo.
E tal colcha matizou-se de violetas e margaridas, dálias, cravinas e miosótis.
Quem terá realizado esse milagre de florescência tão rápida? as nossas lágrimas? não! Tu, só tu, Primavera.
Será o remorso de no-lo haveres arrebatado que assim te faz solicita ou pensas, por acaso, que, escondendo em teu manto o túmulo querido farás com que o esqueçamos com a indiferença da terra que sorri em flores sobre a mocidade morta?
Como te enganas, traidora!
Mais prestígio tem a saudade em nossos corações do que tu na terra, cuja vida revigoras, porque, se fazes nascer flores, ela ressuscita o que mataste, evoca-o a todo o instante, trá-lo da sombra eterna e integração na vida e só não o refaz, tal como o tínhamos, porque o corpo lá está no abismo ao qual se desce por uma escada, cujos degraus aluem sobre o incluso como as águas se fecham sobre o náufrago.
A casa está cheia dele: sentimo-lo em toda ela, presente, e, fora, em toda a parte.
Ouvimo-lo. São os seus passos, é a sua voz que impregna o ambiente e sentimo-lo quando o relógio bate, devagar, as horas: as horas em que ele acordava e vinha dar-nos os bons dias; as horas em que ele saía; as horas, lentas e longas, da sua ausência; as horas alegres que o traziam do trabalho e as em que, à noite, ele regressava à casa, cauteloso, indo sempre até o nosso leito dar-nos, na vigília preocupada em que o esperávamos, a felicidade tranqüilizadora da sua presença. Todas essas horas continuam e ele continua a viver em todas elas.
O que nos aflige é a angústia de o não podermos sentir como o sentíamos outrora.
Vemo-lo como imagem refletida em espelho, vemo-lo, mas se tentamos tocá-lo, ai! de nos.
Suplício igual ao de Tântalo é o que nos inflige a saudade.
Vê-lo, ouvi-lo no coração, senti-lo em toda a parte, tê-lo sempre presente em nós e tão distante como a mais remota das estrelas e todas as esperanças…
Temo-lo conosco, na família, que o não esquece.
O seu lugar vazio espera-o sempre.
Quando nos aparece, projetado pelo coração, fala, mas mussitantemente apenas, sem palavras sonoras: batem-lhe os lábios como asas de pássaro cativo. Caminha, e os passos não lhe soam. Estende-nos os braços e nunca o alcançamos, porque, entre nós, interpõe-se uma lâmina, como a de cristal de espelho, que se chama: infinito.
Temo-lo tão perto e tão longe, conosco e para sempre apartado, vivo na imagem, só na imagem que é o reflexo da saudade. 
Seria, talvez, melhor que os mortos partissem de vez, sem deixar rastro, levando consigo para o túmulo todo o ser. Mas não! partem como o sol tramonta: deixando a terra em escuridão, mas cheia de calor. E esse calor na terra é vida; no coração é saudade.
Assim é na saudade dos vivos que os mortos se eternizam, nela é que eles continuam a viver: é o paraíso de tristeza, como o esquecimento é o inferno dos que não souberam fazer-se amar.
E em quantos paraísos de amor vive o espírito querido! Em quantos corações soa o seu nome em apelo lamentoso!
As próprias coisas parecem sentir-lhe a ausência.
Que vazio à mesa e que silêncio! É que ele já se não assenta entre os irmãos, ainda que o seu lugar seja mantido como se ele apenas se haja demorado e possa aparecer de um momento para outro.
Mas ninguém lhe serve o prato, o seu talher não se descruza, não se lhe desdobra o guardanapo, o copo mantem-se-lhe vazio, o seu nome é pronunciado a medo, para não despertar nos corações a dor; e a luz, que incide sobre a cadeira que ele ocupava, já não tira a sombra que lhe traçava o perfil na parede.
Essa sombra ficou e, para sempre, em nossos corações.
E tudo que resta daquele corpo airoso, que era a coluna robusta do meu lar, lá está no cemitério em flores.
Flores, eis o que de meu filho fez a Primavera.
Todo o riso, todo o viçor de uma sadia e honesta juventude, toda a bondade de um coração magnânimo, toda a energia de um caráter espartano, toda a nossa esperança, todo ele enfim, reduziu-se ao que exorna a terra estreita de um túmulo: flores.
Os que passarem por elas, vendo-as lindas, como se ostentam e ignorando-lhes a origem dolorosa, louvarão, decerto, a Primavera que as tirou da morte, mas os que sabem o que elas representam e o que encobrem na terra em que nasceram, esses…
A CASA
Mudar-nos… Por que? se a casa toda está impregnada da sua presença, do seu ser, como o vaso que conteve essência longamente lhe conserva o aroma?
Por que mudar-nos deixando o lar onde, por vezes em eco, os seus passos ressoam, a sua voz timbra serena, e até a sua sombra desliza pelas paredes, como inveterado hábito que se repete inconscientemente?
Quantas vezes, do meu leito, ouço ranger a escada e sinto-o que sobe vagarosamente, ensurdecendo os passos para não despertar os que dormem!
Dar-se-á que os degraus conservem a impressão do seu andar e trepidem, como os móveis estalam, à noite, retraindo ou dilatando as fibras ao contato do ar? 
As tábuas não soam por si e, se estalidam, é que algum piso as recalca.
Paredes de pedra e cal, assoalhos de madeira morta, é possível que dele vos lembreis às horas justas em que ele entrava, pé ante pé, subtil, sem que o sono, que dominava a casa, fosse perturbado?
Se o lar assim se recorda como havemos nós de abandonar esse cantinho cheio de reminiscências, (memória inerte em que ele persiste), porque nele viveu toda a sua alegre infância, nele passou toda a sua adolescência e nele começava a gozar a mocidade?
Se o túmulo, que lhe contém o corpo, não o relega, a casa, que lhe guardou o espírito, não o havia de repudiar, decerto.
Em todos os cantos brincou, saltou, espalhou risos. O raio de sol que, todas as manhãs, entra pela janela junto à qual ficava a sua cama, mal o dia aponta, lá vem insinuando-se no mesmo filão de ouro com que, desde pequenino, lhe enfeitava o sono.
A lâmpada, que o alumiava, acende-se todas as noites; e tudo continua como dantes.
Ao passar junto do meu quarto sinto-o, lá dentro, andar, mover-se. Faro, à escuta. Tudo cessa.
Para que insistir? Para que hei de, com a curiosidade ansiosa do meu desespero, violar o segredo que já não é da vida?
Se ele ali está e não me aparece, ele! Tão meu amigo, é porque não deseja ser visto.
Deixemo-lo com o seu misterioso pudor. É o filho em visita ao lar paterno.
Bem-vindo seja e que Deus o abençoe.
E se, ouvindo aos que nos aconselhavam, nos houvéssemos mudado…?! Pobre espírito!
Quem sabe o que sofreria recorrendo a casa e achando-a habitada por outros, transformada em tudo – na disposição dos móveis, no arranjo dos aposentos, com outros hábitos, outras vozes.
E a própria casa não sentiria com ele? Talvez!
Se vamos piedosamente visitar-lhe o túmulo no cemitério, porque havíamos de fugir ao ambiente onde o seu espírito demora? Lá, debaixo da terra, é a morte; aqui, em todos os ângulos, é a vida: o que ficou, o que existe, o que não parece: ele.
Mudar-nos… Isso seria abandoná-lo, desertar o ninho da saudade, o canto em que ele viveu. O mesmo seria arrancarmo-lo do coração desprezando-o no esquecimento. Se a casa o retém, nós é que o havíamos de repelir? Não!
Onde uma vida se exala fica sempre vestígio. Os tímidos receiam-no; os fortes, os que verdadeiramente amam, com as veras da alma, instam por encontrá-lo, como quem rastreia, em caminho, pegadas de alguém que procura.
Mudar-nos… Não! Fiquemos onde ele perdura.
Longe, entre outras paredes, que nunca lhe copiaram o corpo em sombra; com outras portas, que nunca se lhe abriram; com outros aposentos nunca, em vida, visitados por ele, como o poderíamos sentir?
Aqui, não. Aqui ele está conosco: é a sua casa. Que nela viva.
A LUZ 
Acordo. Ainda é noite. O céu esfuma-se na sombra e o perfil umbroso da montanha, fronteira à minha janela, destaca-se no dilúculo. Respira de leve a aragem.
Aclara aos poucos. Sente-se a luz em marcha. Já as árvores aparecem e as casas realçam, brancas, na massa da verdura.
Chia uma cigarra; outras respondem vividas e um coro de chilreios enche o silêncio pálido. É o despertar nos ramos.
Debruço-me à janela e, em êxtase, contemplo o maravilhoso espetáculo do amanhecer.
O céu recama-se de cores: e uma palheta o oriente e as tintas, que dele escorrem, broslam a paisagem, colorindo-a.
Chove polilha de ouro. Abre-se de todo o azul; responde a terra com o seu verde.
O primeiro raio de sol recena um outeiro e logo as ervas rebrilham. A claridade alastra.
Enche-se o ar de vôos ágeis. Estrídulo recresce o canto matinal dos pássaros.
Um sino soa, límpido.
Passam trabalhadores ainda estremunhados; rodam veículos.
Ressoa soturnamente, longínqua, uma sereia de fábrica.
São os rumores da vida que recomeça.
A vida… Tudo ressurge! Entre as folhas rasteiras andam insetos minúsculos, formigas desfilam em fieiras.
Tudo acorda e entra em atividade: os elementos da natureza, o homem, os animais, os mínimos seres, as coisas, porque as folhas vibram, as flores exalam, o mesmo pó levanta-se. É a vida!…
O relógio bate sonoramente: são os passos do tempo, as horas.
O próprio invisível agita-se, porque é ele, o vento, que meneia, brando e brando, as folhas.
Entretanto, em todo esse deslumbramento ativo, há escuridão e silêncio, falta alguma coisa que minha alma procura em vão.
Já o sol rebrilha, fúlguro. Abrem-se todas as janelas: são as casas que acordam. Foi-se o sono dentro da noite.
E ele? Por que não acorda? Por que não vem do sono? Por que não o despertará a luz; ela, que fez o milagre de vencer a noite no céu, na terra e nos mares; ela, que desencantou a natureza toda; ela, que fez desabrochar a manhã brilhante; ela, onipotente; ela, eterna; ela divina, por que não despertará o que adormeceu?
E o sol ressurge; o sol, que é tudo. E um pouco de terra humana resiste na morte ao reclamo miraculoso da madrugada. 
De que me serve, a mim, todo o esplendor da tua claridade, ó Luz, se, em vez de trazer-me alegria, mais me entristece o coração?
Fazes o dia, tiras o sol do oriente, és a Vida e não tens força para arrancar de um túmulo um pouco de terra.
De que te serve o Poder? E, se o tens, porque só o manifestas no céu, ressuscitando o dia, e deixas a terra cheia de saudades?
És como os pródigos que se dissipam em festins e negam um mendrugo ao pobre que lhes estende a mão.
––––––––
Continua…
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Claudia Werneck (Não Somos Figurinhas!)

Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Família, padrinhos, vizinhos e professores não conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus iguais. 

“Mas o problema é justamente esse”, gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o pêlo macio de seu gato magro, branco e preto — o Bandidão. “Não somos iguais, não somos iguais, é tudo mentira. Eu olho para a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tatá e só vejo diferenças.” 

Os adultos se entreolhavam desanimados e pediam mais explicações. “Como diferentes, minha filha? Somos seres humanos, gente igual a você, iguais entre nós: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma língua, um cérebro, dez dedos na mão, dez no pé…”

Bandidão não estava nem aí para aquela conversa sempre tão óbvia. Entediado, deu um pinote, abandonando o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurança, ouviu sair dos lábios dela, também como um pinote, algo que a garota nunca havia dito: “E quem não tem duas pernas? Ou não escuta? Ou tem dois olhos mas um é de vidro? Ou é muito feio? Aí não é gente? Para ser gente não basta nascer? E os bebês, não são diferentes? Por que vocês insistem em me convencer de que somos iguais? Gente não é como figurinha, que nós arrumamos em fila, deixando de lado as amassadas e as rasgadas para decidir o que fazer com elas depois”.

Bandidão estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina não tinha medo de gente. Acuada, sofria por outras razões. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento dos adultos. 

Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angústia para os pais, ela experimentou uma sensação nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez, sentia prazer em ser gente. Dedicou um último olhar de amor para Bandidão e seguiu pela rua. 

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Coelho Neto (Mano) Parte 4

SAUDADE

PRIMAVERA

Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?

Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe aquieta a ganância.

O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.

Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança de dois simples; era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.

Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza de um lar.

Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.

Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada doméstica

Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.

Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores jucundos.

Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.

E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas. 

Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.

Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.

Primavera, que mal te fizemos nós?

Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.

Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?

Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.

Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.

Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!

Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?

E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo escondendo-o na cova para sempre!

O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste do que levaste?

Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?

Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.

Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de nossa velhice?

Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?

CONTRASTE 

Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.

Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.

O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.

Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.

Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.

Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.

Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.

Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.

Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.

Era o sinal da partida.

Uma voz sussurrou-me:

“Que iam fechar o caixão”.

Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado

Que fazer?

Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.

Retiraram-lhe o crucifixo do peito.

Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito suave já devia achar-se na presença de Deus.

Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar – algumas flores que lhe haviam murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração. 

Um a um alguém foi apagando os círios.

Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes noturnas?

Fecharam o caixão florido. Que mais?!

Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos. Tudo estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.

Levaram-no.

E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se – vazia da gente, vazia das flores, vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.

E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável à do azul infinito.

E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.

E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última esperança.

E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.

Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.

E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.

A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.

Águas que não cessam são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?

No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.

Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses…

Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.

Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.

Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.

Pobre mãe!

Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores comunicaram-se. 

Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.

Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.

Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.

E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?

Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.

E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali saíra.

E, para o seu espírito, foi melhor assim.

Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e clamores. Quanta vez…

A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!

E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeando-se do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.

Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.

E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!
––––––––
Continua…

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Tatiana Belinky (Recontado de um poema de Schiller: A Luva)

F oi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.

Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e aumentando a tensão do ambiente.

Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos… E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:

“Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva.”

O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e admiração de todo o público presente.

A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de promessas, falou:

“Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges.”

Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa: “Dispenso a vossa gratidão, senhora!”, ele disse.

E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.

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Coelho Neto (Mano) Parte 3

A MORTE

Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.

Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.

Silêncio trágico continha a todos, suspensos.

Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?

Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.

De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:

– Que horas são?

Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina metálica: “Sete!”

Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.

Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura da luz.

O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para o oratório buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.

E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.

Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.

Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.

Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo se apagar.

Alguém chamou por ele, em pranto.

Ai! de nós…

Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.

É um caixão que se fecha. Nada mais.

CONSUMMATUM…

Onde estaria eu quando o desceram para a minha sala de trabalho?

Onde estaria eu que não dei pelo trânsito cruciante?

Quando entrei no quarto e vi a cama deserta foi tal o alvoroço no meu coração que estaquei suspenso, entendo um grito. Seria possível!? Olhei em volta… Mas toda aquela desordem – velas ainda acesas, o silêncio, o lúgubre vazio…

Se o corpo sai com vida deixa um misterioso sinal de si: o ausente afigura-se-nos presente; o morto, não!

A morte arrasta tudo consigo e ali nada mais havia, mais nada senão um sulco revolto como o que fica nas águas à passagem de um barco – fundo, mas de breve duração; agitado, mas só em efêmeras espumas.

Onde estaria eu quando o desceram?

E foi diante daquele vazio que senti toda a grandeza do meu amor. É pelo diâmetro e profundidade da cova que se pode avaliar a extensão das raízes da árvore derrubada.

Onde estaria eu quando o desceram? Afastaram-me, decerto, para transportá-lo. Foi melhor assim.

Não há hora mais triste que a do ocaso, hora do descer da luz. A noite é o irremediável, com a consolação das estrelas, que são lágrimas.

Fizeram bem em poupar-me à cena triste do descimento do corpo frio. Foi como se me adormecessem para uma operação dolorosa.

Quando dei acordo de mim tudo estava consumado.

A CHAVE

Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.

Não tornou do pélago o anel lançado pelo tirano às vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou, devolvendo-o nas entranhas de um peixe?

Mergulhadores, assim como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias e covas submarinas, a jóia imersa trazendo-a à tona e restituindo-a ao que a perdeu ou, em instantes de desvario, atirou ao mar.

Todos os abismos têm limite – de um só, o túmulo, ninguém mediu ainda a profundidade. Quantos lá têm amores, desfeitos em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos meios, todos frustrâneos, ilusões que, em vez de consolarem, mais aumentam o desespero.

O que se acredita ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.

Quantos infelizes, deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam na vida sem o que tinham para guiá-los, que era a Luz da razão, apagada no mergulho em que se precipitaram!

A pequenina chave que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá serventia. Fez o que lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto, guardo-a como a mais preciosa das minhas relíquias. Para que? De que me serve se, com ela, não abro mais do que as fontes do coração dando livre curso às lágrimas saudosas?

Vê-la, tocá-la, tê-la perto de mim é lembrar-me de ti, fechado, como estás, para o sempre, com o selo inviolável da Eternidade.

Em minhas mãos essa pequenina chave, que deu a grande volta no círculo da tua Vida, encerrando-a, pode ser comparada a um facho nas mãos de um cego – porque ainda que ele o possua e sinta em nada lhe aproveita.

Que mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita descer aos penetrais do túmulo e de lá trazer o meu tesouro?

De que me serve a chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se tanto que o próprio Pensamento não lhe chega à jazida?

Admitindo, porém, que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei com mão tremente e lágrimas a jorros, no instante em que, perdida toda a esperança, entreguei-te à cova e a Deus, teria eu ânimo bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos de ti deixados pelo Céu e pela terra?

Para que profanar despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração meigo e alma inteligente – força, movimento e afeto: lume no olhar, idéia nas palavras, amor no gesto, heroísmo, dedicação e fé? um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores no inverno.

Árvore!…

A árvore reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao calor do sol da primavera, prolonga a vida em ressurreições continuas. O corpo, uma vez tombado, resolve-se em pó que se não levanta.

De que me serve possuir a chave!… Antes eu a tivesse lançado ao mar, assim não teria ante os olhos essa promessa que se não cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de um segredo que se não revelará jamais.

A alma, entretanto, apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação e martírio.

E a chave aí jaz, entre as minhas relíquias; lembrando-me o que fechei para o sempre: o teu corpo e, com ele, entre as flores que o cercaram, toda a minha ventura. 
––––––––

Continua…

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Ricardo Azevedo (Se a Terra Não Existisse, a Gente Pisava Onde?)

Tênis é de lona e borracha. Cueca é de pano e elástico. Caderno é de arame e folha de papel. Televisão é de plástico com uma antena em cima e uma tela na frente. 

Casa é feita de telhado, parede, piso, porta e janela. 

Vaca é de couro, chifre e quatro tetas pingando leite. Cachorro é um ônibus peludo cheio de pulgas. Ser humano é feito de carne, osso, coração e idéias na cabeça.

E o mundo em que vivemos?

O mundo é um monte de terra cercada de água por todos os lados.

A água é o mar, o rio, o lago, a chuva, a poça, a lágrima e o cuspe.

A terra é a terra mesmo.

Tem gente que pensa que terra só serve para cavar buraco no chão, para ser hotel de minhoca, para enfiar poste de luz ou então para sujar o pé de lama em dia de chuva, mas não é nada disso.

Se não fosse a terra, a gente pisava onde?

Se não fosse a terra, a gente construía nossa casa onde?

E as cidades? E as estradas? E os campinhos de futebol?

Sem a terra a gente não ia jogar bola nunca mais!

Uma vez eu tive um sonho. Sonhei que estava dormindo com vontade de fazer xixi. Continuei sonhando e pulei da cama. Pobre de mim! Quando pisei no chão, descobri que naquele sonho não existia chão. Lá fui eu caindo, despencando, voando, esvoaçando. O mundo ali era um lugar sem terra, por isso tudo vivia boiando no ar. Saí do quarto, fui voejando, passei pela sala cheia de cadeiras, móveis e mesas voando e cheguei no banheiro. Lá dentro, o chuveiro, a pia e a privada pareciam umas coisas brancas flutuando no espaço. Fui tentar fazer xixi, mas a privada não parava quieta. A vontade apertava cada vez mais. Tentei fazer pontaria, caprichei na mira, mas não deu. No fim, o sonho acabou. Acordei todo molhado com meu irmão, lá embaixo, gritando socorro. Acontece que a gente dorme em cama beliche, eu em cima e ele embaixo.

Meu irmão me xingou de tudo quanto foi nome. Expliquei a ele que se não fosse a terra firme o beliche estaria voando e aí, sim, ia ser muito pior.

Pensando bem, a terra é a coisa mais importante do mundo em que vivemos. Ela é o solo, o chão, a gleba, o piso, o porto, o lugar onde a gente fica em pé e constrói a vida.

Para falar a verdade, a terra é uma espécie de mãe. 

A mãe de todos nós. 

De onde vêm as árvores para dar sombra e segurança? Da terra.

De onde vêm as frutas para a gente chupar? Da terra.

De onde vem a nascente do rio? E a flor? E o passarinho? E a onça? E a tartaruga? E a borboleta? E o macaco? E o besourinho? E todos os bichos do mundo inteiro menos os peixes e as estrelas-do-mar?

Sem a terra, não ia ter nem milho, laranja, caqui, jabuticaba, banana, pêra, uva, cacau, pitanga, mexerica, romã, maçã, abacate, melancia, abacaxi, nem amendoim nem nada.

O mundo ia ser só um monte de coisa nenhuma cercado de água para todos os lados. 

Mas a terra tem seus truques. Ela não gosta de ser maltratada, não senhor!

Quando fazem queimadas ou destroem o mato ou enchem o chão de lixo e porcaria a terra fica triste vira deserto, corpo árido, seco, estéril, que não dá mais nada.

Ela, que era generosa, formosa, úmida, florida, risonha, fofa, macia, fértil, cheia de sombra, cheia de perfume, cheia de riachinhos, borboletas, besourinhos, bichinhos e bichões, de repente fica tão dura e rachada que só consegue inventar pó, areia e desolação.

Se a terra fosse um deserto ia ter chão, mas como a gente ia ficar?

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Você Me Chamou de Feio, Sou Feio mas Sou Dengoso, publicado pela Fundação Cargill. Disponível na Revista Nova Escola: Contos

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Georgina Mart (Releitura de Esopo: No Tempo em que os Bichos Falavam)

Houve um tempo em que os bichos falavam, e eles falavam tanto que Esopo resolveu recolher e contar as histórias deles para todo mundo. 

Esopo era escravo de um rei da Grécia, e divertia-se inventando uma moral para as histórias que ouvia dos animais.

Na verdade, nem todos os moradores do país eram capazes de entender a linguagem dos animais, mas Esopo era. Sobretudo dos pequeninos, que falavam muito baixinho, como por exemplo os ratinhos que moravam num buraco da parede da cozinha do palácio.

Um dia, quando limpava o chão da cozinha, Esopo ouviu uns ruídos que vinham de dentro do buraquinho. Os ratinhos estavam muito agitados e preocupados pois, o rei havia colocado um gato grande e forte para tomar conta dos petiscos reais e o tal gato não era de brincar em serviço, já tinha devorado vários ratos.

Esopo apurou os ouvidos e pôde ouvir tudo o que os ratinhos diziam:

Um deles, muito espevitado, parecia ser o líder e, de cima de uma caixa de fósforos, discursava:

— Meus amigos, assim não é mais possível, não temos mais paz e tudo porque o rei resolveu trazer aquela fera para cá. Precisamos fazer alguma coisa, e logo, porque senão esse gato vai acabar com a nossa raça!

Era uma assembléia de ratos e todos estavam muito empenhados em solucionar o problema que os afligia: um gato, grande e forte, que o rei havia mandado colocar na cozinha.

Já tinham perdido vários amigos nos dentes afiados da fera: o Provolone, o Roquefort, o Camembert e o pobre Tatá, o mais amado de todos.

Planejaram, planejaram e não conseguiram chegar a nenhuma conclusão que agradasse a todos. Precisavam de estratégias eficazes e seguras.

Uns achavam que deveriam matar o tal gato; outros diziam que era impossível: “Como matar uma fera daquelas?”

Horácio estava quase convencido de que a sina de seu povo era morrer entre os dentes do gato. Com lágrimas nos olhos, já ia descendo da caixa de fósforos quando Frederico, um ratinho muito tímido que nunca falava, resolveu dar sua opinião:

— Como vocês sabem, eu não gosto muito de falar, por isso serei rápido, mas antes vocês vão responder a uma pergunta: Por que esse gato é tão perigoso para nós, se somos tão ágeis e espertos?

E Horácio respondeu:

— Ora, Frederico, esse gato é silencioso, não faz nenhum barulho. Como é que vamos saber quando ele se aproxima?

— Exatamente como eu pensei. Me perdoem a modéstia, mas acho que a idéia que tive é a melhor de todas as que ouvi aqui .Vejam só, é simples: Vamos arrumar um guizo, pode ser até aquele que pegamos da roupa do bobo da corte. Lembram? Aquele que achamos bonitinho e que faz um barulho enorme.

Os ratos não estavam entendendo nada, para que serviria um guizo?

Frederico tratou de explicar: 

— A gente pega o guizo e coloca no pescoço do gato. Quando ele se aproximar, vamos ouvir o barulho e fugir. Não é simples? 

Todos adoraram a idéia. Era só colocar o guizo que todos ouviriam o gato se aproximar.

Todos os ratos foram abraçar Frederico e estavam na maior euforia quando, de repente, um ratinho que não parava de roer um apetitoso pedaço de queijo, resolveu perguntar:

— Mas quem é que vai colocar o guizo no pescoço do gato?

Todos saíram cabisbaixos. Como não haviam pensado naquilo antes?

Era o fim da euforia dos ratinhos. Para Esopo, a moral da história era a seguinte: “Não adianta ter boas idéias se não temos quem as coloque em prática”. Ou ainda: “Inventar é uma coisa, colocar em prática é outra”.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 9, final

Camilloff

– Não! nunca! – rugi com furor, amarrotando a carta, monologando a largas passadas pelo melancólico claustro. – Não, por Deus ou pelo Demónio! Ir de novo bater as estradas da China? Jamais! Oh sorte grotesca e desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoadora de Marselha a Xangai, sofro as pulgas das bateiras chinesas, o fedor das vielas, a poeirada dos caminhos áridos – e para quê? Tinha um plano, que se erguia até aos Céus, grandioso e ornamentado como um troféu: por sobre ele cintilavam, de alto a baixo, toda a sorte de acções boas: e eis que o vejo tombar ao chão, peça a peça, numa ruína! Queria dar o meu nome, os meus milhões e metade do meu leito de oiro a uma senhora Ti Chin-Fu – e não mo permitem os prejuízos sociais de uma raça bárbara! Pretendo, com o botão de cristal de mandarim, remodelar os destinos da China, trazer-lhe a prosperidade civil – e veda-mo a lei imperial! Aspiro a derramar uma esmola sem fim por esta populaça faminta – e corro o perigo ingrato de ser decapitado como instigador de rebeliões! Venho enriquecer uma vila – e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia enfim dar a abundância, o conforto que louva Confúcio, à família Ti Chin-Fu – e essa família some-se, evapora-se como um fumo, e outras famílias Ti Chin-Fu surgem, aqui e além, vagamente, ao sul, a oeste, como clarões enganadores… E havia de ir a Cantão, a Kao-Li, expor a outra orelha a tijolos brutais, fugir ainda pelos descampados, agarrado às crinas de um potro? Jamais!

Parei: e de braços erguidos, falando às arcadas do claustro, às árvores, ao ar silencioso e fino que me envolvia:

– Ti Chin-Fu! – bradei. – Ti Chin-Fu! Para te aplacar, fiz o que era racional, generoso e lógico! Estás enfim satisfeito, letrado venerável, tu, o teu gentil papagaio, a tua pança oficial? Fala-me! Fala-me!…

Escutei, olhei: a roldana do poço, àquela hora do meio-dia, rangia devagar, no pátio: sob as amoreiras, ao longo da arcaria do claustro, secavam em papel de seda as folhas de chá da colheita de Outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um sussurro lento de declinações latinas: era uma paz severa, feita da simplicidade das ocupações, da honestidade dos estudos, do ar pastoril daquela colina, onde dormia, sob um sol branco de Inverno, o burgo religioso… E com aquela serenidade ambiente, pareceu-me receber na alma, de repente, uma pacificação absoluta! 

Acendi com os dedos ainda trémulos um charuto, e disse, limpando na testa uma baga de suor, esta palavra, resumo de um destino:

– Bem, Ti Chin-Fu está contente.

Fui logo à cela do excelente padre Giulio. Ele lia o seu Breviário à janela, debicando confeitos de açúcar, com o gato do convento no colo.

– Reverendíssimo, volto à Europa… Algum dos nossos bons padres vai por acaso em missão, para os lados de Xangai?…

O venerável superior pôs os seus óculos redondos: e folheando com unção um vasto registo em letra chinesa, ia assim murmurando:

– Quinto dia da décima Lua… Sim, há o padre Anacleto para Tien-Tsin, para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodécima Lua, o padre Sanchez para Tien-Tsin também, para a obra do Catecismo aos Órfãos… Sim, caro hóspede, tem companheiros para leste…

– Amanhã?

– Amanhã. É dolorosa a separação nestes confins do mundo, quando as almas se compreendem bem em Jesus… O nosso padre Gutierrez que lhe faça um bom farnel… Nós já o amávamos como irmão, Teodoro… Coma um confeito, são deliciosos… As coisas estão em feliz repouso quando se acham no seu lugar e elemento natural: o lugar do coração do homem é o coração de Deus: e o seu está nesse asilo seguro… Coma um confeito… Que é isso, meu filho, que é isso?

Eu estava colocando sobre o seu Breviário, aberto numa página do Evangelho de Pobreza, um rolo de notas do Banco de Inglaterra; e balbuciei:

– Meu reverendíssimo, para os seus pobres…

– Excelente, excelente… O nosso bom Gutierrez que lhe faça um farnel copioso… Amen, meu filho… In Deo omnia spes…

Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E aí vamos para Hiang-Hiam, vila negra e murada, onde atracam os barcos que descem a Tien-Tsin. Já as terras ao longo do Pei-Hó estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas já a água ia gelando: e embrulhados em peles de carneiro, em roda do fogareiro, à popa do barco, os bons padres e eu íamos conversando de trabalhos de missionários, de coisas da China, por vezes dos interesses do Céu – passando em redor sem cessar o grosso frasco da genebra…

Em Tien-Tsin separei-me daqueles santos camaradas. E daí a duas semanas, por um meio-dia de sol tépido, passeava, fumando o meu charuto e olhando a azáfama dos cais de Hong-Kong, no tombadilho do «Java», que ia levantar ferro para a Europa. 

Foi um momento comovente para mim, aquele em que vi, às primeiras voltas do hélice, afastar-se a terra da China.

Desde que acordara, nessa manhã, uma inquietação surda recomeçava a pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera àquele vasto império para acalmar pela expiação um protesto temeroso da Consciência: e por fim, impelido por uma impaciência nervosa, aí partia, sem ter feito mais que desonrar os bigodes brancos de um general heróico, e ter recebido pedradas pela orelha numa vila dos confins da Mongólia.

Estranho destino, o meu!…

Até ao anoitecer estive encostado sombriamente à borda do paquete, vendo o mar liso, como uma vasta peça de seda azul, dobrar-se aos lados em duas pregas moles: pouco a pouco grandes estrelas palpitaram na concavidade negra, e o hélice na sombra ia trabalhando em ritmo. Então, tomado de uma fadiga mole, fui errando pelo paquete, olhando, aqui e além, a bússola alumiada; os montões de cabrestantes; as peças da máquina, numa claridade ardente, batendo em cadência; as fagulhas que fugiam do cano, num rolo de fumaraça negra; os marinheiros de barba ruiva, imóveis à roda do leme; e as formas dos pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na cabina do capitão, um inglês de capacete de cortiça, cercado de damas que bebiam conhaque, ia tocando melancolicamente na flauta a ária de «Bonnie Dundee»…

Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já estavam apagadas: mas a Lua que se erguia ao nível da água, redonda e branca, batia o vidro da cabina com um raio de claridade: e então, a essa meia-tinta pálida, lá vi, estirada sobre a maca, a figura pançuda, vestida de seda amarela, com o seu papagaio nos braços!

Era ele, outra vez!

E foi ele, perpetuamente! Foi ele em Singapura e em Ceilão. Foi ele erguendo-se dos areais do deserto ao passarmos no canal de Suez; adiantando-se à proa de um barco de provisões quando parámos em Malta; resvalando sobre as rosadas montanhas da Sicília; emergindo dos nevoeiros que cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no Cais das Colunas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da Rua Augusta; o seu olho oblíquo fixava-me – e os dois olhos pintados do seu papagaio pareciam fixar-me também…

VIII

Então, certo que não poderia jamais aplacar Ti Chin-Fu, toda essa noite no meu quarto ao Loreto, onde como outrora as velas inumeráveis das serpentinas davam aos damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir de mim, como um adorno de pecado, esses milhões sobrenaturais. E assim me libertaria talvez daquela pança e daquele papagaio abominável! 

Abandonei o palacete ao Loreto, a existência de nababo. Fui, com uma quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e voltei à repartição, de espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil réis mensais, e a minha doce pena de amanuense!…

Mas um sofrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me arruinado – todos aqueles que a minha opulência humilhara cobriram-me de ofensas, como se alastra de lixo uma estátua derrubada de príncipe decaído. Os jornais, num triunfo de ironia, achincalharam a minha miséria. A Aristocracia, que balbuciara adulações aos pés do nababo, ordenava agora aos seus cocheiros que atropelassem nas ruas o corpo encolhido do plumitivo de secretaria. O Clero, que eu enriquecera, acusava-me de «feiticeiro»; o Povo atirou-me pedras; e a Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granítica dos bifes, plantava as duas mãos à cinta, e gritava:

– Ora o enguiço! Então que quer você mais? Aguente! Olha o pelintra!…

E apesar desta expiação, o velho Ti Chin-Fu lá estava sempre à minha ilharga, obeso e cor de oca – porque os seus milhões, que jaziam agora estéreis e intactos nos bancos, ainda de facto eram meus! Desgraçadamente meus!

Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo no meu palacete e no meu luxo. Nessa noite, de novo o resplendor das minhas janelas alumiou o Loreto: e pelo portão aberto, viram-se como outrora negrejar, nas suas fardas de seda negra, as longas filas de lacaios decorativos.

Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame Marques chamou-me, chorando, «filho do seu coração». Os jornais deram-me os qualificativos que, de antiga tradição, pertencem à Divindade: fui o Omnipotente, fui o Omnisciente! A Aristocracia beijou-me os dedos como a um tirano: e o Clero incensou-me como a um ídolo. E o meu desprezo pela humanidade foi tão largo – que se estendeu ao Deus que a criou.

Desde então uma saciedade enervante mantém-me semanas inteiras num sofá, mudo e soturno, pensando na felicidade do não-ser…

Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de mim o Personagem vestido de preto com o guarda-chuva debaixo do braço, o mesmo que no meu quarto feliz da Travessa da Conceição me fizera, a um ti-li-tim de campainha, herdar tantos milhões detestáveis. Corri para ele, agarrei-me às abas da sua sobrecasaca burguesa, bradei:

– Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da miséria! 

Ele passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e respondeu com bondade:

– Não pode ser, meu prezado senhor, não pode ser…

Eu atirei-me aos seus pós numa suplicação abjecta: mas só vi diante de mim, sob uma luz mortiça de gás, a forma magra de um cão farejando o lixo.

Nunca mais encontrei este indivíduo. – E agora o mundo parece-me um imenso montão de ruínas onde a minha alma solitária, como um exilado que erra por entre colunas tombadas, geme, sem descontinuar…

As flores dos meus aposentos murcham e ninguém as renova: toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes vêm, na brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu choro – como se avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias defuntas…

Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e que os reparta.. 

E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: «Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!»

E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!

Angers – Junho de 1880.

FIM

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Tatiana Belinky (História do Folclore Paulista Recontada: Viola no Saco)

Vocês sabem por que quando alguém perde uma discussão, ou coisa assim, e tem de se calar, se diz que “fulano meteu a viola no saco”? Pois eu vou contar. 

Há muito tempo, quando os bichos falavam e muitas coisas eram diferentes, havia muita festança no mundo. Um dia houve uma festa no céu e todos os bichos foram convidados. Entre eles, um dos mais esperados era o Urubu, porque as danças dependiam das músicas que ele tocava na viola. 

No dia da festa, o Urubu enfiou sua viola no saco e, antes de iniciar a viagem, foi beber água na lagoa. Lá encontrou o Sapo Cururu, que se secava ao sol. Enquanto o Urubu bebia, o espertalhão do Cururu, que também queria ir à festa, se escondeu dentro da viola para viajar de carona. 

Quando o Urubu chegou ao céu, foi muito bem recebido, pois todos esperavam por ele para começar a dançar o cateretê e a quadrilha. Mas antes o chamaram para beber umas e outras. 

O Urubu foi, deixando a viola encostada num canto. O Cururu aproveitou para pular da viola sem ser visto e foi se empanturrar com os quitutes da festa. O Urubu também comeu e bebeu até não poder mais e não viu que o Cururu, aproveitando uma distração sua, se escondera de novo dentro da viola para tornar a tirar uma carona na volta para a terra. 

Quando chegou a hora de voltar, o Urubu guardou a viola no saco e saiu voando de volta para casa. Durante o vôo, estranhou que a viola estivesse tão pesada. “Na vinda foi fácil, mas na volta está difícil. Será que fiquei fraco de tanto comer e beber?”, pensou ele. Por via das dúvidas, examinou o saco com a viola e acabou descobrindo o malandro do Sapo Cururu agachado lá dentro. Furioso por ser usado desse jeito, o Urubu começou a sacudir o saco com a viola, para despejar o Cururu lá do alto e se ver livre dele. 

O Cururu, com medo de se esborrachar no chão pedregoso lá em baixo, recorreu à sua proverbial esperteza e começou a gritar: “Urubu, Urubu, me jogue sobre uma pedra, não me jogue na água, que eu morro afogado!”.

O Urubu, tolo, querendo se vingar do Sapo, viu lá de cima uma lagoa e tratou logo de despejar o Sapo dentro d’água, que era pra ele se afogar. O espertalhão do Cururu, que só queria era isso mesmo, saiu nadando, feliz da vida. O bobão do Urubu só não ficou “a ver navios” porque não havia navios naquela lagoa. E é por isso que, quando alguém perde a partida e tem de sair quieto e calado, dizem que “fulano teve de meter a viola no saco”…

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 8

Corri à varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno dos carros derrubados: os machados reluziam caindo sobre a tampa dos caixotes: o coiro das malas abria-se fendido à faca por mãos inumeráveis: no alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barracão errarem tochas, numa dispersão de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo ao longe uivar os cães; e de todas as vielas desembocava, corria populaça, sombras ligeiras, agitando chuços e foices recurvas…

Subitamente, na loja térrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia pelas portas despedaçadas: decerto me procuravam, supondo que eu teria comigo o melhor do tesouro, pedras preciosas ou oiros… O terror desvairou-me. Corri a uma grade de bambus para o lado do pátio. Demoli-a, saltei sobre uma camada de mato grosso, num cheiro acre de imundícies. O meu pónei, preso a uma trave, relinchava, puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre ele, empolguei-lhe as crinas…

Nesse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma horda com lanternas, lanças, num clamor de delírio. O pónei, espantado, salta um regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um tijolo bate-me no ombro, outro nos rins, outro na anca do pónei, outro mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente às crinas, arquejando, com a língua de fora, o sangue a gotejar da orelha, vou despedido numa desfilada furiosa ao longo de uma rua negra… De repente vejo diante de mim a muralha, um bastião, a porta da vila fechada!

Então, alucinado, sentindo atrás rugir a turba, abandonado de todo o socorro humano – precisei de Deus! Acreditei n’Ele, gritei-Lhe que me salvasse; e o meu espírito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe oferecer, fragmentos de orações, de salve-rainhas, que ainda me jaziam no fundo da memória… Voltei-me sobre a anca do potro: de uma esquina ao longe surgiu um fogacho de tochas: era a corja!… Larguei de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma vasta fita negra furiosamente desenrolada: de súbito avisto uma brecha, um boqueirão eriçado de esgalhos de sarças, e fora a planície que sob a lua parecia como uma vasta água dormente! Lancei-me para lá, desesperadamente, sacudido aos galões do potro… E muito tempo galopei no descampado.

De repente o pónei, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma lagoa Entrou-me pela boca água pútrida, e os pés enlaçaram-se-me nas raízes moles dos nenúfares… Quando me ergui, me firmei no solo, – vi o pónei, correndo, muito longe, como uma sombra, com os estribos ao vento…

Então comecei a caminhar por aquela solidão, enterrando-me nas terras lodosas, cortando através do mato espinhoso. O sangue da orelha ia-me pingando sobre o ombro; à frialdade agreste, o fato encharcado regelava-se-me sobre a pele: e por vezes, na sombra, parecia-me ver luzir olhos de feras.

Enfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto negro, um daqueles montões de esquifes amarelos que os chineses abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre um caixão, prostrado: mas um cheiro abominável pesava no ar: e ao apoiar-me senti o viscoso de um líquido que escorria pelas fendas das tábuas… Quis fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me: e árvores, rochas, ervas altas, todo o horizonte começou a girar em torno de mim como um disco muito rápido. Faíscas sanguíneas vibravam-me diante dos olhos: e senti-me como caindo de muito alto, devagar, à maneira de uma pena que desce…

Quando recuperei a consciência estava estirado num banco de pedra, no pátio de um vasto edifício semelhante a um convento, que um alto silêncio envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. Um ar fresco circulava; a roldana de um poço rangia lentamente; um sino tocava a matinas: Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com janelinhas gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo naquela paz de claustro católico como um recanto da pátria recuperada, o abrigo e a consolação, rolaram-me das pálpebras duas lágrimas mudas.

VII

De madrugada, dois padres lazaristas, dirigindo-se a Tien-Hó, tinham-me encontrado desmaiado no caminho. E, como disse o alegre padre Loriot, «era já tempo»; porque em redor do meu corpo imóvel, um negro semicírculo desses grossos e soturnos corvos da Tartária, já me estava contemplando com gula…

Trouxeram-me sem demora para o convento numa padiola – e grande foi o regozijo da comunidade quando soube que eu era um latino, um cristão e um súbdito dos Reis Fidelíssimos. O convento forma ali o centro de um pequeno burgo católico, apinhado em torno da maciça residência como uma casaria de servos à base de um castelo feudal. Existe desde os primeiros missionários que percorreram a Manchúria. Porque nós estamos aqui nos confins da China: para além já é a Mongólia, a Terra das Ervas, imenso prado verde-escuro, lezírias sem fim, colorido aqui e além do vivo das flores silvestres…

Aí jaz a vasta planície dos nómadas. Da minha janela eu via negrejar os círculos de tendas cobertas de feltro ou de peles de carneiro; e por vezes assistia à partida de uma tribo, em filas de longas caravanas, levando os seus rebanhos para o oeste…

O superior lazarista era o excelente padre Giulio. A longa permanência entre as raças amarelas tornara-o quase um chinês: quando eu o encontrava no claustro com a sua túnica roxa, o rabicho longo, a barba venerável, agitando devagar um enorme leque – parecia-me algum sábio letrado mandarim comentando mentalmente, na paz de um templo, o Livro Sacro de Chu. Era um santo: mas o cheiro de alho que exalava – afastaria as almas mais doloridas e precisadas de consolação.

Conservo suave a memória dos dias ali passados! O meu quarto, caiado de branco, com uma cruz negra, tinha um recolhimento de cela. Acordava sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionários, vinha ouvir a missa à capela: e enternecia-me, ali, tão longe da pátria católica, naquelas terras mongólicas, ver à clara luz da manhã a casula do padre, com a sua cruz bordada, curvando-se diante do altar, e sentir ciciar no fresco silêncio os Dominus vobiscum e os Cum spiritu tuo…

De tarde ia à escola, admirar os pequenos chineses declinando hora, horæ… E depois do refeitório, passeando no claustro, escutava histórias de longínquas missões, de viagens apostólicas ao País das Ervagens, as prisões suportadas, as marchas, os perigos, as crónicas heróicas da Fé…

Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras fantásticas: dei-me como um touriste curioso, tomando apontamentos pelo universo. E esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, numa lassidão de alma, àquela paz de mosteiro…

Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse império bárbaro que eu odiava agora prodigiosamente!

Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Ocidente para trazer a uma província chinesa a abundância dos meus milhões, e que apenas lá chegara fora logo saqueado, apedrejado, frechado – enchia-me um rancor surdo, gastava horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria para me vingar do Império do Meio!

Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais prática, mais fácil! Demais, a minha ideia de ressuscitar artificialmente, para bem da China, a personalidade de Ti Chin-Fu, parecia-me agora absurda, de uma insensatez de sonho. Eu não compreendia a língua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis, nem os sábios daquela raça: que vinha pois fazer ali senão expor-me, pelo aparato da minha riqueza, aos assaltos de um povo que há quarenta e quatro séculos é pirata nos mares e traz as terras varridas de rapina?…

Além disso, Ti Chin-Fu e o seu papagaio continuavam invisíveis, remontados decerto ao Céu chinês dos Avós: e já o aplacamento do remorso visível diminuíra em mim singularmente o desejo da expiação…

Sem dúvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas regiões inefáveis para se vir estirar pelos meus móveis. Vira os meus esforços, o meu desejo de ser útil à sua prole, à sua província, à sua raça – e, satisfeito, acomodara-se regaladamente para a sua sesta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pança amarela!…

E então mordia-me o apetite de me achar já tranquilo e livre, no pacífico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no bulevar, sorvendo o mel às flores da Civilização…

Mas a viúva de Ti Chin-Fu, as mimosas senhoras da sua descendência, os netos pequeninos?… Iria eu deixá-los barbaramente, na fome e no frio, pelas vielas negras de Tien-Hó? Não. Esses não eram culpados das pedradas que me atirara a populaça. E eu, cristão, asilado num convento cristão, tendo à cabeceira da cama o Evangelho, cercado de existências que eram encarnações de Caridade – não podia partir do Império sem restituir àqueles que despojara a abundância, esse conforto honesto que recomenda o Clássico da Piedade Filial.

Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga, sob as pedras da turba chinesa; o abrigo cristão que me dera a missão; o vivaz desejo de partir do Império do Meio. Pedia-lhe que remetesse ele à viúva de Ti Chin-Fu os milhões depositados por mim em casa do mercador Tsing-Fó, na Avenida de Chá-Cua, ao lado do arco triunfal de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.

O alegre padre Loriot, que ia a Pequim em missão, levou esta carta, que eu lacrara com o selo do convento – uma cruz saindo de um coração em chamas…

Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas setentrionais da Manchúria: e eu ocupava-me a caçar a gazela pela Terra das Ervas… Horas enérgicas e fortemente vividas, as dessas manhãs, quando eu largava à desfilada, no grande ar agreste da planície, entre os monteadores mongólicos que, com um grito ululado e vibrante, batiam o matagal à lançada! Por vezes, uma gazela saltava: e, de orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do vento… Soltávamos o falcão, que voava sobre ela, de asa serena, dando-lhe a espaços regulares, com toda a força do bico recurvo, uma picada viva no crânio. E íamo-la abater, por fim, à beira de alguma água morta, coberta de nenúfares… Então os cães negros da Tartária amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe, a ponta de dente, desfiando devagar as entranhas…

Uma manhã o leigo da portaria avistou enfim o alegre padre Loriot, galgando à lufa-lufa pelo caminho íngreme do burgo, de volta de Pequim, com a sua mochila ao ombro e uma criancinha nos braços: tinha-a encontrado abandonada, nuazinha, morrendo à beira de um caminho: baptizara-a logo num regato com o nome de Bem-Achado: e ali a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que estugara o passo, para dar depressa à criaturinha esfomeada o bom leite da cabra do convento…

Depois de abraçar os religiosos, de enxugar as grossas bagas de suor, tirou da algibeira dos calções um envelope com o selo da águia russa:

– É isto que manda o papá Camilloff, amigo Teodoro. Ficou óptimo. E a senhora também… Tudo rijo.

Corri a um recanto do claustro a ler as duas folhas de prosa. Meu bom Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como ele aliava tão originalmente ao senso fino de um hábil de chancelaria as caturrices picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:

Amigo, hóspede, e caríssimo Teodoro:

Às primeiras linhas da sua carta ficámos consternados! Mas logo as seguintes nos deram um grato alívio, por nos certificar que estava com esses santos padres da missão cristã…. Eu partia para o yamen imperial a fazer uma severa reclamação ao príncipe Tong, sobre o escândalo de Tien-Hó. Sua Excelência mostrou um júbilo desordenado! Porque, se lamenta como particular a ofensa, o roubo e as pedradas que o meu hóspede sofreu, como ministro do Império vê a a doce oportunidade de extorquir à vila de Tien-Hó, em multa, em castigo da injúria feita a um estrangeiro, a vantajosa soma de trezentos mil francos, ou, segundo os cálculos do nosso sagaz Meriskoff, cinquenta e quatro contos de réis na moeda do seu belo país! É, como disse Meriskoff, um excelente resultado para o Erário imperial, e fica assim a sua orelha copiosamente vingada … Aqui, começam a picar os primeiros frios, e já estamos usando peles. O bom Meriskoff lá vai sofrendo do fígado, mas a dor não lhe altera o critério filosófico nem a sábia verbosidade… Tivemos um grande desgosto: o lindo cãozinho da boa Madame Tagarieff, a esposa do nosso amado secretário, o adorável «Tu-Tu», desapareceu na manhã de 15… Fiz, na polícia, instâncias urgentes: mas o «Tu-Tu» não nos foi restituído – e o sentimento é tanto maior, quanto é sabido que a populaça de Pequim aprecia extremamente esses cãezinhos, guisados em calda de açúcar… Deu-se aqui um facto abominável e de consequências funestas: a ministra de França, essa petulante Madame Grijon, esse «galho seco» (como diz o nosso Meriskoff), no último jantar da Legação, deu, em desprezo de todas as regras internacionais, o braço, o seu descarnado braço, e a sua direita à mesa a um simples adido inglês, Lord Gordon! Que me diz a isto? É crível? É racional? É destruir a ordem social! O braço, a direita, a um adido, um escocês cor de tijolo, de vidro entalado no olho, quando havia presentes todos os embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem causado, no corpo diplomático, uma sensação inenarrável… Esperamos instruções dos nossos governos. Como diz Meriskoff, oscilando tristemente a cabeça – é grave… é muito grave! – O que prova (e ninguém o duvida) que Lord Gordon é o benjamim do «galho seco». Que podridão! Que lodo!… A generala não tem passado bem, desde a sua partida para a malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff não lhe percebe o mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa indolência que a conserva horas e horas imóvel sobre o sofá, no Pavilhão do Repouso Discreto, com o olhar vago e o lábio cheio de suspiros… Eu não me iludo: sei perfeitamente o que a mina: é a desgraçada doença de bexiga, que lhe veio das más águas, quando estivemos na Legação de Madrid… Seja feita a vontade do Senhor!… Ela pede-me para lhe mandar un petit bonjour, e deseja que o meu hóspede apenas chegue a Paris, se for a Paris, lhe remeta pela mala da Embaixada para São Petersburgo (daí virá a Pequim), duas dúzias de luvas de doze botões, número cinco e três quartos, da marca «Sol», dos Armazéns do Louvre; assim como os últimos romances de Zola, «Mademoiselle de Maupin», de Gautier; e uma caixa de frascos de «Opoponax»… Esquecia-me dizer-lhe que mudámos de padeiro: fornecemo-mos agora da padaria da Embaixada inglesa: deixámos a da Embaixada francesa, para não ter comunicações com o «galho seco»… Aí estão os inconvenientes de não termos aqui na Embaixada russa uma padaria – apesar de tantos relatórios, tantas reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito para a Chancelaria de São Petersburgo! Eles sabem bem que em Pequim não há padarias, que cada legação tem a sua própria, como um elemento de instalação e de influência. Mas quê! Na corte imperial desatendem-se os mais sérios interesses da civilização russa!… Creio que é tudo o que há de novo em Pequim e nas legações. Meriskoff recomenda-se, e todos desta Embaixada; e também o condezinho Arthur, o Zizi da Legação espanhola, o «Focinho Caído», e o Lulu; enfim todos; eu mais que ninguém, que me assino com saudade e afeição

General Camilloff

P. S. – Enquanto à viúva e família de Ti Chin-Fu, houve um engano: o astrólogo do templo de Faqua equivocou-se na interpretação sideral: não é realmente em Tien-Hó que reside essa família… É no Sul da China, na província de Cantão. Mas também há uma família Ti Chin-Fu para além da Grande Muralha, quase na fronteira russa, no distrito de Kao-Li. A ambas morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza… Portanto, esperando novas ordens, não levantei os dinheiros da casa de Tsing-Fó. Esta recente informação mandou-ma hoje Sua Excelência o Príncipe Tong, com uma deliciosa compota de calombro… Devo anunciar-lhe que o nosso bom Sá-Tó aqui apareceu, de volta de Tien-Hó, com um beiço rachado e leves contusões no ombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma litografia de Nossa Senhora das Dores, que, pela inscrição a tinta, vejo que pertencera a sua respeitável mamã… Os meus valentes cossacos, esses, lá ficaram numa poça de sangue. Sua Excelência o Príncipe Tong condescende em mos pagar a dez mil francos cada um, das somas extorquidas À vila de Tien-Hó… Sá-Tó diz-me que se o meu hóspede, como é natural, recomeçar as suas viagens através do Império em busca dos Ti Chin-Fu – ele considerar-se-ia honrado e venturoso em o acompanhar, com uma fidelidade canina e uma docilidade cossaca…
–––––––––––

Continua…
Fonte:
http://leituradiaria.com

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Fanny Abramovich (Dona Licinha)

A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas… A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé… Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B… Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da série B…

Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave…era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia… Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos.

A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos… Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora… Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza!

Nunca ouvi berros, um “Cala boca”, “Aqui quem manda sou eu” e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo…

Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui… Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega… Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante.

Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula… Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas.

Um abraço apertado,
cheinho de gostosuras, da
Ciça
Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 7

O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente as folhas de chá, pedia-me histórias ladinas de cocottes, e dizia-me o seu culto por Dumas filho…

Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de seda cor de folha morta, e ia fazendo viajar os meus lábios devotos pela pele fresca dos seus belos braços; – e depois sobre o divã, enlaçados, peito contra peito, num êxtase mudo, sentíamos as lâminas de cristal ressoar eolicamente as pegas azuis esvoaçarem pelos plátanos, o fugitivo ritmo do arroio corrente…

Os nossos olhos humedecidos encontravam às vezes um quadro de cetim preto, por cima do divã, onde em caracteres chineses se desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Nun «sobre os deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o chinês… E no silêncio os nossos beijos recomeçavam, espaçados, soando docemente, e comparáveis (na língua florida daqueles países) a pérolas que caem uma a uma sobre uma bacia de prata… – Oh suaves sestas dos jardins de Pequim, onde estais vós? Onde estais, folhas mortas dos lírios escarlates do Japão?…

Uma manhã, Camilloff, entrando na Chancelaria, onde eu fumava o cachimbo da amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme sabre para um canapé, e contou-nos radiante as notícias que lhe dera o penetrante príncipe Tong. – Descobrira-se enfim que um opulento mandarim, de nome Ti Chin-Fu, vivera outrora nos confins da Mongólia, na vila de Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga descendência residia lá, em miséria, num casebre vil…

Esta descoberta, é certo, não fora devida à sagacidade da burocracia imperial – mas fizera-a um astrólogo do templo de Faqua, que durante vinte noites folheara no céu o luminoso arquivo dos astros…

– Teodoro, há-de ser o seu homem! – exclamou Camilloff.

E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:

– Há-de ser o seu homem, Teodoro!

– O meu homem… – murmurei sombriamente.

Era talvez o meu homem, sim! Mas não me seduzia ir procurar o meu homem ou a sua família, na monotonia de uma caravana, por essas desoladas extremidades da China!… Depois desde que chegara a Pequim, eu não tornara a avistar a forma odiosa de Ti Chin-Fu e do seu papagaio. A Consciência era dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, o alto esforço de me ter arrancado às doçuras do bulevar e do Loreto, de ter sulcado os mares até ao Império do Meio, parecera à Eterna Equidade uma expiação suficiente e uma peregrinação reparadora. Certamente Ti Chin-Fu, acalmado, recolhera-se com o seu papagaio à sempiterna Imobilidade… Para que iria eu, pois, a Tien-Hó? Porque não ficaria ali, naquele amável Pequim, comendo nenúfares em calda de açúcar, abandonando-me às sonolências amorosas do Repouso Discreto, e pelas tardes azuladas, dando o meu passeio pelo braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da Purificação ou sob os cedros da Templo do Céu?… 

Mas já o zeloso Camilloff, de lápis na mão, ia marcando no mapa o meu itinerário para Tien-Hó! E mostrando-me, num desagradável entrelaçamento, sombras de montes, linhas tortuosas de rios, esfumados de lagoas:

– Aqui está! O meu hóspede sobe até Ni Ku-Hé, na margem do Pei-Hó… Daí, em barcos chatos, vai a My-Yun. Boa cidade, há lá um Buda vivo… Daí, a cavalo, segue até à fortaleza de Ché-Hia. Passa a Grande Muralha, famoso espectáculo!… Descansa no forte de Ku Pi-Hó. Pode lá caçar a gazela. Soberbas gazelas… E com dois dias de caminhada está em Tien-Hó… Brilhante, hem?… Quando quer partir? Amanhã?…

– Amanhã – rosnei, tristonho.

Pobre generala! Nessa noite, enquanto Meriskoff, ao fundo da sala, fazia com três oficiais da Embaixada o seu whist sacramental, e Camilloff, ao canto do sofá, de braços cruzados, solene como numa poltrona do Congresso de Viena, dormia de boca aberta – ela sentou-se ao piano. Eu ao lado, na atitude de um Lara, devastado pela fatalidade, retorcia lugubremente o bigode. E a doce criatura, entre dois gemidos do teclado, de uma saudade penetrante, cantou revirando para mim os seus olhos rebrilhantes e húmidos:

L’oiseau s’envole,
Là bas, là bas!…
L’oiseau s’envole…
Ne revien pas…

– A ave há-de voltar ao ninho – murmurei eu enternecido.

E, afastando-me a esconder uma lágrima, ia resmungando furioso:

– Canalha de Ti Chin-Fu! Por tua causa! Velho malandro! Velho garoto!…

Ao outro dia lá vou para Tien-Hó – com o respeitoso intérprete Sá-Tó, uma longa fila de carretas, dois cossacos, toda uma populaça de coolies.

Ao deixar a muralha da Cidade Tártara, seguimos muito tempo ao comprido dos jardins sagrados que orlam o templo de Confúcio.

Era no fim do Outono; já as folhas tinham amarelecido; uma doçura tocante errava no ar…

Dos quiosques santos saía uma sussurração de cânticos, de nota monótona e triste. Pelos terraços, enormes serpentes, venerandas como deuses, iam-se arrastando, já entorpecidas da friagem. E aqui e além, ao passar, avistávamos budistas decrépitos, secos como pergaminhos e nodosos como raízes, encruzados no chão sob os sicômoros, numa imobilidade de ídolos, contemplando incessantemente o umbigo, à espera da perfeição do Nirvana…

E eu ia pensando, com uma tristeza tão pálida como aquele mesmo céu de Outubro asiático, nas duas lágrimas redondinhas que vira brilhar, à despedida, nos olhos verdes da generala!… 

VI

Já a tarde declinava, e o Sol descia vermelho como um escudo de metal candente, quando chegámos a Tien-Hó.

As muralhas negras da vila erguem-se, do lado do sul, ao pé de uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planície lívida e poeirenta estende-se até a um grupo escuro de colinas onde branqueja um vasto edifício – que é uma missão católica. E para além, para o extremo norte, são as eternas montanhas roxas da Mongólia, suspensas sempre no ar como nuvens.

Alojámo-nos num barracão fétido, intitulado Estalagem da Consolação Terrestre. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de dragões de papel recortado, suspensos por cordéis do travejamento do tecto; à menor aragem aquela legião de monstros fabulosos oscilava em cadência, com um rumor seco de folhagem, como tomada de vida sobrenatural e grotesca.

Antes que escurecesse fui ver com Sá-Tó a vila: mas bem depressa fugi ao fedor abominável das vielas: tudo se me afigurou ser negro – os casebres, o chão barrento, os enxurros, os cães famintos, a populaça abjecta… Recolhi ao albergue – onde arrieiros mongóis e crianças piolhosas me miravam com assombro.

– Toda esta gente me parece suspeita, Sá-Tó – disse eu, franzindo a testa.

– Tem Vossa Honra razão. É uma ralé! Mas não há perigo: eu matei, antes de partirmos, um galo negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. Pode Vossa Honra dormir ao abrigo dos maus espíritos… Quer Vossa Honra o chá?…

– Traz, Sá-Tó.

Bebido o chá, conversámos do grande plano: na manhã seguinte eu ia levar a alegria à triste choupana da viúva de Ti Chin-Fu, anunciando-lhe os milhões que lhe dava, depositados já em Pequim: depois, de acordo com o mandarim governador, faríamos uma copiosa distribuição de arroz pela populaça: e à noite iluminações, danças, como numa gala pública…

– Que te parece, Sá-Tó?

– Nos lábios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confúcio… Vai ser grande! Vai ser grande!

Como vinha cansado, bem cedo comecei a bocejar, e estirei-me sobre o estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas estalagens da China; enrolado na minha peliça, fiz o sinal-da-cruz, e adormeci pensando nos braços brancos da generala, nos seus olhos verdes de sereia… 

Era talvez já meia-noite quando despertei a um rumor lento e surdo que envolvia o barracão – como de forte vento num arvoredo, ou uma maresia grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta, o luar entrava no quarto, um luar triste de Outono asiático, dando aos dragões suspensos do tecto formas, semelhanças quiméricas…

Ergui-me, já nervoso – quando um vulto, alto e inquieto, apareceu na faixa luminosa do luar…

– Sou eu, Vossa Honra! – murmurou a voz apavorada de Sá-Tó.

E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me num fluxo de palavras roucas a sua aflição: – enquanto eu dormia, espalhara-se pela vila que um estrangeiro, o Diabo estrangeiro, chegara com bagagens carregadas de tesouros… Já desde o começo da noite ele tinha entrevisto faces agudas, de olho voraz, rondando o barracão, como chacais impacientes… E ordenara logo aos coolies que entrincheirassem a porta com os carros das bagagens, formados em semicírculo à velha maneira tártara… Mas pouco a pouco a malta crescera… Agora vinha de espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a populaça de Tien-Há, rosnando sinistramente… A deusa Kaonine não se satisfizera com o sangue do galo preto!… Além disso ele vira à porta de um pagode uma cabra negra recuar! … A noite seria de terrores!… E a sua pobre mulher, o osso do seu osso; que estava tão longe, em Pequim!…

– E agora, Sá-Tó? – perguntei eu.

– Agora… Vossa Honra! Agora…

Calou-se: e a sua magra figura tremia, acaçapada como um cão que se roja sob o açoite.

Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro fronteiro, coberto de um alpendre, projectava uma funda sombra. Aí com efeito estava uma turba negra apinhada. Às vezes uma figura, rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, espreitava, farejava as carretas e, sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, fundindo-se na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava um momento à luz algum ferro de lança inclinada…

– Que querem vocês, canalha? – bradei eu em português.

A esta voz estrangeira um grunhido saiu da treva; imediatamente uma pedra veio ao meu lado furar o papel encerado da gelosia; depois uma flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, num barrote…

Desci rapidamente à cozinha da estalagem. Os meus coolies, acocorados sobre os calcanhares, batiam o queixo num terror; e os dois cossacos que me acompanhavam, impassíveis à lareira, cachimbavam, com o sabre nu nos joelhos. 

O velho estalajadeiro de óculos, uma avó andrajosa que eu vira no pátio deitando ao ar um papagaio de papel, os arrieiros mongóis, as crianças piolhosas, esses tinham desaparecido; só ficara um velho, bêbedo de ópio, caído a um canto como um fardo. Fora ouvia-se já a multidão vociferar.

Interpelei então Sá-Tó, que quase desmaiava, arrimado a uma viga: nós estávamos sem armas; os dois cossacos, sós, não podiam repelir o assalto: era necessário pois ir acordar o mandarim governador, revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do príncipe Tong, intimá-lo a que viesse dispersar a turba, manter a lei santa da hospitalidade!…

Mas Sá-Tó confessou-me, numa voz débil como um sopro, que o governador decerto é quem estava dirigindo o assalto! Desde as autoridades até aos mendigos, a fama da minha riqueza, a legenda das carretas carregadas de ouro inflamara todos os apetites!… A prudência ordenava, como um mandamento santo, que abandonássemos parte dos tesouros, mulas, caixas de comestíveis…

– E ficar aqui, nesta aldeia maldita, sem camisas, sem dinheiro e sem mantimentos?…

– Mas com a rica vida, Vossa Honra!

Cedi. E ordenei a Sá-Tó que fosse propor à turba uma copiosa distribuição de sapeques – se ela consentisse em recolher aos seus casebres, e respeitar em nós os hóspedes enviados por Buda…

Sá-Tó subiu à sacada da galeria, a tremer; e rompeu logo a arengar à malta, bracejando, atirando as palavras com a violência de um cão que ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe passando cartuchos, sacos de sapeques – que ele arremessava aos punhados com um gesto de semeador… Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metais; depois um lento suspiro de gula satisfeita; e logo um silêncio, numa suspensão de quem espera mais…

– Mais! – murmurava Sá-Tó, voltando-se para mim ansioso.

Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais rolos, molhos de moedas de meio real enfiadas em cordéis… Já a maleta estava vazia. A turba rugia, insaciada.

– Mais, Vossa Honra! – suplicou Sá-Tó.

– Não tenho mais, criatura! O resto está em Pequim!

– Oh Buda santo! Perdidos! Perdidos! – clamou Sá-Tó, abatendo-se sobre os joelhos.

A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma ululação selvagem rasgou o ar. E eu senti aquela massa ávida arremessar-se sobre as carretas que defendiam a porta em semicírculo: ao choque todo o madeiramento da Estalagem da Consolação Terrestre rangeu e oscilou…
–––––––––––
Continua…

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Thiago de Mello (O Temporal no Amazonas)

Passamos o dia em Ponta Alegre, aldeia dos índios Maués, banhada pelo rio Andirá. Muito aprendi com o jovem tuchaua, conhecedor de ervas mágicas e amigo das estrelas. Ao entardecer, saímos de canoa com motor de popa, ao rumo da Freguesia, pequenina comunidade no coração da floresta. Era tempo de cheia. Soprava de leve o vento geral. Éramos quatro a bordo. Viajávamos rente à margem abarrancada, já na metade do percurso, quando, de repente, o temporal desabou.


“Este vai ser dos medonhos”, disse sereno, lá na popa, onde manejava o motor, Morón, um índio meu amigo. Junto a ele, no chão da canoa, o seu filho menino, todo encolhido de frio. Lembro-me de que, antes de escurecer totalmente, do banco da frente onde eu viajava, virei-me e vi o brilho intenso dos seus olhos enormes. Era o pavor. Na proa, sem camisa, o cabloco Jari, morador da Freguesia.

Enfrentamos o temporal em silêncio, solidários. A correnteza crescia, a canoa se balançava na alta crista das ondas, depois se despencava com fragor. A chuva nos vergastava por todos os lados. Houve um momento em que não vimos mais nada. Repetidas vezes a proa tocava num tronco. O baque surdo, a canoa parecia que ia virar. Morón inclinava o motor para a frente, de jeito que a hélice ficasse fora da água.

Só os relâmpagos nos ajudavam, cortando o céu de um lado a outro: a luz fugaz nos mostrava um tronco enorme, um pedaço de árvore ainda com ramos frescos, já quase em cima de nós. O índio, ágil e calado, desviava a canoa num golpe de leme. A escuridão era tanta que eu sequer enxergava a minha mão aberta a centímetros do meu rosto. Mesmo assim, em alguns instantes, tive a certeza de que o piloto conseguia distinguir, dentro da treva espessa, alguma coisa das águas e das margens. Um filho da floresta.

A tempestade cessou pouco antes de chegarmos à Freguesia. E duas coisas aconteceram que eu preciso contar. A primeira é que, de repente, demos com várias canoas vindo em nossa direção. Eram homens e mulheres daquele pedaço verde do mundo, certos de que deveríamos chegar no começo da noite e nossa tardança já era tanta, nos sabiam surpreendidos pelo temporal e decidiram ir ao nosso encontro, para nos salvar. Quando nos viram, foi um imenso e prolongado grito de alegria, saído de todas as bocas. Do coração solidário. A segunda coisa é que depois do temporal o céu acendeu as suas estrelas, perdão, todas as suas estrelas, que brilhavam enormes, pairando soltas no campo da noite.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 6

Estranhos bairros! Mas nada me divertia como ver a cada instante, a uma porta de jardim, dois mandarins pançudos que para entrar se trocavam indefinidamente salamalés, cortesias, recusas, risinhos agudos de etiqueta, todo um cerimonial dogmático – que lhes fazia oscilar de um modo picaresco, sobre as costas, as longas penas de pavão. Depois, se erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar enormes papagaios de papel, ora em forma de dragões, ora de cetáceos, ora de aves fabulosas – enchendo o espaço de uma inverosímil legião de monstros transparentes e ondeantes…

– Sá-Tó, basta de Cidade Tártara! Vamos ver os bairros chineses…

E lá fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguesia, o mercador, a populaça. As ruas alinham-se como uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da imundície de gerações recalcada desde séculos, ainda aqui e além jaz alguma das lajes de mármore cor-de-rosa que outrora o calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.

Dos dois lados são – ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas tabuletas esguias e sarapintadas, balouçando-se de uma haste de ferro. À distância erguem-se os arcos triunfais feitos de barrotes cor de púrpura, ligados no alto por um telhado oblongo de telhas azuis envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma multidão rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem cessar; a poeira envolve tudo de uma névoa amarelada; um fedor acre exala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa caravana de camelos fende lentamente a turba, conduzida por mongóis sombrios vestidos de pele de carneiro.

Fomos até às entradas das pontes sobre os canais, onde saltimbancos seminus, com máscaras simulando demónios pavorosos, fazem destrezas de um picaresco bárbaro e subtil; e muito tempo estive a admirar os astrólogos de longas túnicas, com dragões de papel colados às costas, vendendo ruidosamente horóscopos e consultas de astros. Oh cidade fabulosa e singular!

De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que um soldado, de grandes óculos, ia impelindo com o guarda-sol, amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi aí, nessa avenida, que eu vi o estrepitoso cortejo de um funeral de mandarim, todo ornado de auriflamas e de bandeirnhas; grupos de sujeitos fúnebres vinham queimando papéis em fogareiros portáteis; mulheres esfarrapadas uivavam de dor espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, galhofavam, e um cooly vestido de luto branco servia-lhes logo chá, de um grande bule em forma de ave. 

Ao passar junto ao Templo do Céu, vejo apinhada num largo uma legião de mendigos; tinham por vestuário um tijolo preso à cinta num cordel; as mulheres, com os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roíam ossos tranquilamente; e cadáveres de crianças apodreciam ao lado, sob o voo dos moscardos. Adiante topámos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, à esmola… Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita: aí, sobre pilares de pedra, pousavam pequenas gaiolas contendo cabeças de decapitados: e gota a gota ia pingando delas um sangue espesso e negro…

– Uf! – exclamei, fatigado e aturdido. – Sá-Tó, agora quero o repouso, o silêncio, e um charuto caro…

Ele curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me às altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de guerra a par podem percorrer durante léguas.

E enquanto Sá-Tó, sentado num vão de ameia, bocejava, num desafogo de cicerone enfastiado, eu fumando contemplei muito tempo aos meus pés a vasta Pequim…

É como uma formidável cidade da Bíblia, Babel ou Nínive, que o profeta Jonas levou três dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os quatro pontos do horizonte, com as suas portas de torres monumentais, que o ar azulado, àquela distância, faz parecer transparentes. E na imensidão do seu recinto aglomeram-se confusamente verduras de bosques, lagos artificiais, canais cintilantes como aço, pontes de mármore, terrenos alastrados de ruínas, telhados envernizados reluzindo ao sol; por toda a parte são pagodes heráldicos, brancos terraços de templos, arcos triunfais, milhares de quiosques saindo de entre as folhagens dos jardins; depois espaços que parecem um montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a intervalos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, de um aspecto heróico e fabuloso…

A multidão, junto a essas edificações grandiosas, é apenas como grãos de areia negra que um vento brando vai trazendo e levando…

Aqui está o vasto palácio imperial, entre arvoredos misteriosos, com os seus telhados de um amarelo de oiro vivo! Como eu desejaria penetrar-lhe os segredos, e ver desenrolar-se pelas galerias sobrepostas, a magnificência bárbara dessas dinastias seculares!

Além ergue-se a torre do Templo do Céu, semelhando três guarda-sóis sobrepostos: depois a grande Coluna dos Princípios, hierática e seca como o génio mesmo da raça: e adiante branquejam numa meia-tinta sobrenatural os terraços de jaspe do Santuário da Purificação… 

Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palácio da Soberana Concórdia, o Pavilhão das Flores das Letras, o Quiosque dos Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os cercam, os seus telhados lustrosos de faianças azuis, verdes, escarlates e cor de limão. Eu devorava, de olho ávido, esses monumentos da Antiguidade asiática, numa curiosidade de conhecer as impenetráveis classes que os habitam, o princípio das instituições, a significação dos cultos, o espírito das suas letras, a gramática, o dogma, a estranha vida interior de um cérebro de letrado chinês… Mas esse mundo é inviolável como um santuário…

Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planície arenosa que se estira para além das portas até aos contrafortes dos montes mongólicos; aí incessantemente redemoinham ondas infindáveis de poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas… Então invadiu-me a alma uma melancolia, que o silêncio daquelas alturas, envolvendo Pequim, tornava de um vago mais desolado: era como uma saudade de mim mesmo, um longo pesar de me sentir ali isolado, absorvido naquele mundo duro e bárbaro: lembrei-me, com os olhos humedecidos, da minha aldeia do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um ramo de louro à porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros tão frescos quando verdejam os linhos…

Aquela era a época em que as pombas emigram de Pequim para o Sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos bosques dos templos e dos pavilhões imperiais; cada uma traz, para a livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e aquelas nuvens brancas passavam como impelidas de uma aragem mole, deixando no silêncio um lento e melancólico suspiro, uma ondulação eólica, que se perdia nos ares pálidos…

Voltei para casa, pesado e pensativo.

Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com bonomia as minhas impressões de Pequim.

– Pequim faz-me sentir bem, general, os versos de um poeta nosso:

Sôbolos rios que vão

Por Babilónia me achei …

– Pequim é um monstro! – disse Camilloff oscilando reflectidamente a calva. – E agora considere que a esta capital, à classe tártara e conquistadora que a possui, obedecem trezentos milhões de homens, uma raça subtil, laboriosa, sofredora, prolífica, invasora… Estudam as nossas ciências… Um cálice de Médoc, Teodoro!… Têm uma marinha formidável! O exército, que outrora julgava destroçar o estrangeiro com dragões de papelão donde saíam bichas de fogo, tem agora táctica prussiana e espingarda de agulha! Grave! 

– E todavia, general, no meu país, quando, a propósito de Macau, se fala do Império Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e dizem negligentemente: «Mandamos lá cinquenta homens, e varremos a China…»

A esta sandice – fez-se um silêncio. E o general, depois de tossir formidavelmente, murmurou, com condescendência:

– Portugal é um belo pais…

Eu exclamei com secura e firmeza:

– É uma choldra, general.

A generala, colocando delicadamente à borda do prato uma asa de frango, e limpando o dedinho, disse:

– É o país da canção de Mignon. É tá que floresce a laranjeira…

O gordo Meriskoff, doutor alemão pela Universidade de Bona, chanceler da Legação, homem de poesia e de comentário, observou com respeito:

– Generala, o doce país de Mignon é a Itália: “Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira dá flor?” O divino Goethe referia-se à Itália, Italia mater… A Itália será o eterno amor da humanidade sensível!

– Eu prefiro a França! – suspirou a esposa do primeiro-secretário, uma bonecazinha sardenta, de cabelo arruivascado.

– Ah! a França!… – murmurou um adido, revirando um bugalho de olho terníssimo.

O gordo Meriskoff ajeitou os óculos de oiro:

– A França tem um mal, que é a Questão Social…

– Oh! a Questão Social! – rosnou sombriamente Camilloff.

– Ah! a Questão Social! … – considerou ponderosamente o adido.

E discreteando com tanta sapiência, chegámos por fim ao café.

Au descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu braço, murmurou-me junto à face:

– Ai, quem me dera viver nesses países apaixonados, onde verdejam os laranjais!..

– É lá que se ama, generala – segredei-lhe eu, levando-a docemente para a escuridão dos sicômoros…

V

Foi necessário todo um longo Verão para descobrir a província onde residira o defunto Ti Chin-Fu!

Que episódio administrativo tão pitoresco, tão chinês! O serviçal Camilloff, que passava o dia inteiro a percorrer os yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de conhecer a morada de um velho mandarim não encobria uma conspiração contra a segurança do Império; e depois foi-lhe ainda preciso jurar que não havia nesta curiosidade um atentado contra os ritos sagrados! Então, satisfeito, o príncipe Tong permitiu que se fizesse o inquérito imperial: centenares de escribas empalideceram noite e dia, de pincel na mão, desenhando relatórios sobre papel de arroz; misteriosas conferências sussurraram incessantemente por todas as repartições da cidade Imperial, desde o Tribunal Astronómico até ao Palácio da Bondade Preferida; e uma população de coolies transportava da Legação russa para os quiosques da Cidade Interdita, e daí para o Pátio dos Arquivos, padiolas estalando ao peso de maços de documentos vetustos… 

Quando Camilloff perguntava pelo resultado, vinha-lhe a resposta satisfatória que se estavam consultando os Livros Santos de Lao-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do tempo de Nor Ha-Chu. E para calmar a impaciência bélica do russo, o príncipe Tung remetia, com estes recados subtis algum substancial presente de confeitos recheados, ou de gomos de bambu em calda de açúcar…

Ora enquanto o general trabalhava com fervor para encontrar a família Ti Chin-Fu – eu ia tecendo horas de seda e oiro (assim diz um poeta japonês) aos pés pequeninos da generala…

Havia um quiosque no jardim sob os sicômoros, que se denominava, à maneira chinesa, do Repouso Discreto: – ao lado um arroio fresco ia cantando docemente sob uma pontezinha rústica pintada de cor-de-rosa. As paredes eram apenas um cadeado de bambu fino forrado de seda cor de ganga: o sol, passando através delas, fazia uma luz sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divã de seda branca, de uma poesia de nuvem matutina, atraente como um leito nupcial. Aos cantos, em ricas jarras transparentes da época Yeng, erguiam-se, na sua gentileza aristocrática, lírios escarlates do Japão. Todo o soalho estava recoberto de esteiras finas de Nanquim; e junto à janela rendilhada, sobre um airoso pedestal de sândalo, pousava aberto ao alto um leque formado de lâminas de cristal separadas, que a aragem entrando fazia vibrar, numa modulação melancólica e terna.

As manhãs do fim de Agosto em Pequim são muito suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os oficiais da Legação, estavam sempre na Chancelaria fazendo a mala para São Petersburgo.

Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na ponta das babouches de cetim as ruazinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do Repouso Discreto:

– Mimi?

E a voz da generala respondia, suave como um beijo:

– All right…

Como ela era linda vestida de dama chinesa! Nos seus cabelos levantados alvejavam flores de pessegueiro; e as sobrancelhas pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nanquim. A camisinha de gaze, bordada a soutache de filigrana de oiro, colava-se aos seus seios pequeninos e direitos: vastas, fofas calças de foulard cor de rosa de ninfa, que lhe davam uma graça de serralho, recaíam sobre o tornozelo fino, coberto de meia de seda amarela: – e apenas três dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha…

Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novgorod; e fora educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabelo empoado, e parecia a grossa litografia cossaca de uma dama galante de Versalhes…
–––––––––––

Continua…

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Luis Fernando Veríssimo (Pechada)

O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de “Gaúcho”. Porque era gaúcho, recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado. 

– Aí, Gaúcho!

– Fala, Gaúcho! 

Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?

– Mas o Gaúcho fala “tu”! – disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.

– E fala certo – disse a professora. – Pode-se dizer “tu” e pode-se dizer “você”. Os dois estão certos. Os dois são português.

O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.

Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.

– O pai atravessou a sinaleira e pechou.

– O que?

– O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.

A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.

– O que foi que ele disse, tia? – quis saber o gordo Jorge.

– Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.

– E o que é isso?

– Gaúcho… Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.

– Nós vinha…

– Nós vínhamos.

– Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto.

A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito.

“Sinaleira”, obviamente, era sinal, semáforo. “Auto” era automóvel, carro. Mas “pechar” o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que “pechar” vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.

– Aí, Pechada!

– Fala, Pechada!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Patativa do Assaré (A Seca e o Inverno)

Na seca inclemente no nosso Nordeste
O sol é mais quente e o céu, mais azul
E o povo se achando sem chão e sem veste
Viaja à procura das terras do Sul 
Porém quando chove tudo é riso e festa
O campo e a floresta prometem fartura
Escutam-se as notas alegres e graves
Dos cantos das aves louvando a natura
Alegre esvoaça e gargalha o jacu
Apita a nambu e geme a juriti
E a brisa farfalha por entre os verdores
Beijando os primores do meu Cariri

De noite notamos as graças eternas
Nas lindas lanternas de mil vaga-lumes
Na copa da mata os ramos embalam
E as flores exalam suaves perfumes
Se o dia desponta vem nova alegria
A gente aprecia o mais lindo compasso
Além do balido das lindas ovelhas
Enxames de abelhas zumbindo no espaço
E o forte caboclo da sua palhoça
No rumo da roça de marcha apressada
Vai cheio de vida sorrindo e contente
Lançar a semente na terra molhada
Das mãos deste bravo caboclo roceiro
Fiel prazenteiro modesto e feliz
É que o ouro branco sai para o processo
Fazer o progresso do nosso país

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 5

Uma rica liteira esperava-me à Porta de Tung Tsen-Men, para eu atravessar Pequim até à residência militar de Camilloff. A Muralha agora, ao perto, parecia erguer-se até aos céus com o horror de uma construção bíblica: à sua base apinhava-se uma confusão de barracas, feira exótica, onde rumorejava uma multidão, e a luz de lanternas oscilantes cortava já o crepúsculo de vagas manchas cor de sangue; os toldos brancos faziam ao pé do negro muro como um bando de borboletas pousadas.

Senti-me triste; subi à liteira, cerrei as cortinas de seda escarlate todas bordadas a ouro; e cercado dos cossacos, eis-me entrando a velha Pequim, por essa porta babélica, na turba tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xarão, cavaleiros mongólicos armados de flechas, bonzos de túnica alvejante marchando um a um, e longas filas de lentos dromedários balançando a sua carga em cadência…

Daí a pouco a liteira parou. O respeito Sá-Tó correu as cortinas, e vi-me num jardim, escurecido e calado, onde, por entre sicômoros seculares, quiosque alumiados brilhavam com uma luz doce, como colossais lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de águas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de madeiros pintados a vermelhão, aclarado por fios de lâmpadas de papel transparente, esperava-me um membrudo figurão, de bigodes brancos, apoiado a um grosso espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me para ele, eu sentia o passo inquieto das gazelas fugindo de leve sob as árvores…

O velho herói apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, segundo os usos chineses, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de porcelana onde entre rodelas finas de limão sobrenadavam esponjas brancas, num perfume forte de lilás…

Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff no boudoir da generala. Era alta e loira; tinha os olhos verdes das sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de seda branca pousava uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino de sândalo e de chá.

Conversámos muito da Europa, do niilismo, de Zola, de Leão XIII, e da magreza de Sarah Bernhardt…

Pela galeria aberta penetrava um ar cálido que rescendia a heliotrópio. Depois ela sentou-se ao piano – e a sua voz de contralto quebrou até tarde os silêncios melancólicos da Cidade Tártara, com as picantes árias de «Madame Favart» e com as melodias afagantes do «Rei de Lahore». 

Ao outro dia cedo, encerrado com o general num dos quiosques do jardim, contei-lhe a minha lamentável história e os motivos fabulosos que me traziam a Pequim. O herói escutava, cofiando sombriamente o seu espesso bigode cossaco.

– O meu prezado hóspede sabe o chinês? – perguntou-me de repente, fixando em mim a pupila sagaz.

– Sei duas palavras importantes, general: «mandarim» e «chá».

Ele passou a sua mão de fortes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:

– «Mandarim», meu amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguém a entende na China. É o nome que no século XVI os navegadores do seu país, do seu belo país…

– Quando nós tínhamos navegadores… murmurei, suspirando.

Ele suspirou também, por polidez, e continuou:

– Que os seus navegadores deram aos funcionários chineses. Vem do seu verbo, do seu lindo verbo…

– Quando tínhamos verbos… – rosnei, no hábito instintivo de deprimir a Pátria. Ele esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho – e prosseguiu paciente e grave:

– Do seu lindo verbo «mandar»… Resta-lhe portanto «chá». É um vocábulo que tem um vasto papel na vida chinesa, mas julgo-o insuficiente para servir a todas as relações sociais. O meu estimável hóspede pretende esposar uma senhora da família Ti Chin-Fu, continuar a grossa influência que exercia o Mandarim, substituir, doméstica e socialmente, esse chorado defunto… Para tudo isto dispõe da palavra «chá». É pouco.

Não pude negar – que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz adunco de milhafre, pôs-me ainda outras objecções que eu via erguerem-se diante do meu desejo como as muralhas mesmas de Pequim: nenhuma senhora da família Ti Chin-Fu consentiria jamais em casar com um bárbaro; e seria impossível, terrivelmente impossível que o imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas de um mandarim…

– Mas porque mas recusaria? – exclamei. – Eu pertenço a uma boa família da província do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte de uma repartição pública… Possuo milhões… Tenho a experiência do estilo administrativo…

O general ia-se curvando com respeito a esta abundância dos meus atributos.

– Não é – disse ele enfim – que o imperador realmente o recusasse: é que o indivíduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa, neste ponto, é explícita e seca. 

Baixei a cabeça, acabrunhado.

– Mas, general – murmurei – eu quero livrar-me da presença odiosa do velho Ti Chin-Fu e do seu papagaio!… Se eu entregasse metade dos meus milhões ao Tesouro chinês, já que não me é dado pessoalmente aplicá-los, como mandarim, à prosperidade do Estado…? Talvez Ti Chin-Fu se calmasse…

O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o ombro:

– Erro, considerável erro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao Tesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondáveis das classes dirigentes: seriam dissipados em plantar jardins, coleccionar porcelanas, tapetar de peles os soalhos, fornecer sedas às concubinas: não aliviariam a fome de um só chinês, nem reparariam uma só pedra das estradas públicas… Iriam enriquecer a orgia asiática. A alma de Ti Chin-Fu deve conhecer bem o Império: e isso não a satisfaria.

– E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer particularmente, como filantropo, largas distribuições de arroz à populaça faminta? É uma ideia…

– Funesta – disse o general, franzindo medonhamente o sobrolho. – A corte imperial veria aí imediatamente uma ambição política, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dinastia… O meu bom amigo seria decapitado… É grave…

– Maldição! – berrei. – Então para que vim eu à China?

O diplomata encolheu vagarosamente os ombros; mas logo, mostrando num sorriso astuto os seus dentes amarelos de cossaco:

– Faça uma coisa. Procure a família de Ti Chin-Fu… Eu indagarei do primeiro-ministro, Sua Excelência o Príncipe Tong, onde pára essa prole interessante… Reúna-os, atire-lhes uma ou duas dúzias de milhões… Depois prepare ao defunto funerais régios. Funerais de alto cerimonial, com um préstito de uma légua, filas de bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanças, plumas, andores escarlates, legiões de carpideiras ululando sinistramente, etc., etc. Se depois de tudo isto a sua consciência não adormecer e o fantasma insistir…

– Então?

– Corte as goelas.

– Obrigado, general.

Uma coisa, porém, era evidente, e nela concordaram Camilloff, o respeitoso Sá-Tó e a generala: – que, para frequentar a família Ti Chin-Fu, seguir os funerais, misturar-me à vida de Pequim, eu devia desde já vestir-me como um chinês opulento, da classe letrada, para me ir habituando ao traje, às maneiras, ao cerimonial mandarim… 

A minha face amarelada, o meu longo bigode pendente favoreciam a caracterização – e quando na manhã seguinte, depois de arranjado pelos costureiros engenhosos da Rua Chá-Cua, entrei na sala forrada de seda escarlate, onde já rebrilhavam as porcelanas do almoço sobre a mesa de xarão negro, – a generala recuou como à aparição do próprio Tong-Tché, Filho do Céu!

Eu trazia uma túnica de brocado azul-escuro abotoada ao lado, com o peitilho ricamente bordado de dragões e flores de oiro: por cima um casabeque de seda de um tom azul mais claro, curto, amplo e fofo: as calças de cetim cor de avelã descobriam ricas babouches amarelas pespontadas a pérolas, e um pouco da meia picada de estrelinhas negras: e à cinta, numa linda faixa franjada de prata, tinha metido um leque de bambu, dos que têm o retrato do filósofo Lao-Tsé e são fabricados em Swa-Ton.

E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o carácter, eu sentia já em mim ideias, instintos chineses: – o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um abjecto terror do imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas açucaradas…

Alma e ventre eram já totalmente um mandarim. Não disse à generala: – Bonjour, Madame. – Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o chin-chin…

– É adorável, é precioso! – dizia ela, com o seu lindo riso, batendo as mãozinhas pálidas.

Nessa manhã, em honra da minha nova encarnação, havia um almoço chinês. Que gentis guardanapos de papel de seda escarlate, com monstros fabulosos desenhados a negro! O serviço começou por ostras de Ning-Pó. Exímias! Absorvi duas dúzias com um intenso regalo chinês. Depois vieram deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de carneiro com picado de alho, um prato de nenúfares em calda de açúcar, laranjas de Cantão, e enfim o arroz sacramental, o arroz dos Avós…

Delicado repasto, regado largamente de excelente vinho de Chão-Chigne! E, por fim, com que gozo recebi a minha taça de água a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de chá imperial, da primeira colheita de Março, colheita única, que é celebrada com um rito santo pelas mãos puras de virgens!… 

Duas cantadeiras entraram, enquanto nós fumávamos; e muito tempo, numa modulação gutural, disseram velhas cantigas dos tempos da Dinastia Ming, ao som de guitarras recobertas de peles de serpente, que dois tártaros agachados repenicavam, numa cadência melancólica e bárbara. A China tem encantos de um raro gosto…

Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a «Femme à Barbe»: e quando o general saiu com a sua escolta cossaca para o yamen do príncipe Tong, a informar-se da residência da família Ti Chin-Fu – eu, repleto e bem disposto, saí com Sá-Tó a ver Pequim.

A habitação de Camilloff ficava na Cidade Tártara, nos bairros militares e nobres. Há aqui uma tranquilidade austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos de aldeia sulcados pelas rodas dos carros; e quase sempre se caminha ao comprido de um muro, donde saem ramos horizontais de sicômoros.

Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um pónei mongol, com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo nela oscila: o toldo, as cortinas pendentes de seda, os ramos de plumas aos ângulos; e dentro entrevê-se alguma linda dama chinesa, coberta de brocados claros, a cabeça toda cheia de flores, fazendo girar nos pulsos dois aros de prata, com um ar de tédio cerimonioso. Depois é alguma aristocrática cadeirinha de mandarim, que coolies vestidos de azul, de rabicho solto, vão levando a um trote arquejante para os yamen do Estado; precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda com inscrições bordadas, insígnias de autoridade; e dentro o personagem bojudo, com enormes óculos redondos, folheia a sua papelada ou dormita de beiço caído…

A cada momento parávamos a olhar as lojas ricas, com as suas tabuletas verticais de letras douradas sobre fundo escarlate: os fregueses, num silêncio de igreja, subtis como sombras, vão examinando as preciosidades – porcelanas da Dinastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, sedas, armas marchetadas, os leques maravilhosos de Swa-Ton: por vezes, uma fresca rapariga de olho oblíquo, túnica azul, e papoulas de papel nas tranças, desdobra algum raro brocado diante de um grosso chinês que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na pança: ao fundo o mercador, aparatoso e imóvel, escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de sândalo: e um perfume adocicado, que sai das coisas, perturba e entristece…

Eis aqui a muralha que cerca a Cidade Interdita, morada santa do imperador! Moços nobres vêm descendo do terraço de um templo onde se estiveram adestrando à frecha. Sá-Tó disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas cerimónias escolta o guarda-sol de seda amarela, com o dragão bordado, que é o emblema sagrado do imperador. Todos eles cumprimentaram profundamente um velho que ia passando, de barbas venerandas, com o casabeque amarelo que é o privilégio do ancião; vinha falando só, e trazia na mão uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas… Era um príncipe do Império.
–––––––––––
Continua…

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Monteiro Lobato (Sorte Grande)

Foi numa quieta cidadezinha entrevada, dessas que se alheiam do mundo com a discrição humilde dos musgos. Havia lá a gente do Moura, o arrecadador de taxas municipais do mercado. A morte arrecadou o Moura muito fora de tempo e propósito. Consequência: viúva e sete filhos na dependura.

Dona Teodora, quarentona que nunca soubera a significação da palavra descanso, viu-se de trabalhos dobrados. Encher sete estômagos, vestir sete nudezas, educar outras tantas individualidades… Se houvesse justiça no mundo, quantas estátuas a certos tipos de mães!

A vida em tais lugarejos lembra a dos liquens na pedra. Tudo se encolhe no “limite” – no mínimo que a civilização comporta. Não há “oportunidades”. Os meninos mal empanam emigram. As meninas, como não podem emigrar, viram moças; as moças passam a “tias”, e as tias evoluem para velhinhas enrugadas como maracujá murcho – sem que nunca venha ensejo para a realização dos grandes sonhos: casamento ou ocupação decentemente remunerada.

Os empreguinhos públicos, de paga microscópica, são tremendamente disputados. Quem se aferra a um, dali só é arrancado pela morte – e passa a vida invejado. Uma só saída para as mulheres, afora o casamento: a meia dúzia de cadeiras das escolinhas locais.

O mulherio de Santa Rita lembra os rizomas de gladíolos de certas casas de “cera e sementes” pouco freqüentadas. O dono do negócio os expõe numa cesta à porta, à espera do freguês eventual. Não aparece freguês nenhum – e o homem os vai retirando da cesta à proporção que murcham. Mas o estoque não diminui porque entram sempre rizomas novos. O dona da casa de “cera e sementes” de Santa Rita á a Morte.

A boa mãe revolta-se. Tinha culpa de terem vindo ao mundo as cinco meninas e dois meninos, e de nenhum modo admitia que elas virassem maracujás secos e eles se estiolassem na lembrança viciosa dos zes-ninguéns.

O problema não era totalmente insolúvel como os meninos, porque podia mandá- los para fora no momento oportuno – mas, as meninas? Como arranjar a vida de cinco moças numa terra em que havia seis para cada homem casadouro – e só cinco cadeirinhas?

A mais velha, Maricota, herdara o temperamento, a valentia materna. Estudou o que pôde e como pôde. Fez-se professora – mas já estava nos vinte e quatro e nem sombra de colocação. As vagas iam sempre para as de maior peso político, ainda que analfabetas.

Maricota, um peso-pluma, que poderia esperar?

Mesmo assim, dona Teodora não desanimava.

– Estudem. Preparem-se. De repente qualquer coisa acontece e vocês se arrumam.

Os anos, entretanto, passavam sem que a esperadíssima “qualquer coisa” viesse – e os apertos recresciam. Por muito que trabalhassem em cocadas, bordados de enxoval e costurinhas, a renda não se distanciava do zero.

Dizem que as desgraças gostam de vir juntas. Quando a situação dos Mouras atingiu o ponto perigoso da “dependura”, nova calamidade sobreveio. Maricota recebeu do céu um estranho castigo: a singularíssima doença que lhe atacou o nariz…

No começo não deram importância ao caso; só no começo, porque a doença entrou a progredir, com desorientação de todos os entendidos em medicina das redondezas. Nunca, verdadeiramente nunca, ninguém soubera por lá de coisa assim.

O nariz da moça crescia, engordava, engrouvinhava, lembrando o de certos bêbados incorrigíveis. A deformação nessa parte do rosto é sempre desastrosa. Dá à fisionomia um ar cômico. Todos se apiedavam da Maricota – mas riam-se sem querer.

A maldade dos lugarejos tem a insistência de certas moscas. Aquele nariz foi virando o prato predileto do Comentário. Nos momentos de escassez de assunto era infalível porem-no à mesa.

– Se aquilo pega, ninguém mais planta rabanetes em Santa Rita. É só levar a mão ao rosto e colher…

– E dizem que está crescendo…

– Se está! A moça já não põe o pé na rua – nem para a missa. Aquela negrinha, cria de dona Teodora, me disse que já não e nariz – é beterraba…

– Sério?

– Cresce tanto que se a coisa continua vamos ter um nariz com uma moça atrás e não uma moça com um nariz na frente. O maior, o principal, ficará sendo o rabanete…

Nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo. A tal ponto chegou a de Santa Rita que quando aparecia alguém de fora na vacilavam em enfileirar entre as curiosidades locais a doença da moça.

– Temos várias coisas dignas de ver-se. Há a igreja, cujo sino tem um som sem igual no mundo. Bronze do céu. Há o pé de cacto da casa do major Lima, com quatro metros de roda na altura do peito. E há o rabanete da Maricota…

O visitante espantava-se, está claro.

– Rabanete?

O informante desfiava a crônica do famoso nariz com invençõezinhas cômicas de sua lavra. “Não poderei ver isso?” “Creio que não, porque ela já não tem ânimo de pôr o pé na rua – nem para a missa.”

Chegou o momento de recorrer aos médicos especialistas. Como por lá não houvesse nenhum, dona Teodora lembrou-se de um doutor Clarimundo, especialista de toas as especialidades na cidade próxima. Tinha de mandar-lhe a filha. O nariz de Maricota estava ficando clamoroso demais. Mas… mandar como?

A distância era grande. Viagem por água – pelo rio São Francisco, em cuja margem direita se assentava Santa Rita. O percurso custaria dinheiro; e custariam dinheiro a consulta, o tratamento, a estada lá – e onde o dinheiro? Como reunir os duzentos mil réis necessários?

Não há barreiras para o heroísmo das mães. Dona Teodora redobrou da faina, operou milagres de gênio e, por fim, reuniu o dinheiro da salvação.

Chegou o dia. Muito vexada de mostra-se em público depois de tantos meses de segregação, Maricota embarcou para a viagem de dois dias. Embarcou numa gaiola – o “Comandante Exupério” – e logo que se viu a bordo tratou de descobrir um cantinho em que ficasse a salvo da curiosidade dos passageiros.

Inutilmente. Deu logo nos olhos de vários, sobretudo nos dum moço de bom aspecto, que entrou a mirá-la com singular insistência. Maricota esgueirou-se de sua presença e, de bruços na amurada, fingiu-se absorta na contemplação da paisagem. Fraude pura, coitadinha. A única paisagem que via era a sua – a nasal. O passageiro, entretanto, não a largava.

– Quem é essa moça? Quis saber – e um de boca perdigotante, também embarcado em Santa Rita, regalou-se em contar permenorizadamente tudo quanto sabia a respeito.

O moço refranziu a testa. Reconcentrou-se a meditar. Por fim, seus olhos brilharam.

– Será possível? – murmurou em solilóquio, e resolutamente encaminhou-se na direção da triste criatura, absorvida na contemplação da paisagem.

– Perdão, minha senhora, eu sou médico e…

Maricota voltou para ele os olhos, muito vexada, sem saber o que dizer. Como um eco, repetiu:

– Médico?

– Sim, médico – e o seu caso está me interessando profundamente. Se é o que suponho, talvez que… Mas, venha cá – conte-me tudo – conte-me como isso começou. Não se vexe. Sou médico – e para os médicos não há segredos. Vamos.

Maricota, depois de alguma resistência, contou tudo, e à medida que falava o interesse do moço recrescia.

– Com licença – disse ele, e pôs a examinar-lhe o nariz, sempre com perguntas cujo alcance a moça não percebia.

– Como é seu nome? – atreveu-se a indagar Maricota.

– Doutor Cadaval.

A expressão do médico lembrava a do garimpeiro que encontra um diamante de valor fabuloso – um Cullinan! Nervosamente, ele insistia:

– Conte, conte…

Queria saber tudo; como aquilo começara, como se desenvolvera, que perturbação ela sentira e outras coisinhas técnicas. E as respostas da moça tinham o condão de aumentar-lhe o entusiasmo. Por fim:

– Maravilhoso! Exclamou. Um caso único de boa sorte…

Tais exclamações desnortearam a doente. Maravilhoso? Que maravilhamento poderia causar a sua desgraça? Chegou a ressentir-se. O médico tentou sossegá-la.

– Perdoe-me, dona Maricota, mas o seu caso é positivamente extraordinário. De momento não posso firmar parecer – estou sem livros; mas macacos me lembram se o que a senhora tem não é um rinofima – um RINOFIMA, imagine!

Rinofima! Aquela palavra estranha, dita naquele tom de entusiasmo, em coisa nenhuma melhorou a situação de atrapalhamento de Maricota. O fato de sabermos o nome de uma doença não nos consola nem cura.

– E que tem isso? perguntou ela.

– Tem, minha senhora, que é uma doença raríssima. Pelo que sei a respeito, não se conhece um só caso em toda a América do Sul…

Compreende agora o meu entusiasmo de profissional? Médico que descobre casos únicos é médico de nome feito…

Maricota começou a compreender.

Longamente Cadaval debateu a situação, informando-se de tudo – da família, do objeto da viagem. Ao saber de sua ida à cidade próxima em busca do dr. Clarimundo, rebelou-se.

– Qual Clarimundo, minha senhora! Esses médicos da roça não passam de perfeitas cavalgaduras. Formam-se e afundam nos lugarejos, nunca lêem nada. Atrasadíssimos. Se a senhora vai consultá-lo, perderá o seu tempo e o seu dinheiro. Ora, o Clarimundo!

– Conhece-o?

– Claro que não, mas adivinho. Conheço a classe. O seu caso, minha senhora, é a maravilha das maravilhas, desses que só podem ser tratados pelos grandes médicos dos grandes centros – e estudado pelas academias. A senhora vai mas é para o Rio de Janeiro. Tive a sorte de encontrá-la e não a largo mais. Ora esta! Um rinofima destes nas mãos do Clarimundo! Tinha graça…

A moça alegou que a sua pobreza não lhe permitia tratar-se na capital. Eram paupérrimos.

– Sossegue. Eu farei todas as despesas. Um caso como o seu vale ouro. Rinofima! O primeiro observado na América do Sul! Isso é ouro em barra, minha senhora…

E tanto falou, e tanto gabou a beleza do rinofima, que Maricota deu de sentir uns começos de orgulho. Depois de duas horas de debates e combinações, já estava outra – sem vexame nenhum dos passageiros – e a exibir pelo tombadilho o seu rabanete com quem exibe algo fascinante.

O doutor Cadaval era um moço extremamente expansivo, dos que não param de falar. O empolgamento em que ficou fê-lo debater o assunto com todos a bordo.

– Comandante – disse ao capitão horas depois –, aquilo é uma preciosidade sem par. Único na América do Sul, imagine! O sucesso que vou fazer no Rio – na Europa. É dessas coisas que arrumam a carreira de um médico. Um rinofima! Um ri-no-fi-ma, capitão!…

Não houve passageiro que não se inteirasse da história do rinofima da moça – e o sentimento de inveja tornou-se geral. Evidentemente Maricota fora marcada pelo Destino. Possuía algo único, uma coisa de fazer a carreira de um médico e de figurar em todos os tratados de medicina. Muitos houve que instintivamente correram os dedos pelo nariz na esperança de apalpar um comecinho da maravilha…

Maricota, ao recolher-se à cabine, escreveu á mãe:

“Tudo está mudando da maneira mais esquisita, mamãe! Encontrei a bordo um médico distintíssimo que, ao dar com o meu nariz, abriu a boca no maior entusiasmo. Eu só queria que a senhora visse. Acha que é uma grande – uma grandíssima coisa, a coisa mais rara do mundo, única na América do Sul, imagine!

Disse que vale um tesouro, que para ele foi o mesmo que ter encontrado um tal diamante Cullinan. Quer que eu vá para o Rio de Janeiro. Paga tudo. Como aleguei que somos muitos pobres, prometeu que depois da operação me arranja um lugar de professora no Rio!… Até a vergonha lá se foi. Passeio com o nariz à mostra, alto.

E, coisa incrível, mamãe, todos me olham com inveja! Inveja sim – eu leio nos olhos de todos. Decore esta palavra: RINOFIMA. É o nome da doença. Ah, eu só queria ver a cara desses bobos de Santa Rita, que tanto caçoavam de mim – quando souberem…”

Maricota mal conseguiu dormir essa noite. Grande mudança de idéias se operava em sua cabeça. Qualquer coisa a advertia de que era chegado o momento de uma grande tacada. Tinha de tirar vantagens da situação – e como ainda não dera resposta definitiva ao dr. Cadaval, deliberou executar um plano.

No dia seguinte o médico abordou-a de novo.

– Então, dona Maricota, está resolvida, afinal?

A moça estava resolvidíssima; mas, boa mulher que era, fingiu.

– Não sei ainda. Escrevi à mamãe… Há a minha situação pessoal e a da minha gente. Para que eu vá ao Rio preciso ficar sossegada quanto a estes dois pontos. Tenho dois irmãos e quatro irmãs – e como é? Ficar lá no Rio sem eles, impossível. E como deixá- los ficar sozinhos em Santa Rita, se sou o esteio da casa?

O dr. Cadaval refletiu uns momentos. Depois disse:

– Os rapazes eu posso colocar facilmente. Já suas irmãs, não sei. Que idade têm elas?

– Alzira, a logo abaixo de mim, está com 25 anos. Muito boa criatura. Borda que é um primor. Bonitinha.

– Se tem essas prendas poderemos colocá-la numa boa casa de modas. E as outras?– Há a Anita, com 22, mas essa só sabe ler e escrever versos. Sempre teve um jeito extraordinário para a poesia.

O dr. Cadaval coçou a cabeça. Colocar uma poetisa não é nada fácil – mas veria.

Há os empregos do governo, nos quais cabem até os poetas.

– Há a Olga, com 20 anos, que só pensa em casar. Essa não quer outro emprego. Nasceu para o casamento – e lá em Santa Rita está secando porque não há homens – todos emigram.

– Arranjaremos um bom casamento para Olga – prometeu o médico.

– Há a Odete, com 19 anos, que ainda não revelou posição para coisa nenhuma.

Boa criatura, mas muito criançola, bobinha.

– Vai ser outro casamento – sugeriu o médico. – Arranja-se. Arranjaremos a vida de todos.

O dr. Cadaval ia prometendo com aquela facilidade porque no íntimo não tinha intenção de colocar tanta gente. Poderia, sim, arrumar a vida de Maricota – depois de operá-la. Mas o resto da família que se fomentasse.

Assim não sucedeu, entretanto. As aperturas da vida tinham dado a Maricota um senso das realidades verdadeiramente totalitário. Percebendo que aquela oportunidade era a maior de sua vida, resolveu não deixá-la escapar. De modo que, ao chegar ao Rio, antes de entregar-se ao tratamento e exibir na Academia de Medicina o seu caso único, impôs condições.

Alegou que sem a irmã Alzira não tinha jeito de ficar sozinha na capital – e o remédio foi a vinda de Alzira. Mal pilhou lá a irmã, insistiu em colocá-la – porque não tinha o menor propósito ficarem as duas nas costas do médico. “Assim, a Alzira acanha-se e volta.”

Ansioso por dar início à exploração do rinofima, o médico pulou para arranjar a colocação da Alzira. E depois disso deu novos pulos para mandar vir e colocar a Anita. E depois da Anita chegou a vez de Olga. E depois de Olga chegou a vez de Odete. E depois de Odete chegou a vez de dona Teodora e dos dois rapazes.

O caso de Olga foi difícil. Casamento! Mas Cadaval teve uma idéia filha do desespero: intimou um seu ajudante no consultório, português quarentão de nome Nicéforo, a casar-se com a menina. Ultimatum da Moral.

– Ou casa-se ou vai para o olho da rua. Não quero mais saber de auxiliares solterões.

Nicéforo, tipo bastante pai-da-vida, coçou a cabeça mas casou-se – e foi o mais feliz dos Nicéforos.

A família já estava toda arrumada, quando Maricota se lembrou de dois primos. O médico, porém, resistiu.

– Não. Isso também é demais. Se continuar assim a senhora acaba forçando-me a arranjar um bispado para o padre de Santa Rita. Não é não.

A vitória do dr. Cadaval foi verdadeiramente estrondosa. Encheram-se as revistas médicas e os jornais com a notícia da solene apresentação à Academia de Medicina do belíssimo caso – único da América do Sul – dum maravilhoso rinofima, o mais belos dos rinofimas. As publicações estrangeiras acompanharam as nacionais.

O mundo científico de todos os continentes ficou sabendo de Maricota, do seu “rabanete” e do eminente doutor Cadaval Lopeira – luminar da ciência médica sul-americana.

Dona Teodora, felicíssima, não cessava de comentar o estranho curso dos acontecimentos.

– Bem se diz que Deus escreve direito por linhas tortas. Quando havia eu de imaginar, ao nos surgir aquela horrível coisa no nariz de minha filha, que era para o bem geral de todos!

Restava a parte última – a operação. Maricota, entretanto, ainda nas vésperas do dia marcado vacilava.

– Que acha, mamãe? Deixo ou não deixo que o doutor me opere?

Dona Teodora abriu a boca.

– Que idéia, menina! Claro que deixa. Pois há de ficar toda vida assim com esse escândalo na cara?

Maricota não se decidia.

– Podemos demorar um pouco mais, mamãe. Tudo quanto nos veio de bom saiu do rinofima. Quem sabe se nos rende mais alguma coisa? Há ainda o Zezinho a colocar – e o pobre Quindó, que nunca achou emprego…

Mas dona Teodora, arquifarta do rabanete, ameaçou de levá-la de volta para Santa Rita, se ela teimasse na asneira de retardar, por um só dia, a operação. E Maricota foi operada. Perdeu o rinofima, ficando com um nariz igual ao de todas as outras, apenas levemente enrugadinho em conseqüência dos enxertos de epiderme.

Quem positivamente desapontou foi a gente maldosa do lugarejo. O maravilhoso romance de Maricota era comentado em todas as rodinhas com grandes exageros – até com o exagero de que ela estava noiva do dr. Cadaval.

– Como a gente se engana neste mundo! – filosofou o farmacêutico. – Todos pensamos que aquilo fosse doença – mas o verdadeiro nome de tais rabanetes, sabem qual é?–?

– Sorte grande, minha gente! Sorte Grande da Espanha…

Fonte:

Monteiro Lobato. Negrinha. Disponível em Portal São Francisco

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Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 4

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Eu revoltava-me contra este pedantismo retórico de pedagogo rígido: erguia alto a fronte, gritava-lhe numa arrogância desesperada:

– Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? O teu grande nome de Consciência não me assusta! És apenas uma perversão da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com flor de laranja!

E imediatamente sentia passar-me na alma, com uma lentidão de brisa, um rumor humilde de murmurações irónicas:

– Bem, então come, dorme, banha-te e ama… Eu assim fazia. Mas logo os próprios lençóis de bretanha do meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lívidos de uma mortalha; a água perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pele, com a sensação espessa de um sangue que coalha: e os peitos nus das minhas amantes entristeciam-me, como lápides de mármore que encerram um corpo morto.

Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti Chin-Fu tinha decerto uma vasta família, netos, bisnetos tenros, que, despojados da herança que eu comia à farta em pratos de Sèvres, numa pompa de sultão perdulário, iam atravessando na China todos os infernos tradicionais da miséria humana – os dias sem arroz, o corpo sem agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada…

Compreendi então porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e dos seus lábios recobertos pelos longos pêlos brancos do seu bigode de sombra, parecia-me sair agora esta acusação desolada: «Eu não me lamento a mim, forma meio morta que era; choro os tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio fresco das tuas amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados num grupo expirante, entre leprosos e ladrões, na Ponte dos Mendigos, ao pé dos terraços do Templo do Céu!»

Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chinesa! Não podia levar à boca um pedaço de pão sem imaginar imediatamente o bando faminto de criancinhas, a descendência de Ti Chin-Fu, penando, como passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me abafava no meu paletó, era logo a visão de desgraçadas senhoras, mimosas outrora de tépido conforto chinês, hoje roxas de frio, sob andrajos de velhas sedas, por uma manhã de neve; o tecto de ébano do meu palacete lembrava-me a família do Mandarim, dormindo à beira dos canais, farejada pelos cães; e o meu coupé bem forrado fazia-me arrepiar à ideia das longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro Inverno asiático…

O que eu sofria! – E era o tempo em que a populaça invejosa vinha pasmar para o meu palacete, comentando as felicidades inacessíveis que lá deviam habitar!

Enfim, reconhecendo que a Consciência era dentro em mim como uma serpente irritada – decidi implorar o auxílio d’Aquele que dizem ser superior à Consciência porque dispõe da Graça.

Infelizmente eu não acreditava n’Ele… Recorri pois à minha antiga divindade particular, ao meu dilecto ídolo, padroeira da minha família, Nossa Senhora das Dores. E, regiamente pago, um povo de curas e cónegos, pelas catedrais de cidades e pelas capelas de aldeia, foi pedindo a Nossa Senhora das Dores que voltasse os seus olhos piedosos para o meu mal interior… Mas nenhum alívio desceu desses Céus inclementes, para onde há milhares de anos debalde sobe o calor da miséria humana.

Então eu próprio me abismei em práticas piedosas – e Lisboa assistiu a este espectáculo extraordinário: um ricaço, um nababo, prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de mãos postas frases da salve-rainha, como se visse na Oração e no Reino do Céu, que ela conquista, outra coisa mais que uma consolação fictícia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que não possuem nada… Eu pertenço à burguesia; e sei que se ela mostra à plebe desprovida um Paraíso distante, gozos inefáveis a alcançar – é para lhe afastar a atenção dos seus cofres repletos e da abundância das suas searas.

Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e cantadas, para satisfazer a alma errante de Ti Chin-Fu. Pueril desvario de um cérebro peninsular! O velho Mandarim, na sua classe de letrado, de membro da Academia dos Han-Lin, colaborador provável do grande tratado «Khu Tsuane-Chu», que já tem setenta e oito mil e setecentos e trinta volumes, era certamente um sectário da doutrina, da moral positiva de Confúcio… Nunca ele, sequer, queimara mechas perfumadas em honra de Buda: e os cerimoniais do sacrifício místico deviam parecer à sua abominável alma de gramático e de céptico como as pantomimas dos palhaços no teatro de Hong-Tung!

Então prelados astutos, com experiência católica, deram-me um conselho subtil – captar a benevolência de Nossa Senhora das Dores com presentes, flores, brocados e jóias, como se quisesse alcançar os favores de Aspásia: e à maneira de um banqueiro obeso, que obtém as complacências de uma dançarina dando-lhe um cottage entre árvores – eu, por uma sugestão sacerdotal, tentei peitar a doce Mãe dos Homens, erguendo-lhe uma catedral toda de mármore branco. A abundância das flores punha entre os pilares lavrados perspectivas de paraísos: a multiplicidade dos lumes lembrava uma magnificência sideral… Despesas vãs! O fino e erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a igreja; mas, quando eu nesse dia entrei a visitar a minha hóspeda divina, o que vi, para além das calvas dos celebrantes, entre a mística névoa dos incensos, não foi a Rainha da Graça, loira, na sua túnica azul – foi o velho malandro com o seu olho oblíquo e o seu papagaio nos braços! Era a ele, ao seu branco bigode tártaro, à sua pança cor de oca, que todo um sacerdócio recamado de oiro estava oferecendo, ao roncar do órgão, a Eternidade dos louvores!…

Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, era favorável ao desenvolvimento destas imaginações – parti, viajei sobriamente, sem pompa, com um baú e um lacaio.

Visitei, na sua ordem clássica, Paris, a banal Suíça, Londres, os lagos taciturnos da Escócia; ergui a minha tenda diante das muralhas evangélicas de Jerusalém; e de Alexandria a Tebas, fui ao comprido desse longo Egipto monumental e triste como o corredor de um mausoléu. Conheci o enjoo dos paquetes, a monotonia das ruínas, a melancolia das multidões desconhecidas, as desilusões do bulevar: e o meu mal interior ia crescendo.

Agora já não era só a amargura de ter despojado uma família venerável: assaltava-me o remorso mais vasto de ter privado toda uma sociedade de um personagem fundamental, um letrado experiente, coluna da Ordem, esteio de instituições. Não se pode arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento e seis mil contos, sem lhe perturbar o equilíbrio… Esta ideia pungia-me acerbamente. Ansiei por saber se na verdade a desaparição de Ti Chin-Fu fora funesta à decrépita China: li todos os jornais de Hong-Kong e de Xangai, velei a noite sobre histórias de viagens, consultei sábios missionários: – e artigos, homens, livros, tudo me falava da decadência do Império do Meio, províncias arruinadas, cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebeliões, templos aluindo-se, leis perdendo a autoridade, a decomposição de um mundo, como uma nau encalhada que a vaga desfaz tábua a tábua!…

E eu atribuía-me estas desgraças da sociedade chinesa! No meu espírito doente Ti Chin-Fu tomara então o valor desproporcionado de um César, um Moisés, um desses seres providenciais que são a força de uma raça. Eu matara-o; e com ele desaparecera a vitalidade da sua pátria! O seu vasto cérebro poderia talvez ter salvado, a rasgos geniais, aquela velha monarquia asiática – e eu imobilizara-lhe a acção criadora! A sua fortuna concorreria a refazer a grandeza do Erário – e eu estava-a dissipando a oferecer pêssegos em Janeiro às messalinas do Helder!…

– Amigos, conheci o remorso colossal de ter arruinado um império!

Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me à orgia. Instalei-me num palacete da Avenida dos Campos Elísios – e foi medonho. Dava festas à Trimalcião: e, nas horas mais ásperas de fúria libertina, quando das charangas, na estridência brutal dos cobres, rompiam os cancãs; quando prostitutas, de seio desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados boémios, ateus de cervejaria, injuriavam Deus, com a taça de champanhe erguida – eu, tomado subitamente como Heliogábalo de um furor de bestialidade, de um ódio contra o Pensante e o Consciente, atirava-me ao chão a quatro patas e zurrava formidavelmente de burro…

Depois quis ir mais baixo, ao deboche da plebe, às torpezas alcoólicas do «Assommoir»: e quantas vezes, vestido de blusa, com o casquete para a nuca, de braço dado com «Mes-Bottes» ou «Bibi-la-Gaillarde», num tropel avinhado, fui cambaleando pelos bulevares exteriores, a uivar, entre arrotos:

Allons, enfants de la patrie-e-e!…
Le jour de gloire est arrivé…

Foi uma manhã, depois de um destes excessos, à hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora espiritual – que me nasceu, de repente, a ideia de partir para a China! E, como soldados em acampamento adormecido, que ao som do clarim se erguem, e um a um se vão juntando e formando coluna – outras ideias se foram reunindo no meu espírito, alinhando-se, completando um plano formidável… Partiria para Pequim; descobriria a família de Ti Chin-Fu; esposando uma das senhoras, legitimaria a posse dos meus milhões; daria àquela casa letrada a antiga prosperidade; celebraria funerais pomposos ao Mandarim, para lhe acalmar o espírito irritado; iria pelas províncias miseráveis fazendo colossais distribuições de arroz; e, obtendo do imperador o botão de cristal de mandarim, acesso fácil a um bacharel, substituir-me-ia à personalidade desaparecida de Ti Chin-Fu – e poderia assim restituir legalmente à sua pátria, se não a autoridade do seu saber, ao menos a força do seu oiro.

Tudo isto, por vezes, me aparecia como um programa indefinido, nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo desta aventura original e épica me envolvera; e eu ia, arrebatado por ele, como uma folha seca numa rajada.

Anelei, suspirei por pisar a terra da China! – Depois de altos preparativos, apressados a punhados de ouro, uma noite parti enfim para Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o «Ceilão». E na manhã seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o voo branco das gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborizavam as torres de Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro – pus a proa ao Oriente.

IV

O «Ceilão» teve uma viagem calma e monótona até Xangai.

Daí subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin num pequeno steamer da Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China numa curiosidade ociosa de touriste: toda a paisagem dessa província, que se assemelha à dos vasos de porcelana, de um tom azulado e vaporoso, com colinazinhas calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me deixou sombriamente indiferente.

Quando o capitão do steamer, um yunkee impudente de focinho de chibo, ao passarmos à altura de Nanquim, me propôs parar ir percorrer as ruínas monumentais da velha cidade de porcelana, – eu recusei, com um movimento seco de cabeça, sem mesmo desviar os olhos tristes da corrente barrenta do rio.

Que pesados e soturnos me pareceram os dias de navegação de Tien-Tsin a Tung-Chu, em barcos chatos que o cheiro dos remadores chineses empestava; ora através de terras baixas inundadas pelo Pei-Hó, ora ao longo de pálidos e infindáveis arrozais; passando aqui uma lúgubre aldeia de lama negra, além um campo coberto de esquifes amarelos; topando a cada momento com cadáveres de mendigos, inchados e esverdeados, que desciam ao fio de água, sob um céu fusco e baixo!

Em Tung-Chu fiquei surpreendido, ao dar com uma escolta de cossacos que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heróico oficial das campanhas da Ásia Central, e então embaixador da Rússia em Pequim. Eu vinha-lhe recomendado como um ser precioso e raro: e o verboso intérprete Sá-Tó, que ele punha ao meu serviço, explicou-me que as cartas de selo imperial, avisando-o da minha chegada, recebera-as ele, havia semanas, pelos correios da Chancelaria que atravessam a Sibéria em trenó, descem a dorso de camelo até à Grande Muralha tártara, e entregam aí a mala a esses corredores mongólicos, vestidos de couro escarlate, que dia e noite galopam sobre Pequim.

Camilloff enviava-me um pónei da Manchúria, ajaezado de seda, e um cartão de visita, com estas palavras traçadas a lápis sob o seu nome: «Saúde! O animal é doce de boca!»

Montei o pónei: e a um hurra dos cossacos, num agitar heróico de lanças, partimos à desfilada pela poeirenta planície – porque já a tarde declinava, e as portas de Pequim fecham-se mal o último raio de sol deixa as torres do Templo do Céu. Ao princípio seguimos uma estrada, caminho batido do trânsito das caravanas, atravancado de enormes lajes de mármore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois passámos a ponte de Pa Li-Kao, toda de mármore branco, flanqueada de dragões arrogantes. Vamos correndo então à beira de canais de água negra: começam a aparecer pomares, aqui e além uma aldeia de cor azulada, aninhada ao pé de um pagode: – de repente, a um cotovelo do caminho, paro assombrado…

Pequim está diante de mim! E uma vasta muralha, monumental e bárbara, de um negro baço, estendendo-se a perder de vista, e destacando, com as arquitecturas babilónicas das suas portas de tectos recurvos, sobre um fundo de poente de púrpura ensanguentada…

Ao longe, para o norte, num vago de vapor roxo, esbatem-se, como suspensas no ar, as montanhas da Mongólia…

–––––––––––
Continua…
Fonte:
http://leituradiaria.com

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Monteiro Lobato (O Herdeiro de Si Mesmo)

O povo de Dois Rios não cessava de comentar a inconcebível “sorte” do coronel Lupércio Moura, o grande milionário local. Um homem que saíra do nada. Que começara modesto menino de escritório dos que mal ganham para os sapatos, mas cuja vida, dura até aos 36 anos, fora daí por diante a mais espantosa subida pela escada do dinheiro, a ponto de aos 60 ver-se montado numa hipopotâmica fortuna de 60 mil contos de réis.

Não houve o que Lupércio não conseguisse da sorte – até o posto de coronel, apesar de já extinta a pitoresca instituição dos coronéis. A nossa velha Guarda Nacional era uma milícia meramente decorativa, com os galões de capitão, major e coronel reservados para coroamento das vidas felizes em negócios. Em todas as cidades havia sempre um coronel: o homem de mais posses. Quando Lupércio chegou aos 20 mil contos, agente de Dois Rios sentiu-se acanhado de tratá-lo apenas de “senhor Lupércio”. Era pouquíssimo. Era absurdo que um detentor de tanto dinheiro ainda se conservasse! “soldado raso” – e por consenso unânime promoveram-no, com muita justiça, a coronel, o posto mais alto da extinta milícia.

Criaturas há que nascem com misteriosa aptidão para monopolizar dinheiro. Lembram ímãs humanos. Atraem a moeda com a mesma inexplicável força com que o ímã atrai a limalha. Lupércio tornara-se ímã. O dinheiro procurava-o de todos os lados, e uma vez aderido não o largava mais toda gente faz negócios em que ora ganha, ora perde. Ficam ricos os que ganham mais do que perdem e empobrecem os que perdem mais do que ganham. Mas caso de homem de mil negócios sem uma só falha, existia no mundo apenas um – o do coronel Lupércio.

Até aos 36 anos ganhou dinheiro de modo normal, e conservou-o à força da mais acirrada economia. Juntou um pecúlio de 45:500$000 como juntam todos os forretas. Foi por essas alturas que sua vida mudou. A sorte “encostou-se” nele, dizia o povo. Houve aquela tacada inicial de santos e a partir daí todos os seus negócios foram tacada prodigiosas. Evidentemente, uma força misteriosa passara a portegê-lo.
Que tacada inicial fora essa? Vale a pena recordá-lo.

Certo dia, inopidanadamente, Lupércio apareceu com a idéia, absurda para seu caráter, de uma estação de veraneio em Santos. Todo mundo se espantou. Pensar em veraneio, flanar, botar dinheiro fora, aquela criatura que nem sequer fumava para economia dos níqueis que custam os maços de cigarros? E quando o interpelaram, deu uma resposta esquisita:

– Não sei. Uma coisa me empurra para lá…

Lupércio foi para Santos. Arrastado, sim, mas foi. E lá se hospedou no hotelzinho mais barato, sempre atento a uma só coisa: o saldo que ficaria dos 500 mil réis que destinara à “maluquice”. Nem banhos de mar tomou, apesar da grande vontade, para economia dos 20 mil réis de roupa de banho. Contentava-se com ver o mar.

Que enlevo d’alma lhe vinha da imensidão líquida, eternamente a aflar em ondas e a refletir os tons do céu! Lupércio extasiava-se diante de tamanha beleza.

– Quanto sal! Quantos milhões de toneladas de sal! – dizia lá consigo, e seus olhos, em êxtase, ficavam a ver pilhas imensas de sacas amontoadas por toda a extensão das praias.

Também gostava de assistir à puxada das redes dos pescadores, enlevando-se no cálculo do valor da massa de peixes recolhida. Seu cérebro era a mais perfeita máquina de calcular que o mundo ainda produzira.

Num desses passeios afastou-se mais que de costume e foi ter à praia grande. Um enorme trambolho ferrugento semi-enterrado na areia chamou-lhe a atenção.

– Que é aquilo? – indagou dum passante.

Soube tratar-se dum cargueiro inglês que vinte anos antes dera à costa naquele ponto. Uma tempestade arremessara-o à praia onde encalhara e ficara a afundar-se lentissimamente. No começo o grande caso aparecia quase todo de fora – “mas ainda acaba engolido pela areia” – concluiu o informante.

 Certas criaturas nunca sabem o que fazem, o que são, nem o que leva a isto e não àquilo. Lupércio era assim. Ou andava assim agora, depois do “encostamento” da força. Essa força o puxava às vezes como cabreiro puxa para a feira um cabrito – arrastando-o. Lupércio veio para santos arrastado. 

Chegara até aquele casco arrastado – e era a contragosto que permanecia diante dele, porque o sol estava terrível e Lupércio detestava o calor. Travava-se dentro dele uma luta. A força obrigava-o a atentar no casco, e calcular o volume daquela massa de ferro, o número de quilos, o valor do metal, o custo do desmantelamento – mas Lupércio resistia. Queria sombra, queria escapar ao calor terrível. Por fim, venceu. Não calculou coisa nenhuma – e fez-se de volta para o hotelzinho com cara de quem brigou com a namorada – evidentemente amuado.

Nessa noite todos os seus sonhos giraram em torno do casco velho. A força insistia para que ele calculasse a ferralha, mas mesmo em sonhos Lupércio resistia, alegava o calor reinante – e os pernilongos. Oh, como havia pernilongos em Santos! Como calcular qualquer coisa com o termômetro perto de 40 graus e aquela infernal música anofélica? Lupércio amanheceu de mau humor, amuado. Amuado com a força.

Foi quando ocorreu o caso mais inexplicável de sua vida:

O casual encontro de um corretor de negócios que seduziu de maneira estranha. Começaram a conversar bobagens e gostaram-se. Almoçaram juntos. Encontraram-se de novo à tarde para o jantar. Jantaram juntos e depois… a farrinha!

A princípio, a idéia da farra tinha assustado Lupércio. Significava desperdício de dinheiro – um absurdo. Mas como o homem lhe pagara o almoço e o jantar, era bem possível que também custeasse a farrinha. Essa hipótese fez que Lupércio não repelisse de pronto o convite, e o corretor, como se lhe adivinhasse o pensamento, acudiu logo:

– Não pense em despesas. Estou cheio de “massa”. Como o negocião que fiz ontem, posso torrar um conto sem que meu bolso dê por isso.

A farra acabou diante de uma garrafa de whisky, bebida cara que só naquele momento Lupércio veio a conhecer. Uma, duas, três doses. Qualquer coisa levitante começou a desabrochar dentro dele. Riu-se à larga. Contou casos cômicos. Referiu cem fatos de sua vida e depois, oh, oh, oh, falou em dinheiro e confessou quantos contos possuía no banco!

– Pois é! Quarenta e cinco contos – ali na batata!

O corretor passou o lenço pela testa suada. Uf! Até que enfim descobrira o peso metálico daquele homem. A confissão dos 45 contos era algo absolutamente aberrante na psicologia de Lupércio. Artes do whisky, porque em estado normal ninguém nunca lhe arrancaria semelhante confissão. Um dos seus princípios instintivos era não deixar que ninguém lhe conhecesse “ao certo” o valor monetário. Habilmente despistava os curiosos, dando a uns a impressão de possuir mais, e a outros a de possuir menos do que realmente possuía. Mas in whisky, diz o latim – e ele estava com quatro boas doses no sangue.

O que se passou dali até a madrugada Lupércio nunca o soube com clareza. Vagamente se lembrava de um estranhíssimo negócio em que entravam o velho casco do cargueiro inglês e uma companhia de seguros marítimos.

Ao despertar no dia seguinte, ao meio-dia, numa ressaca horrorosa, tentou reconstruir o embrulho da véspera. A princípio, nada; tudo confusão. De repente, empalideceu.

Sua memória começava a abrir-se.

– Será possível?

Fora possível, sim. O corretor havia “roubado” os seus 45 contos! Como? Vendendo-lhe o ferro-velho. Esse corretor era agente da companhia que pagara o seguro do cargueiro naufragado e ficara dona do casco. Havia muitos anos que recebera a incumbência de apurar qualquer coisa daquilo – mas nunca obtivera nada, nem 5, nem 3 nem 2 contos – e agora o vendera àquele imbecil por 45!

A entrada triunfal do corretor no escritório da companhia, vibrando no ar o cheque! Os abraços, os parabéns dos companheiros tomados de inveja…

O diretor da sucursal fê-lo vir ao escritório.

– Quero que receba o meu abraço – disse. – A sua façanha vem pô-lo em primeiro lugar entre os nossos agentes.

O senhor acaba de tornar-se a grande estrela da companhia.

Enquanto isso, lá no hotelzinho, Lupércio amarfanhava o travesseiro desesperadamente. Pensou na polícia. Pensou em contratar o melhor advogado de Santos. Pensou em dar tiro – um tiro na barriga do infame ladrão; na barriga, sim, por causa da peritonite. Mas nada pôde fazer. A força lá dentro o inibia. Impedia-o de agir neste ou naquele sentido. Forçava-o a esperar.

– Mas esperar que coisa?

Ele não sabia, não compreendia, mas sentia aquela impulsão tremenda que o forçava a esperar. Por fim, exausto da luta, ficou de corpo largado – vencido. Sim, esperaria. Não faria nada – nem polícia, nem advogado, nem peritonite, apesar de ser um caso de escroqueria pura, desses que a lei pune.

E como não tivesse ânimo de regressar a Dois Rios, deixou-se ficar em Santos num empreguinho dos mais modestos – esperando… não sabia o quê.

Não esperou muito. Dois meses depois rebentava a Grande Guerra, e a tremenda alta dos metais não demorou a sobrevir. No ano seguinte Lupércio revendeu o casco do “Sparrow’ por 320 contos de réis. A notícia encheu Santos – e o corretor-estrela foi tocado da companhia de seguros quase a pontapés. O mesmo diretor que o promovera ao “estrelato” despediu-o com palavras ferozes;

– Imbecil! Esteve anos e anos com o “Sparrow” e vai vendê-lo por uma ninharia justamente nas vésperas da valorização. Rua! Faça-me o favor de nunca mais me pôr os pés aqui, seu coisa!

Lupércio voltou para Dois Rios com 320 contos no bolso e perfeitamente reconciliado com a força. Daí por diante nunca mais houve amuos, nem hiatos na sua ascensão ao milionarismo. Lupércio dava idéia do demônio. Enxergava no mais escuro de todos os negócios. Adivinhava. Recusava muitos que todos refugavam – e o que inevitavelmente sucedia era o fracasso desses negócios da china e a vitória dos de todos refugiados.

No jogo dos marcos alemães o mundo inteiro perdeu – menos Lupércio. Um belo dia deliberou “embarcar nos marcos”, contra o conselho de todos os prudentes locais. A moeda alemã estava a 50 réis. Lupércio comprou milhoões e mais milhões, empatou nela todas as suas possibilidades. E com espanto geral, o marco principiou a subir. Foi a 60, a 70, a 100 réis. O entusiasmo pelo negócio tornou-se imenso. Iria a 200, a 300 réis, diziam todos – e não houve quem não se atirasse à compra daquilo.

Quando a cotação chegou a 110 réis, Lupércio foi à capital consultar um banqueiro das suas relações, verdadeiro oráculo em finanças internacionais – o “infalível”, como diziam nas rodas bancárias.

– Não venda – foi o conselho do homem. – A moeda alemã está firmíssima, vai a 200, pode chegar mesmo a 300 – e só será o momento de vender.

As razões que o banqueiro deu para demonstrar matematicamente o asserto eram de perfeita solidez; eram a própria evidência materializada do raciocínio.

Lupércio ficou absolutamente convencido daquela matemática – mas, arrastado pela força, encaminhou-se para o banco onde tinha os seus marcos – arrastado como o cabritinho que o cabreiro conduz à feira – e lá, em voz sumida, submisso, envergonhado, deu ordens para a venda imediata dos seus milhões.

– Mas, o coronel – objetou o empregado a quem se dirigiu -, não acha que é erro vender agora que a alta está em vertigem? Todos os prognósticos são unânimes em garantir que teremos o marco a 200, a 300, e isso antes de um mês…

– Acho, sim, que é isso mesmo – respondeu Lupércio, como que agarrado pela garganta. – Mas quero, sou “forçado” a vender. Venda já, já, hoje mesmo.

– Olhe, olhe… – disse ainda o empregado. – não se precipite. Deixe essa resolução para amanhã. Durma sobre o caso.

A força quase estrangulou Lupércio, que com os últimos restos de voz apenas pôde dizer:

– É verdade, tem razão – mas venda, e hoje mesmo…

No dia seguinte começou a degringolada final dos marcos alemães, na descida vertiginosa que os levou ao zero absoluto.

Lupércio, comprador a 50 réis, vendera-os pelo máximo da cotação alcançada – e justamente na véspera de débâcle! O seu lucro foi milhares de contos.

Os contos de Lupércio foram vindo aos milhares, mas também lhe vieram vindo aos anos, até que um dia se convenceu de estar velho e inevitavelmente próximo do fim. Dores aqui e ali – doencinhas insistentes, crônicas. Seu organismo evidentemente de caía à proporção que a fortuna aumentava. Ao completar os 60 anos Lupércio tomou-se de uma sensação nova, de pavor – o pavor de ter de largar a maravilhosa fortuna reunida. Tão integrado estava no dinheiro, que a idéia de separar-se dos milhões lhe parecia uma aberração da natureza. Morrer! Teria então de morrer, ele que era diferente dos outros homens? Ele que viera ao mundo com a missão de chamar a si quanto dinheiro houvesse?

Ele que era o ímã atrator da limalha?

O que foi a sua luta com a idéia de inevitabilidade da morte não cabe em descrição nenhuma. Exigiria volumes. Sua vida ensombreceu. Os dias iam se passando e o problema se tornava cada vez mais augustioso. A morte é um fato universal. Até aquela data não lhe constava que ninguém houvesse deixado de morrer. Ele, portanto, morreria também – era o inevitável.

O mais que poderia fazer era prolongar a sua vida até os 70, até 80. Poderia mesmo chegar a quase 100, como o rockefeller – mas ao cabo teria de ir-se, e então? Quem ficaria com 200 ou 300 mil contos que deveria ter por essa época?

Aquela história de herdeiros era o absurdo dos absurdos para um celibatário de sua marca. Se a fortuna era dele, só dele, como deixá-la quem quer que fosse? Não… Tinha de descobrir um jeito de não morrer ou… Lupércio interrompeu-se no meio do raciocínio, tomado de súbita idéia. Uma idéia tremenda, que por minutos o deixou de cérebro paralisado. Depois, sorriu.

– Sim, sim… quem sabe? E seu rosto iluminou-se de uma luz nova. As grandes idéias emitem luz…

Desde esse momento Lupércio revelou-se outro, com preucupações que nunca tivera antes. Não houve em Dois Rios quem o não notasse.

– O homem mudou completamente – diziam. – está se espiritualizando. Compreendeu que a morte vem mesmo e começa a arrepender-se da sua feroz materialidade.

Lupércio fez-se espiritualista. Comprou livros, leu-os, meditou-os. Passou a freqüentar o centro espírita local e ao ouvir com a maior atenção as vozes do além, transmitida pelo Chico vira, o famoso médium da zona.

– Quem havia de dizer! – era o comentário geral. – Esse usuário que passou a vida inteira só pensando em dinheiro e nunca foi capaz de dar um tostão de esmola, está virando santo. E vão ver que faz como o Rockfeller: deixa toda a fortuna para o asilo de mendigos…

Lupércio, que nunca lera coisa nenhuma, estava agora se tornando um sábio, a avaliar pelo número de livros que adquiria. Entrou a estudar a fundo. Sua casa fez-se centro de reuniões de quanto médium aparecia por lá – e muitos de fora vieram Dois Rios a convite seu. Geralmente hospedava-os, pagava-lhes a conta do hotel – coisa inteiramente aberrante dos seus princípios financeiros. O assombrado da população não tinha limites.

Mas o dr. Dunga, diretor do centro espírita, começou a estranhar uma coisa: o interesse do coronel Lupércio pela metapsíquica centrava-se num só ponto – a reencarnação. Só isso o preucupava realmente. Pelo resto passava como gato por brasas.

– Escute, irmão – disse ele um dia ao dr. Dunga. – há na teoria da reencarnação um ponto para mim obscuro e que no entanto me apaixona. Por mais autores que eu leia, não consigo firmar as idéias.

– Que ponto é esse? – indagou o dr. Dunga.

– Vou dizer. Já não tenho duvídas sobre a reencarnação. Estou plenamente convencido de que a alma, depois da morte do corpo, volta – reencarna-se em outro ser. Mas em quem?

– Como em quem?

– Em quem, sim. Meu ponto é saber se a alma do desencarnado pode escolher o corpo em que vai novamente encarnar-se.

– Está claro que escolhe.

Até aí vou eu. Sei que escolhe. Mas “quando” escolhe?

O dr. Dunga não percebia o alcance da pergunta.

– Escolhe quando chega o momento de escolher – respondeu.

A resposta não contentou o coronel. O momento de escolher! Bolas! Mas que momento é esse?

– Meu ponto é o seguinte: saber se a alma de um vivo pode antecipadamente escolher a criatura em que vai futuramente encarnar-se.
O dr. Dunga estava tonto. Fez cara de não entender nada.

– Sim – continuou Lupércio. – Quero saber, por exemplo, se a alma de um vivo pode, antes de morrer, marcar a mulher que vai ter um filho em que essa alma se encarne.

A perplexidade do dr. Dunga recrescia.

– Meu caro – disse por fim Lupércio – , estou disposto a pagar até cem contos por uma informação segura – seguríssima. Quero saber se a alma de um vivo pode antes de desencarnar-se escolher o corpo da sua futura reencarnação.

– Antes de morrer?

– Sim…

– Em vida ainda?

– Está claro…

O dr. Dunga quedou-se pensativo. Estava ali uma hipótese em que jamais refletia sobre o que nada lera.

– Não sei, coronel. Só vendo, só consultando os autores – e as autoridades. Nós aqui somos bem poucos neste assunto, mas há mestres na Europa e nos Estados Unidos.

Podemos consultá-los.

– Pois faça-me o favor. Não olhe as despesas. Darei cem contos, e até mais, em troca de uma informação segura.

– Sei. Quer saber se ainda em vida do corpo podemos escolher a criatura em que vamos reencarnar-nos.

– Exatamente.

– E por que isso?

– Maluquices de velho. Como ando a estudar as teorias da reencarnação, lógico que me interessa pelos pontos obscuros. Os pontos claros esses já os conheço. Não acha natural a minha atitude?

O dr. Dunga teve de achar naturalíssima aquela atitude.

Enquanto as cartas de consulta cruzaram o oceano, endereçada às mais famosas sociedades psíquicas do mundo, o estado de saúde do coronel Lupércio agravou-se – e concomitantemente se agravou sua pressa pela solução do problema. Chegou a autorizar pedido de resposta pelo telégrafo – custasse o que custasse.

Certo dia, o dr. Dunga, tomado de vaga desconfiança, foi procurá-lo em casa.

Encontrou-o mal, respirando c esforço.

– Nada ainda, coronel. Mas a minha visita tem outro fim. Quero que o amigo fale claro, abra esse coração! Quero que me explique a verdadeira causa do seu interesse pela consulta. Francamente, não acho natural isso. Sinto, percebo, que o coronel tem uma idéia secreta na cabeça.

Lupércio olhou-o de revés, desconfiado. Mas resistiu. Alegou que era apenas curiosidade. Como nos seus estudos sobre a reencarnação nada vira sobre aquele ponto, viera-lhe a lembrança de esclarecê-lo. Só isso…

O dr. Dunga não se satisfaz. Insistiu:

– Não, coronel, não é isso, não. Eu sinto, eu vejo, que o senhor tem uma idéia oculta na cabeça. Seja franco. Bem sabe que sou seu amigo.

Lupércio resistiu ainda por algum tempo. Por fim confessou, com relutância.

– É que estou no fim, meu caro – tenho de fazer o testamento…

Não disse mais, nem foi preciso. Um clarão iluminou o espírito do dr. Dunga. O coronel Lupércio, a mais pura encarnação humana do dinheiro, não admitia a idéia de morrer e deixar a fortuna aos parentes. Não se conformando com a hipótese de separar-se dos 60 mil contos, pensava em fazer-se o herdeiro de si mesmo em outra reencarnação… seria isso?

Dunga olhou-o firmamente, sem dizer palavra. Lupércio leu-lhe o pensamento leu-lhe o pensamento nos olhos inquisitores. Corou –pela primeira vez na vida. E, baixando a cabeça. Abriu o coração.

– Sim, Dunga, é isso. Quero que vocês me descubram a mulher em que vou nascer de novo – para fazê-la em meu testamento, a depositária de minha fortuna.

Fonte:

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João Anzanello Carrascoza (Um Encontro Fantástico)

Todos os anos eles se reuniam na floresta, à beira de um rio, para ver a quantas andava a sua fama. Eram criaturas fantásticas e cada uma vinha de um canto do Brasil. O Saci-Pererê chegou primeiro. Moleque pretinho, de uma perna só, barrete vermelho na cabeça, veio manquitolando, sentou-se numa pedra e acendeu seu cachimbo. Logo apontou no céu a Serpente Emplumada e aterrissou aos seus pés. Do meio das folhagens, saltou o Lobisomem, a cara toda peluda, os dentes afiados, enormes. Não tardou, o tropel de um cavalo anunciou o Negrinho do Pastoreio montado em pêlo no seu baio.

– Só falta o Boto – disse o Saci, impaciente.

– Se tivesse alguma moça aqui, ele já teria chegado para seduzi-la – comentou a Serpente Emplumada.

– Também acho – concordou o Lobisomem. – Só que eu já a teria apavorado.

Ouviram nesse instante um rumor à margem do rio. Era o Boto saindo das águas na forma de um belo rapaz.

– Agora estamos todos – disse o Negrinho do Pastoreio.

– E então? – perguntou o Boto, saudando o grupo. – Como estão as coisas?

– Difíceis – respondeu o Saci e soltou uma baforada. – Não assustei muita gente nessa temporada.

– Eu também não – emendou a Serpente Emplumada. – Parece que as pessoas lá no Nordeste não têm mais tanto medo de mim.

– Lá no Norte se dá o mesmo – disse o Boto. – Em alguns locais, ainda atraio as mulheres, mas em outros elas nem ligam.

– Comigo acontece igual – disse o Negrinho do Pastoreio. – Vivo a achar coisas que as pessoas perdem no Sul. Mas não atendi muitos pedidos esse ano.

– Seu caso é diferente – disse o Lobisomem. – Você não é assustador como eu, o Saci e a Serpente Emplumada. Você é um herói.

– Mas a dificuldade é a mesma – discordou o Negrinho do Pastoreio.

– Acho que é a concorrência – disse o Boto. – Andam aparecendo muitos heróis e vilões novos.

– Pois é – resmungou a Serpente Emplumada. – Até bruxas andam importando. Tem monstros demais por aí…

– São todos produzidos por homens de negócios – disse o Saci. – É moda. Vai passar…

– Espero – disse o Lobisomem. – Bons aqueles tempos em que eu reinava no país inteiro, não só no cerrado.

– A diferença é que somos autênticos – disse o Negrinho do Pastoreio. – Nós nascemos do povo.

– É verdade – disse o Boto. – Mas temos de refrescar a sua memória.

– Se pegarmos no pé de uns escritores, a coisa pode melhorar – disse a Serpente Emplumada.

– Eu conheço um – disse o Saci. – Vamos juntos atrás dele! – E foi o primeiro a se mandar, a mil por hora, em uma perna só.
Fonte:
Revista Nova Escola

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Eça de Queirós (O Mandarim) Parte 3

Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que reflecti sobre a origem dos meus milhões. Ela era evidentemente sobrenatural e suspeita.

Mas como o meu racionalismo me impedia de atribuir estes tesouros imprevistos à generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, ficções puramente escolásticas; como os fragmentos de positivismo, que constituem o fundo da minha filosofia, não me permitiam a indagação das causas primárias, das origens essenciais – bem depressa me decidi a aceitar serenamente este fenómeno e a utilizá-lo com largueza. Portanto corri de quinzena ao vento para o London and Brazilian Bank…

Aí, arremessei para cima do balcão um papel sobre o Banco de Inglaterra de mil libras, e soltei esta deliciosa palavra:

– Ouro!

Um caixeiro sugeriu-me com doçura:

– Talvez lhe fosse mais cómodo em notas…

Repeti secamente:

– Ouro!

Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para uma caleche. Sentia-me gordo, sentia-me obeso; tinha na boca um sabor de ouro, uma secura de pó de ouro na pele das mãos: as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas lâminas de ouro: e dentro do cérebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metais – como o movimento de um oceano que nas vagas rolasse barras de ouro.

Abandonando-me à oscilação das molas, rebolante como um odre mal firme, deixava cair sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do ser repleto. Enfim, atirando o chapéu para a nuca, estirando a perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulência ricaça…

Muito tempo rolei assim pela cidade, bestializado num gozo de nababo.

Subitamente um brusco apetite de gastar, de dissipar ouro, veio-me enfunar o peito como uma rajada que incha uma vela.

– Pára, animal! – berrei, ao cocheiro.

A parelha estacou. Procurei em redor com a pálpebra meio cerrada alguma coisa cara a comprar – jóia de rainha ou consciência de estadista: nada vi; precipitei-me então para um estanco:

– Charutos: de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez tostões!

– Quantos?… – perguntou servilmente o homem.

– Todos! – respondi com brutalidade.

À porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, estendeu-me a mão transparente. Incomodava-me procurar os trocos de cobre por entre os meus punhados de ouro. Repeli-a, impaciente: e, de chapéu sobre o olho, encarei friamente a turba.

Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu director-geral: imediatamente achei-me com o dorso curvado em arco e o chapéu cumprimentador roçando as lajes. Era o hábito da dependência: os meus milhões não me tinham dado ainda a verticalidade à espinha…

Em casa despejei o ouro sobre o leito, e rolei-me por cima dele, muito tempo, grunhindo num gozo surdo. A torre, ao lado, bateu três horas; e o Sol apressado já descia, levando consigo o meu primeiro dia de opulência… Então, couraçado de libras, corri a saciar-me!

Ah, que dia! Jantei num gabinete do Hotel Central, solitário e egoísta, com a mesa alastrada de Bordéus, Borgonha, Champagne, Reno, licores de todas as comunidades religiosas – como para matar uma sede de trinta anos! Mas só me fartei de Colares. Depois, cambaleando, arrastei-me para o lupanar! Que noite! A alvorada clareou por trás das persianas; e achei-me estatelado no tapete, exausto e seminu, sentindo o corpo e a alma como esvaírem-se, dissolverem-se naquele ambiente abafado onde errava um cheiro de pó de arroz, de fêmea e de punch…

Quando voltei à Travessa da Conceição, as janelas do meu quarto estavam fechadas, e a vela expirava, com fogachos lívidos, no castiçal de latão. Então, ao chegar junto à cama, vi isto: estirada de través, sobre a coberta, jazia uma figura bojuda de mandarim fulminado, vestida de seda amarela, com um grande rabicho solto; e entre os braços, como morto também, tinha um papagaio de papel!

Abri desesperadamente a janela; tudo desapareceu;– o que estava agora sobre o leito era um velho paletó alvadio.

III

Então começou a minha vida de milionário. Deixei bem depressa a casa de Madame Marques – que, desde que me sabia rico, me tratava todos os dias a arroz-doce, e ela mesma me servia, com o seu vestido de seda dos domingos. Comprei, habitei o palacete amarelo, ao Loreto: as magnificências da minha instalação são bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da «Ilustração Francesa». Tornou-se famoso na Europa o meu leito, de um gosto exuberante e bárbaro, com a barra recoberta de lâminas de ouro lavrado, e cortinados de um raro brocado negro onde ondeiam, bordados a pérolas, versos eróticos de Catulo; uma lâmpada, suspensa no interior, derrama ali a claridade láctea e amorosa de um luar de Verão.

Os meus primeiros meses ricos, não o oculto, passei-os a amar – a amar com o sincero bater de coração de um pajem inexperiente. Tinha-a visto, como numa página de novela, regando os seus craveiros à varanda: chamava-se Cândida; era pequenina, era loura; morava a Buenos Aires, numa casinha casta recoberta de trepadeiras; e lembrava-me, pela graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem criado de mais fino e frágil – Mimi, Virgínia, a Joaninha do Vale de Santarém.

Todas as noites eu caía, em êxtases de místico, aos seus pés cor de jaspe. Todas as manhãs lhe alastrava o regaço de notas de vinte mil reis: ela repelia-as primeiro com um rubor, – depois, ao guardá-las na gaveta, chamava-me o seu anjo Totó.

Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso tapete sírio, até ao seu boudoir – ela estava escrevendo, muito enlevada, de dedinho no ar: ao ver-me, toda trémula, toda pálida, escondeu o papel que tinha o seu monograma. Eu arranquei-lho, num ciúme insensato. Era a carta, a carta costumada, a carta necessária, a carta que desde a velha Antiguidade a mulher sempre escreve; começava por «Meu idolatrado» – e era para um alferes da vizinhança…

Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta venenosa. Descri para sempre dos anjos louros, que conservam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor, e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles: e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica.

Ao bater do meio-dia, entrava na minha tina de mármore cor-de-rosa, onde os perfumes derramados davam à água um tom opaco de leite: depois pajens tenros, de mão macia, friccionavam-me com o cerimonial de quem celebra um culto: e embrulhado num robe-de-chambre de seda da Índia, através da galeria, dando aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife à inglesa, servido em Sèvres azul e ouro.

O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de cetim cor de pérola, num boudoir em que a mobília era de porcelana fina de Dresde e as flores faziam um jardim de Armida; aí, saboreava o «Diário de Notícias», enquanto lindas raparigas vestidas à japonesa refrescavam o ar, agitando leques de plumas.

De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais pesada do dia: encostado à bengala, arrastando as pernas moles, abria bocejos de fera saciada – e a turba abjecta parava a contemplar, em êxtases, o nababo enfastiado!

Às vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos ocupados da repartição. Entrava em casa; e encerrado na livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e encadernado em marroquim, aparava uma pena de pato, e ficava horas lançando sobre folhas do meu querido «Tojal» de outrora: «Il.mo e Ex.mo Sr. – Tenho a honra de participar a V. Ex.a… Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a!…»

Ao começo da noite um, criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, à moda gótica, uma harmonia solene. Eu erguia-me e ia comer, majestoso e solitário. Uma populaça de lacaios, de librés de seda negra, servia, num silêncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de jóias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilações de ouro: – e enrolando-se pelas pirâmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma névoa subtil, um tédio inenarrável…

Depois, apopléctico, atirava-me para o fundo do coupé – e lá ia às Janelas Verdes, onde nutria, num jardim de serralho, entre requintes muçulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me de uma túnica de seda fresca e perfumada, – e eu abandonava-me a delírios abomináveis… Traziam-me semimorto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia maquinalmente o meu sinal-da-cruz, e daí a pouco roncava de ventre ao ar, lívido e com um suor frio, como um Tibério exausto.

Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pátio do palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzir o suor da Plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber algum velho de título histórico: – ele adiantava-se pela sala, quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente, espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três séculos, oferecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.

Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia.

Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da minha grandeza; fui o sublime sr. Teodoro, cheguei a ser o celeste sr. Teodoro; então, desvairada, a «Gazeta das Locais» chamou-me o extraceleste sr. Teodoro! Diante de mim nenhuma, cabeça ficou jamais coberta – ou usasse a coroa ou o coco. Todos os dias me era oferecida uma presidência de Ministério ou uma direcção de confraria. Recusei sempre, com nojo.

Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da Monarquia. O «Figaro», cortesão, em cada número falou de mim, preferindo-me a Henrique V; o grotesco imortal que assina «Saint-Genest» dirigiu-me apóstrofes convulsivas, pedindo-me para salvar a França; e foi então que as «Ilustrações» estrangeiras publicaram, a cores, as cenas do meu viver. Recebi de todas as princesas da Europa envelopes, com selos heráldicos, expondo-me, por fotografias, por documentos, a forma dos seus corpos e a antiguidade das suas genealogias. Duas pilhérias que soltei durante esse ano foram telegrafadas ao universo pelos fios da Agência Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse fino entendimento que se chama «Todo-o-Mundo». Quando o meu intestino se aliviava com estampido – a humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz empréstimos aos reis, subsidiei guerras civis – e fui caloteado por todas as repúblicas latinas que orlam o golfo do México. E eu, no entanto, vivia triste…

Todas as vezes que entrava em casa estacava, arrepiado, diante da mesma visão: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito de ouro – lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e túnica amarela, com o seu papagaio nos braços… Era o mandarim Ti Chin-Fu! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava. Então caía aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no silêncio do quarto, onde as velas dos candelabros davam tons ensanguentados aos damascos vermelhos:

– Preciso matar este morto!

E, todavia, não era esta impertinência de um velho fantasma pançudo, acomodando-se nos meus móveis, sobre as minhas colchas, que me fazia saber mal a vida.

O horror supremo consistia na ideia, que se me cravara então no espírito como um ferro inarrancável – que eu tinha assassinado um velho!

Não fora com uma corda em torno da garganta, à moda muçulmana; nem com veneno num cálice de vinho de Siracusa, à maneira italiana da Renascença; nem com algum dos métodos clássicos, que na história das monarquias têm recebido consagrações augustas– a punhal como D. João II, à clavina como Carlos IX…

Tinha eliminado a criatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo, fantástico, faceto. Mas não diminuía a trágica negrura do facto: eu assassinara um velho!

Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e como uma coluna num descampado dominou toda a minha vida interior: de sorte que, por mais desviado caminho que tomassem, os meus pensamentos viam sempre negrejar no horizonte aquela memória acusadora; por mais alto que se levantasse o voo das minhas imaginações, elas terminavam por ir fatalmente ferir as asas nesse monumento de miséria moral.

Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banais transformações da Substância, é pavoroso o pensamento – que se fez regelar um sangue quente, que se imobilizou um músculo vivo! Quando, depois de jantar, sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no sofá, enlanguecido, numa sensação de plenitude, elevava-se logo dentro em mim, melancólico como o coro que vem de um ergástulo, todo um sussurro de acusações:

– E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais fosse gozado pelo venerável Ti Chin-Fu!…

Debalde eu replicava à Consciência, lembrando-lhe a decrepitude do Mandarim, a sua gota incurável… Facunda em argumentos, gulosa de controvérsia, ela retorquia logo com furor:

– Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo: porque o encanto dela reside no seu princípio mesmo, e não na abundância das suas manifestações!

–––––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

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Monteiro Lobato (Barba Azul)

Jantávamos no Hotel d’Oest, eu e o Lucas, um amigo que sabe histórias. A tantas, como percebesse certo vulto lá no fundo do salão, o rapaz firmou a vista e murmurou em solilóquio:

– Sabe ele?…

– Ele, quem?

– Estás vendo aquele sujeito gordo, na terceira mesinha à esquerda?

– O de luto?

– Sim… O patife anda sempre de luto…

– Quem é?

– Um celerado que tem muito dinheiro e teve muitas mulheres.

– Até aí nada vejo demais.

– Tem muito dinheiro porque teve muitas mulheres. Está poderoso. Ri-se do e de sua justiça.

Inventou um crime inédito não previsto pelas leis e com isso enriqueceu. Se um de nós o denunciasse, o patife nos processaria e nos meteria na cadeia. Note-lhe bem o tipo; raras vezes terás ocasião de topar um celerado desse tamanho.

– Mas…

– Lá fora contarei tudo. Toca a jantar.

Enquanto jantávamos examinei o sujeito, sem que nada no seu físico me parecesse estranho. Deu-me a impressão dum médico aposentado que vivesse de rendas.

Por que de médico? Não sei. As criaturas dão-me ar disto ou aquilo por força duma aura que pressinto a envolvê-las. Confesso, todavia, que minha adivinhação erra bastante. Sai- me fazendeiro um que eu previa médico, e surge-me corretor de negócios outro que eu jurava engenheiro.

Creio que a falha do diagnóstico vem dos homens desrespeitarem as vocações, e adotarem na vida atitudes profissionais diversas das que, por injunção natural, deviam eleger. Como no entrudo. As máscaras nunca dizem das caras verdadeiras que escondem.

Terminado o jantar, saímos em direção ao Triângulo, e lá nos abancamos num sórdido café. O meu amigo voltou ao assunto.

– Caso notável, o daquele homem! Caso merecedor de novela ou conto, já que a justiça não tem forças para mantê-lo na cadeia. Conheci-o no Oeste, prático de farmácia em Brotas. Um dia casou-se. Lembro-me disso porque assisti ao casamento a convite dos pais da moça. Era a Pequetita Mendes, filha dum sitiante arranjado.

Pequetita! Bem posto apelido, que não era bem mulher aquela isca de gente. Miudinha, magrinha, sequinha, sem cadeiras, sem ombros, sem seios. Pequetita não passava de um desses restolhos enfermiços que aparecem ao lado das espigas viçosas – sabuguinho débil, um grão aqui, outro ali. Apesar dos seus vinte e cinco anos, representava treze, e ao escolhê-la Pânfilo – chama-se Pânfilo Novais o meu facínora – espantou a todos, a começar pela moça. Como, porém, era ele pobre e ela arranjada, explicou-se financeiramente a união.

Mas nada poderia resultar de bom duma união dessa ordem, que repugnava aos homens e a natureza. Pequetita não viera ao mundo para o matrimônio. O instinto da espécie fizera-a ponto final. “Pararás aí.”

Ninguém pensou nisso, nem ela, nem os pais, nem ele – nem ele, que depois só pensaria nisso…

–?

Ouve. Casaram-se e tudo correu excelentemente até que…

– … se separaram…

– … até que os separou a morte. Pequetita não resistiu ao primeiro parto; faleceu após cruel intervenção cirúrgica.

Pânfilo, dizem, chorou amargamente a morte da esposa, embora viessem consolá-lo os trintas contos e um seguro por ela constituído em seu favor.

A meu ver é daqui por diante que surge o criminoso. O desastre do primeiro casamento criou-lhe no cérebro um pensamento sinistro – pensamento que o iria nortear pela vida afora e que o fez, como te disse, rico e poderoso. A morte de Pequetita ensinou-lhe um crime inédito, não previsto pelas leis humanas.

– Espera. Compreenderás tudo dentro em pouco. Decorrido um ano, o nosso homem, já dono da farmácia, apresentou-se novamente enliçado pelo amor.

Aparecera por lá uma família de fora, gente pobre, mãe viúva com quatro filhas casadeiras. Três delas, lindas e viçosas, viram-se logo requestadas por todos os moços desimpedidos do lugar. Já a quarta, restolho maninguera que fazia lembrar Pequetita, só teve um par d’olhos que a cobiçassem, os de Pânfilo.

A mãe opôs-se – que era uma loucura aquilo; que a menina lhe nascera enfezada; que se queria mulher, escolhesse uma das três sadias.

Nada conseguiu. Pânfilo fez pé firme e afinal casou-se.

Foi um assombro. Arranja-dote que já era, coisa nenhuma justificava tal preferência. Ele defendia-se hipocritamente, lamecha e sentimental:

– É o meu gênero. Gosto de bibelôs e esta me lembra a minha amada Pequetita…

Resumindo: dez meses depois o patife enviuvava de novo nas mesmas circunstâncias da primeira vez. Morreu-lhe de parto a mulher.

– Novo seguro?

– E grande. Desta feita a bolada subiu a cem contos. Mudou-se de terra, então. Vendeu a farmácia e perdi-o de vista.

Anos depois fui encontrá-lo no Rio, numa casa de chá. Estava outro, elegantemente vestido, denunciando prosperidade por todos os poros. Viu-me, reconheceu-me e chamou-me para sua mesa. Conversa vai, conversa vem, contou-me que casara pela quarta vez, havia coisa de um ano.

Assombrei-me.

– “Pela quarta?”

– “É verdade. Depois que saí daquela abençoada terrinha onde o destino me enviuvar duas vezes, casei-me em Uberaba com a filha do coronel Tolosa. Mas continuei perseguido pelo destino: faleceu-me essa também…”

– “Gripe?”

– “Parto…”

– “Como a primeira, então? Mas, doutor, perdoe-me a liberdade: o senhor escolhe mal as mulheres! Vai ver que essa terceira era miudinha como as anteriores” – disse eu irrefletidamente.

O homem franziu os sobrolhos e encarou-me dum modo estranho, como se lhe batera a pacuera ante a ironia dum Sherlock disfarçado. Voltou logo ao natural, porém, e prosseguiu com serenidade:

– “Que quer? É meu gênero. Não suporto mulheraças.”

E mudou de assunto.

Ao deixá-lo fiquei apreensivo, com a suspeita a gerarse-me no celebro. Liguei a estranheza dos seus modos ante a minha observação ao olhar perscrutador com que devassara meu íntimo, e deixei escapar em voz alta um –Hum! Que chamou a atenção de dois ou três passantes. E o caso do doutor Pânfilo ficou a verrumar-me os miolos dias e dias.

– Doutor, dizes tu?

– Está claro. O diploma veio logo atrás dos seguros, como conseqüência lógica. Quem nesta terra, com algumas centenas de contos no banco, permaneces enhor?

Por curiosidade, no intuito exclusivo de esclarecer-me, tomei informações relativas à sua quarta esposa. Soube que era de Cachoeira e fisicamente do mesmo naipe das outras.

Fui além. Tratei de indagar nas companhias de seguros que negócios trazia nelas od outor Pânfilo e soube que a vida da quarta mulher estava garantida em mais de duzentos contos. Com os trezentos e cinqüenta já embolsados, arredondaria ele, pela morte desta, um pecúlio de alto bordo para quem começara humildemente como prático de farmácia.

Tudo isso me consolidou em convicção a suspeita de que Pânfilo era de fato um grande criminoso. Segurava as esposas e matava-as…
– Como, se morriam de parto?

– Está aí o maquiavelismo do celerado. O Barba Azul aproveitou singularmente bem a lição do primeiro matrimônio. Viu que perdera a Pequitita no primeiro parto em virtude de sua má conformação, da sua inaptidão procriativa. Franzina em excesso, muito estreita de bacia…

– Hum!

– Foi um hum! assim que deixei escapar em plena rua do Ouvidor…

O miserável, que tinha olho médico, só se casou daí por diante com mulheres de vício orgânico semelhante ao da primeira. Cuidadosamente escolhia as esposas entre as predestinadas. E foi amontoando a sua fortuna.

Imagina tu agora a vida desse miserável, sempre alternando a fase de tocaia da viuvez com um ano de casamento criminoso. Escolhia a vítima, representava a comédia do amor, sagrava a união e… seguro de vida!

Depois, imagina o sadismo dessa alma ao ver desenvolver-se no ventre da vítima, não o filho que ela docemente esperava, mas a bolada gorda que viria acrescentar aos seus cabedais! Afez-se a tal caçada e nela aperfeiçoou-se de maneira a nunca errar o bote.

A quarta, soube logo depois, fora pelo mesmo caminho das outras em seguida a uma nova intervenção cirúrgica. E entraram duzentos contos. Vês tu que monstro?…

No outro dia lá estava na mesma mesa o doutor Pânfilo. Entraram na sala várias moças, e pela força do hábito o seu olhar mortiço mediu num relance as ancas de cada uma. Bem- feitas de corpo que eram, nenhuma o interessou – e seu olhar desceu calmamente para o jornal que lia.

– Está viúvo – pensei comigo. – Anda evidentemente tocaiando a quinta malconformada…

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Eça de Queirós (O Mandarim) Parte 2

Análise da Obra
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2012/04/eca-de-queiros-o-mandarim.html

———————
Eu murmurei, com as faces abrasadas:

– Têm.

E a sua voz prosseguiu, paciente e suave:

– Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, é uma bagatela… Mas enfim, constituem um começo; são uma ligeira habilitação pára conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrépito e está gotoso: como homem, como funcionário do Celeste Império, é mais inútil em Pequim e na humanidade, que um seixo na boca de um cão esfomeado. Mas a transformação da Substância existe: garanto-lha eu, que sei o segredo das coisas… Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem apodrecido, e restitui-o além ao conjunto das formas como vegetal viçoso. Bem pode ser que ele, inútil como mandarim no Império do Meio, vá ser útil noutra terra como rosa perfumada ou saboroso repolho. Matar, meu filho, é quase sempre equilibrar as necessidades universais. É eliminar aqui a excrescência para ir além suprir a falta. Penetre-se destas sólidas filosofias. Uma pobre costureira de Londres anseia por ver florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma flor consolaria aquela deserdada; mas na disposição dos seres, infelizmente, nesse momento, a Substância que lá devia ser rosa é aqui na Baixa homem de Estado… Vem então o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro leva lhe os intestinos; enterram-no, com tipóias atrás; a matéria começa a desorganizar-se, mistura-se à vasta evolução dos átomos – e o supérfluo homem de governo vai alegrar, sob a forma de amor-perfeito, a água-furtada da loura costureira. O assassino é um filantropo! Deixe-me resumir, Teodoro: a morte desse velho Mandarim idiota traz-lhe à algibeira alguns milhares de contos. Pode desde esse momento dar pontapés nos poderes públicos: medite na intensidade deste gozo! – É desde logo citado nos jornais: reveja-se nesse máximo da glória humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e fazer ti-li-tim. Eu não sou um bárbaro: compreendo a repugnância de um gentleman em assassinar um contemporâneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é repulsivo o agonizar de um corpo humano. Mas aqui, nenhum desses espectáculos torpes… É como quem chama um criado… E são cento e cinco ou cento e seis mil contos; não me lembro, mas tenho-o nos meus apontamentos… O Teodoro não duvida de mim. Sou um cavalheiro: – provei-o, quando, fazendo a guerra a um tirano na primeira insurreição da justiça, me vi precipitado de alturas que nem Vossa Senhoria concebe… Um trambolhão considerável, meu caro senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o outro está também muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jeová tem apenas contra si um Satanás, tira-se bem de dificuldades mandando carregar mais uma legião de arcanjos; mas quando o inimigo é um homem, armado de uma pena de pato e de um caderno de papel branco – está perdido… Enfim são seis mil contos. Vamos, Teodoro, ai tem a campainha, seja um homem.

Eu sei o que deve a si mesmo um cristão. Se este personagem me tivesse levado ao cume de uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia, e aí, mostrando-me cidades, raças e impérios adormecidos, sombriamente me dissesse: «Mata o mandarim, e tudo o que vês em vale e colina será teu», eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo ilustre, e erguendo o dedo às profundidades consteladas: «O meu reino não é deste mundo!» Eu conheço os meus autores. Mas eram cento e tantos mil contos, oferecidos à luz de uma vela de estearina, na Travessa da Conceição, por um sujeito de chapéu alto, apoiado a um guarda-chuva…

Então não hesitei. E, de mão firme, repeniquei a campainha. Foi talvez uma ilusão; mas pareceu-me que um sino, de boca tão vasta como o mesmo céu, badalava na escuridão, através do universo, num tom temeroso que decerto foi acordar sóis que faziam nené e planetas pançudos ressonando sobre os seus eixos…

O indivíduo levou um dedo à pálpebra, e limpando a lágrima que enevoara um instante o seu olho rutilante:

– Pobre Ti Chin-Fu!…

– Morreu?

– Estava no seu jardim, sossegado, armando, para o lançar ao ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto de um mandarim retirado, – quando o surpreendeu este ti-li-tim da campainha. Agora jaz à beira de um arroio cantante, todo vestido de seda amarela, morto, de pança ao ar, sobre a relva verde: e nos braços frios tem o seu papagaio de papel, que parece tão morto como ele. Amanhã são os funerais. Que a sabedoria de Confúcio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a sua alma!

E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéu, saiu, com o seu guarda-chuva debaixo do braço.

Então, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia de um pesadelo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial falava com a Madame Marques; e a cancela da escada cerrou-se subtilmente.

– Quem é que saiu agora, ó D. Augusta? – perguntei, num suor.

– Foi o Cabritinha que vai um bocadinho à batota…

Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquilo, idêntico, real. O in-fólio ainda estava aberto na página temerosa. Reli-a: agora parecia-me apenas a prosa antiquada de um moralista caturra; cada palavra se tornara como um carvão apagado…

Deitei-me: – e sonhei que estava longe, para além de Pequim, nas fronteiras da Tartária, no quiosque de um convento de lamas, ouvindo máximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de chá, dos lábios de um Buda vivo.

II

Decorreu um mês.

Eu, no entanto, rotineiro e triste, lá ia pondo o meu cursivo ao serviço dos poderes públicos, e admirando aos domingos a perícia tocante com que a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era agora evidente para mim que, nessa noite, eu adormecera sobre o in-fólio e sonhara com uma «Tentação da Montanha» sob formas familiares. Instintivamente, porém, comecei a preocupar-me com a China. Ia ler os telegramas à Havanesa; e o que o meu interesse lá buscava, eram sempre as notícias do Império do Meio; parece porém que, a esse tempo, nada se passava na região das raças amarelas… A Agência Havas só tagarelava sobre a Herzegovina, a Bósnia, a Bulgária e outras curiosidades bárbaras…

Pouco a pouco fui esquecendo o meu episódio fantasmagórico: e ao mesmo tempo, como gradualmente o meu espírito resserenava, voltaram de novo a mover-se as antigas ambições que lá habitavam – um ordenado de director-geral, um seio amoroso de Lola, bifes mais tenros que os da D. Augusta. Mas tais regalos pareciam-me tão inacessíveis, tão nascidos dos sonhos – como os próprios milhões do Mandarim. E pelo monótono deserto da vida, lá foi seguindo, lá foi marchando a lenta caravana das minhas melancolias…

Um domingo de Agosto, de manhã, estirado na cama em mangas de camisa, eu dormitava, com o cigarro apagado no lábio – quando a porta rangeu devagarinho e, entreabrindo a pálpebra dormente, vi curvar-se ao meu lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou:

– O sr. Teodoro?… O sr. Teodoro do Ministério do Reino?

Ergui-me lentamente sobre o cotovelo e respondi num bocejo:

– Sou eu, cavalheiro.

O indivíduo recurvou o espinhaço: assim na presença augusta de el-rei Bobeche se arqueia o cortesão… Era pequenino e obeso: a ponta das suíças brancas roçava-lhe as lapelas do fraque de alpaca: veneráveis óculos de ouro reluziam na sua face bochechuda, que parecia uma próspera personificação da Ordem: e todo ele tremia desde a calva lustrosa até aos botins de bezerro. Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:

– São notícias para Vossa Senhoria! Consideráveis notícias! O meu nome é Silvestre… Silvestre, Juliano & Cª… Um serviçal criado de Vossa Excelência… Chegaram justamente pelo paquete de Southampton… Nós somos correspondentes de Brito, Alves & Cª, de Macau… Correspondentes de Craig and Cª, de Hong-Kong… As letras vêm de Hong-Kong…

O sujeito engasgava-se; e a sua mão gordinha agitava em tremuras um envelope repleto, com um selo de lacre negro.

– Vossa Excelência – prosseguiu – estava decerto prevenido… Nós é que o não estávamos… A atrapalhação é natural… O que esperamos é que Vossa Excelência nos conserve a sua benevolência… Nós sempre respeitámos muito o carácter de Vossa Excelência… Vossa Excelência é nesta terra uma flor de virtude, e espelho de bons! Aqui estão os primeiros saques sobre Bhering and Brothers, de Londres… Letras a trinta dias sobre Rothschild…

A este nome, ressoante como o mesmo ouro, saltei vorazmente do leito:

– O que é isso, senhor? – gritei.

E ele, gritando mais, brandindo o envelope, todo alçado no bico dos botins:

– São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdão, sacados a seu favor, excelentíssimo senhor!… A seu favor, excelentíssimo senhor! Pelas casas de Hong-Kong, de Xangai e de Cantão, da herança depositada do mandarim Ti Chin-Fu!

Senti tremer o globo sob os meus pés – e cerrei um momento os olhos.. Mas compreendi, num relance, que eu era, desde essa hora, como uma encarnação do Sobrenatural, recebendo dele a minha força e possuindo os seus atributos. Não podia comportar-me como um homem, nem desconsiderar-me em expansões humanas. Até, para não quebrar a linha hierática – abstive-me de ir soluçar, como mo pedia a alma, sobre o vasto seio da Madame Marques…

De ora em diante cabia-me a impassibilidade de um deus – ou de um demónio: dei, com naturalidade, um puxão às calças, e disse a Silvestre, Juliano & Cª estas palavras:

– Está bem! O Mandarim… esse Mandarim que disse, portou-se com cavalheirismo. Eu sei do que se trata: é uma questão de família. Deixe aí os papéis… Bons dias.

Silvestre, Juliano & Cª retirou-se, às arrecuas, de dorso vergado e fronte voltada ao chão.

Eu então fui abrir, toda larga, a janela: e, dobrando para trás a cabeça, respirei o ar cálido, consoladamente, como uma corça cansada…

Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguesia se escoava, numa pacata saída de missa, entre duas filas de trens. Fixei, aqui e além, inconscientemente, algumas cuias de senhoras, alguns metais brilhantes de arreios. E de repente veio-me esta ideia, esta triunfante certeza – que todas aquelas tipóias as podia eu tomar à hora ou ao ano! Que nenhuma das mulheres que via deixaria de me oferecer o seu seio nu a um aceno do meu desejo! Que todos esses homens, de sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um Cristo, de um Maomé ou de um Buda, se eu lhes sacudisse junto à face cento e seis mil contos sobre as praças da Europa!…

Apoiei-me à varanda: e ri, com tédio, vendo a agitação efémera daquela humanidade subalterna – que se considerava livre e forte, enquanto por cima, numa sacada de quarto andar, eu tinha na mão, num envelope lacrado de negro, o princípio mesmo da sua fraqueza e da sua escravidão! Então, satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do Poder, tudo gozei, pela imaginação; num instante, e de um só sorvo. Mas logo uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e, sentindo o mundo aos meus pés – bocejei como um leão farto.

De que me serviam por fim tantos milhões senão para me trazerem, dia a dia, a afirmação desoladora da vileza humana?… E assim, ao choque de tanto ouro, ia desaparecer a meus olhos, como um fumo, a beleza moral do universo! Tomou-me uma tristeza mística. Abati-me sobre uma cadeira; e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente.
Daí a pouco Madame Marques abria a porta, toda vistosa nas suas sedas pretas.

– Está-se à sua espera para jantar, enguiço! Emergi da minha amargura para lhe responder secamente:

– Não janto!

– Mas fica!

Nesse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo, dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flamejou, atraindo-me deliciosamente: – era a tourada vista de um camarote; depois um jantar com champanhe; à noite a orgia, como uma iniciação! Corri à mesa. Atulhei as algibeiras de letras sobre Londres. Desci à rua com um furor de abutre fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava, vazia. Detive-a, berrei:

– Aos touros!

– São dez tostões, meu amo!

Encarei com repulsão aquele reles pedaço de matéria organizada – que falava em placas de prata a um colosso de ouro! Enterrei a mão na algibeira ajoujada de milhões e tirei o meu metal: tinha setecentos e vinte!

O cocheiro bateu a anca da égua e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:

– Mas tenho letras!… Aqui estão! Sobre Londres! Sobre Hamburgo!…

– Não pega.

Setecentos e vinte!… E touros, jantar de lorde, andaluzas nuas, todo esse sonho expirou como uma bola de sabão que bate a ponta de um prego.

Odiei a humanidade, abominei o numerário. Outra tipóia, lançada a trote, apinhada de gente festiva, quase me atropelou naquela abstracção em que eu ficara com os meus setecentos e vinte na palma da mão suada.

Cabisbaixo, enchumaçado de milhões sobre Rothschild, voltei ao meu quarto andar: humilhei-me à Madame Marques, aceitei-lhe o bife córneo; e passei essa primeira noite de riqueza bocejando sobre o leito solitário – enquanto fora o alegre Couceiro, o mesquinho tenente de quinze mil réis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando à viola o «Fado da Cotovia».
–––––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

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Ricardo Azevedo (Voltando da Escola pra Casa)

O menino estava voltando a pé da escola. A vida para ele parecia uma coisa sempre igual. Chegar em casa, comer, fazer lição, brincar, tomar banho, jantar, dormir, acordar. No dia seguinte, tudo a mesma coisa outra vez.

Um ruído veio de um terreno baldio. Parecia uma voz. Por entre as folhagens, o menino viu um cachorro cobrindo o focinho com as patas. O bicho, de repente, resmungou:

— Isso não podia ter acontecido!

O cabelo do menino ficou duro feito arame. Saiu correndo, mas parou. Onde já se viu cachorro falar? Deu risada de si mesmo. Já estava quase na 4a série. Sabia escrever, ler e fazer contas. Aquilo só podia ser alguma confusão.

Deu meia volta e passou de novo pelo terreno baldio. O cachorro agora estava andando de uma lado para o outro dizendo:

— Não, não e não!

Quase sem respirar, o menino chegou mais perto.

Foi quando o animal gritou:

— É a pior desgraça que podia ter acontecido em minha vida!

O menino sabia que aquilo era impossível. Mesmo assim, sentiu pena do cachorro, um bicho não muito grande com o focinho sujo de terra.

O animal soltou um uivo tão sem esperança que o menino entrou no mato e perguntou se ele estava precisando de alguma coisa.

Dois olhos surpresos examinaram o menino de alto a baixo. Depois, o bicho encolheu-se, escondendo o rosto com as patas. O menino sentou-se e acariciou aquela cabeça peluda.

— Se eu contar o que acabo de descobrir hoje — disse o animal — você não vai acreditar.

E continuou falando devagarinho:

— Faz tempo, conheci uma cachorra linda. Eu estava fazendo xixi num poste. Ela passou. Abanei o rabo. Ela também. Foi amor à primeira vista.

O menino não conseguia piscar os olhos.

— No fim — continuou ele — a gente acabou se casando. A cachorra era viúva e tinha uma filha já grandinha. Cuidei dela como se fosse minha própria filha. Um dia, meu pai veio me visitar. Ele também era viúvo. Só sei que os dois gostaram um do outro, namoraram e casaram.

O menino queria fugir e ficar.

— Do casamento de meu pai com minha filha — contou o animal — nasceu uma ninhada de três cachorrinhos que, ao mesmo tempo, são meus netos, pois são filhos de minha filha, e meus irmãos pois são filhos do meu pai. Eu também tive três filhotinhos. Eles passaram a ser irmãos da minha madrasta, a filha da minha mulher. Portanto, além de meus filhos, são meus tios.

As lágrimas esguichavam dos olhos do cachorro.

— Meu pai é casado com minha filha, ou seja, minha madastra é também minha filha. Por outro lado, sou pai dos irmãos do meu pai, logo, pai de meu próprio pai. E como o pai do pai de alguém é avô desse alguém … — e aí o cachorro agitou-se — descobri que sou avô de mim mesmo!

O queixo do menino balançava debaixo da boca.

— É duro ser avô da gente mesmo! — exclamou o cachorro em prantos.

Abraçado com o menino, o animal chorou ainda durante um bom tempo. Depois, enxugou as lágrimas, pediu desculpas, despediu-se e, com ar agradecido, sumiu no matagal. Naquele dia, o menino chegou em casa mais tarde, almoçou e foi para o quarto. Deitado na cama, ficou só pensando. Como a vida pode ser uma coisa rica, complicada, meio louca, bonita, espantosa e cheia de surpresas!
Fonte:
Revista Nova Esacola. Extraído do livro Não Tenho Medo de Homem, nem do Ronco, publicado pela Fundação Cargill

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Eça de Queirós (O Mandarim) Parte I

Análise da obra
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2012/04/eca-de-queiros-o-mandarim.html

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PRÓLOGO

1º AMIGO (bebendo conhaque e soda, debaixo de árvores, num terraço, à beira-d’água)

Camarada, por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do áspero estudo da Realidade humana… Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo… Façamos fantasia!…

2º AMIGO

Mas sobriamente, camarada, parcamente!… E como nas sábias e amáveis alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta…
(COMÉDIA INÉDITA)

I

Eu chamo-me Teodoro – e fui amanuense do Ministério do Reino.

Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceição nº 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, a esplêndida D. Augusta, viúva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do Bairro Central, esguio e amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa.

A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina à carteira da minha repartição, ia lançando, numa formosa letra cursiva, sobre o papel «Tojal» do Estado, estas frases fáceis: «Il.mo e Ex.mo Sr. – Tenho a honra de comunicar a V. Ex.a… Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a, Il.mo e Ex.mo Sr…»

Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no Verão, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafa da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido, num lençol como um ídolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fricção mole das carinhosas mãos da D. Augusta; e ela, arrebitando o dedo mínimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos… Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:

– Ai D. Augusta, que anjo que é!

Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. «Enguiço» era com efeito o nome que me davam na casa – por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar. Infelizmente corcovo – do muito que verguei n espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca, e vinte mil réis mensais.

Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso – como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; – mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus. Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros – quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço, me excluíam para sempre dessas alegrias sociais, vinha-me então ferir o peito – como uma frecha que se crava num tronco, e fica muito tempo vibrando!

Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um «pária». A vida humilde tem doçuras: é grato, numa manhã de sol alegre, com o guardanapo ao pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o «Diário de Notícias»; pelas tardes de Verão, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idílio; é saboroso à noite no Martinho, sorvendo aos goles um café, ouvir os verbosos injuriar a pátria… Depois, nunca fui excessivamente infeliz – porque não tenho imaginação: não me consumia, rondando e almejando em torno de paraísos fictícios, nascidos da minha própria alma desejosa como nuvens da evaporação de um lago; não suspirava, olhando as lúcidas estrelas, por um amor à Romeu ou por uma glória social à Camors. Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao tangível, ao que já fora alcançado por outros no meu bairro, ao que é acessível ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table d’hôte mastiga a bucha de pão seco à espera que lhe chegue o prato rico da charlotte russe. As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como português e como constitucional: – pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dores, e comprava décimos da lotaria.

No entanto procurava distrair-me. E como as circunvoluções do meu cérebro me não habilitavam a compor odes, à maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam assim do tédio da profissão; como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não permitia um vício – tinha tomado o hábito discreto de comprar na Feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e à noite, no meu quarto, repastava-me dessas leituras curiosas. Eram sempre obras de títulos ponderosos: «Galera da Inocência», «Espelho Milagroso», «Tristeza dos Mal-Deserdados»… O tipo venerando, o papel amarelado com picadas de traça, a grave encadernação freirática, a fitinha verde marcando a página – encantavam-me! Depois, aqueles dizeres ingénuos em letra gorda davam uma pacificação a todo o meu ser, sensação comparável à paz penetrante de uma velha cerca de mosteiro, na quebrada de um vale, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr da água triste…

Uma noite, há anos, eu começara a ler, num desses in-fólios vetustos, um capítulo intitulado «Brecha das Almas»; e ia caindo numa sonolência grata, quando este período singular se me destacou do tom neutro e apagado da página, com o relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copio textualmente:

«No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?»

Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogação «homem mortal, tocarás tu a campainha?» parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpelação estranha – «tocarás tu a campainha?»

Se o volume fosse de uma honesta edição Michel-Levy, de capa amarela, eu, que por fim não me achava perdido numa floresta de balada alemã, e podia da minha sacada ver branquejar à luz do gás o correame da patrulha – teria simplesmente fechado o livro, e estava dissipada a alucinação nervosa. Mas aquele sombrio in-fólio parecia exalar magia; cada letra afectava a inquietadora configuração desses sinais da velha cabala, que encerram um atributo fatídico; as vírgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos numa alvura de luar; no ponto de interrogação final eu via o pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na inviolável cidadela da Oração!… Uma influência sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para fora da realidade, do raciocínio: e no meu espírito foram-se formando duas visões – de um lado um mandarim decrépito, morrendo sem dor, longe, num quiosque chinês, a um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de ouro cintilando aos meus pés! Isto era tão nítido, que eu via os olhos oblíquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos de uma ténue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E imóvel, arrepiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um dicionário francês – a campainha prevista, citada no mirífico in-fólio…

Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metálica me disse, no silêncio:

– Vamos, Teodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha, seja um forte!

O abat-jour verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um indivíduo corpulento, todo vestido de preto, de chapéu alto, com as duas mãos calçadas de luvas negras gravemente apoiadas ao cabo de um guarda-chuva. Não tinha nada de fantástico. Parecia tão contemporâneo, tão regular, tão classe média como se viesse da minha repartição…

Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um bico de águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício.

Veio-me à ideia de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o meu raciocínio se insurgiu resolutamente contra esta imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo – como nunca acreditei em Deus. Jamais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para não descontentar os poderes públicos, encarregados de manter o respeito por tais entidades: mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substância, rivais bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amáveis, – um de barbas nevadas e túnica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos luminosos, entre uma corte mais complicada que a de Luís XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chamas inferiores, numa imitação burguesa do pitoresco Plutão – não acredito. Não, não acredito! Céu e Inferno são concepções sociais para uso da plebe – e eu pertenço à classe média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das Dores: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil réis, implorei a benevolência do senhor deputado; igualmente para me subtrair à tísica, à angina, à navalha de ponta, à febre que vem da sarjeta, à casca da laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males públicos, necessito ter uma protecção extra-humana. Ou pelo rapapé ou pelo incensador, o homem prudente deve ir fazendo assim uma série de sábias adulações, desde a Arcada até ao Paraíso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mística nas alturas – o destino do bacharel está seguro.

Por isso, livre de torpes superstições, disse familiarmente ao indivíduo vestido de negro:

– Então, realmente, aconselha-me que toque a campainha?

Ele ergueu um pouco o chapéu, descobrindo a fronte estreita, enfeitada de uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra: – Aqui está o seu caso, estimável Teodoro. Vinte mil réis mensais são uma vergonha social! Por outro lado, há sobre este globo coisas prodigiosas: há vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romanée-Conti de 58 e o Chambertin, de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil réis; e quem bebe o primeiro cálice, não hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai… Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de tão suaves molas, de tão mimosos estofos, que é preferível percorrer nelas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses, pelos céus, sobre os fofos coxins das nuvens… Não farei à sua instrução a ofensa de o informar que se mobilam hoje casas, de um estilo e de um conforto, que são elas que realizam superiormente esse regalo fictício, chamado outrora a «bem-aventurança». Não lhe falarei, Teodoro, de outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Teatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Café Anglais… Só chamarei a sua atenção para este facto: existem seres que se chamam Mulheres – diferentes daqueles que conhece, e que se denominam Fêmeas. Estes seres, Teodoro, no meu tempo, a páginas 3 da Bíblia, apenas usavam exteriormente uma folha de vinha. Hoje, Teodoro, é toda uma sinfonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, baptistes, cetins, flores, jóias, caxemiras, gazes e veludos… Compreende a satisfação inenarrável que haverá, para os cinco dedos de um cristão, em percorrer, palpar estas maravilhas macias; – mas também percebe que não é com o troco de uma placa honesta de cinco tostões que se pagam as contas destes querubins… Mas elas possuem melhor, Teodoro: são os cabelos cor do ouro ou cor da treva, tendo assim nas suas tranças a aparência emblemática das duas grandes tentações humanas – a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda têm mais: são os braços cor de mármore, de uma frescura de lírio orvalhado; são os seios, sobre os quais o grande Praxíteles modelou a sua Taça, que é a linha mais pura e mais ideal da Antiguidade… Os seios, outrora (na ideia desse ingénuo Ancião que os formou, que fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados à nutrição augusta da humanidade; sossegue porém, Teodoro; hoje nenhuma mamã racional os expõe a essa função deterioradora e severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gás das soirées, – e para outros usos secretos. As conveniências impedem-me de prosseguir nesta exposição radiosa das belezas que constituem o fatal feminino… De resto as suas pupilas já rebrilham… Ora todas estas coisas, Teodoro, estão para além, infinitamente para além dos seus vinte mil réis por mês… Confesse, ao menos, que estas palavras têm o venerável selo da verdade!…
————

continua…

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João Anzanello Carrascoza (Uma Lição Inesperada)

No último dia de férias, Lilico nem dormiu direito. Não via a hora de voltar à escola e rever os amigos. Acordou feliz da vida, tomou o café da manhã às pressas, pegou sua mochila e foi ao encontro deles. Abraçou-os à entrada da escola, mostrou o relógio que ganhara de Natal, contou sobre sua viagem ao litoral. Depois ouviu as histórias dos amigos e divertiu-se com eles, o coração latejando de alegria. Aos poucos, foi matando a saudade das descobertas que fazia ali, das meninas ruidosas, do azul e branco dos uniformes, daquele burburinho à beira do portão.

Sentia-se como um peixe de volta ao mar. Mas, quando o sino anunciou o início das aulas, Lilico descobriu que caíra numa classe onde não havia nenhum de seus amigos. Encontrou lá só gente estranha, que o observava dos pés à cabeça, em silêncio. Viu-se perdido e o sorriso que iluminava seu rosto se apagou. Antes de começar, a professora pediu que cada aluno se apresentasse.

Aborrecido, Lilico estudava seus novos companheiros. Tinha um japonês de cabelos espetados com jeito de nerd. Uma garota de olhos azuis, vinda do Sul, pareceu-lhe fria e arrogante. Um menino alto, que quase bateu no teto quando se ergueu, dava toda a pinta de ser um bobo. E a menina que morava no sítio? A coitada comia palavras, olhava-os assustada, igual um bicho do mato. O mulato, filho de pescador, falava arrastado, estalando a língua, com sotaque de malandro. E havia uns garotos com tatuagens, umas meninas usando óculos de lentes grossas, todos esquisitos aos olhos de Lilico. A professora? Tão diferente das que ele conhecera…

Logo que soou o sinal para o recreio, Lilico saiu a mil por hora, à procura de seus antigos colegas. Surpreendeu-se ao vê-los em roda, animados, junto aos estudantes que haviam conhecido horas antes. De volta à sala de aula, a professora passou uma tarefa em grupo. Lilico caiu com o japonês, a menina gaúcha, o mulato e o grandalhão.

Começaram a conversar cheios de cautela, mas paulatinamente foram se soltando, a ponto de, ao fim do exercício, parecer que se conheciam há anos. Lilico descobriu que o japonês não era nerd, não: era ótimo em Matemática, mas tinha dificuldade em Português. A gaúcha, que lhe parecera tão metida, era gentil e o mirava ternamente com seus lindos olhos azuis. O mulato era um caiçara responsável, ajudava o pai desde criança e prometeu ensinar a todos os segredos de uma boa pescaria. O grandalhão não tinha nada de bobo. Raciocinava rapidamente e, com aquele tamanho, seria legal jogar basquete no time dele.

Lilico descobriu mais. Inclusive que o haviam achado mal humorado quando ele se apresentara, mas já não pensavam assim. Então, mirou a menina do sítio e pensou no quanto seria bom conhecê-la. Devia saber tudo de passarinhos. Sim, justamente porque eram diferentes havia encanto nas pessoas.

Se ele descobrira aquilo no primeiro dia de aula, quantas descobertas não haveria de fazer no ano inteiro?

E, como um lápis deslizando numa folha de papel, um sorriso se desenhou novamente no rosto de Lilico.

Fonte:
Revista Nova Escola

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Isabel Furini (O Poder do Livro)

O relógio de pêndulo deu oito badaladas. Um som metálico vibrou no ar. Roberto entrou na sala, colocou o paletó escuro e desbotado no espaldar da cadeira e sentou-se. Vestia uma camisa branca, com o colarinho gasto e um pulôver já fora de moda. Olhou o relógio. Um relógio enorme, antigo, de madeira escura e lustrosa, herdada do avô. Depois consultou seu relógio de pulso. Tinha a sensação de que um dos relógios estava defasado alguns segundos.

Dona Irineia saiu do elevador apressada e avançou rapidamente pelo corredor. Abriu a porta. Na parede, um cartaz que dizia: “ PROIBIDA A ENTRADA A AUTORES” em letras grandes e, em letras pequenas: “Deixe seus originais na portaria”. Entrou na recepção, ligou o computador e disse “bom dia” para o senhor Roberto.

– Dona Irineia… pode vir… – pediu ele.

Dona Irineia entrou, abriu as cortinas. Um raio de sol entrou pela janela de vidro, atravessou a metade da sala e caiu como uma torrente de luz sobre a escrivaninha de ébano escuro, cheia de papéis, livros, canetas, contratos. Roberto estava sentado diante da escrivaninha, na cadeira alta com espaldar de veludo vermelho. Às suas costas, o retrato antigo de seu avô, Florêncio, fundador da Editora RT.1.

Nos cantos da sala, caixas enormes, abertas, onde Irineia, todos os dias jogava, com indiferença, os originais que vinham pelo correio. Jogava os sonhos, as esperanças, as fantasias, as suposições, as ambições dos autores nas caixas de papelão. Cérebros, corações, fígados com vesículas apodrecidas de tanta ansiedade na busca da fama ou do reconhecimento. Ela jogava tudo nas caixas de papelão.

Irineia pegou uma faca grande, com o cabo forrado em couro marrom e começou a abrir os pacotes do correio. Chegavam originais de todos os tipos e de todos os cantos deste enorme país. Romances, novelas, contos, crônicas, monografias, teses, livros técnicos e poesias. Chegavam obras dos lugares mais recônditos, das grandes cidades, do campo e dos povoados. Povoados que Irineia mal conseguia localizar no mapa e nem sabia que existiam.

Roberto pegou alguns originais para análise. Sua forma de escolher os livros que seriam publicados no semestre era, no mínimo, peculiar, para não dizer que era uma maneira estranha, extravagante, ou simplesmente, insana. O editor comum obedece a padrões de modernidade, originalidade, gosto popular ou elementos como mudança de perspectiva, quebra de tempo, jogo de palavras, ironia, tipos de discursos e outros.

Roberto era diferente. Como um alquimista em busca da pedra filosofal, Roberto colocou pó de enxofre nos dedos das mãos e manuseou as páginas de um romance, abrindo-o ao acaso. Leu um parágrafo. Tantos anos na Editora deram-lhe uma firmeza inigualável.

– Dona Irineia…. – chamou o patrão.

– Sim, senhor – respondeu ela, enquanto se levantava, empurrando a cadeira.

Ele respirou profundamente e disse com raiva:

– Essa febre de escrever tomou conta da população! Todo mundo quer escrever, é irritante!

Roberto acomodou os óculos grossos sobre o nariz proeminente e alisou seus cabelos grisalhos, longos e oleosos.

– Por favor – pediu Roberto, acendendo um cigarro – Isto é ridículo! Este cara já enviou mais de dez livros… Soltou a fumaça do cigarro no ar. – Ele ainda não entendeu que nunca vou publicar suas obras? Quando vir este nome no envelope nem abra. Jogue fora!

Irineia disse que enviaria a carta padrão. Carta padrão consistia num modelo, onde a obra do escritor era elogiada e a Editora pedia desculpas por não poder incluí-la, falta de espaço na programação. Isso evitava processos e discussões intermináveis com autores inconformados.

Leu uma página e ficou irritado, “vejo um escritor de pulso vacilante, tentando contar uma história, mas sem técnica suficiente. Um trabalho superior a suas forças, megalomaníaco” pensou. – Não é suficiente ter uma história interessante, deve ser bem contada. Deve ser: “Alento de fogo.” Dona Irineia colocou novos livros sobre a escrivaninha: “Sonhos”, “Heróis do presente”, “A Morte de Joana” “Chuva no telhado” e “Mundo em guerra”. Roberto empurrou os óculos grossos de armação preta e enfiou o nariz nos originais de “Heróis do Presente”. Gás Bucal, murmurou.

Fechou o livro e voltou a abri-lo. Leu um parágrafo. Fechou e tornou a abri-lo pela terceira vez.
Não, eu estava certo na primeira classificação: Gás Bucal. Anote,dona Irinéia, Heróis do Presente, é Gás Bucal.

Sempre falava para a secretária qual tinha sido sua avaliação. Fazia anos que ela trabalhava para ele e já não sabia viver sem sua presença calada e submissa. Só uma vez Irineia levantara a voz, dois anos atrás, para defender um livro de amor e traição. Nunca antes, nunca depois.

Pegou o livro “Chuva no Telhado” – Roberto deixou fluir os originais encadernados em cor cinza pelas mãos sensíveis. Passou os dedos pelas bordas e o abriu. Leu uma página, este é pior.

Nos últimos três meses, só os originais de “Lago em Sombra” tinham sido aceitos para edição. Roberto tinha, à semelhança dos alquimistas, a busca incansável. Ainda lembrava seu avô dizendo: Existem dois tipos de editores, os editores alquimistas que procuram a pedra filosofal das palavras e os editores alquimistas que procuram simplesmente o ouro filosofal. Ele era do tipo um.

Seu avô tinha ideado um método infalível de classificar os originais. Tinha relação com o elemento ar. Talvez porque o avô Florêncio fosse de um signo de ar, Gêmeos. E toda sua vida tinha acreditado no destino e nas estrelas.

O método era o seguinte: Ruim, D – Gás estomacal. Bom – C: Gás bucal – Provinha da boca. Muito bom: B – Corrente de vento chega à garganta. Excelente: A – Gás Pulmonar . Obras de grande qualidade chegavam poucas. Extraordinário: AAA- ALENTO DE FOGO – O fogo do corpo e da alma.

Poucas obras “Alento de Fogo” havia recebido na vida. Na realidade, só recebera duas. Há trinta anos, seu avô ainda era vivo, quando receberam uma obra Alento de Fogo. O avô Florêncio estava doente, mas ao ler o texto recuperou-se totalmente e viveu mais cinco anos, com muita energia e vitalidade..

– Só o Alento de Fogo pode dar a vida… ou a morte… – disse o velho.

Dez anos atrás tinha reconhecido, ele sozinho, outra obra Alento de Fogo. Foi fascinante. A cada página que lia recuperava a vitalidade. Fez uma viagem ao redor do mundo. Nada de hotéis caros, de shoppings nem de restaurantes chiques. Caminhou pelas areias do deserto. Escalou as pirâmides, dançou na Ilha de Páscoa diante dos vigias.

Foi feliz durante dois anos. Mas a energia do alento também se esgota. Desde então, só procura o Alento. Há anos que traz os óculos grossos que escondem o desespero de sua alma na procura de um livro especial. Um livro que o tire da monotonia, da mesmice, das preocupações, do vazio da vida. Um livro revelador de um mundo paralelo que fale de suas expectativas, de seus sonhos, acertos e fracassos.

Roberto procurava na literatura, na palavra, a antiga arte da transmutação da mente. Arte anterior às técnicas da mente positiva ou da neurolinguística e outras ervas, que no seu entender, vendiam fantasias… das boas e das ruins, e algumas dessas fantasias eram terrivelmente nocivas à alma.

Roberto procurava na literatura a arte de entender o mundo. E a vitalidade para continuar a viver. A vitalidade que tinha perdido nos longos dias de leitura, na luta constante para analisar os textos com justiça. A análise e a luta com os textos sugaram sua energia. No fragor da contenda ficou míope e não conseguia enxergar a beleza da vida.

Roberto também escrevia. Ler e escrever. Escrever e ler. Sua vida tinha-se debruçado sobre os livros. Sua vida tinha-se esgotado entre letras impressas e folhas de papel. Os livros inéditos se pareciam. Eram como almas sem corpo. Todos pareciam iguais: papel branco oficio ou A4, letra New Roman ou Arial, corpo doze, duplo espaço.

Originais ruins que chegavam a suas mãos eram jogados no lixo. Não lia. Só abria três vezes o livro. Abria o livro, lia uma página e anotava a classificação. Abria de novo e lia dois parágrafos. Abria-o, pela terceira vez e só lia um parágrafo. Ele dava três chances. Só três, para cada candidato.

Originais ruins eram jogados no lixo. Não lia. E não era por falta de tempo. Nem por preguiça. Não lia porque lhe fazia mal, como a carne gordurosa o intoxicava. Intoxicava sua alma, embotava seus sentidos. Em síntese, diminuíam o ciclo de vida de Roberto.

Para Roberto, não ler lixo não era modismo, capricho, nem uma forma de esnobar a literatura. Era sobrevivência. Teve terríveis experiências, um livro mal escrito aumentava sua úlcera, desregulava os movimentos de diástole e sístole de seu músculo cardíaco.

Poucos sabiam que o alimento de Roberto era a literatura. Não só o alimento de sua alma, mas até certo ponto, a literatura era também o alimento de seu corpo. Até suas vísceras precisavam de leitura. Uma página ruim que lia, e seu corpo parecia desmembrar-se.

– Hoje não estou com sorte – pensou, enquanto terminava de ler o parágrafo. Só achou um livro
C. Classificação A e B, lia do princípio até o final. Os outros não, questão de saúde.

Ao final da tarde, recebeu a visita de seu primo José, dono de uma grande editora

– Importa-se demais com qualidade, Roberto – recriminou-o – Marketing. Agora tudo é marketing. Eu dou para o departamento de marketing ver as possibilidades de venda, a gente nunca sabe quando tem um best-seller nas mãos…

– Lembra de nosso avô Florêncio?

– Você sempre foi o neto preferido dele.

– Vô Florencio sempre dizia que um livro é como uma panela de pressão. Tem ar quente… entende, José? Todo livro tem um ar… um alento… o livro ruim é como uma panela de pressão com ar gelado, esfria o sangue nas veias, pois não foi purificado pela arte. Panela de pressão apitando, enfumaçando, é sinal do fogo do artista. Esse fogo fica impregnado em cada página, em cada parágrafo, em cada frase, em cada canto do livro.

– Panela de pressão! – exclamou José e soltou uma forte gargalhada que atravessou
o ar e bateu no relógio. O relógio deu algumas badaladas, longas, sem compasso, arrítmicas.

No dia seguinte, o céu nublou-se, a chuva bateu sobre os vidros da janela. Roberto continuara lendo. Três dias depois, voltou a sair o sol.

Nesta quinta-feira, Roberto chegou à Editora às 8 da manhã, como era habitual.

A luz estava acesa. Entrou. Dona Irineia estava de pé, falando com uma senhora baixinha e muito magra, de cabelos brancos unidos no alto da cabeça por um coque, ao estilo das avós antigas. Vestia com elegância uma blusa azul, com pequenos desenhos vermelhos e uma calça azul marinho.

– A senhora é autora – disse Irineia, sem jeito.

– Bom dia, Senhor . – disse a velhinha, fitando-o com seus olhos azuis, intensos.

– Meu nome é Maysa – apresentou-se e estendeu-lhe a mão direita para cumprimentá-lo, enquanto com a esquerda apertava os originais.

– A senhora não sabe ler? – perguntou Roberto, de forma ríspida, cruzando os braços.

– Sei, claro que sei ler – disse ela recolhendo o braço e pegando o livro com ambas as mãos.

– Pois veja, então, minha senhora! – gritou Roberto, abrindo a porta e assinalando o cartaz – Autores: Proibida a entrada.

– Senhor Roberto – disse Irineia, tentando ajudar a velha senhora – eu a deixei entrar, ela só quer falar sobre o livro. Ficou anos escrevendo e…

Roberto interrompeu sua fala. Pode deixá-lo…

Abriu a porta, entrou e sentou-se em seu lugar. Pela porta entreaberta, viu que a velha continuava em pé, imóvel.

– Fora daqui – disse entre dentes – fora, velhinha, fora. Eu não edito biografias de mortos ilustres, não edito livros de tricô, nem receitas culinárias. Escutou a velha despedir-se e o ruído da porta fechando-se. Roberto colocou enxofre nas pontas dos dedos e abriu um livro. Buscava a cada dia a áurica dos alquimistas, o mercúrio.

– Posso entrar? – perguntou dona Irineia.

Roberto ficou impressionado. Raramente ela entrava sem ser chamada.

– Peço que o senhor avalie este livro, por favor, senhor Roberto. Não tomará muito de seu tempo. Faça esse favor para mim – e colocou o livro sobre a escrivaninha.

– Está bem – disse ele, num gesto resignado, como um capitão depondo as armas.

Roberto abriu o livro. Começou a ler a página, o primeiro parágrafo e nas solas de seus pés sentiu um comichão. Segundo parágrafo e um calor começou a subir de seus tornozelos. Apertou o estômago, o batimento cardíaco chegou à garganta e transformou-se em admiração e em silêncio. Antes de terminar a página, viu um espírito, um dragão vermelho e preto. Um dragão enorme, que devorava as florestas da dúvida, derrubava as montanhas da presunção e arrasava os vales da mediocridade.

– Uma obra prima! – tentou gritar, mas não conseguiu. Sentiu um estouro na garganta… ou foi no peito? Eram cinco horas e o relógio de pêndulo começou a dar a primeira badalada.

Roberto sentiu que seu peito doía. Era uma dor dilacerante. Levou as mãos ao coração . Oh, Deus, pensou, e sentindo a morte chegar, não lamentou sua busca. Não os anos perdidos diante da escrivaninha, nem a janela fechada onde nunca entrava o vento. Não lamentou ter ficado sem amigos, em ter sido abandonado pela esposa. Não lamentou ser considerado estranho ou louco. A única coisa que lamentava era ter que partir da terra sem poder terminar de ler originais com

“Alento de Fogo”. Alento de fogo, alento de fogo, repetia. Abriu novamente o livro e tentou ler…

– Alento de Fogo! – gritou. Abriu os olhos e a boca e o espírito do livro, o dragão invisível, transformou-se numa bola de fogo incandescente, foi arremessado de seu corpo e jogou-se sobre os originais do livro. Seu rosto caía pesadamente sobre a escrivaninha, enquanto seu espírito livre revoava sobre a mesa, nas asas do dragão. A asa esquerda do dragão bateu na janela, quebrando o vidro. Entrou uma lufada de ar. Respirou profundamente. Esse ar que entrava pelo vidro quebrado lhe fazia bem, muito bem, devolvia-lhe a vitalidade.

Abriu os olhos. – Vou chamar um médico – disse Irineia.

– Não, não… estou bem. Só preciso ler.

Irineia olhou-o com assombro. Roberto abriu o livro e leu a primeira página. Sorriu.

Irineia… Irineia…. – disse com voz quase carinhosa. Irineia, estou lendo e pensando… já somos quase velhos, Irineia, passamos tantos anos trabalhando juntos… tantos anos. Olharam-se em silêncio.

– Quero dar a volta ao mundo. Quer viajar comigo, Irineia?

– Como sua secretária?

– Sim…Não! Não! Viajar comigo…. você sabe… você sabe, Irineia… Nós nos damos bem… nós gostamos dos mesmos livros…. vamos envelhecer sozinhos…. e envelhecer sozinho, é tolice, não acha? Vamos compartilhar nossos últimos anos? O que diz, Irineia?

Irineia chorava como uma criança que, no Natal, ganha um presente inesperado de Papai Noel. Só conseguiu enxugar as lágrimas. E sorrir.
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Conto de Isabel Furini, recebeu Menção Honrosa no Concurso de Contos Paulo Leminski, de Toledo.
Fonte:
Contos e Cronicas de Isabel Furini

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Raul Pompéia (A Mona do Sapateiro)

I

Ela servia bem…

Era redondinha, rosada, bonita. Sobretudo era nova, novíssima mesmo…

Uns dezesseis anos se tanto.

Fernando e Emílio espiavam-na. Viam-na à porta da lojinha do pai, o sapateiro Cândido, um Cândido preguiçoso, ébrio e pobre. Achavam tentadora, ó diabo! a melancolia da menina, com o rosto colado ao portal da loja, observando quem passava e seguindo com um olhar expressivo as mocinhas de sua idade que transitavam de carro, ou vinham pelo passeio, a pé, apanhando garbosamente a seda farfalhante das saias para não roçarem pelo vestidinho enxovalhado e sujo, que lhe caía dos quadris.

Não trabalhava quase a filha do sapateiro. A ociosidade do pai a escusava ante a própria consciência e a opinião pública, isto é, o veredict da vizinhança.

Demais, a Joaninha vivia desgostosa. O pai, quando se embebedava, (e isto era freqüente) maltratava-a muito, injuriava-a desabridamente; chamava-a descarada, cadela… Mortificava aquilo. E ela não tinha gosto pelo trabalho. Levava as horas num farniente lânguido, aborrecida, dissolvendo-se cm mórbida tristeza, ou erguendo castelos de ouro, sobre as suas ilusões de menina ambiciosa…

Fechava-se, por exemplo, num biombo escuro existente nos fundos da loja, seu quarto de dormir; despia-se de alguns dos panos mal asseados que a cobriam, e punha-se a olhar para o corpo. Um sorriso estranho ressaltava-lhe, palpitante e ardentes, as maçãs do rosto. Joaninha deitava timidamente olhares em roda de si, como a gazela, antes de mergulhar o focinho na fonte para saciar-se; depois, cheia de feminino orgulho, passava os dedos pela epiderme velutínea dos braços e do seio. Entretanto, segredava de si para si que não ficaria mal naquele corpo uma camisinha fresca, mole, transparente, toda enfeitada de rendas… Cingia o pulso com o polegar e o dedo médio, em forma de pulseira, e imaginava o efeito de uma argola de ouro luzente, cavando-lhe ali uma cintura na carne…

E nada tinha para si, além dos maus tratos do pai e dos galanteios de alguns vagabundos atrevidos!

Os castelos perdiam-na numa ficção azul, donde a realidade a tirava com uma violência semelhante à do menino que deixa voar a avezinha atada pelo pé, e puxa então o cordel para fazê-la bater no chão e atordoar-se.

Por mais cruel entretanto, que fosse a realidade, jamais se dissipava do cérebro da moça o pensamento de melhorar de condição no mundo, subir…

Tinha ouvido dizer uma vez que a mulher tudo alcança pela formosura. Ela não era feia. Consultara o seu pequeno espelho a esse respeito e vira lá dentro uma carinha a rir de satisfeita. Era chic, bem chic. Então de corpo!… Quem seria mais elegante do que ela? Que braços mais lindos do que os seus; que cintura mais bem talhada?…

Não era sem motivo que certo moço da vizinhança lhe dava tanta atenção. Este moço não passava pela porta da loja, quando ela aí estava, que não lhe deitasse um olhar significativo – não chegava à janela da sua casa, pouco distante da loja, sem verificar se havia certa pessoa à porta daquela sapataria…

Ela era querida. Ser querida, eis a questão. Joaninha sentia-se no princípio da carreira…

Quase sempre as suas meditações eram interrompidas pelo pai.

Ou ele entrava da rua com a cabeça aquecida e a língua ardente pela ação do álcool e gritava:

Oh, Joaninha!… Onde se meteu esta peste?!… Oh, endemoninhada!…

Ou, sem estar embriagado, sentia acessos de amor paternal e chamava Joaninha, para acariciá-la, e dar-lhe conselhos. e, se estava trabalhando, deixava tudo, ia em busca da moça, bater à porta do biombo.

A Joaninha não fora possível dizer quando lhe era mais desagradável o chamado, se para a repreensão, se para o afago. Tinha contudo a necessária paciência para suportar uma cousa e outra.

Sofria tudo, confiando no futuro e adorando no fundo do peito ao jovem vizinho, como o alicerce das suas esperanças.

II

O sapateiro Cândido gostava muito de palestra. Era o seu natural… que fazer?…

Aos domingos, quando não se achava toldado pelo vinho, sentava-se à entrada da oficina, no seu banquinho de pano listrado e pernas em X, e esperava o primeiro conhecido para a prosa.

Os conhecidos vulgares não eram os mais apreciados pelo sapateiro. Ele preferia conversar com gente de gravata lavada, como um militar, uma autoridadezinha de polícia, um estudante, etc. Gente que percebesse as considerações mais ou menos digeridas que ele desenvolvia a propósito disto, ou daquilo, ou mesmo sem propósito nenhum.

Esta preferência revelava a face principal do caráter de Cândido. Não era homem de afazer-se à sua posição social. Dizia-se degradado pela necessidade. Não nascera para aquilo que era. Por isso estimava as palestras com gente boa. Tinha até predileção pelos homens ilustrados. Sim, porque ele não era qualquer ignorantão. Em pequeno, chegara a aprender geografia; e os quarenta anos que lhe pesavam nos ombros o tinham feito um tanto entendido na ciência…

Daí a amizade que ele travou com dois moços estudantes que moravam nas imediações da sapataria.

Um desses jovens era alto, magro, amorenado, cabelos negros, olhos negros, bigode vasto e queixo rapado; o outro de estatura vulgar, cheio de corpo, sangüíneo, bigode recurvado para cima, pupilas ameigadas, maneiras de conquistador; quanto ao mais trajavam ambos rigorosamente e gozavam da fama de ricos…

O moreno chamava-se Emílio; o alvo era seu companheiro de casa e colega; chamava-se Fernando.

Temos falado de ambos ao leitor.

Insinuante mancebo que era Emílio! Modos afidalgados, mas corteses, sorriso bom sempre a correr nos lábios. Fernando era insinuante como o outro, porém de gênero diverso. Derramava em torno de si uma chuva de olhares qual mais eloqüente e dizendo tanta cousa que uma mulher honesta e casta não podia afrontá-los. Punha de alcatéia os pacatos burgueses; e, mais de uma vez, o simples fato de sua passagem por junto de uma mocinha fizera agitar-se o pretropolis de honrado papai.

Fernando simpatizava com a Joaninha. Dize-lo basta para fazer evidente a atração que ligava o sapateiro e o estudante.

Travaram, pois, conhecimento Cândido e Fernando; Emílio por intermédio do amigo, entrou também na roda…

Era uma satisfação para o primeiro ter à sua porta os estudantes… Sentia-se menos sapateiro, lidando com os doutores. Pobre homem!

III

Certa ocasião, num dia santo (dia de… S. Sebastião, por sinal) os dois moços pararam à porta da sapataria; perguntaram a Cândido como ia da saúde, etc. O pai de Joaninha convidou-os a entrar. Sabia que eles eram democratas, não coravam de transpor o limiar de uma humilde oficina… Os democratas acederam ao convite. Era fim da tarde e já os lampiões da iluminação pública salpicavam a meia sombra crepuscular com as chamas esbranquiçadas do gás. A rua toda parecia respirar na sonolência inexprimível dos dias desocupados. Pouco movimento, nenhum rumor notável. No céu, nevoeiros empastados, prenhes de chuva, anunciavam uma próxima mudança de tempo. Pelo ar, espalhava-se alguma eletricidade, que impressionava os nervos, predizendo trovoada.

Os estudantes e o sapateiro conversavam. Davam à taramela a respeito de tudo, primeiro a respeito da atmosfera; depois, de S. Sebastião; em seguida, das festas de Igreja; por tocarem nisso, meteu Cândido as botas nos padres, especialmente no vigário da paróquia, um patife tão baixo para com os ricos, quanto arrogante para com os pobres, um bandalho, etc…

Entretanto, passou o caixeiro da venda do Manoel corcunda.

Escurecera completamente, mas o sapateiro tinha acendido o lampião de querosene, a cuja luz trabalhavam os seus empregados em dias de serviço. Conquanto amortecida, essa claridade enchia a oficina, desenrolando uma toalha avermelhada até ao meio da rua…

O caixeiro espiou, sorrindo de ver na oficina o Dr. Fernando R. e o Dr. Emílio ….

– Querem alguma cousa? perguntou.

Os estudantes cruzaram um olhar…

– Queremos, disse Fernando. Traga cerveja e…

– A branca!… completou Cândido.

E Fernando atirou ao caixeiro uma nota de cinco mil-réis…

O caixeiro abriu a boca, mostrando os dentes sujos, num riso malicioso, e foi-se…

Minutos depois, estava tudo aí: troco dos cinco, cerveja, a branca, bebedeira.

Os moços deram o exemplo. Dois copos e uma caneca fizeram de cristais. Começou a orgia. Saltavam as rolhas e a cerveja surgia espumosa como a saliva de um gotoso à beca das garrafas…

… As negrinhas estão babando! gritava Cândido, e estendendo o copo para colher aquela espumarada atraente…

– Vamos bebendo! diziam os estudantes.

Note-se que Fernando bebia moderadamente.

O sapateiro entusiasmou-se. Descompôs a sociedade que o maltratava, e o destino, que o perseguia; maldisse de tudo, em altas vozes, revelando raros dotes de uma oratória inchada e de má gramática.

Os moços discutiam com ele, e o faziam beber cada vez

Principiou então a perder o fio das idéias. Dissertando sobre a conveniência da instrução, apostrofava subitamente os seus empregados que lhe comiam o dinheiro sem trabalhar.

– Corja de bêbados! urrava…

Iam-lhe as palavras tornando pegajosas de mais a mais, a língua pesava-lhe sobre os dentes inferiores, e os estudantes a ministrarem-lhe copos sobre copos…

O bêbado afastava os cantos da boca num sorriso bestial, as pálpebras caíam-lhe como bambinelas e, nos olhos semicerrados, moviam-se languorosamente as pupilas, como se estivessem também embriagadas.

Emílio e Fernando riam gostosamente, oferecendo ao sapateiro mais cerveja e mais aguardente. O infeliz, encantado pela transparência brilhante dos copos, deixava-se atordoar e ia bebendo… bebendo.

Numa porta que se rasgava como um paralelogramo negro ao fundo da loja, assomou um vulto. Parecia uma coluna de fumo alvacento a flutuar nas trevas. Os moços sentiram-no. Emílio voltou a cabeça; Fernando voltou a cabeça. Era a menina!…

Joaninha percebera os rumores da orgia. O que seria? Convinha ver…

Estivera espreitando.

O estado do pai confrangia-lhe o coração, à força de causar-lhe nojo. Aquilo já não era beber! Porque nascera ela daquele homem? Deus não podia ter-lhe dado um pai menos borracho? E tinha de amá-lo!… E ela o amava, mesmo; sentia-o às vezes… Que miseráveis eram aqueles que ali estavam a escarnecer do pobre homem?

Devia verificá-lo e censurar os malvados. Quis entrar na loja…

Os homens, porém, tinham voltado o rosto e ela que já os suspeitava viu que eram os dois vizinhos, aquele que lhe dava muita atenção, e o companheiro…

A figura do pai, com a cabeça pendida, balanceando à toa como a de um morto; as pernas distendidas e os braços caídos como pedaços de chumbo, desfez-se-lhe, com o deslumbramento que lhe causou o olhar de um dos moços, de Fernando.

Fernando era o seu namorado, isto é, o moço que podia servir-lhe. Um belo rapaz; tanto melhor. O que a dispusera para amá-lo, para notar-lhe as feições, fora o ser Fernando um moço de fortuna como revelava pelo rigor do traje e pelo seu modo de vida. Demais o estudante gostava dela, não havia que duvidar. Disso possuía mil provazinhas galantes que o moço lhe dava e que ela compreendia sem custo. Com Fernando se casaria.

Por que não?

Ela pobre, mas bonita; ele namorado e rico…

IV

Adiantara-se muito a noite. A rua ficara sem viva alma. Alguns trovões pouco intensos abalavam de longe em longe o ar. Na loja do sapateiro Cândido são havia como lá fora pessoa alguma, a não ser o indivíduo que dormia sobre um assento, encostado à parede. Era o bêbado. Os estudantes tinham desaparecido.

Emílio propositalmente deixara Fernando só e fora-se para a casa. O namorado de Joaninha, tendo recostado como melhor pôde o sapateiro, adormecido na mais absoluta embriaguez, encaminhara-se para a porta onde vira a Joaninha mostrar-se.

A mocinha não estava mais aí. Fernando olhou para trás, como temendo que o pai da sua querida despertasse e adiantou-se para o interior. Sabia que Joaninha era órfã de mãe, e, naquela casa, residia com o pai unicamente. Não eram, pois, de recear encontros.

Barafustou por vários aposentos, onde não se distinguia um só objeto, na massa compacta de negruras que havia neles. O coração palpitava-lhe violento como se não estivesse a gosto no tórax. O cheiro de couros e graxas que corrompia o ambiente incomodava-lhe o olfato…

Sem saber como, viu-se o moço em uma saleta mais clara (menos escura, fora melhor). Uma janela envidraçada apresentava um pedaço de céu sombrio, um pouco menos, contudo, que as paredes da saleta. Relâmpagos brancos, demorados, iluminavam os caixilhos da vidraça como clarões brincando num painel fantástico. Estes clarões faziam uma rápida solução de continuidade em a noite. Um dia veloz penetrava na saleta e fugia num instante, mal permitindo que se visse no centro da sala uma mesinha coberta de objetos insignificantes e um velho sofá vizinho da janela.

Neste sofá estava sentada Joaninha. Quando um relâmpago mostrou-lhe o namorado a entrar, ela sorriu e baixou o rosto acanhadamente.

– Até que enfim meu anjo! disse Fernando, com voz um tanto comovida.

O moço estava habituado às entrevistas; mas aquela era de ordem excepcional. Fora tão longamente preparada, que, quando a grande hora chegou, o herói sentiu-se abalado. A filha de Cândido gozava um sobressalto delicioso. Havia se retirado da loja, para ser seguida pelo dileto do seu coração. Ali estava ele.

A um segundo relâmpago, a mocinha viu junto de si o mancebo e, apenas voltou a escuridão, sentiu um braço musculoso enlaçando-lhe a cintura, apertando-a com arrebatamento contra um peito largo, onde havia palpitações que eram marteladas.

Joaninha pendeu a cabeça para o ombro daquele homem.

Caiu numa dormência povoada de visões. A noite pareceu-lhe sulcada por mágicas irradiações de esquisito fulgor, a cruzarem-se no espaço, como para circundar uma figurinha de criança que lhe sorria de longe, agitando as mãos…

Quando terceiro relâmpago clareou a saleta, os dois namorados cingiam-se num abraço de despedida.

– Meu noivo!… dizia a moça com os lábios sobre a face de Fernando.

– Minha noiva! ciciava este ao ouvido dela…

E lá fora o trovão rufava com força, fazendo estremecer a vidraça.

V

Em seguida Joaninha conduzia seu noivo até à porta da rua.

Na oficina jazia o sapateiro estendido no chão, a dormir como um porco. Escorregara do assento, em que o tinha deixado Fernando.

Chovia bastante, àquela hora, e a água, entrando pelo vão da porta da loja, inundava o chão. Cândido parecia boiar num lago.

Os noivos não lhe deram atenção… Apertaram-se as mãos e Joaninha perguntou graciosamente:

– Como se chama, mesmo, você?…

– Felizardo… flor…

– Bem… Agora, Felizardo, até…

– Logo, Joaninha…

Dando esta resposta, Fernando abriu o guarda-chuva que trouxera.

– Adeus! atirou-lhe a filha do sapateiro.

– Adeus! disse ele, sorrindo.

E partiu.
……………………………………………….

Pouco depois, Fernando e Emílio conversavam em sua casa.

– Com que, graceja Emílio, conseguiste, meu felizardo, plantar uma lança em África!…

– Sabes que sou decidido, observou Fernando, pavoneando-se… Mas o principal é que temos de nos mudar desta casa, já e já… não quero que a pequena me torne a ver…

– Fazemos a mudança amanhã mesmo; olha, o Z mudou-se há dois dias; temos a casa dele…

– O diabo é esta chuva… parece que o céu está chorando…

Todo estudante é mais ou menos poeta. A frase de Emílio inspirou-lhe uma idéia.

– Deixa estar, Fernando, que hei de dedicar-te um soneto com este título: a queda de um querubim, onde farei o céu deplorando uma virgem…

– E eu, replicou o companheiro distraidamente e rindo, hei de dedicar-te um com este outro titulo: a mona do sapateiro.

Fonte:
http://leituradiaria.com

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Adriana Abujamra Aith (Sozinha)

Sozinha, coitada.
Nunca estava acompanhada.
Pega-pega, sozinha não tinha.
Queimada, sozinha não dava.
Então, ela sentava a pensar.
Mas estava tão sozinha que nem pensamento vinha.
Se Sozinha assim estava,
mais sozinha ia ficar,
Porque o S da Sozinha resolveu se mandar.
Mal Ozinha se deu conta, o O aproveitou o embalo e saiu rolando.
Desolada, sentia-se uma zinha qualquer.
“Ô, Zinha”, disse o Z.
E zapt, fugiu ligeiro, deixando Inha para trás.
“Inha, Inha, inhaaaá!”
Desandava a chorar.
Chorava, chorava até a lágrima secar.
E agora, o que fazer?
Olhou para um lado.
Olhou para o outro.
Para lá, para cá.
Até que seu pé se animou. Levantou a Inha e se pôs a sambar.
Ali de cima, os olhos de Inha observavam o seu pé,
que sacudia e sacudia.
E sacudindo contagiou o joelho,
que remexeu a coxa e fez o bumbum rebolar.
Do bumbum para a barriga foi um estalo.
Os ombros, que não são bobos, entraram logo no embalo.
Quando Inha percebeu, do pescoço para baixo estava um grande alvoroço.
Só faltava a cabeça. Então a boca disse: “Entre na dança.” Êba! Vamos lá!
A alegria era tanta que atraiu muita gente. E todos os pés ali presentes convenceram seus donos a participar.
Inha estava contente, mas tão contente, que nem se lembrava mais do tempo em que tinha um S, um h e um Z,
que a deixavam Sozinha.
Deles queria distância. Mas não entendam mal. O S para um samba,
o O num oi e o Z para um ziriguidum seriam sempre bem-vindos.

Fonte:
Revista Nova Escola

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Isabel Fontoura (Penhascos)

 Sou um ancião e sempre vivi na Chapada Diamantina, alojado entre grutas milenares que tremeram com a passagem da Coluna Prestes e com os tiros de Lampião. Sei das riquezas que estas cavernas escondem e das lendas que criam vida no ouvido das crianças.

 Garimpeiro de muitas lavras, sonhava encontrar diamantes e uma gema tão sólida que eternizasse a minha história. Lendas de um homem que encontrou a prisão e a alforria junto às pedras preciosas.

 Trabalhava dia após dia no garimpo para um coronel da região. Era parte do ofício envenenar os rios e matar os peixes em uma guerra de peneiras e dragas no ventre da terra, contudo, entre mercúrio, marte e a morte encontrava apenas cascalhos. O patrão ficava furioso e me castigava por achar que estava sendo roubado, não queria acreditar que naquela fazenda nada havia de valioso.

 Uma noite, enquanto dormia, a Santa veio me visitar, desde que me tornei órfão, ainda pequeno, escolhi Nossa Senhora como minha madrinha, e ela me mostrava uma gruta iluminada à beira de um precipício, uma trajetória para os diamantes.

 Lavrei com vigor, o sonho não me deixava, larguei minha peneira e subi córrego acima, andei umas duas léguas beirando o rio, nenhum capataz reparou e deparei-me com um penhasco, desci escorregando entre pedras e lamas até chegar ao começo da lapa. A entrada era sombria, o cheiro entorpecia-me, um bando de aves das cavernas esvoaçou sem me tocar, o medo assolou-me, nunca ouvira falar naquela gruta, todavia eu precisava desvendar aquele recanto de sombra e rochedo.

 Um veio de água corria pelo lajedo; e, em meio à frieza do córrego, insetos cegos, embranquecidos pela noite incessante da caverna, fugiam dos meus passos. Nas paredes, desenhos de homens que viveram sob o manto de pedra e deixaram o registro no seio da gruta. A passagem era muito estreita, o ar parecia escapulir do meu corpo, apertava as mãos, os dentes travavam de frio, enquanto minhas pernas cambaleantes alcançaram uma senda que cintilava no subsolo, e; em meio à escuridão, uma claridade nunca vista ardeu-me os olhos.

 O sonho materializou-se, havia opalas, águas-marinhas, ametistas. Muitas pepitas de ouro. Apanhei o máximo que pude e, ao sair, ouvi tiros: Cães, cavalos e capangas do coronel estavam a minha caça. Voltei à gruta e permaneci lá por muitas luas, alimentando-me de traíra crua e preás, devorei uma serpente que guizou em meus pés. Bebi água do rio que envenenara e sonhei com muitas lapas iguais a esta. Não queria mais sair: recluso no meu castelo de pedras, marajá com temor dos homens e das suas armas, cercado dos tesouros da mina de Nossa Senhora. Só e sozinho no calabouço, estava feliz.

 A lapa, no entanto, enojou-se de mim, e a terra tremeu, fugi tropeçando nas estalagmites milenares construídas no gota a gota do suor do tempo. A gruta ficava cada vez mais escura e as pedras desabavam nas minhas costas, devo ter corrido muito, era zanga de Nossa Senhora, decepcionada com seu afilhado, e receio muito a fúria das mulheres. Na fuga, perdi as pedras que abraçava ao peito e, por mais medo da pobreza que da morte, engoli os diamantes que tinha no bolso. Avistei uma luz intensa ao final de um túnel comprido. Era a luminosidade do dia, o sol, a saída da cratera.

 Embrutecido pelas pedras, desvalido pelo homem. Despertei no corredor de um hospital: tísico, demitido, homem sem saúde não serve para lida. Disseram que eu estava ali há alguns dias, falando frases soltas delirando de febre e clamando por Maria.

 Convalescente, lavrei entre meus dejetos pedras brilhosas: eram diamantes, que se dissiparam aos ventos de aguardentes e bordéis, consegui apenas após duas décadas arrematar a fazenda do coronel, terras estas onde conheci a escassez e a fartura, o retiro e o encantamento. Subterrâneos. Alqueires onde selei minha sina de garimpeiro de lavras do desconhecido.

 Hoje solto ecos nos penhascos, procuro a gruta de tesouro e de água envenenada que entre a rocha, a escuridão e a vida conduzirá meu caminho por trilhas sinuosas para escavar, naquela mina, um diamante de muitos quilates, lapidado pela engenhosidade do tempo. Pedra cintilante que contará a história de um velho garimpeiro, cego e sedento pelo brilho dos minerais, então descansarei naquele jazigo de jazidas, refúgio final de um peregrino.
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Sobre a autora
Isabel Fontoura tem 37 anos, é médica e escritora, membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, regional Bahia. Participou de antologia com outros médicos baianos e publicou sozinha um livro de contos, “Penhascos”, que foi premiado no VII Concurso Literário do Banco Capital e do qual extraímos o texto ao lado, que foi publicado pela EPP Publicidade em 2008.

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Olivaldo Junior (O Guarda-Chuva)

Havia chegado à idade mental em que só se sai de casa com o guarda-chuva. A chuva, inda em São Paulo, e o tal embaixo do braço. O braço do homem havia se desacostumado de abraços. Braços servem para muitas coisas, inclusive para um violão. Violão, embora tenha um braço, está sempre ocupado em segurar as cordas de que surgem as notas, que exortam canções. Sons de chuva estavam mudos, o mundo estava seco, mas o homem não largava o guarda-chuva.

A verdade é que chovia dentro dele, fizesse chuva, fizesse sol, a cada dia. Dia quer dizer variação porque não há nenhum igual ao outro. Os dias são dados que Deus joga com os anjos. Anjos são luzes que acendem quando tudo é de noite. Noite com chuva, noite em que se vai mais cedo para cama. 

Cama, mesa, armário, escrivaninha e um pouco de escrita, que o sono já vem. A vinda da chuva não chega, e o cheiro da terra se sente, e o sempre de sempre já tem: guarda-chuva quer chuva. Choveu muito por quem não vem mais, por quem não volta. Voltou-se a si mesmo: oceano. Sentiu que tinha um amigo. O amigo partiu. Amores, não, nunca. E a chuva, sempre em guarda: muda.

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