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Isabel Furini (Livro Bom, Livro Ruim)

Na oficina Como escrever um livro, que oriento há muitos anos, houve uma discussão quando uma aluna disse: Comecei a ler o Senhor dos Anéis, um livro muito mal escrito. Um colega contra-argumentou: Eu gostei do livro. Se você não gostou, é um problema seu, isso não quer dizer que não seja um bom livro, só que não agrada a todos os leitores.

E eu tive que desafiar o grupo com uma pergunta:

– Será que existe um livro que agrada a todos os leitores?

Uma senhora respondeu: – A Bíblia.

Um rapaz retrucou: – Será que ateus gostam de ler a Bíblia? (Risos)

Alguém disse: – Machado de Assis.

Apoiou um senhor idoso: – Isso mesmo.

Um aluno não esteve de acordo: – Minha tia não gosta de Machado de Assis, porque uma professora obrigou-a a ler O Alienista no colegial, na época que havia colegial…

– E os Lusíadas de Camões?

Silêncio na sala. Por fim, um rapaz disse: – Será que todos leram Os Lusíadas? Eu nunca vi esse livro na lista dos mais vendidos. E será que todos aqueles que leram apreciaram o livro? Ou alguns têm medo de falar que não gostaram e de parecer burros?

A discussão continuou por algum tempo. Por fim, eles mesmos chegaram à conclusão de que existe um livro aceito por todos os leitores. Existem livros aceitos pela maioria dos leitores, os best-sellers. Existem livros aceitos pela maioria dos intelectuais, em geral, livros que ganham prêmios importantes. Mas sonhar que um livro será apreciado e aplaudido por todos os leitores é algo muito difícil de acontecer. Talvez impossível em um país livre. Cada cabeça é um universo. Tem suas nuances. Sua história pessoal. Seu olhar único.

É tão fácil criticar o trabalho de outrem e tão difícil criar e realizar uma obra de arte que o aforismo fala “a crítica é fácil, a arte, difícil”. É assim mesmo, ver o erro no trabalho dos outros não leva muito tempo, por exemplo, observar um quadro e criticar pode levar questão de minutos.

Ler um texto e sentir desagrado também não leva muito tempo, em geral depende da dimensão do texto a ser lido. E, às vezes, nem isso. O leitor começa o texto e nem dá chances… já forma uma opinião ao focar as primeiras frases. E é muito interessante que a maioria das pessoas não fala: eu gostei, ou eu não gostei do texto, ela afirma: “está muito bem escrito”, “está mal escrito”, ou pior ainda, “esse é um bom escritor”, “esse escritor é ruim”, como se umas poucas frases fossem suficientes para julgar a obra completa de um autor.

“Eu não gostei desse livro” é uma frase honesta. “Esse livro é ruim” é uma frase fruto da arrogância, que tenta mostrar que a opinião dessa pessoa tem valor universal. Parece que ela está gritando: “Ei! Não leiam esse livro! Eu não gostei e ninguém deve gostar dele. Eu já falei, esse livro é ruim. Escutem meu recado”.

É comum em concursos literários haver pessoas insatisfeitas, aqueles que não ganharam, logicamente. Algumas dessas pessoas, ao conhecer os poemas ganhadores, enviam e-mails dizendo: “O poema que ganhou o primeiro lugar não é bom”. E não adianta. O poema precisa ser bom para os jurados. Às vezes eu também não fico contente com um trabalho que conquista o primeiro lugar, mas fico em silêncio pensando que cada ser humano tem vivências e ideias diferentes e que é preciso aprender a respeitar a escolha dos outros.
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Isabel Furini é escritora e poeta premiada, autora de “,,, E OUTROS SILÊNCIOS” que foi lançado em 08 de julho/12.

Fonte:
http://livrodoescritor.blogspot.com/feeds/2000808209209305748/comments/default

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Nilto Maciel (Catedrais de Barro)

 O mal de certa gente afeita a redigir, na hora de lapidar seus contos e poemas, é torná-los quase enigmáticos. Não, não é certo usar esse “quase”. Na verdade, se convertem em signos indecifráveis, semelhantes a fórmulas, ao mesmo tempo cabalísticas e matemáticas. Conheço muitas dessas pessoas de aparência normal (nada de cabeças desproporcionais, antenas verdes plantadas na testa, como aqueles extraterrestres de Hollywood). São idênticas a nós: leem Machado de Assis, Fernando Pessoa, Graciliano Ramos e também Kafka e Joyce (em português). Vão a cinemas, teatros, ouvem música clássica, chorinho, Luís Gonzaga. Tomam chope, conhecem mulheres ou homens, gostam de feijoada, baião de dois e pizza. São quase (aqui cabe o advérbio) iguais aos outros seres humanos. Quando não chegam a tanto, se parecem com escritores.

        Ficcionistas novos (na idade) ou principiantes (alguns se iniciam na arte de escrever depois de maduros, aposentados, desiludidos dos prazeres da carne, do vinho, do queijo e dos doces) me mandam contos e poemas (devo agradecer aos céus por não produzirem aqueles romances enormes ou aquelas novelas intermináveis) e pedem opinião. Com enfado, corto aqui, podo ali, e, cansado, sugiro revisão gramatical. Também me tratam assim, com essa preocupação profilática, meus amigos mais adestrados no ofício de burilar (não escrevi burlar) frases, professores de gramática e língua portuguesa, todos de extrema erudição. Acato suas sugestões, embora nem sempre consiga efetuar a emundação proposta. Não me zango com eles; pelo contrário, sou-lhes grato. Não fossem eles, quantas barbaridades eu teria publicado!

Entretanto, os pimpolhos e os senhores a quem me referi se inflamam comigo. Uns deixam de me cumprimentar e saem por aí, zangadíssimos, a me achincalhar: sujeitinho metido a intelectual, escritorzinho sem cabedal, desconhecido até da própria família.  Até imagino suas infantilidades: rasgam, queimam, jogam fora os livros de mim recebidos em doação paternal.

Aprendi duas ou três lições de podadura verbal. Não apenas no uso da língua, mas também na elaboração de um estilo e escolha e tratamento dos temas. Não propagarei os nomes de meus mestres, como não informarei os apelidos dos meus insolentes “alunos”.

Uma delas diz respeito ao uso reiterado de vocábulos, na mesma frase, na mesma oração, no mesmo parágrafo, na mesma página. Em meus escritos encontrei milhares de “mas”, “porém”, “estava”, “era”, “que”, “pôs”, etc. Alertaram-me desse pecado meus amigos. Como não se trata de erro ortográfico (é só defeito de estilo), não dei importância ao carão. Além disso, até nos grandes criadores são encontradas repetências sucessivas de vocábulos e expressões. Vejamos este trecho de Dom Casmurro: “Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira”.  O termo “que” aparece onze vezes; “mas”, quatro vezes.

Além de evitar a repetição de vocábulos, devemos nos esquivar de expressões reproduzidas em demasia, transformadas em clichês, os ditados, sem falar nos termos chulos e da moda, as gírias, os jargões.

Assim também devemos nos comportar em relação às descrições desnecessárias, às narrações de gestos e atos insignificantes (para a trama), aos adjetivos que servem de mero adorno, sobretudo os qualificativos de ordem moral (especificamente no caso de narrador onisciente). O estilo se faz mais límpido e agradável, se nos dedicarmos a um trabalho de remoção de entulhos nos diálogos. Precisamos extirpar as falas inúteis, se nada acrescentam à compreensão da narrativa. Chamemos a isso de benfeitorias. Encurtar a fala do personagem tagarela é sempre salutar. Isso pode ser feito com a transposição do diálogo direto para o indireto e, ainda, com o não emprego dos desagradáveis verbos dicendi. A frase deve ser clara. Nada de deixar o leitor em dúvida. Ou dar a tudo duplo sentido, como a chamar o leitor de idiota.

Entretanto (volto ao início desta crônica), não é preciso ser purista, seguir as normas gramaticais ao pé da letra, escrever à maneira de Camões, Bernardes, Vieira, Castilho. Ou, pior ainda, aprimorar tanto o estilo, a frase, que o leitor terminará por nada entender ou por se enredar todo nas malhas de um fraseado excessivamente obscuro. Sentir-se-á enjoado de tanto malabarismo verbal, de tanto neologismo, de tanta invencionice. O pior de tudo, porém, se dá quando o escriba se imagina bem diferente de todos os outros. Acima dos demais, como se escrevesse para deuses, gênios ou seres imaginários. Objetiva ser enigmista, ininteligível, ilegível. Certamente tenciona se afastar dos recursos gramaticais e estilísticos, romper todas as barreiras, ser o anti-Machado, o anti-Graciliano, o anti-Pessoa. Corre de medo de frases assim: “Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu” (Dom Casmurro). Ou desse modo: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes (Vidas secas). Ou de Fernando Pessoa: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto” (“Aniversário”). Fogem da difícil simplicidade!

Portanto, nem desleixo, nem esmero demasiado. Um é pobre, feio, sem arte. O outro é similar ao falso rico: “tem” mansão (só a fachada), carro importado (alugado por uma semana), jatinho (emprestado). São catedrais de barro. E isso não é arte, é falsidade, é logro.

Fortaleza, 19/20 de fevereiro de 2013.

Fonte:
Literatura sem Fronteiras

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Olivaldo Junior (Aniversário…)

Aniversário. Pintura de Galina
Tento enganar o Tempo, mas ele não perde o bonde e me deixa a pé. O Tempo é demais para mim. Por isso, ao fazer um texto, ao compor um tema, engano o Tempo (e a mim mesmo) trancando-o nas letras e nos compassos a fim de tê-lo a qualquer hora. Ontem fiz aniversário. Sim, “eu tenho mais de vinte anos”, mas o Tempo ainda corre em minhas veias, ainda durmo em suas teias, sonhando encontros e cânticos para alguém.

Alguém mandou cartão pelos Correios. Mais alguém, um poema, que mo mandou por e-mail. O que me importa é que alguém telefonou e me deu parabéns ainda que longe. Longe, ou perto, alguém se lembrou de que fiz aniversário. Abraçaram-me. Ganhei abraços de braços que também querem outros. Outros não mandaram nada. Alguns não sabiam. De uns poucos, não sei dizer.

Outra noite, cá estava eu, junto do rádio, qual fazia quando criança, ouvindo música, pensando alto e voando baixo. Não consegui encontrar quem me acompanhasse no ato de tentar cantar. Mais coisas, meu bem, não falo. “Eu tenho mais de vinte anos”. Sonhos envelhecem como eu mesmo me envelheço a cada vez que me recordo: tudo é recorte, apenas penas que o vento inventa ao voar.

Parabéns, “menino que eu fui”! Você me fez vivo enquanto viveu! Ainda, num e noutro gole de música, muito breve, eu o vejo… Você, que sonha, mas é morto. O que se vê é um homem cujos versos tem tido indiferença e cuja música é cachaça que se deixa envelhecer (sonhos?), sem ninguém a ter provado.

Fontes:
O Autor

Pintuira obtida em http://www.chapelart.com.br


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Antonio Brás Constante (Tá Com Pressa? Então Se Vira e Come Cru)

A pressa move o mundo moderno. Move tão rápido que as vinte e quatro horas do dia já não são suficientes para que possamos cumprir com todas as nossas obrigações. Logo teremos um projeto no senado propondo que os dias passem a ter trinta horas. Afinal, se políticos já quiseram mudar o curso dos rios, porque não alterar o tempo também?

Claro que para mudar o calendário dessa forma haveria a necessidade de se suprimir o sábado. Em compensação o domingo passaria a ter trinta horas, e com um pouco de ajuda do marketing moderno (e com muita maionese) a população acabaria acreditando e engolindo que isso seria algo bom. Os dias ficariam estranhos, a noite invadiria o dia e vice-versa, mas o poder de adaptação do brasileiro (quem sabe se a ideia pega, vire até algo mundial) é incrível e deve se ajustar a este inconveniente fuso horário caótico.

Mas a pressa não mexe apenas com a criatividade de nossos políticos e escritores. Cada vez mais vivemos envolvidos em uma correria louca, e é por causa dessa correria que se criaram os lanches rápidos, as fotos instantâneas, as comidas prontas, as vias de trânsito rápido e (principalmente entre os famosos) os tais casamentos rápidos.

Fulano, astro do futebol, contrai núpcias com Beltrana (expressão estranha, parecida com “contrai doenças”). Passam a compartilhar de todas as alegrias e dissabores da vida de casados (com um mundo voyeur a observá-los). Ao final de poucos meses se separam (em determinados casos, em apenas poucos dias), sem maiores explicações.

Alguns podem achar que isto acontece porque as raízes religiosas dos noivos lhes impedem de simplesmente ficarem juntos sem um cerimonial milionário para sacramentar e divulgar essa união, pois eles encarariam a união sem o ato de se casar como uma obra pecaminosa, pesando em suas consciências. Após o casamento e toda superexposição ocasionada por ele, percebem então o erro que cometeram e resolvem desfazer a união. Isso em alguns casos acontece repetidas e repetidas vezes, em um eterno ciclo de tentativas e erros matrimoniais, que já há muito tempo alimentam a indústria de fuxicos e suas incontáveis mídias e revistas caras.

Para outros, o que existe é a necessidade do casamento como um compromisso, que mesmo não sendo muito duradouro, ao menos servirá para que no momento da perda, haja também os “ganhos”, oriundos da aquisição de parte do patrimônio de seu “ex” cônjuge, e assim os patos de nosso mundo são feitos de patos e acabam pagando o pato, fazendo-nos pensar que para alguns o matrimônio pode fortalecer o patrimônio.

O que assistimos com cada vez mais frequência, são “casamentos” alardeados aos quatro ventos por celebridades, que juram terem encontrado suas almas gêmeas. Dizem que sua união é fruto de um amor lindo como cristal e forte como uma rocha.

Na realidade essas metáforas acabam sendo divulgadas de forma errônea (talvez pela embriaguez causada pela paixão e toda aquela bebida servida nas festas de casamento). O certo seria dizer que essas relações são lindas como uma pedra e fortes como cristal. Ao primeiro choque se quebram em mil pedaços, restando apenas cacos, varridos para baixo da tal pedra que é colocada sobre o assunto.

Realmente estamos em uma época de pessoas apressadas. Mas principalmente agora, uma frase antiga se faz valer como verdade (com um pequeno adendo): “O apressado come cru… Mas paga o preço do assado”.

Fonte:
O Autor

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Aleilton Fonseca (Francisco Mangabeira e o Lirismo Trágico de Canudos)

Por que só é profunda e ilimitada
A noite que há no coração dos homens?
(Francisco Mangabeira)

O poema Tragédia épica (Guerra de Canudos), do poeta baiano Francisco Mangabeira, editado pela primeira vez em 1900, reaparece em 2010, na prestigiosa Coleção Austregésilo de Athayde da Academia Brasileira de Letras, como uma verdadeira relíquia literária. Nada justifica ter permanecido essa obra em inexplicável ostracismo durante tantas décadas. Trata-se de uma obra que, dada a sua singularidade, ocupa lugar de relevo no ciclo literário de Canudos, em cujo centro impera até hoje o livro Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902.

O poema de Mangabeira não é uma simples curiosidade literária. Seus versos narrativos e eloquentes certamente despertarão o interesse dos leitores e estudiosos contemporâneos, uma vez que emanam de uma voz lírica, piedosa e indignada, para denunciar o trágico episódio da história brasileira. O poeta pensou em dedicar o livro à memória das vítimas ou aos companheiros de expedição, registrando que esta seria: “uma boa maneira de exprimir a minha repulsa àquele monstruoso pesadelo da Pátria”. Publicado no calor das reverberações da fatídica campanha militar de Canudos, seus relatos da guerra, convertidos em vinte cantos marcados por um lirismo de acento trágico, surpreendem e instigam o leitor a refletir e a fazer comparações acerca do tema do consagrado livro de Euclides da Cunha e de tantas outras obras.

O médico Francisco Cavalcanti Mangabeira nasceu em Salvador, em 8 de fevereiro de 1879, filho de uma ilustre família baiana, irmão do político e acadêmico da ABL e da Academia de Letras da Bahia, Octavio Mangabeira, que foi inclusive governador do estado.[1] Como poeta, Francisco Mangabeira estreou com o livro de poemas simbolistas Hostiário (Salvador, 1898) ao qual se seguiram Tragédia épica (Salvador, 1900), Visões de Santa Teresa, em Prosa, (Porto, Portugal, 1896), e, já em edições póstumas, Últimas poesias (Salvador, 1906) e Poesias (Rio de Janeiro, 1928), reunindo seus três livros do gênero.

Mangabeira, ainda estudante da famosa Faculdade de Medicina da Bahia, contava18 anos quando se alistou como voluntário e seguiu viagem, em 27 de julho de 1897, para prestar serviços médicos, nas fileiras da Quarta Expedição militar contra Canudos. Após a penosa jornada da guerra, o poeta retorna a Salvador, em 23 de outubro, e conclui os seus estudos, diplomando-se em 18 de dezembro do mesmo ano. Três meses depois seguiu para o Maranhão, para trabalhar como médico na Companhia Maranhense, daí seguindo para o Amazonas em missão oficial. Fez breve retorno a Salvador em 1902, voltando ao Norte 4 meses depois, para outra jornada na selva. Idealista, engaja-se em novas ações patrióticas viajando ao Acre, onde participa da revolução de Plácido de Castro, que teve o objetivo de incorporar aquele território ao Brasil. De saúde frágil, acaba contraindo a malária e uma rara enfermidade de pele. Debilitado pelas doenças, é levado para Manaus em busca de tratamento. Ao sentir a extrema gravidade de seu estado, resolve retornar à terra natal. Entretanto, em 27 de janeiro de 1904, o poeta falece, a bordo do vapor S. Salvador, na rota situada entre Belém e S. Luis, sendo sepultado no cemitério da capital maranhense.

Ao desaparecer, com apenas 25 anos de idade, longe dos centros literários, Mangabeira foi imediata e injustamente esquecido. Sua obra não teve voga suficiente para afirmar seu nome de forma mais ampla. De fato, ele não poderia tornar-se um simbolista de referência, porque, embora essencialmente lírico, era de certa forma um poeta híbrido. Convertido aos protocolos correntes do Simbolismo de então, era ainda assente aos fortes resquícios românticos, tão caros aos poetas baianos surgidos após Castro Alves, a grande referência dos novos. 

 O poeta teve, no entanto, uma boa acolhida por parte de críticos importantes. Brito Broca[2] registra-o como um dos poetas simbolistas da revista baiana Nova Cruzada, ao lado de Pedro Kilkerry e Carlos Chiachio, este último figura de proa do modernismo baiano e mentor da revista Arco & Flexa (1928/29). De acordo com Raimundo de Menezes, “sua poesia revela nitidamente influência simbolista”, mais precisamente em Hostiário. Já em Tragédia épica o acento íntimo é romântico, no tom de um romantismo às vezes devoto e, sobretudo, social, ao estilo castroalvino, quando se lança a descrever e a lamentar os sofrimentos dantescos dos soldados e dos canudenses, em versos retóricos e altissonantes.

O crítico Andrade Muricy destaca-o no Panorama do movimento simbolista brasileiro[3], considerando-o, em sua época, “o poeta do Norte de mais alevantado e vigoroso estro, depois de Castro Alves”. Segundo Muricy, “nenhum dos poetas simbolistas brasileiros teve existência tão agitada e heróica. Aos 25 anos já vivera intensa e gloriosamente”, o que faz lembrar a curta e agitada trajetória do autor de “Vozes d’África” e “Navio negreiro”. Aponta ainda Muricy, nos versos de Hostiário, a “fulgurante virtuosidade e uma movimentação brilhante, saudável, um pouco exterior, pouco frequente em nosso simbolismo.” O crítico destaca alguns poemas memoráveis do autor baiano, confirmando “o mérito desse notável poeta, de expressão clara, luminosa e viril”.

O historiador e acadêmico da ABL, Pedro Calmon, registra em sua História da literatura baiana que o poeta era detentor de “poderoso talento trabalhado por duas profundas emoções cívicas, a guerra de Canudos, a que assistiu como estudante de medicina, e a campanha do Acre, seu derradeiro sacrifício”. O historiador destaca ainda a sua “esplêndida espontaneidade”, que o tornava comparável aos maiores poetas. E assim conclui Calmon: “Sacudia-lhe o verso uma surpreendente energia, entre pessimista e heróica, num conjunto impressionante de amargura e força que lembravam as decepções da juventude tocada pelo infortúnio, das cenas e das almas do seu convívio, e o destino adverso, com que lutava.[4] Nesse aspecto, Mangabeira, jovem poeta e acadêmico, de curta e agitada trajetória de vida, também guarda certa semelhança com Castro Alves, uma forte influência quanto ao acento retórico de uma poesia afeita à declamação e à tribuna.

Numa avaliação recente, Massaud Moisés afirma que o poeta baiano “perfilhou o Simbolismo movido por uma espécie de identificação substancial. Soube, contudo, enriquecer os impulsos de temperamento com um caráter heróico, que a sua existência testemunha criando uma poesia vigorosa, de imagens surpreendentes, insólitas, onde repercute o exemplo baudelairiano e se notam traços antecipadores de Augusto dos Anjos”. Considera ainda que “a Tragédia épica, sua obra-prima em torno da guerra de Canudos, parece simbolizar, a partir do título, a dicotomia lírico-épica que lhe sustentava a cosmovisão.”[5]

Com efeito, são apreciações críticas muito positivas, que demonstram a necessidade de se fazer emergir a obra do poeta para que seja avaliada em seu conjunto, de modo a se definir melhor o seu lugar no panorama geral da poesia brasileira.

Ao engajar-se nas fileiras do Exército republicano, Francisco Mangabeira marchou para Canudos, numa missão paradoxal aos objetivos das tropas. Ele tinha consciência dessa condição, ao registrar, na abertura do seu livro, que o grupo de jovens voluntários cumpria, segundo suas palavras, uma “missão da Paz, da Caridade e do Amor”. Ao prestar serviço médico nos hospitais de sangue improvisados, estava empenhado em salvar vidas e minorar os sofrimentos dos homens grave ou mortalmente feridos. Como tal, foi um espectador angustiado das batalhas, vendo de perto a agonia dos moribundos. De longe, era um observador consternado com o massacre que se abatia sobre o arraial de Belo Monte. Seus poemas incorporam situações, vivências e sentimentos semelhantes aos que se observam na escrita de outros autores da época, como Manuel Benício e o próprio Euclides da Cunha. De olhos sensíveis, eles testemunharam os fatos e reagiram conforme suas convicções e percepções particulares, mas sempre com a consciência de que estavam diante de uma grande tragédia.

Em sua missão voluntária, Mangabeira seguiu sertão adentro, ao lado de seus colegas acadêmicos de medicina, entre os quais o seu grande amigo Joaquim Pedreira. Acometido de enfermidades, Pedreira veio a falecer antes do final do conflito, aos 18 anos de idade. Esse fato marcou profundamente o poeta, motivando-o a escrever uma espécie de nênia ao amigo, que constitui o canto IX, intitulado “Dolor”. Pelo mesmo motivo, Mangabeira resolveu iniciar o livro com a “Carta a um morto”. A carta registra, em tom elegíaco, sua comoção diante da morte de Joaquim Pedreira, durante aquela “assombrosa epopeia de valor que se desenrolou no sertão de nossa terra”. O seu enternecimento permeia todo o texto, acentuando-se, com uma ironia doída, em algumas das passagens em que dialoga com o amigo desaparecido, lamentando sua má sorte e o rápido esquecimento que então já recobria a carnificina de Canudos. O poeta declara, irônico e angustiado: “Se converso com um morto sobre uma desgraça da nossa Pátria, é porque os vivos parecem não ligar importância a essas futilidades”.

Os vinte cantos que compõem a Tragédia épica se seguem num movimento de contraponto, em que ora os soldados ora os sertanejos assomam à ribalta da arena poética, numa espécie de concerto de vozes e perspectivas díspares, – desiguais, em luta encarniçada –, mas consoantes, na partitura da trama – como se fossem atores de uma peça trágica.  No poema de abertura, intitulado “Adeus”, o poeta realça o sentimento e o moral dos soldados, no momento do embarque para o sertão, quando deixam a cidade, os lares, os amores e as famílias, despedindo-se “…desta querida terra/ para onde talvez não voltem nunca mais”. O canto delineia-se como um ritual de despedida, à vista da luta sangrenta que iam travar contra os canudenses. A exaltação ao heroísmo dos soldados reverbera nos versos. Eles são vistos de forma idealizada, não como um exército armado, mas como homens destemidos que desafiam a morte por força do destino. Afirma o poeta que: Vão em busca da glória ou, então, da sepultura / Este bando de herois, homens feitos leões”. Trata-se de um lamento perpassado de langor, pois não é o triunfo, mas sobretudo a morte que os espreita no sertão inóspito. Na partida, a bandeira, ao tremular: “Parece abençoar os bravos e ir lançando / Um adeus prolongado à triste multidão”.

Todos os vinte cantos suscitam interesse para um estudo de composição, pois podem ser analisados como partes que constituem o poema como um todo, fixando sua unidade de tema e de tonalidade. Os cantos obedecem a uma lógica narrativa que seleciona os pontos cruciais do assunto, confrontando posições, circunstâncias, diferenças e vicissitudes da guerra, ao tempo em que vai revelando os sentimentos e as angústias dos atores em luta. Há um canto que encerra uma curiosidade, aliás, revelada pelo próprio Mangabeira, em nota explicativa, ao final do livro. Trata-se do poema “Assalto à artilharia”, que o poeta define como “uma espécie de tradução de uma belíssima carta que o Dr. Euclides da Cunha escreveu de Canudos para o Estado de S. Paulo, onde este meu saudoso amigo derramou tanta luz em belíssimas e magistrais correspondências, que, publicadas em livro, lhe garantiriam um triunfo literário”. Dessa forma, Mangabeira já vaticinava a glória do livro vingador que Euclides lançaria dois anos mais tarde.

Ao longo da Tragédia épica, a maior focalização recai nos soldados, atores às vezes individualizados, como se observa nos cantos “Os três oficiais”, “A carta do soldado” e “A agonia do ferido”, por exemplo. A perspectiva do eu lírico narrador, como não poderia deixar de ser, traduz um ângulo de visão litorâneo, ponto de onde Mangabeira parte, engajado na campanha, à retaguarda das fileiras militares. Por outro lado, o olhar que lança sobre os canudenses é agudo ao demonstrar as dimensões desumanas da tragédia. Os sertanejos são vistos sempre como o outro, o adversário “sempre raivoso, impávido e insubmisso”. Eram eles “aquela gente bruta” que assombra o poeta pela capacidade de resistência e pelos horrores que sofre e enfrenta a cada ataque das tropas. Assim, o que mais aproxima o eu lírico dos sertanejos é a compaixão de seu olhar, ao descrever e lamentar a desgraça de crianças, mulheres e homens cruelmente dizimados pelos ataques dos soldados.

No canto IV, “A reza”, o eu lírico realça o contraste entre a paz do reduto, no momento da prece, em que “casa-se a voz dos sinos à voz das ladainhas”, em face do fogo da artilharia contra a igreja do arraial. Neste momento, os sertanejos: “Recordam os cristãos das mais antigas eras / Que, ao fogo sideral de crença verdadeira, / Afrontavam com calma os ímpetos das feras / Ou morriam a rir dentro de uma fogueira”.  Nesse diapasão, o canto XII, “O combate”, descreve os horrores da batalha final, em que dor e morte se tornam imagens dominantes. O poeta alinha os lances da luta sangrenta e desigual, em proveito de sua retórica descritiva, cujo efeito é a visão infernal da crueldade. O termo da luta é um quadro da natureza desolada: “O combate acabou, quando na imensidade / A lua apareceu triste como a orfandade”. Seguem-se não menos comiserativos os cantos intitulados “Os prisioneiros”, O incêndio, “Crianças prisioneiras” e “A caravana maldita”, acentuando o drama dos sertanejos vencidos, nos seus derradeiros estertores, e, finalmente, como séquito de prisioneiros que: “Sofrem penas, que só o inferno há de contê-las / Atravessam o céu, claro como um sorriso, / Era um cortejo louro, / Demandando o caminho azul do paraíso…”.

Os leitores e estudiosos acostumaram-se a ler e a sentir a tragédia canudense, encenada às margens do rio Vaza-Barris, através do admirável estilo euclidiano, com sua retórica retumbante, sua precisão de detalhes, sua análise incisiva, sua denúncia mordaz. Os sertões, em sua feição de documento, análise e monumento literário, ocupa o centro das atenções há mais de um século, deixando à sombra as demais obras que percorreram, cada qual à sua maneira, as mesmas trilhas esturricadas do sertão baiano. De fato, ao longo de quase onze décadas, o tratado euclidiano é o grande marco, em torno do qual continuam emergindo livros antigos e novos, para orbitar em sua auréola, como partes do grande arquitexto da Guerra de Canudos, que se compõe e recompõe, a cada texto novo que se escreve e a cada obra antiga que se reedita.

O livro de Mangabeira faz parte dessa enciclopédia canudense, ocupando um lugar relevante na coleção de registros e representações dos dramas pessoais e coletivos, das circunstâncias e vicissitudes da guerra. No seu poema, manifesta-se a voz enternecida de um homem que testemunhou a guerra e viveu na pele as motivações que o levaram a escrever sua denúncia. Sua poesia é vazada numa linguagem peculiar, viva e acessível, que demonstra seus traços de época e inscreve-se também como um estilo híbrido, entre o simbolismo da concepção formal e o desenho retórico dos quadros, de feição romântica. Capta-se na leitura a voz embargada do jovem poeta marcado pela vida, que empunha a pena para um acerto de contas com a história na qual se envolveu. Do alto das fileiras do Exército, o médico Mangabeira não enxergou simplesmente o inimigo a aniquilar, mas teve mira mais ampla, assinalando uma percepção lírica e agônica da condição humana dos sertanejos, vistos como sujeitos de uma saga, em defesa da sobrevivência, em sua espantosa resistência à destruição militar.

Em alguns pontos, a trajetória de Francisco Mangabeira se assemelha muito à de Euclides da Cunha. Ambos viveram intensamente o drama de Canudos, pisando no solo ensaguentado dos sertões baianos. Ali estiveram, em missões diferentes, porém intrínsecas à guerra. Perplexos, em meio aos tiroteios, um médico e o outro jornalista, ambos testemunharam diversos lances da tragédia. E logo assumiram o espírito de um dever social a cumprir, denunciando a guerra como um crime. Idealistas, mais tarde rumaram para as regiões inóspitas do Norte do país, engajados em ações de interesse político e social. Ambos caíram gravemente enfermos. E faleceram precocemente. Mangabeira, em plena juventude, aos 25 anos; Euclides, aos 43 anos, mal transposto o portal da maturidade. Morreram em circunstâncias diferentes, é certo; mas igualmente trágicas.

De certa maneira, pode-se considerar que a Tragédia épica representa na poesia aquilo que Os sertões representam na prosa brasileira. O poeta baiano, tal como Euclides da Cunha, caracteriza os sertanejos como jagunços ferozes, fanáticos, em situação de atraso e pobreza. Em contrapartida, também como o ensaísta fluminense, faz em seu poema elegíaco uma denúncia veemente contra a guerra, que considera fruto da inépcia do governo republicano, “onde todos, soldados e fanáticos, foram igualmente vítimas do mais lamentável erro político”.

Francisco Mangabeira teve o destino dos grandes. Como Gregório de Mattos, cantou sua terra e morreu longe dela, acometido de febre terçã. Como Castro Alves, extraiu o lirismo das próprias vivências e feneceu na flor da idade. Como Euclides da Cunha, percorreu os sertões e o Norte do país em missões de interesse público. Tal como eles, Mangabeira marcou sua escrita com uma profunda sensibilidade social, fazendo-a instrumento de ideias, sem com isso perder a grandeza. Como o autor de Os sertões, horrorizou-se e encantou-se com a epopeia de Canudos, legando à posteridade um protesto sincero, em vinte cantos líricos que ecoam a forte impressão de uma experiência real. Que os leitores de hoje, oxalá despojados de incertos ismos e preconceitos do passado, reabilitem e apreciem sua poesia, devolvendo-a à luz dos dias atuais.

(Apresentação do livro Tragédia épica (Guerra de Canudos), de Francisco Mangabeira.
Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2010.
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Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.

Notas
[1] BRASIL, Assis (org., int.e no.). A poesia baiana no século XX – Antologia. Rio de Janeiro: Imago, 1999, p. 41.
[2] BROCA, Brito. A vida literária no Brasil. 1900. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
[3] MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3.ed. ver e au. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 769-777.
[4] CALMON, Pedro. História da literatura baiana. Coleção Documentos Brasileiros, v. 62. São Paulo: José Olympio, 1949, p.212.
[5] MOISÉS, Massaud.  História da literatura brasileira. 3 v., vol. II-Realismo e Simbolismo. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 307.

Fonte:
http://www.academiadeletrasdabahia.org.br/Artigos/mangabeira.html

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Francisco José Pessoa (Escrevo…)

Escrevo sim, para completar o pouco de tempo que me resta, tentando enriquecer-me espiritualmente, pois a fortuna material faria  pesar ainda mais meu caixão. E vai ali um pobre rico, que soube brincar com a vida, tornando-a um carrinho de lata de doce de goiabada, Real, por sinal, a rolar calçadas íngremes num desafio constante ao subir e descer coxias.

Alimento-me com o bater dos teclados, orquestra sinfônica das minhas várias noites mal ou bem dormidas. Sorvo o néctar dos sábios, mesmo sabendo que sou incapaz de assimilá-lo,  mas tento outra vez por ser teimoso. E no ir e vir das minhas falanges , apertando cada tecla como num amor de batráquio, satisfaço-me e chego ao orgasmo falso dos falsos escritores. Assim me vejo no meu crítico espelho.

Quanto de devo ó ciência, pois poupaste meu tempo em corrigir meus erros ortográficos, bem como de desgastar as páginas já amareladas e carcomidas do meu Aurélio. Mas escrevo de modo um tanto compulsivo, como no afã do asmático que traga o ar que lhe rodeia, fazendo da eternidade aquele momento. Que bom seria se eu fosse poeta, traduzindo nas minhas linhas o cotidiano, o que a vida me dá e o que tiro dela… seria uma comédia própria não dos teatros da fifth avenue, mas dos circos que percorrem o sertão do nordeste, com suas lonas remendadas, castigadas por um sol sempre presente e pela chuva que acanhadamente, às vezes aparece.

Quão bom é brincar de escrever pois, as idéias e os cenários que passam uns após outros nos transportam para o vale dos sonhos aonde os homens se amam e a paz é a mediadora dos entreveros que não existem. Onde a graúna no seu canto mavioso brinca com os acordes, liberta em pleno vôo. Onde o crocodilo abre seu bocão que aterroriza, mas verte lágrimas com um olhar piedoso. Onde o beija-flor no seu incessante bater de asas, desfiando a lei da gravidade, suga o néctar das rosas, papoulas e margaridas que harmoniosamente compõem e fazem o equilíbrio crômico do meu jardim, por que não meu éden?

Escrevo, escrevo sim, para eternizar para os meus pares o meu tísico pensamento, a minha às vezes tão comentada e criticada maneira de ser, que com certeza e, assino embaixo, nunca teve um tempero de maldade ou falsidade, pois, escrevendo, rumino um pouco do meu eu que, quisera Deus, fosse um alívio para os que sofrem mais que eu.

Vida, minha vida, como fresco contigo minha quenga virgem.

Fonte:
O Autor

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Eduardo Quive (A Índica Forma de Dar um Beijo ao Mar por Intermédio de um Poema)

Para Eduardo White, esse poeta que amou sobre o Índico

Índico. Cidade mítica escondida no mar. Uma cidade onde escoram as mãos dos deuses. Este nosso mar não tem Deus. Lá do longe, dos pés molhados de uma criança, nasce o Ocidente. É tudo uma viagem perdida. Não há barcos que nos levem a tão longe! Porém há um olhar nas janelas que se abrem. Há uma distância transparente, para onde o homem puxa o barco. As cordas nos levarão até qualquer parte. Penduradas no pescoço dão-nos a beleza da morte e o sabor da coragem. Penduradas nas mãos firmes e negras, tem outro sentido. Já nos foi o cárcere, agora há muitas milhas por alcançar. O sol assa as costas, mas na costa não há vida, não há Índico. Das areias por onde a infância passa velozmente, vêm a mesma sede dos deuses de comer camarão ou de comer as gentes. Mas lá, no Índico, há chuva e há vida. Sathana ou Xikwembus. São todos nossos. O olhar infinito, agudiza a sede do Atlântico e do Pacífico, mas por onde passam os navios há caminhos subterrâneos. Os pássaros nos levarão pelos céus. Do chão a barco a vela. Velaremos até chegar ao azul preto e branco das cores do mundo. O desejo à infinitude é maior para as areias que não se acabam. Iremos. Iremos. Iremos da Ka Tembe, da Costa do Sol, para Mussulo à Iracema, passando pelo Sal e Santana à Praia do Futuro. Este Índico saudoso nos levará, de peitos fermentados, com sal na mão e manga verde na boca. Da Ilha de Moçambique olharemos para longe e não mais veremos as luzes. Veremos águas e mais águas. O Norte é mais distante de perto que de longe. E os pássaros nos levam, pelos caminhos podres dos navios, estes barcos fartos de vida na costa.
________________________________
Sathana – diabo, satanás
Xikwembus – deuses, espíritos.
Ka Tembe – nome de um distrito da capital moçambicana Maputo com uma praia do mesmo nome.
Costa do Sol – nome de uma praia da cidade de Maputo.
Mussulo – ilha angolana com uma praia do mesmo nome.
Iracema – nome de uma praia da cidade de Fortaleza, Brasil.
Praia do Futuro – Fortaleza, Brasil.
Sal – Ilha do Sal em Cabo Verde.
Santana – Ilha de Santana, São Tomé e Príncipe.

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*Eduardo Quive é escritor e jornalista. Editor da revista “Literatas – Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona” do Movimento Literário Kuphaluxa, agremiação de que é um dos fundadores. Correspondente em Moçambique do jornal angolano de artes e cultura “Cultura”. O seu primeiro livro de poesia intitula-se “Lágrimas da Vida Sorriso da Morte” (FUNDAC, 2012).

Fonte:
O Autor

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Marta Barcellos (Para Viver de Literatura)

Libreria Fogola Pisa
 Minha amiga tem um sonho. Nova ainda, ela é cheia de sonhos. No entanto, já passou da idade de revelá-los – teme parecer ingênua. Pois minha amiga me faz perguntas sobre o mestrado em literatura que estou cursando, o que pretendo com ele, se minha carreira no jornalismo ajudou… Ajudou a quê? Ah, ela acha bacana hoje eu viver de escrever. Respondo que não é bem assim, que continuo sendo jornalista, e devo muito desse “ganhar a vida” ao jornalismo econômico. Minha amiga, claro, é poeta, e acha economia uma chatice.

 O que ela quer saber, depois de ter começado e largado a faculdade errada, é como se faz para viver de literatura. No fundo, este é o maior de seus sonhos. Também tem o da pousada na praia – e quem não passou por este…

 Achei que talvez pudesse ajudá-la. Nos últimos anos venho formando uma imagem do tal sistema literário: fiz algumas matérias, conheci escritores e pessoas ligadas ao mercado, passei a frequentar (poucos) eventos literários e ando pesquisando questões para o mestrado. Às vezes encontro alguém e penso: veja só, este vive de literatura. Como sonha minha amiga. Depois descubro que não é bem assim. O sustento vem de outra fonte.

 Minha amiga, é verdade, tem algum apoio da família (em troca do quê?). Mas não é rica, do tipo herdeira. Em outros tempos, nos tempos em que eu tinha a idade dela, eu diria que deixasse de besteira e escolhesse uma profissão/trabalho para garantir sua independência financeira (e existe outra?).

 Ah, a independência. Este sim, o meu sonho da juventude. Que os interesses culturais e artísticos se tornassem hobby, e somente quando houvesse tempo e condições para tal – era o que eu pensava. Importante mesmo era sair da casa dos pais (para quê, agora?), ter um salário, pagar as contas. Sobrando, compravam-se livros e discos. Um dia, quem sabe, uma casa de campo. Nela habitaria o sonho de escrever um livro, ou uma peça teatral – na aposentadoria…

 Este Brasil onde não eram permitidos sonhos, vale ressaltar, era outro. Não tinha dado certo, jamais daria. Éramos todos sobreviventes da Ditadura e da inflação, e se estabilidade e futuro existissem, eles estariam num bom emprego no Banco do Brasil, como ainda pensa Felipão. Aliás, o técnico da seleção brasileira nem estava tão desatualizado assim em sua gafe – basta olhar em volta quanta gente ainda estuda para concurso público sem pensar em prazer ou vocação.

 Mas minha amiga, como eu ia dizendo, é sonhadora, e nasceu neste Brasil em transição (para onde?), portanto não cogita desperdiçar sua criatividade e sua força de trabalho olhando o relógio de uma repartição. Observo a realidade à minha volta, as últimas notícias e indicadores econômicos, e acredito que ela tenha motivos para pensar assim. Se algo chamado Vale Cultura foi aprovado pelo governo federal e a economia criativa floresce no Rio de Janeiro, por que não daria para viver de arte hoje? Ou isso ainda seria exceção?

 Foi assim que me flagrei pesquisando e pensando em conselhos para minha amiga, e para pessoas com o perfil e a idade dela. Observei e conversei com escritores, professores, gente que vive, se não da literatura, em torno dela. Gente, porém, que, quando indagada, prefere desaconselhar o seu caminho. Ah, um caminho difícil, dizem. Para persistentes. Para sofredores. Mas eu já ouvi esse papo no jornalismo, e dou um desconto. Há uma necessidade de valorizar o que se conquistou – no fundo, uma vaidade.

 Mesmo assim, algumas respostas foram surgindo. Com doses esparsas de cinismo e amargura, é verdade, mas caminhos foram apontados. Vamos a eles:

 1) Além de escrever, assuma como bandeira a promoção da literatura nacional, crie programas de leitura ou outras formas de incentivo capazes de atrair patrocínios e, principalmente, verbas públicas.

 2) Depois de publicar alguns livros, ministre oficinas para aspirantes a escritores que sonham viver de literatura.

 3) Migre para a literatura infanto-juvenil.

 4) Seja experimental, ganhe prêmios, aprimore sua performance em público e passe a ser remunerado para participar de eventos literários.

 5) Deixe a implicância e a preguiça de lado, invista numa carreira acadêmica na área de letras e concilie escrever literatura com a tarefa de preencher o currículo Lattes.

 6) Seja flexível em relação a gêneros. Deixar os contos e os poemas de lado para escrever para televisão não significa que você se vendeu.

 7) Deixe a implicância e a preguiça de lado, estude contabilidade e encare um concurso público. Não é de hoje que bons escritores são também funcionários com estabilidade e salário garantidos pelo estado.

 8) Tenha uma editora, voltada para o mercado ou para a autopublicação de escritores que sonham um dia viver de literatura.

 9) Além de escritor, seja crítico literário, depois de desenvolver uma boa argumentação sobre como é possível conciliar as duas funções eticamente.

 10) Tenha outra profissão, uma “pra valer”. Moacyr Scliar, 80 livros publicados, na hora de preencher o formulário do hotel, declarava como profissão: médico. Era verdade.

Rio de Janeiro, 7/2/2013

Fonte:
Digestivo Cultural

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Machado de Assis (Críticas Literárias: Castro Alves)

[RJ, 29 fev. 1868.]

EXMO. SR. – É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exª, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz intróito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre.

Mas se isto me entusiasma, outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança, que é ao mesmo tempoum motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão inútil fora dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de V. Ex.ª, mais do que uma animação generosa. A tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra eloqüente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido.

Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica fui movido pela idéia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha ao espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como V. Ex.ª, sabem exprimir sentimentos e idéias na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam opor um dique à torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se antolha remédio ao mal. Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: e a este já não era a inteligência que se expunha, era o caráter. Compreende V.Exª. que, onde a crítica não é instituição formada e assentada, a análise literária tem de lutar contra esse entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se afetos. Desfiguram-se os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da imparcialidade; chama-se antipatia o que é consciência.

Fosse esse, porém, o único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no ânimo de quem põe acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da sociedade, porque a boa fama das musas o é também.

Cansados de ouvir chamar bela à poesia, os novos atenienses resolveram bani-la da república. O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso para limpar este presepe de Augias?

Eu bem sei que no Brasil, como fora dele, severos espíritos protestam com o trabalho e a lição contra esse estado de coisas; tal é, porem, a feição geral da situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel; contudo, entendia e entendo – adotando a bela definição do poeta que V. Ex.ª. dá em sua carta – que há para o cidadão da arte e do belo deveres imprescritíveis, e que, quando uma tendência do espírito o impele para certa ordem de atividade, é sua obrigação prestar esse serviço às letras.

Em todo o caso não tive imitadores. Tive um antecessor ilustre. apto para este árduo mister, erudito e profundo, que teria prosseguido no caminho das suas estréias, se a imaginação possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois nos deu. Será preciso acrescentar que aludo a V. Ex.ª?

Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever. cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de V. Ex.ª não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito. Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. Não tive, como V. Ex.ª, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa Tijuca, que V. Ex.ª. chama de um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano. Em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos no carnaval.

No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão.

Ouvi o Gonzaga e algumas poesias.

V. Ex.ª. já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta. Não podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista – no dizer, nas idéias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode.

Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas.

O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra. que me demorava os olhos em cada página do volume.

O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Pindaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul.

Esta exuberância, que V. Ex.ª. com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje. Estreando no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz. o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece e do Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espartanos. O insucesso fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washington. Condenouos a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica.

Condensar estas idéias em uma obra dramática, transportar para a cena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro Alves, e não pode esquecer que, se o intuito era nobre, o cometimento era grave. O talento do poeta superou a dificuldade; com uma sagacidade , que eu admiro em tão verdes anos, tratou a história e a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel, nem esta de copista. Os que, como V. Ex.a, conhecem esta aliança. hão de avaliar esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves.

A escolha de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circunstância dos seus legendário amores, de que é história aquela famosa Marília de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa circunstância. Do processo resulta que o cantor de Marília era tido por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e letras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a Pena capital. Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma atividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o nome ligado ao da tentativa de Minas.

Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe propõe a fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso, apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velho Horário corneiliano; entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto.

O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se a crítica a não entender o poeta.

Quem vê o Tiradentes do drama não reconhece logo aquele conjurado impaciente e ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na forca e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo ali, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já na cabeça a idéia do suicídio, que praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdades? Não é aquele o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o Padre Carlos? Em tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A história nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou aquela exageração artística, necessária ao teatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres essenciais de uma época ou de um acontecimento.

Concordo que a ação parece as vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas esses raríssimos casos são compensados pela influência do princípio contrário em toda a peça. O vigor dos caracteres pedia o vigor da ação; ela é vigorosa e interessante em todo o livro; patética no último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que pode conter as incertezas de um talento Juvenil, mas que é com certeza uma invejável estréia. Nesta rápida exposição das minhas impressões, vê V. Ex.ª que alguma coisa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui a figura do preto Luís. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a idéia da abolição. Luís representa o elemento escravo. Contudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tomar mais odiosa a situação do escravo pela luta entre a natureza e o fato social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da liberdade, a restituição da filha é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois.

Por isso, quando no terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem. Cumpre mencionar outras situações igualmente belas.

Entra nesse número a cena da prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o reparo a que V. Ex.ª aludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnância para vencer os obstáculos? Em todo o caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura.

As cenas amorosas são escritas com paixão; as palavras saem naturalmente de uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro, quando já a justiça está prestes a vir separar os dois amantes! Dir-se-á que eu só recomendo belezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho mais duas ou três imagens que me não parecem felizes; e uma ou outra locução susceptível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as demasias do estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a mencioná-las; mas como não aceitar esta prodigalidade de hoje, que pode ser a sábia economia de amanhã?

Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não foi só à lição do fato, misturou talvez com essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram antipatias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o passado.

Tais foram as impressões que me deixou este drama viril, estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A mão é inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência. Estudou e estuda; e um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a não na consciência. Está moço, tem um belo futuro diante de si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos que devem trabalhar para restaurar o império das musas.

O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra? É um ponto de interrogação que há de ter surgido no espírito de V. Ex.ª. Contra estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um obstáculo, e V. Ex.ª o sabe também: é a conspiração da indiferença. Mas a perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim. Quanto a V. Ex.ª, respirando nos degraus da
nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo. Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem V. Ex.ª um aliado invencível: é a conspiração da posteridade.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

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Eduardo Quive (A Relação Entre o Tempo e o Espaço em “O Sol Nas Feridas” de Ronaldo Cagiano)

Apenas o poeta sabe a dor do parto da palavra. Há, na verdade, dores que só o poeta as conhece. Mas há dores maiores, dores de carne, o fulgor do que a sociedade vive e padece.

Isso remete-nos de imediato à uma dor física, eis porque Ronaldo Cagiano coloca-nos estendidos ao sol para assarmos e fermentarmos as dores que as grandes metrópoles enfrentam que sob caiem directamente ao cidadão.

“O Sol nas Feridas” em 63 poemas reunidos, entre a lírica amorosa e a crítica social, é a solução vista por muitos olhos, mas que só um poeta embondeiro, maduro e vivido sabe justificar a dor do corpo com a sagacidade que o assunto exige.

Lembrar Maria Teresa Horta nestas alturas pode-nos ser uma saída mais eficaz para justificar o sentido desta análise. De acordo com a escritora portuguesa, a escrita e a vida caminham juntas “tem que viver para se ser escritor” – diz ela.

Em Moçambique, de onde me chegou o livro enviado atrevidamente pelo autor, sem temer os oceanos que o mesmo atravessaria desde o Brasil, há um outro embondeiro, Suleiman Cassamo, autor do clássico e símbolo nacional “O Regresso do Morto”, tornar-se-ia cúmplice da poesia deste “velho poeta”, pois disse uma vez que “é preciso ter vivido para escrever”.

É o escritor, o poeta, e os seus devaneios; é o poeta, o cidadão e as razões da sua poesia missionária, não alheia aos mistérios do corpo. Ronaldo Cagiano sabe ser o que tem que ser na indagação e no desassossego a que a sina poética nos remete. Com a devida serenidade é lírico, cuida de si e dos seus sentimentos, mas com a incompreensão dos tempos é externo, exógeno, sente no lugar dos outros refém da engajada posição do poeta zelador e consciente de que “o ofício da verdade é proibido pôr algemas nas palavras”. Liberta-se e fala de sangue, abismos, precipícios, a gênese e o fim.

Reinaldo Cagiano, este meu desconhecido poeta “conta” na sua poesia convulsiva em “O Sol nas Feridas” que “entre a fuga/e os deslizes/ o poema vinga”, mas mais do que esse olhar atento em “Gênese”, o encontramos a consciência e a saudade de algum tempo ao olhar já nós, atentamente o poema “Escamas”:

(…) A vida, em suas estranhas latitudes,
território lisérgico onde dormiam meus fantasmas
já não é mais o cemitério onde cultivo desilusões

hoje, planeta do qual não me escondo,
             catapulta-me sobre os abismos.

A poesia de Cagiano, com certeza não se sairá sem se indagar: como esconder as feridas do sol, quando o meio mundo desconhece, o seu próprio paradeiro? E a poesia é chamada a tão estremo papel de contar o que todos sabem.  A essa dura tarefa cabe ao poeta que poderá não ser compreendido.
Sobre esse aspecto, Reynaldo Damazio já chama atenção na sua nota de leitura no livro ao dizer que “ o sentimento de impermanência e de precariedade ronda a poesia e exige do poeta uma tomada de posição, no sentido de enfrentamento das verdades provisórias.” É essa a posição que Ronaldo Cagiano escolheu tomar ao ver o que viu:

Enquanto o cortejo seguia
alheio aos gestos automáticos
das mãos que cerravam as portas

            Outros continuavam a vida
            imunes à que passava,
despojada de sua última chamada.

A cidade não seria diferente
porque amanhã
outras notícias viriam

É assim que Ronaldo Cagiano faz a relação dos males do seu tempo desde a nascença em Cataguases, Minas Gerais, passando por Brasília, onde formou-se em direito chegado à São Paulo onde reside e tem o seu trabalho. Mas não parou por aí escalou Buenos Aires, Teerã, Berlim, Pirapetinga, Lisboa, Paris, Adrogue, Alentejo, Morrinhos, Persépolis, Itabira, essas “geografias do acaso/ no arremate dos acasos/ onde pululam pássaros aziagos/ e homens ensimesmados/ habitam cidades sem memória,/ cemitério dos vivos.

É assim que o poeta faz a sua poesia, não omitindo o tempo e o espaço, numa forma perplexa de li dar com o texto que quer também contar histórias dos nossos dias. Uma poesia, que se pode dizer de combate aos males de hoje, inclusive a da falta de amor, saudade e das irmandades manobradas pelos contextos.

Certamente seja por isso que até os males do passado são elementos indispensáveis dessa matéria concentrada nessa obra que pode-se chamar de antologia, onde o autor termina com uma pergunta, no mínimo socorrista “Onde está Deus/ cujo poder não exercita?/ cuja vontade não realiza?/ cujas bênçãos nunca vêm?” pergunta o poeta, sabendo da ineficiência da sua função perguntativa. Pergunta para não dizer que não perguntou e que todos testemunhamos. Quem o responde?

Fonte:
http://www.quivismo.blogspot.com/

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Machado de Assis (Alberto de Oliveira: Meridionais)

QUANDO EM 1879, na Revista Brasileira, tratei da nova geração de poetas, falei naturalmente do Sr. Alberto de Oliveira. Vinha de ler o seu primeiro livro, Canções Românticas, de lhe dizer que havia ali inspiração e forma, embora acanhadas pela ação de influências exteriores. Achava-lhe no estilo coisa flutuante e indecisa; e quanto à matéria dos versos, como o poeta dissesse a outros, que também sabia folhear a lenda dos gigantes, dei-lhe este conselho: “Que lhe importa o guerreiro que lá vai à Palestina? Deixe-se fixar no castelo com a filha dele… Não é diminuir-se o poeta; é ser o que lhe pede a natureza, Homero ou Mosco”. Concluía dizendo-lhe que se afirmasse.

Não trago essa reminiscência crítica (e deixo de transcrever as expressões de merecido louvor), senão para explicar, em primeiro lugar, a escolha que o poeta fez da minha pessoa para abrir este outro livro; e, em segundo lugar, para dizer que a exortação final da minha crítica tem aqui uma brilhante resposta, e que o conselho não foi desprezado, porque o poeta deixou-se estar efetivamente no castelo, não com a filha, mas com as filhas do castelão, o que é ainda mais do que eu lhe pedia naquele tempo. Que há de ele fazer no castelo, senão amar as castelãs?

Ama-as, contempla-as, sai a caçar com elas, fita bem os olhos de uma para ver o que há dentro dos olhos azuis, vai com a outra contar as estrelas do céu, ou então pega do leque de uma terceira para descrevê-lo minuciosamente. Esse Leque, que é uma das páginas características do livro, chega a coincidir com o meu conselho de 1879, como se o poeta, abrindo mão dos heróis, quisesse dar às reminiscências épicas uma transcrição moderna e de camarim: esse Leque é uma redução do escudo de Aquiles. Homero, pela mão de Vulcano, pôs naquele escudo uma profusão de coisas: a terra, o céu, o mar, o sol, a lua e as estrelas, cidades e bodas, pórticos e debates, exércitos e rebanhos. O nosso poeta aplicou o mesmo processo a um simples leque de senhora, com tanta opulência de imaginação no estilo, e tão grego no próprio assunto dos quadros pintados, que fez daquilo uma parelha do broquel homérico. Mas não é isso que me dá o característico da página; é o resumo que ali acho, não de todo, mas de quase todo o poeta; imaginoso, vibrante, musical, despreocupado dos problemas da alma humana, fino cultor das formas belas, amando porventura as lágrimas, contanto que elas caiam de uns olhos bonitos.

Conclua o leitor, e concluirá bem, que a emoção deste poeta está sempre sujeita ao influxo das graças externas. Não achará aqui o desespero, nem o fastio, nem a ironia do século. Se há alguma gota amarga no fundo da taça de ouro em que ele bebe a poesia, é a saudade do passado ou do futuro, alguma coisa remota no tempo ou no espaço, que não seja a vulgaridade presente. Daí essa volta freqüente das reminiscências helênicas ou medievais, os belos sonetos em que nos conta o nascimento de Vênus, e tantos outros quadros antigos, ou alusões espalhadas por versos e estrofes. Daí também uma feição peculiar do poeta, o amor da natureza. Não quero fazer extratos, porque o leitor vai ler o livro inteiro; mas o soneto “Magia Selvagem” lhe dará uma expressão enérgica dessa paixão dos espetáculos naturais, ante os quais o poeta exclama:

Tudo, ajoelhado e trêmulo, me abisma
Cego de assombro e extático de gozo.

Cegueira e êxtase: o limite da adoração. Assim também o “Conselho”, página em que ele receita para uma dor moral o contato da floresta; e ainda mais a anterior, “Falando ao Sol”, em que caracteriza a intensidade de um grande pesar, que então o oprime, afirmando que para esse, nem mesmo a natureza — “a grande natureza” — pode servir de remédio.

A maior parte das composições são quadros feitos sem outra intenção mais do que fixar um momento ou um aspecto. Geralmente são curtos, em grande parte sonetos, forma que os modernos restauraram, e luzidamente cultivam, pode ser até que com excessiva assiduidade. Os versos do nosso poeta são trabalhados com perfeição. Os defeitos, que os há, não são obra do descuido; ele pertence a uma geração que não peca por esse lado.

Nascem, — ora de um momento não propício, — ora do requinte mesmo do lavor; coisa esta que já um velho poeta da nossa língua denunciava, e não era o primeiro, com esta comparação: ” o muito mimo empece a planta”. Mas, em todo caso, se isto é culpa, felix culpa; a troco de algumas partes laboriosas, acabadas demais, ficam as que o foram a ponto, e fica principalmente o costume, o respeito da arte, o culto do estilo.

“Manhã de Caça”, “A Volta da Galera”, “Contraste”, “Em Caminho” , “A Janela de Julieta”, e não cito mais para não parecer que excluo as restantes, darão ao leitor essa feição do nosso poeta, o amor voluptuoso da forma. Não lhe pergunteis, por exemplo, na “Manhã de Caça”, onde é que estão as aves que ele matou. O poeta saiu principalmente à caça de belos versos, e trouxe-os, argentinos e sonoros, um troféu de sonetos. Assim também noutras partes. Nada obsta que os versos bonitos tragam felizes pensamentos, como pintam quadros graciosos. Uns e outros aí estão. Se alguma vez, e rara, a ação descrita parecer que desmente da estrita verdade, ou não trouxer toda a nitidez precisa, podeis descontar essa lacuna na impressão geral do livro, que ainda vos fica muito: — fica-vos um largo saldo de artista e de poeta, — poeta e artista dos melhores da atual geração.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

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Aluísio Azevedo (O Esqueleto) II – O Satanás

Tinha uma bela compostura varonil e forte de velho conservado aquele desconhecido que tão inopinadamente acabava de entrar na bodega do Trancoso e em torno do qual todos respeitosamente se acercavam.

Por sobre o chapéu de abas largas, via-se um rosto bem modelado em ângulos violentos de decisão e afoiteza O espesso e comprido bigode militar, que o sarro dos cachimbos amarelecera, recurvava-se fantasticamente numas pontas erguidas para o céu como uma ameaça de conos de Satanás. O nariz e o queixo eram pontiagudos, fazendo-lhe a cara estreita e cortante como a cabeça dos peixes, e a quilha dos navios. E ele tinha, principalmente, um olhar, indefinível de cor, agudo e penetrante como a lâmina daquela espada que atirara sobre o balcão, olhar de rapina, de águia nobre ou abutre carniceiro. Não se lhe podia ver o traje, envolto como trazia o corpo numa vasta capa espanhola de forro escarlate Divisava-se-lhe apenas as largas botas de couro, muito elameadas e com esporas de grandes rosetas.

E aí, à luz baça dos candieiros, recostado por sobre uma mesa, ele quedava-se, indiferente com a preocupação dos outros, tipo fantástico de aventuras a quem pouco importavam a luta de ainda havia pouco, e a perspectiva toda da vida restante.

Chamavam-no Satanás e tinha a sua história.

De origem fiorentina e boas fidalguias, ele crescera logo numa infância cheia de tempestades. Na noite do seu nascimento, uma vingança italiana ateara o incêndio no palácio dos Pallingrini, e somente a um mi]agre se deveu a sua salvação. O pai, que o trouxera ao colo descendo pela escada abrasada, entregou-o a um criado. E pereceu dentro das chamas quando tentou voltar para salvar a mulher. Um frade mendicante que passava batizou-o então com o nome de Ângelo; e uma bruxa cigana, que dizia a buena dicha vaticinou-lhe mil horrores: uma inconstância de sorte fazendo-o milionário de repente e mendigo logo depois, e enfim uma morte violenta e uma sepultura fora do sagrado.

Ângelo Pallingrini, o pobre órfão da triste catástrofe, foi conduzido então para um castelo da Calábria, onde seu tio e tutor o confiou aos cuidados de uma ama, e o deixou crescer por ali, ao azar das circunstâncias, como bem parecia à criança e como bem entendiam os criados. O menino fez-se logo trêfego, autoritário e mau. Gostava de subir ao terraço da grande torre do castelo para precipitar os animais que conseguia apanhar. E de uma ocasião, aos sete anos, passou duas semanas na enxovia, porque, brincando armas com seu irmão colaço, matou-o para experimentar como eram as brigas de verdade. Adolescente, sonhou logo amores. Queria-os, porém, misteriosos e complicados, difíceis e românticos, como os contavam nas lúgubres legendas do papado que a gente do castelo gostava de repetir pelas horas tristes da noite, na monotonia fatigante dos serões. E apaixonou-se pela tia – uma bela mulher, vigorosa e forte que vivia a exuberância dos seus trinta anos junto à precoce decrepitude do marido.

Mas quando uma noite, entrava-lhe nos aposentos, encontrou-a morta sobre o assoalho, esplendidamente nua, com os bastos cabelos em desalinho e um lençol apenas envolvendo-lhe parte do corpo, deixando-lhe a descoberto os seios por entre os quais se afincava o punhal assassino.

Junto ao cadáver, sereno e pálido, o castelão velava de pé com as mãos nos copos da espada – sentinela da honra no campo da morte.

Ângelo Pallingrini soltou então pela primeira vez aquela gargalhada estentórica de ferros velhos que chocalham como as armaduras dos guerreiros dentro das campas, aquela gargalhada que lhe deu mais tarde o cognome de Satanás.

E antes que o tio se movesse, ele arrancou do peito da morta esse punhal com que a covardia de um marido tinha vitimado a sua amante, e investiu contra o velho fidalgo, que rodou no chão soltando uma praga de maldições.

O rapaz fugiu. Embarcou numa galera que partia para as Espanhas. Uma triste fatalidade pesava-lhe, entretanto, sobre o destino todo inteiro. Tanto que nas alturas de Argel a galera foi aprisionada pelos piratas mouriscos.

Ângelo, italiano e supersticioso por conseguinte, supôs-se então a vítima de um mau-olhado, de uma jetatura lançada sobre os amores mesmos de seus pais que ele nem tinha aprendido a respeitar.

A idéia do suicídio veio-lhe então. Ou pelo menos a idéia de encontrar a morte em um qualquer combate. Porque ele sentia-se melhor do que era. E via-se infeliz, fazendo a desgraça de todos aqueles de quem se aproximava.

Lá em Argel vieram-lhe, porém, novos amores e uns anos de calma fruídos lentamente no gozo lascivo dos serralhos.

O Bey apaixonara-se por essa criança esquisita, de olhar altivo, mas tenebroso, e que tão bem sabia gargalhar um riso triste, de amarguras e de dores. E o moço italiano foi prosperando de haveres e de posições. Quando o instinto das batalhas o espicaçava muito furte, seguia para o deserto à caça do leão.

Noticias, porém, da sua pátria, a intolerável opressão austríaca e as guerras valentes de Bonaparte o fizeram voltar para a sua terra onde melhor podia viver o seu gênio aventureiro de fidalgo.

Cumpria-se, entretanto, a fatal predição da cigana. E semelhante projeto foi o ponto de partida de uma série de desastres Um naufrágio fez-lhe perder a galera, onde iam os seus tesouros e as suas escravas, quase à entrada mesmo do porto de Nápoles.

E foi como simples soldado que ele entrou no exército da Venécia. Prisioneiro do austríaco e condenado à morte, conseguiu fugir entretanto graças ao auxílio de um fidalgo espanhol a quem salvara a vida e que o levou a Madri.

Foi ai que ele conheceu d. Bias, com quem se passou para Portugal e mais tarde para o Brasil junto com a comitiva de d. João VI que o escolhera para mestre de armas de seus filhos.

Na corte do monarca lusitano, o Satanás fez-se também escultor, artista galante, querido das damas, a quem impressionava pela altivez cavalheirosa de seu porte e pelo aventureiro de seu viver.

E nos anais do tempo ficou celebrado o seu amor com uma das damas da rainha, de quem houve uma filha, que estava sendo misteriosamente educada, ninguém sabia onde.

Aqui no Brasil fora ele quem dera a nota boêmia da vida nas tavernas, protegido que andava pela amizade de d. Pedro.

Velho embora, e taciturno, ele sabia fazer a alegria em torno de si. Tinha idéias esquisitas, caprichos de imaginação e principalmente um gênio batalhador que dava às suas noitadas um aspecto aventuroso de novidades e imprevistos.

E por muitas vezes pareceu-lhe que se renovavam para si aqueles bons tempos ditosos de Argel. Enriquecia e subia em considerações e importâncias.

Com o regresso de d. João VI, entregue que ficou a colônia ao príncipe regente, o Satanás foi quase a segunda pessoa do Estado, muito ouvido e atendido por d. Pedro, que conservara um grande respeito pelo seu velho mestre de armas de quem fazia guarda-costas nas costumeiras excursões noturnas.

Por isso estavam todos agora muito respeitosos, ali na bodega do Trancoso.

Apenas d. Bias teve a coragem de sentar-se junto a mesa, como velho conhecido de todos os tempos e de todas as vicissitudes. Beberam juntos, muito calados, logo após a troca. de algumas palavras.

E o Satanás pediu logo a espada que tinha mandado limpar.

– Boa lâmina! disse o Carniça para fazer conversa.

Mas ninguém teve a coragem de acrescentar palavra porque Satanás voltou-se e esparramou um olhar de desprezo por sobre os circunstantes.

Depois ergueu-se e atirou para cima do balcão uma moeda de ouro, dizendo ao Trancoso:

– Pague isso em bebidas a esta gente.

E saiu, sem ligar importância aos agradecimentos que lhe queriam fazer, chapinhando na lama do Piolho com as grandes botas de cavaleiro, e misturando nas trevas do derredor o longo fantasma de seu vulto de capa preta.
————–

continua

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Luís Fernando Veríssimo (O Flagelo do Vestibular)

Luis Fernando Verissimo
Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que em ensinou, e como eu não prestava muita atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que é amarrar os sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom beaujolais pelo rótulo. E tenho um certo jeito – como comprova este exemplo – para usar frases entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior, recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira: “Olha na enciclopédia pô!”

 Este naco da autobiografia é apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio de um vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isso não impede que todos os anos, por essa época, eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e no fim olhando para o infinito com aquele ar de sobrevivente da Marcha da Morte de Batan. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer a minha simpatia. Como ofereci a uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno.

 – Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.

 – Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.

 – Bom, então roa as suas próprias unhas. Essas são as minhas.

 – Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que até calmante me excitava, e quando conseguia dormir sonhava com escolhas múltiplas:

 A) fracasso,
 B) vexame,
 C) desilusão

 E acordava gritando: Nenhuma destas, nenhuma destas. Foi horrível.

 – Só não compreendo porque você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida…

 – Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho! E o cretino está na praia, enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.

 Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá: diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fila por fila o gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da floresta amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, quando indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:

 – Ele foi um dos que não voltaram…

 Em vez de:

 – É um burro!

 Os candidatos à Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no Metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos- aliás, uma segurança para a população – mas as obras do Metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo!

 O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda por cima, há os cursinhos pré-vestibulares.Em São Paulo os cursinhos estão usando helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos que terão que repetir tudo no ano que vem. Daí para napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, uma visita do Kissinger para negociar a paz, é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que o professor, para se comunicar com as filas de trás, tem que usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só tem dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.

 O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma das suas provas:

 -Sei não. Acho que tubulei. O Inglês não estava mole.

 -Mas meu filho, hoje não era inglês! Era Física e Matemática!

 -Oba! Então acho que fui bem!

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Vicência Jaguaribe (A Asa Branca e o Nordestino)

 Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr’esse sertão sofredor

          Finalmente, chove no Ceará. Embora com um certo atraso, Deus agora se alembrou / De mandar chuva / Pr’esse sertão sofredor. Se alembrou de fazer chover na capital e no interior do estado. A asa branca pode ir preparando a viagem de volta. Os agricultores já devem estar espalhando as sementes nas covas, abertas com antecedência, pois a esperança, que para muitos é a última que morre, para eles não morre nunca. Entra em estado de catalepsia, mas morrer mesmo, não. É. Aqui no Ceará, é assim.

          A ansiedade daqueles que trabalham com a terra e com o gado é grande. E têm um bom motivo. As secas periódicas, que desde sempre marcaram a história do Ceará, levam pequenos fazendeiros à ruína e expulsam os pequenos agricultores de suas terras. Daí nascerem as histórias mais ou menos folclóricas de que se encontra um cearense em qualquer quadrante do mundo que se visitar.

          Mas, talvez, haja muito de verdadeiro nessas histórias. O cearense pobre do sertão, quando vê a última rês despencar de fome e sede, o mandacaru entristecer, o leito dos últimos fios d’água crestar, os filhos lhe perguntarem com o olhar o que vão comer naquele dia, despede-se de sua terra e de sua gente e embarca. Deixa sua terra juntamente com a asa branca, que também resiste até o fim e só vai embora no último pau de arara. Vai na tentativa de trabalhar e mandar alguma dinheiro para que a mulher e os filhos possam sobreviver. Isso quando não pega a estrada com toda a família, o papagaio e o cachorro. Mas vai, pensando em regressar com as primeiras notícias do retorno da chuva.

          Nos tempos passados, o destino eram as terras lá de cima, as terras do norte. Muitos foram e não voltaram, possuídos pelos gênios da floresta, deixando a família à espera por anos, inutilmente. É, porque as florestas têm entidades que assediam, encantam, conquistam, dominam e matam.

          Hoje, o roteiro é o sul, o sul maravilha, como muitos chamam. Mas não propriamente os estados realmente do sul, mas os do centro-oeste, principalmente Rio e São Paulo. São Paulo está cheio de cearenses e de nordestinos em geral. São eles, os nordestinos, são eles, os cearenses, que hoje erguem São Paulo. Enfrentam a má vontade e o preconceito explícito das gentes do sul e, às vezes, até mandam buscar a família.

          O cearense, porém, tem muito da asa branca. Às primeiras notícias da chuva, aos primeiros prenúncios do inverno — da quadra chuvosa que aqui chamamos de inverno e que os estados que se situam mais para o sul chamam de verão —, põe em um saco os poucos pertences, dá um nó como cadeado e volta para sua terra, com a esperança de arrancar dela o milho, o feijão, a mandioca e a batata doce, que alimentarão a família e que, se vierem com fartura, serão vendidos na feira. Assim é a asa branca: ao primeiro sinal de inverno, ela volta. Aí, então, o nordestino tem a certeza de que o inverno vai pegar.

          Foi assim desde sempre. Promessas para a transposição de rios, para a irrigação, para a construção de açudes e de cisternas suficientemente grandes para acumular água potável nos anos de inverno bom sempre foram feitas e não cumpridas, ou cumpridas pela metade. Todos os governantes do Brasil, incluindo D. Pedro II — que, na grande seca de 1880, com a duração de três anos, fez a célebre promessa, cujas palavras foram levadas pelo vento: Venderei a última joia da Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome. —, têm feito, para solucionar o problema da seca no Nordeste, promessas e até efetivado projetos importantes, como o da perenização do rio Jaguaribe e o da polêmica transposição das águas do rio São Francisco, que, aliás, já devia estar concluída. Mas parece que falta uma atitude séria e consequente de quem traça esses projetos. D. Pedro II, pelo menos, embora não tenha vendido nenhuma joia da coroa, decretou, em 1880, a construção do açude do Cedro.

          A chuva, pois, chegou ontem, 15 de fevereiro, em uma pancada forte e mais ou menos demorada, que alagou ruas e avenidas, mas que fez o cearense abrir um sorriso de alívio. Ela chegou por volta das 10 h da manhã e ficou até mais ou menos 1 h. Avisara, no dia anterior, que viria: o dia 14 foi um dos mais quentes do ano que mal se inicia. Não sabemos se ela foi só um ensaio ou se a peça vai entrar mesmo em cartaz. Nestes tempos em que tudo está mudado, inclusive os sinais da natureza, nunca se sabe. Até os profetas do sertão encontram-se acuados e mais ou menos desmoralizados. Os indícios naturais, antes infalíveis, já não mais se confirmam. Assim, por garantia, é melhor esperar pelo 19 de março, para ver o que diz São José.

          Torçamos para que o nosso agricultor, este ano, não tenha que acompanhar o voo da asa branca.
        
Fonte:
A Autora

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Manuel Bandeira (Tragédia Brasileira)

Manuel Bandeira
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura… Dava tudo o que ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos…

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

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Simone Pedersen (Balões Coloridos)

Um jovem casal teve seu primeiro filho, muito doente, com reduzidas chances de sobreviver. Sabendo de seus dias contados, os dois, de licença do trabalho, dividiram as vinte e quatro horas do dia de forma que ambos ficassem com o bebê e eles – apenas eles -, cuidassem do frágil recém-nascido. Com muita dificuldade para mamar, o anjinho precisava ser alimentado a cada hora do dia e da noite, com apenas alguns poucos mililitros do leite materno que a mãe produzia e cuidadosamente retirava e armazenava, num processo doloroso e demorado, pois o pequenino não tinha forças nem para mamar suas gotas de amor…

Em nenhum momento os pais reclamaram de cansaço. Em nenhum momento brigaram sobre quem teria que trocar a próxima fralda ou dar a próxima mamadeira. Nem discutiram quem se levantaria no meio da noite. Fez-me sentir uma péssima mãe… Fez-me lembrar de todos os momentos em que me sinto irritada com os tantos afazeres que a maternidade nos transfere, os familiares exigem e os amigos esperam.

A história do jovem casal mostrou-me que tudo na vida é passageiro e rapidamente desaparece, em largos passos, se nós não atentarmos a cada segundo e vivê-los intensamente. E que, no final da vida, não adiantará mais ter aprendido essa importante lição, pois o tempo passado é tempo vivido, ou tempo perdido. Não existe meio-termo. Não se vive mais ou menos. Não se arrepende mais ou menos. Ou estamos presentes, inteiros, naquele momento, ou nunca mais poderemos alcançá-lo. E as mães sabem disso melhor que ninguém. Acompanham cada minuto da vida de seus rebentos, choram com eles suas dores, riem com eles suas traquinagens. E cuidam, com todo amor e carinho, nos momentos de doença.

No dia do velório do pequenino menino, os pais não estavam desolados. Estavam tristes, mas tranquilos. Estavam conscientes de que haviam feito o melhor que lhes era possível. Haviam amado cada segundo, cada suspiro, cada lágrima e cada sorriso daquele frágil ser. E soltaram 99 balões coloridos, um para cada dia de vida do pequeno anjo, com quem tiveram o privilégio de conviver naqueles meses. Todos os presentes olharam para o céu, refletindo quanto um momento singelo pode representar se nós o agarrarmos com unhas e dentes.

E – como o passado -, os balões ficaram inacessíveis, desaparecendo no céu azul, num piscar de olhos. Lindos, se foram. E nunca mais foram vistos, restando apenas a imagem de um inigualável entardecer, colorido como só a vida pode ser por balões que representavam cada dia vivido no amor.

Fonte:

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Simone Pedersen (Ave Maria)

O meu sonho sempre foi ser freira. Chamar-me Maria. Mas nasci com asas, sem ser anjo. Posso me aproximar de Deus de outra forma. Consigo subir até Sua casa.

Antes de a noite acordar pela manhã, as irmãs libertam a respiração do convento pelas janelas: “Tum-tum”, “Tum-tum”, escuto o coração do convento pulsando em reza. Ah, se não fosse ave, seria freira! Como é encantador ouvir os passos delas flutuando pelo piso frio do convento, como se voassem, sem abrir as asas. Logo começam as xícaras a tocar piano e eu sinto o aroma de café.

O convento é um grande ninho onde moram anjos em forma humana. Gosto de sobrevoar os telhados e sentir o calor que irradia pelas suas janelas. O próprio sol visita as suas dependências e depois se esparrama pelos seus pátios e frestas. Fico tão emocionada, que arrulho de encantamento.

Às vezes, sinto saudade do cheiro verde das matas e voo até lá. Como é extasiante sentir odores tão diferentes! A maresia, que salga as narinas. O café quente do convento. Os perfumes de banho dos humanos que andam de um lado para outro, como formigas trabalhadeiras. Sou mesmo uma ave privilegiada, testemunho a história desse povo todos os dias. De um lado, as doces beatas; do outro, o salgado mar de botas molhadas. O vento traz  folhas da mata, que acariciam os rostos dos homens. O chafariz respinga lágrimas de felicidade desse solo abençoado.

Outro dia, muitas nuvens se aproximaram do convento. Extasiada, deitei-me sobre o telhado e permiti que as águas doces me banhassem de todas as minhas decepções. Eu aceitei quem eu era. Como havia pessoas humanas e animais, havia eu, ave. Tantos similares e tantos diferentes, convivendo com árvores e mares, chuvas e risadas. Únicos e realizados. Filhos da natureza. Pais de nossos sonhos.

Eu sempre quis ser freira. Mas nasci ave. Acho que a vida foi muito generosa comigo. Não sou uma pomba qualquer. Sou uma ave brasileira, alegre como uma cigana, viajando entre o mar, a mata e a cidade, em um tapete mágico movido a vento. Sou uma ave maravilhada. Sou uma ave dessa terra santa.

Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51b.html

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Machado de Assis (Carlos Jansen: Contos Seletos das Mil e Uma Noites)

O SR. CARLOS JANSEN tomou a si dar à mocidade brasileira uma escolha daqueles famosos contos árabes das Mil e Uma Noites, adotando o plano do educacionista alemão Franz Hoffmann. Esta escolha é conveniente; a mocidade terá assim uma amostra interessante e apurada das fantasias tascas daquele livro, alguns dos seus melhores contos, que estão aqui, não como nas noites de Sheherazade, ligados por uma fábula própria do Oriente, mas em forma de um repositório de cousas alegres e sãs.

Para os nossos jovens patrícios creio que é isto novidade completa. Outrora conhecia-se, entre nós, esse maravilhoso livro, tão peculiar e variado, tão cintilante de pedrarias, de olhos belos, tão opulentos de sequins, tão povoado de vizires e sultanas, de idéias morais e lições graciosas. Era popular; e, conquanto não se lesse então muito, liam-se e reliam-se as Mil e Uma Noites. A outra geração tinha, é verdade, a boa fé precisa, uma certa ingenuidade, não para crer tudo, porque a mesma princesa narradora avisava a gente das suas invenções, mas para achar nestas um recreio, um gozo, um embevecimento, que ia de par com as lágrimas, que então arrancavam algumas obras romanescas, hoje insípidas. E nisto se mostra o valor das Mil e Uma Noites: porque os anos passaram, o gosto mudou, poderá voltar e perder-se outra vez, como é próprio das correntes públicas, mas o mérito do livro é o mesmo. Essa galeria de contos, que Macaulay citava algumas vezes, com prazer, é ainda interessante e bela, ao passo que outras histórias do Ocidente, que encantavam a geração passada, com ela desapareceram.

Os melhores daqueles, ou alguns dos melhores, estão encerrados, estão encerados neste livro do Sr. Carlos Jansen. As figuras de Sindbad, Ali-Babá, Harum al Raschid, o Aladim da lâmpada misteriosa, passam aqui, ao fundo azul do Oriente, a que a linha curva do camelo e a fachada árabe dos palácios dão o tom pitoresco e mágico daqueles outros contos de fadas da nossa infância. Algumas dessas figuras andam até vulgarizadas em peças mágicas de teatro, pois aconteceu às Mil e Uma Noites o que se deu com muitas outras invenções: foram exploradas e saqueadas para a cena. Era inevitável, como por outro lado era inevitável que os compositores pegassem das criações mais pessoais e sublimes dos poetas para amoldá-las à sua inspiração, que é por certo fecunda, elevada e grande, mas não deixa de ser parasita. Nem Shakespeare escapou, o divino Shakespeare, como se Macbeth precisasse do comentário de nenhuma outra arte, ou fosse em presa fácil traduzir musicalmente a alma de Hamlet. Não obstante, a vulgarização pela mágica de algumas daquelas figuras árabes, elas aí estão com o cunho primitivo, esse que dá o silêncio do livro, ajudado da imaginação do leitor.

Este, se ao cabo de poucas páginas vier a espantar-se de que o Sr. Carlos Jansen, brasileiro de adoção, seja alemão de nascimento, e escreva de um modo tão correntio a nossa língua, não provará outra cousa mais do que negligência da sua parte. A imprensa tem recebido muitas confidências literárias do Sr. Carlos Jansen; a Revista Brasileira (para citar somente esta minha saudade) tem nas sua páginas um romance do nosso autor. E conhecer e escrever uma língua, como a nossa, não é tarefa de pouca monta, ainda para um homem de talento e aplicação. O Sr. Carlos Jansen maneja-a com muita precisão e facilidade, e dispõe de um vocabulário numeroso. Esse livro é uma prova disso, embora a crítica lhe possa notar uma ou outra locução substituível, uma ou outra frase melhorável.  São minúcias que não diminuem o valor do todo.

Esquecia-me que o livro é para adolescentes, e que estes pedem-lhe, antes de tudo, interesse e novidades. Digo-lhes que os acharão aqui. Um descendente de teutões contalhes pela língua de Alencar e Garrett umas histórias mouriscas: com aquele operário, esse instrumento e esta matéria, dá-lhes o Sr. Laemmert, velho editor incansável, um brinquedo graciosíssimo, com que podem entreter algumas horas dos seus anos em flor. Sobra-lhes para isso a ingenuidade necessária; e a ingenuidade não é mais do que a primeira porção do ungüento misterioso, cuja história é contada nestas mesmas páginas. Esfregado na pálpebra esquerda de Abdallah, deu-lhe o espetáculo de todas as riquezas da terra; mas o pobre – diabo era ambicioso, e, para possuir o que via, pediu ao derviche que lhe ungisse também a pálpebra direita, com o que cegou de todo. Creio que esta outra porção do ungüento é a experiência.

Depressa, moços, enquanto o derviche não unge a outra pálpebra!

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

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Simone Pedersen (O Condutor)

Mais uma vez eu chego à Estação da Luz. São seis horas da manhã. O orvalho ainda umedece o ar, e os pássaros esticam as asas preguiçosamente. Entro no trem que conduzirei até a Estação de Santos, no litoral paulista. A viagem demora quase três horas. Lá, almoço e, à tarde, reconduzo minha máquina de volta à capital paulista. É um privilégio conduzir esse trem dos anos cinquenta, todo restaurado,viajando pelos mesmos trilhos que possibilitaram o desenvolvimento da região.

Quando apito o trem, escuto os passageiros aplaudirem. Nenhum meio de transporte é tão romântico como esse. Entramos na natureza em trilhas sinuosas, como uma cobra se esgueirando pelo mato. Invadimos a privacidade da mata, que se desnuda em flores, plantas, árvores e caídas de água.

Terra que um dia foi virgem, já que índio não macula a castidade da natureza, a Mata Atlântica é surpreendente.  Já vi onça pintada, macaco prego, pássaros de todas as cores – inclusive tucanos – voarem alto com medo do rugir do trem. Hoje, acostumados, eles parecem me aguardar.

Faço essa viagem uma vez por semana, aos domingos. É o melhor dia de trabalho na Ferrovia. As pessoas que viajam transbordam felicidade. Algumas passam o dia na cidade portuária, outras gostam de salgar a alma na praia. Crianças entoam canções alegres com arranjos de gargalhadas. Balões coloridos cambaleiam pelo teto do vagão, como se estivessem tontos de sono, mas sempre voltam misteriosamente para as mãos da criança que os chama.

Vários passageiros repetem a viagem. O filme que passa pelas janelas é demasiadamente rico em detalhes para ser saboreado uma única vez. São tantas espécies de plantas e flores. Nem o arco-íris é tão colorido. Costumo fazer uma pausa bem no meio da Mata Atlântica, quando as pessoas podem absorver um pouco desse lugar raro. O cheiro de mato tem o poder de desarmar qualquer cara enfezada.

Eu conduzo o trem como conduzo minha vida: com muita responsabilidade. O trem é um ninho cheio de filhotes, e eu sou a ave mãe. Tenho que zelar pela segurança dos passageiros. Eu sei que eles se sentem no colo da infância, com esse leve balançar. As memórias acordam, e aquele bem-estar que sentíamos quando a mãe assoprava um machucado, ou dava um beijo de boa-noite, toma conta de nosso ser. Confortante. Morno. Aconchegante. Assim é o trem.

Reconheço os casais enamorados de longe. Sentam-se bem pertinho um do outro, mesmo que haja muitos lugares vagos. Prestam atenção em cada flor, em cada pássaro e em cada palavra que o outro fala. Trocam emoções através de olhares úmidos e leves toques nos lábios. As mãos, unidas, não se soltam nem por um minuto. Já levei muitos casais assim em minhas viagens, das idades mais variadas: adolescentes de jeans rasgados e tatuagens de dragões, casais com filhos pequenos e outros que já viveram mais tempo juntos que eu de vida, e ainda são namorados.

O que eu mais gosto é quando entram crianças! Ah, crianças entendem o mundo sem os óculos da realidade. Elas cumprimentam felizes os seres que não mais enxergamos: gnomos, fadas e sacis. Algumas, mais atrevidas, gritam para eles viajarem junto! As mais corajosas colocam a mãozinha para fora da janela quando eu paro o trem e cumprimentam elfos.

Outro dia, uma menina veio me pedir para conduzir o trem bem devargazinho porque vários hobbits estavam pegando carona sobre o vagão dela. Eles estavam a caminho do porto aonde chegaria um barco com amigos de um reino distante. Eu respondi que faria o possível, afinal, não queria machucar nenhum deles, mas que deveriam ocupar os seguros assentos dentro do trem. Não resisti e completei que eles precisavam pagar pelas passagens também.

Ela saiu resmungando alguma coisa que não entendi muito bem. Para não contrariá-la – nem os hobbits – eu reduzi a velocidade.

Eu aprendi que, quando o trem entra na Mata, ele passa a fazer parte dela, como a linha se torna parte da costura na roupa. E a Mata passa a ser parte do trem. Já vi estrelas tão baixas que pareciam estar na frente da minha janela no vagão-condutor, clareando o caminho em dia de tempestade. Vi corujas de olhos gigantes piscando para mim. Levei um susto quando um macaco risonho me jogou uma banana. Pela carinha dele, não queria me machucar, apenas me presentear. Ouvi papagaios falando “Bom dia, Seu Jorge”, como se houvéssemos sido apresentados. Por isso, eu não duvido que hobbits peguem carona de vez em quando…

Uma vez, vi um piquenique real: D. Pedro II com o pai e a mãe, a arquiduquesa Dona Leopoldina, no topo da Serra do Mar. Os portugueses viviam encantados com a beleza exótica do Brasil. Eu apitei o trem, e eles me olharam assustados. O pequeno Pedro correu acenando com as duas mãos.

Mas o que eu mais gosto é de passar perto da queda-d’água. Alguns passageiros ficam aterrorizados com a altura. Eu não! Adoro ver sereias pulando do alto, descendo em piruetas ornamentais como serpentinas em salão de carnaval; ver botos cor-de-rosa tomando sol na parte rasa, enquanto índios crianças assistem ao balé das garças vermelhas.

Nunca comentei com meus amigos da Ferroviária o porquê de eu querer sempre trabalhar aos domingos. Eles ririam de mim. Guardo esse segredo, mas, quando meus netos me visitam, conto a eles as histórias com todo o colorido dos detalhes. Eles vibram e comentam o que viram quando viajaram no meu trem. Dizem que é somente no Expresso Turístico que isso acontece. Eu respondo que não, que os mundos coexistem em harmonia. Nós só precisamos de um olhar atento para enxergá-los; e de coragem para acreditar.

Bem, é hora de iniciar uma nova viagem. Quem sabe o que me aguarda hoje? Quem sabe se você não é um dos meus passageiros?

Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51c.html

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Antonio Brás Constante (Espere Aí Sentado e MORRA)

Após centenas de horas estudando sentado em algum lugar, o pesquisador Jacob Veerman, junto com outros pesquisadores, da Universidade de Queensland, na Austrália, desenvolveu e publicou uma pesquisa dizendo que cada hora que um indivíduo passa sentado contribui para reduzir sua expectativa de vida em 21 minutos (nem 20 nem 22, a pesquisa foi tão bem feita que ele chegou à conclusão sobre exatos vinte e um minutos). Ele provavelmente utilizou-se da Dialética da Expectativa de Vida Estimada, Diagnosticada e Observada em Repouso Assentado, também conhecida como D.E.V.E.D.O.R.A.

Se levarmos em conta que fumar um cigarro diminui a expectativa de vida em 10 minutos, podemos dizer (com base na D.E.V.E.D.O.R.A.) que mais vale dois fumantes com seus cigarros na mão em pé do que um não fumante sentado. Por isso esqueça a idéia de que ler um bom livro, pois ficou provado que isso não é saudável, do mesmo modo, de acordo com o entendimento da pesquisa, matar a aula (onde se ficaria horas sentado) para jogar futebol (esporte praticado em pé) melhoria e muito nossa expectativa de vida.

No quesito banheiro os homens acabam levando vantagem, visto que podem urinar em pé, favorecendo assim sua expectativa de vida em comparação as mulheres. E nem pense em levar uma revista para ler, ou fazer atividades manuais no banheiro como, por exemplo, preencher palavras cruzadas (espero que você não tenha pensado em outra coisa), pois isso pode acabar matando você aos poucos.

O estudo do tal australiano também levou em conta o tempo sentado vendo televisão. Segundo Veerman o objetivo não era medir o tempo em frente à tela especificamente, e sim chegar a um número aproximado da quantidade de horas que a pessoa passava sentada. Com esses dados em mãos, os pesquisadores tentaram isolar o fator de risco trazido pela longa permanência que uma pessoa passa sentada, de outros hábitos pouco saudáveis, como fumar e não se exercitar. No caso específico do exercício, confesso que fiquei em dúvida, andar de bicicleta (sentado) é bom ou ruim?

A conclusão deles foi de que um adulto que passa seis horas diárias sentado em frente à TV deve viver quase cinco anos a menos que uma pessoa que não assiste televisão. A previsão se aplica mesmo aqueles que fazem exercícios regularmente. O tempo sentado no serviço também conta de forma negativa, por isso um motorista que anda sentado (literalmente) deveria ganhar insalubridade, por se matar trabalhando cada vez que senta para dirigir.

O estudo só não foi bem claro sobre qual modo de sentar é o mais nocivo. Sentar confortavelmente na cama ou sofá meio que deitado é pior ou melhor que sentar em uma arquibancada dura e fria? O famoso “senta para comer, menino” tantas vezes dito pelas mães, deve ser desaconselhado? Afinal, as prefeituras estão pensando no bem-estar do cidadão ao permitirem que o transporte urbano seja tão precário, com trens e ônibus sempre lotados, forçando as pessoas a ficarem de pé?

Em alguns casos sentar realmente pode ser fatal, isso é um fato comprovado pelas mortes na cadeira elétrica, ou nas estatísticas de trânsito, que revelam números assustadores de pessoas que morreram sentadas enquanto dirigiam.

Enfim, alguns médicos que analisaram a pesquisa ainda não sabem exatamente explicar por que uma atividade tão trivial quanto sentar poderia ser prejudicial ao corpo, mas ressaltam que o corpo humano simplesmente não foi projetado para passar tanto tempo sentado (nosso corpo também não deve ter sido projetado para assistir televisão, usar computador, dirigir, utilizar garfo e faca, tirar cutícula, pintar o cabelo, ir ao espaço, usar cachecol, jogar canastra, etc, etc.). Porém, uma coisa todos tem que admitir: Os seres humanos se adaptaram bem fácil a esta falha de projeto divino e/ou evolutivo em seu modo de viver.

Fonte:
O Autor

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Ronaldo Monte (O Homem que Lê)

 W.J. Solha
Vamos falar de Solha. Tudo bem, mas de qual Solha? Porque temos o Solha romancista, o poeta, o ensaísta, o cronista. Temos também o Solha ator de teatro e cinema, o letrista, o pintor… Mas tem um determinado Solha que é maior do que todos esses outros: o Solha leitor.

Um outro Solha, o conversador, me contou que, há muito tempo, uma luz acesa, numa constância sem igual, assombrava aquela gente da cidade de Pombal. Debaixo dessa lâmpada estava o bancário W. J. Solha que varava as noites devorando todos os livros que lhe caíam nas mãos. Ele estava encantado com a qualidade cultural das pessoas da pequena cidade paraibana que lhe emprestavam os clássicos nacionais e estrangeiros.

Até que um dia, por conta do acúmulo de noites insones, o leitor voraz desmaiou a caminho do expediente no Banco do Brasil. Até hoje Solha lê. E lê muito. E porque muito lê, muito escreve. E escreve também sobre o que lê. Um dia desses, eu estava no quiosque dos Correios do Bairro dos Estados, postando uns exemplares do Baú do anão, meu último livro de contos. Como acontece de vez em quando, lá estava Solha com um monte de exemplares do seu último livro (não sei se ainda é o último) para enviar a alguns privilegiados. Aproveitamos para trocar figurinhas.

Dei a ele o meu Baú e ganhei um exemplar da sua coletânea Sobre 50 livros (brasileiros/contemporâneos) que eu gostaria de ter assinado. Deixei o livro na cabeceira para ir mordendo aos poucos. São comentários, alguns tendendo para o ensaio, sobre obras das mais diversas categorias. Livros de poemas, contos, romances e memórias, recebem o olhar calejado de Solha, mostrando o que o leitor comum não vê. O mais importante deste livro é que Solha não se deteve a resenhar ou comentar apenas autores consagrados que viessem corroborar o seu refinamento de leitor. Tem gente que somente uns poucos leitores paraibanos conhecem. Claro que não concordo com algumas escolhas, mas isto não tem a menor importância. Mesmo porque sou autor de um dos livros comentados, o romance Memória do fogo. E para mim é um grande privilégio ter roubado algumas horas de sono deste leitor inveterado.
 
Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2013/02/o-homem-que-le-ronaldo-monte.html#more

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Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 1

Estas notas são dedicadas aos meus patrícios que desejarem ver o nosso céu povoado pelos Pássaros do Progresso

Nova York, 15 de Maio de 1918.

Meu caro Sr. Santos-Dumont

O Aero Club da América envia-nos uma mensagem de congratulações pela inauguração do primeiro Serviço Postal Aéreo neste País. Confiamos em que a Linha Postal Aérea inaugurada entre Nova York, Filadélfia e Washington, que vos leva esta mensagem, será um primeiro passo para uma rede de linhas postais aéreas que cobrirá o mundo e será fator predominante na obra de reconstrução que se seguirá à guerra, quando os exércitos aliados houverem alcançado a vitória gloriosa e final pela causa da liberdade universal.

Ao rápido desenvolvimento da navegação aérea no continente seguir-se-ão, em breve, extensos vôos sobre os mares, e teremos grandes aeroplanos cruzando o Atlântico, os quais facilitarão não só o estabelecimento da linha postal aérea transatlântica, como a entrega de aeroplanos dos Estados Unidos aos nossos aliados.

O Aero Club da América, que tem propugnado pelo desenvolvimento da aeronáutica desde os vossos primeiros ensaios, ativado e auxiliado por todos os meios a criação do serviço postal aéreo desde 1911, sente-se altamente compensado com o estabelecimento desse novo serviço através dos ares.

Alan R. Hawlei (Presidente)

Esta carta veio encher de legítima alegria o meu coração que, há já quatro anos, sofre com as notícias da mortandade terrível causada, na Europa, pela aeronáutica. Nós, os fundadores da locomoção aérea no fim do século passado, tínhamos sonhado um futuroso caminho de glória pacífica para esta filha dos nossos desvelos. Lembro-me perfeitamente que naquele fim de século e nos primeiros anos do atual, no Aero Club de França que foi, pode-se dizer “O ninho da aeronáutica” e que era o ponto de reunião de todos os inventores que se ocupavam desta ciência, pouco se falou em guerra; prevíamos que os aeronautas poderiam, talvez, no futuro, servir de esclarecedores para os Estados Maiores dos exércitos, nunca, porém, nos veio à idéia que eles pudessem desempenhar funções destruidoras nos combates. Bastante conheci todos esses sonhadores, centenas dos quais deram a vida pela nossa idéia, para poder agora afirmar que jamais nos passou pela mente, pudessem, no futuro, os nossos sucessores, ser “Mandados” a atacar cidades indefesas, cheias de crianças, mulheres e velhos e, o que é mais, atacar hospitais onde a abnegação e o humanitarismo dos rivais reúne, sob o mesmo teto e o mesmo carinho, os feridos e os moribundos dos dois campos. Pois bem, isso se repete há quatro longos anos, e quem o “manda fazer”? — O Kaiser!

Façamos, pois, votos pela vitória dos aliados; triunfem as idéias do Presidente Wilson e se extinga na terra o militarismo prussiano. Assim como com a Polônia atual a sociedade suprimiu os cidadãos armados, suprima as matanças da guerra o desejado Exército das Nações.

Confiante nesse futuro, reconfortou-me a mensagem do presidente do Aero Club da América, em que ouvi falar, de novo, da aeronáutica para fins pacíficos, realização de minhas íntimas ambições, sonho daqueles inventores que só viram no aeroplano um colaborador da felicidade dos homens.
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Creio, deveria ser chamada “época heróica da aeronáutica” a que compreende os fins do século passado e os primeiros anos do atual. Nela brilham os mais audaciosos arrojos dos inventores, que quase se esqueciam da vida, por muito se lembrarem de seu sonho.

Enchem-nos, hoje, do mais justo entusiasmo os atos de bravura dos aviadores do “front”, como nos encherá de orgulho a notícia da travessia do Atlântico, que prevejo próxima.

Essa coragem, porém, que os consagra como heróis, creio, não é maior que a dos inventores, primeiros pássaros humanos, que, após heróica pertinácia em estudos de laboratório, se arrojaram a experimentar máquinas frágeis, primitivas, perigosas. Foram centenas as vítimas dessa audácia nobre, que lutaram com mil dificuldades, sempre recebidos como “malucos”, e que não conseguiram ver o triunfo dos seus sonhos, mas para cuja realização colaboraram com o seu sacrifício, com a sua vida.

Não fosse a audácia, digna de todas as nossas homenagens, dos Capitães Ferber, Lilienthal, Pilcher, Barão de Bradsky, Augusto Severo, Sachet, Charles, Morin, Delagrange, irmãos Nieuport, Chavez e tantos outros — verdadeiros mártires da ciência — e hoje não assistiríamos, talvez, a esse progresso maravilhoso da aeronáutica, conseguido, todo inteiro, à custa dessas vidas, de cujo sacrifício ficava sempre uma lição.

Penso, a maior parte dos meus leitores serão jovens nascidos depois dessa época, que já se vai tanto ensombreando na memória: suplico-lhes, pois, não se esquecerem destes nomes. A eles cabe, em grande parte, o mérito do que hoje se faz nos ares…

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A princípio tinha-se que lutar não só contra os elementos, mas também contra os preconceitos: a direção dos balões e, mais tarde, o vôo mecânico eram problemas “insolúveis”.

Eu também tive a honra de trabalhar um pouco, ao lado destes bravos, porém o Todo Poderoso não quis que o meu nome figurasse junto aos deles. As primeiras lições que recebi de aeronáutica foram-me dadas pelo nosso grande visionário: Júlio Verne. De 1888, mais ou menos, a 1891, quando parti pela primeira vez para a Europa, li, com grande interesse, todos os livros desse grande vidente da locomoção aérea e submarina. Algumas vezes, no verdor dos meus anos, acreditei na possibilidade de realização do que contava o fértil e genial romancista; momentos após, porém, despertava-se, em mim, o espírito prático, que via o peso absurdo do motor a vapor, o mais poderoso e leve que eu tinha visto. Naquele tempo, só conhecia o existente em nossa fazenda, que era de um aspecto e peso fantásticos; assim o eram, também, os tratores que meu pai mandara vir da Inglaterra: puxavam duas carroças de café, mas pesavam muitas toneladas… Senti um bafejo de esperança quando meu pai me anunciou que ia construir um caminho de ferro para ligar a fazenda à estação da Companhia Mogiana; pensei que nestas locomotivas, que deviam ser pequenas, iria encontrar base para a minha máquina com que realizar as ficções de Júlio Verne. Tal não se deu; elas eram de aspecto ainda mais pesado. Fiquei, então, certo de que Júlio Verne era um grande romancista.
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Estava em Paris quando, na véspera de partir para o Brasil, fui, com meu pai, visitar uma exposição de máquinas no desaparecido “Palácio da Indústria”. Qual não foi o meu espanto quando vi, pela primeira vez, um motor à petróleo, da força de um cavalo, muito compacto, e leve, em comparação aos que eu conhecia, e… funcionando! Parei diante dele como que pregado pelo destino. Estava completamente fascinado. Meu pai, distraído, continuou a andar até que, depois de alguns passos, dando pela minha falta, voltou, perguntou-me o que havia. Contei-lhe a minha admiração de ver funcionar aquele motor, e ele me respondeu: “por hoje basta”. Aproveitando-me dessas palavras, pedi-lhe licença para fazer meus estudos em Paris. Continuamos o passeio, e meu pai, como distraído, não me respondeu.

Nessa mesma noite, no jantar de despedida, reunida a família, entre nós, dois primos de meu pai, franceses e seus antigos companheiros de escola, pediu-lhes ele que me protegessem, pois pretendia fazer-me voltar a Paris para acabar meus estudos. Nessa mesma noite corri vários livreiros; comprei todos os livros que encontrei sobre balões e viagens aéreas.
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Diante do motor a petróleo, tinha sentido a possibilidade de tornar reais as fantasias de Júlio Verne.

Ao motor a petróleo dei, mais tarde, todo inteiro, o meu êxito.

Tive a felicidade de ser o primeiro a emprega-lo nos ares.

Os meus antecessores nunca o usaram. Giffard adaptou o motor a vapor; Tissandier levou consigo um motor elétrico. A experiência demonstrou, mais tarde, que tinham seguido caminho errado.
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Uma manhã, em São Paulo, com grande surpresa minha, convidou-me meu pai a ir à cidade e, dirigindo-se a um cartório de tabelião, mandou lavrar escritura de minha emancipação. Tinha eu dezoito anos. De volta à casa, chamou-me ao escritório e disse-me: “Já lhe dei hoje a liberdade; aqui está mais este capital”, e entregou-me títulos no valor de muitas centenas de contos. “Tenho ainda alguns anos de vida; quero ver como você se conduz: vai para Paris, o lugar mais perigoso para um rapaz. Vamos ver se você se faz um homem; prefiro que não se faça doutor; em Paris, com o auxílio de nossos primos, você procurará um especialista em física, química, mecânica, eletricidade, etc., estude essas matérias e não se esqueça que o futuro do mundo está na mecânica. Você não precisa pensar em ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessário para viver…”
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Chegado a Paris, e com o auxílio dos primos, fui procurar um professor. Não poderia ter sido mais feliz; descobrimos o Sr. Garcia, respeitável preceptor, de origem espanhola, que sabia tudo. Com ele estudei por muitos anos.

Nos livros que comigo levara para o Brasil, li nomes de várias pessoas que faziam ascensões em balão, por ocasião de festas públicas. Eram as únicas que, então, se ocupavam da aeronáutica.

Sem nada dizer ao meu professor, nem aos meus primos, procurei no Anuário Bottin os nomes desses senhores, desejosos de fazer uma ascensão. Alguns já não se ocupavam mais do assunto, outros me apavoraram com os perigos de subir e com o exagero dos preços. Um, porém, houve que, após me informar de todos os meios, pediu-me mais de mil francos para levar-me consigo, devendo eu pagar, ainda, todos os estragos que fossem causados pelo balão na sua volta à terra.

Era ameaçadora a condição, pois esse senhor já uma vez tinha derrubado a chaminé de uma usina, outra vez, descera sobre a casa de um camponês e, incendiando-se o gás do balão, em contato com a chaminé, pusera fogo à casa…

Vieram-me à memória os conselhos de meu pai e os seus graves exemplos de sobriedade e economia. Ia eu gastar em algumas horas quase que a renda de um mês inteiro e, muito provavelmente, a renda de todo o ano!

Desanimei de fazer uma ascensão. Era muito complicado…
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Durante vários anos, estudei e viajei.

Segui com interesse, nos jornais ilustrados, a expedição de André ao Pólo Norte; em 1897, estava eu no Rio de Janeiro quando me chegou às mãos um livro em que se descrevia com todos os seus pormenores, o balão dessa expedição.

Continuava eu a trabalhar em segredo, sem coragem de pôr em prática as minhas idéias; tinha pouca vontade de arruinar-me. Esse livro, entretanto, do construtor Lachambre, esclareceu-me melhor e decidiu inabalavelmente minha resolução.

Parti para Paris…
*
* *
— Quero subir em balão. Quanto me pedem por isso?

— Temos justamente um pequeno balão no qual o levaremos por 250 frs.

— Há muito perigo?

— Nenhum.

— Em quanto ficarão os estragos da descida?

— Isso depende do aeronauta; meu sobrinho, aqui presente, M. Machuron, que o acompanhará, tem subido dúzias de vezes e nunca fez estrago algum. Em todo caso, haja o que houver, o Sr. não pagará nada mais que os duzentos e cinqüenta francos e dois bilhetes de caminho de ferro para a volta.

— Para amanhã de manhã o balão!…

Tinha chegado a vez…
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* *
Fiquei estupefato diante do panorama de Paris visto de grande altura; nos arredores, campos cobertos de neve… Era inverno.

Durante toda a viagem acompanhei as manobras do piloto; compreendia perfeitamente a razão de tudo quanto ele fazia.

Pareceu-me que nasci mesmo para a aeronáutica. Tudo se me apresentava muito simples e muito fácil; não senti vertigem, nem medo.

E tinha subido…
*
* *
De volta, em caminho de ferro, pois descêramos longe, transmiti ao piloto o meu desejo de construir, para mim, um pequeno balão.

Tive como resposta que a fábrica a que ele pertencia, tinha, havia pouco, recebido amostras de seda do Japão de grande beleza e peso insignificante.

No dia seguinte estava eu no atelier dos construtores.

Apresentaram-me projetos, mostraram-me sedas… Propuseram-me fazer construir um balão de 250 metros cúbicos…

Tomei a palavra: — O Sr. disse-me ontem que o peso dessa seda, depois de envernizada, é de tantas gramas; o gás hidrogênio puro eleva tal peso; desejo uma barquinha minúscula e, pelo que vi ontem, um saco de lastro me será bastante para passar algumas horas no ar; eu peso 50 quilos; conclusão: — quero um balão de cem metros cúbicos.

Grande espanto!

Creio mesmo que pensaram que eu era doido.

Alguns meses depois, o “Brasil”, com grande espanto de todos os entendidos, atravessava Paris, lindo na sua transparência, como uma grande bola de sabão.

As suas dimensões eram: diâmetro 6 metros, volume 113 metros cúbicos, a seda empregada (113 metros quadrados) pesava 3″500, envernizada e pronta, 14 quilos. A rede envolvente e cordas de suspensão pesavam 1.800 gramas. A barquinha, 6 quilos. O guide-rompe (corda de compensação), comprido de 6 metros, pesava 8 quilos, uma ancorazinha, 3 quilos.

Os meus cálculos tinham sido exatos: parti com mais de um saco de lastro.

Este minúsculo “Brasil” despertou grande curiosidade. Era tão pequeno que diziam que eu viajava com ele dentro da minha mala!

Nele e em outros, fiz, em vários meses, amiudadas viagens, em que ia penetrando na intimidade do segredo das manobras aéreas.
––––––-
Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
http://www.nead.unama.br

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Artur da Távola (Eu Canto a Mulher Sofrida )

Sofrida é mulher por quem a vida passou machucando uma sensibilidade menina, feita de dádiva, confiança no próximo, esperança de melhorar o mundo.

Sofrida é a mulher que não viveu em vão, na delicia burguesa de ser objeto de sexo, admiração fácil ou mimo, preferindo o caminho penoso da independência, a procura honrada da própria dimensão pessoal, existencial, política.

Sofrida não é a pessoa derrotada ou apenas sofrente, fonte de dores e masoquismo sem fim: sofrida é a pessoa que tem energia e nervos para enfrentar na carne todas as disposições e contradições necessárias a viver e a conquistar o direito à vida, à liberdade, à solidão, ao afeto dos seus.

Sofrida é a pessoa que olha ao seu lado a miséria social e humana e não fica impassível ou indiferente, apenas porque se supõe livre de idêntico perigo.

Sofrida é a mulher de uma geração que assistiu à castração de seu sonho político, embora o veja crescendo, melhorando e se transformando pelo mundo a fora.

Sofrida é a mulher que viveu varias décadas em cada uma das três ultimas. É a pessoa que soube incorporar ao seu viver todas as dores necessárias à libertação: dos preconceitos próprios e alheios; dos atrasos ancestrais; da dor de viver adiante no tempo; das agressões retrógradas; das maldades profissionais; do medo da sua mensagem renovadora.

Sofrida é a mulher que teve restrições na sua carreira, ameaças, invasões do seu espaço vital por causa das suas idéias; por causa da sua capacidade de viver com intensidade tudo aquilo em que estava crendo do fundo de sua sincera convicção.

Sofrida é a mulher que assistiu à queda de muitos, ao cansaço de outros, à morte de terceiros, à dor, à tortura, ao vicio, à desistência à loucura, à resistência,à tenacidade, ou a convicção de todos os que se insurgiram contra qualquer forma de agressão humana, de opressão ou de injustiça.

Sofrida é a mulher que aí está, cada vez melhor porque de costas erguidas a despeito de tudo o que viu. Sofreu e passou.

Sofrida é a mulher que não desistiu de Ser; que não se alienou; que não fugiu da dor; que se embelezou com as rugas conseguidas; que se purificou com as impurezas que em si descobriu; que mergulhou com igual coragem na própria miséria e na própria grandeza, saindo melhor de ambas. 

Fonte:
Artur da Távola – Cada um no meu lugar, 1980

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Nilto Maciel (A Melhor Notícia)

A morte é a melhor notícia, até para alguns mortos, que logo depois confirmarão o fato nos jornais. Uns deixam a confirmação para o dia subsequente, a semana seguinte, mais um mês. Outros nunca dão a confirmação, sumidos nos mares, nas montanhas, florestas. São os desaparecidos. Os vivos nem ficam sabendo se aconteceu mesmo a morte: onde está o corpo? Ninguém sabe. Terá morrido de verdade? Só acredito vendo.

                   A morte é a melhor notícia. Se for morto importante, os donos dos jornais, das rádios e televisões riem à toa. As edições são reduplicadas. As manchetes tomam todas as primeiras páginas. Estampa-se imensa foto colorida do defunto. Televisões e rádios passam dias repetindo a morte súbita da autoridade, do cantor, do rico. Espicham a notícia noite afora. Fazem da morte uma novela interminável. Capítulo XX: “Como caiu o avião. Destroços em alto mar. Tubarões sedentos de sangue.”  

                   Templos se lotam no dia do enterro. Gente de todos os bairros disposta a chorar rios de lágrimas e rezar todas as orações pelo morto. No velório choram, gritam, morrem, tentam beijar a testa enrijecida. Os parentes a amigos do falecido se vestem de preto e cobrem os olhos com óculos escuros. Muitos desmaiam, as câmeras de televisão focalizam o instante crucial da dor do desconhecido.  

                   A caminho do cemitério, multidões saem às ruas, debruçam-se nas janelas, sobem aos viadutos. Nas casas, ruas, fábricas e bancos todos lamentam a morte do fulano. Comoção geral, feriado nacional, bandeira a meio-mastro, música fúnebre nas emissoras. Vende-se tudo nas ruas: bandeirolas, fitinhas, bandeiras do time de futebol pelo qual torcia o morto. Fofoqueiros têm motivos de sobra para conversar e passear. Nas filas, nas esperas, nos passeios, nas praças o assunto é um só: a morte de fulano. Há descobertas sensacionais: o extinto amava uma francesa nova, enquanto a esposa velha lamentava.

                   Na missa de sétimo dia, se o morto tiver sido católico, a notícia precisa ser renovada. O falecido está caindo no esquecimento. Se for cantor, compositor, tocam-se suas músicas mais conhecidas. Nas lojas aumentam-se os preços dos produtos. Os jornais publicam pôsteres coloridos: fotos de quando o fulano ou a fulana tinham 20 anos.

                   Inspiração também a morte dá: poetas fazem versos lamentosos com a palavra morte e a palavra vida. Repentistas aparecem de repente nas praças, tocando e cantando homenagens ao defunto. 

                   Todos lucram com a morte. O anônimo coveiro finalmente é entrevistado, com direito a voz e a inventar lendas; o vendedor de velas se ilumina; o jornaleiro grita emocionado; a rezadeira chora por quem foi. 

                   A morte é a melhor notícia. A morte inventa mitos, lendas, sagas, cria religiões, funda igrejas. Cristo morreu; o Cristianismo nasceu. A morte acaba guerras. Depois de Hitler, a paz. A morte acaba eras. Sem Nero, Roma se livra dos incendiários. Decapitaram Conselheiro, desapareceu Canudos. A morte acaba ciclos. Mataram Lampião, acabou-se o cangaço. A morte inicia eras. Um tiro em Vargas dá início à era pós-Vargas.  

                   Se o morto for pobre, anônimo, seus parentes e amigos lamentarão: Tão bom, mas Deus assim o quis. Os privilegiados serão notícia no obituário ou na página policial.

                   Quando queimaram um índio em Brasília, o mundo inteiro protestou, embora queimem índios desde Cabral, Hernán Cortés, Pizarro. Queimar mendigo também dá notícia, embora os assassinos nunca sejam encontrados. 

            Se criança morre de fome e sede, nos sertões e nas favelas, a morte não será notícia, mas apenas motivo de estudo e número na estatística. Os pais dirão: Deus quis assim. Dará lugar a outros. Melhor notícia só o nascimento do próximo mortal: José, Maria, Sebastião.

Fonte:

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Olivaldo Junior (Um ano do Blog da CaEs e da UBT Moji Guaçu/ SP)

Hoje o Blog da Casa do Escritor e da União Brasileira de Trovadores Moji Guaçu, SP, comemora um ano de vida no ar. Eu, Olivaldo, agradeço a todos que, direta ou indiretamente, colaboram para que ele prossiga. O momento serve também para que se faça uma pausa e se pense no quanto ainda falta alcançar. 

O que se pretende, seja em Moji Guaçu, seja em qualquer outra cidade do mundo, é que, de acordo com o nosso caso, a Literatura cresça e se perpetue na vida e no coração daqueles que ainda acreditam no poder das letras. Não escreverei que não há nenhum plano realmente efetivo de fomentação da cultura literária no Brasil, nem que as principais editoras comerciais não se propõem a publicar poesia, recusando o envio de originais para avaliação, pois, afinal, “poesia não vende”. Os poetas que tem publicado em livro suas criações o tem conseguido através de edições cooperativas, ou de financiamento das próprias obras, o que, se por um lado é louvável, por outro é muito triste. Como incitar o nascimento de novos Drummonds e de novas Cecílias, num lugar em que o verso é contrário ao que se espera de um escritor contemporâneo? 

Tivemos, ao fim do ano passado, encontros que se fizeram memoráveis. Dia vinte e oito de novembro, às vinte horas, houve a inauguração do Auditório Maria Ignez Pereira, na Estação Cultura, quando membros da CaEs e da UBT, o presidente da Academia Guaçuana de Letras Cícero Alvernaz e eu, Olivaldo, prestigiamos Maria Ignez no descerramento da placa que dera nome ao local de encontros e palestras da Estação. O então Secretário de Cultura Sr. Edenilson José Faboci comandou a honraria outorgada à poetisa, que leva o nome de Moji Guaçu a várias cidades do País, devido a participações em concursos. O músico Henrique Perina também esteve presente com seu violão, e ambos garantiram a trilha sonora da noite. Além de poemas e textos apresentados pelos escritores, Henrique e eu interpretamos duas músicas: Gotas de luar, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito e Pranto de poeta, da mesma dupla de sambistas. Henrique e eu “improvisamos” na apresentação deste samba. 

Dia trinta de novembro, às dezessete horas, foi a vez da premiação do Concurso de Poesias da Biblioteca Municipal João XXIII, no qual Afonso José dos Santos e eu, Olivaldo, fomos dois dos classificados. A premiação também contou com a presença de Maria Ignez Pereira, que foi chamada para entregar troféus e medalhas para alguns autores dos poemas escolhidos.

Dia primeiro de dezembro, às onze horas da manhã, lançou-se o livro póstumo Vida Vivida, de José Maria Duprat, membro da Academia Guaçuana de Letras, num dos auditórios das Faculdades Integradas Maria Imaculada (FIMI). A filha de Duprat, Caru, veio de São Paulo com a família toda para o lançamento do livro do pai, que, segundo a própria Caru, desejava ter o livro dele lançado em meio aos companheiros da AGL, de que era, mesmo morando em São Paulo, frequentador assíduo das reuniões da referida entidade. Foi emocionante ver a família de José Maria Duprat realizando um desejo do patriarca, um sensível cronista, que sempre reverenciava as coisas mais simples da vida como se elas fossem (e são) as coisas a que realmente se devem dar importância. Vida Vivida: uma lição. 

Dia sete de dezembro, na casa da poetisa e trovadora Maria Ignez, reunimo-nos para a última reunião de 2012 da CaEs e da UBT Moji Guaçu, SP. Estiveram presentes a anfitriã Maria Ignez, Afonso, Margarida (recém-chegada companheira), Roberto Nini, Samantha Lodi e eu, quando conversamos sobre os rumos dessas duas entidades no então vindouro 2013. Houve muita conversa e um lanche da tarde agradáveis. 

Retomando o primeiro assunto, eis que a internet e os meios de expressão, inclusive literária, oferecidos por ela tem-se expandido dia a dia. Há blogs que já se prenunciam como sendo “uma imprensa que não gasta papel”, o que é mesmo uma boa frase e, mais que isso, um conceito ecologicamente válido e correto nos dias que seguem. Mas que seria bom se morássemos num país em que a Poesia também tivesse ampla aceitação por editoras e casas publicadoras de livros em papel seria, seria, sim. Um dia, a Poesia vencerá. 

Lançamos há poucos dias o 2º Concurso de Poesias Carlos Cezar – 2013, que pretende ampliar o êxito do primeiro, atraindo a atenção de poetas da cidade e de várias partes do Brasil e do exterior, também. 

O Blog da CaEs e da UBT faz um ano de vida virtual, buscando, em verdade, a virtude dessa vida sem papel, mas bem atenta ao papel que tem: divulgar poetas e escritores daqui e de fora, dando rosas a quem chega a casa e oferta rimas, trovas ou prosa, que tudo é texto, ou espelho.

Olivaldo Júnior 
Presidente da Casa do Escritor 
e da UBT – Seção Moji Guaçu 

Fontes:
Montagem com imagens obtidas na internet

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João Carlos Faria (Tarde Sem Chuva)

Poemas rasgados na tarde de sexta … Enquanto a casa de Paraty esta vazia … Adentro a ela, uma casa sem nada, sem televisão, um espaço em branco a ser preenchido. Adentro a casa e leio Gramática Expositiva do Chão de Manuel de Barros … Nas ruas, crianças brincam, famílias brigam e cães dormem em quintais. Quanto clichê! Mas respiramos e adentramos a poesia. Os poemas de Manuel são simples, mas não são fáceis. Nunca vi um poeta fácil. Sou ex poeta… Mas leio vorazmente poetas. Nas tardes, a vida é sem rima, cheia de prazeres… Nas manhãs nas tardes e nas madrugadas conversamos em bancas de jornais, enquanto elas ainda existem … E a vida desfila em nossa frente. Várias cores de emoções…As emoções tem cores … E a casa de Paraty continua vazia … Ando por suas ruas com um vestido indiano. É, eu usando um vestido indiano, com um tênis no pé. Não tem nada a ver.

Quantas propostas fiz a sociedade e sempre continuo anônimo. Graças a Deus nunca saberia lidar com a fama. Ela não ajuda a entender o mundo. Estamos aqui brincando de aprender. Se não entendermos para que servem os clichês, a escrita se faz inútil. Assisti a um programa de TV onde um mestre do roteiro ensina as manhãs de um roteiro. Deveria assistir várias vezes. Nem sei se escreverei algum roteiro, mas já sei que não poderei mais contar com Walmor Chagas que acabou de pegar um avião para o desconhecido, sem passagem de volta. Não acho que a morte acaba com tudo. Já não sou ateu. Nem me lembro se fui ateu. Crer depende de atitude. Tarde sem chuva. Manuel tem um corte nos poemas, um ar cinematográfico no seu jeito de contar historias. É um poeta de hoje. Demorei para ler este autor e agora se faz importante. Desculpem minha vil ignorância, para mim, estar junto com Fernando Pessoa nos diz muito de formas sutis. Leio muitas e muitas vezes um poema. Faço do poema parte de mim.

Hoje ouvi Raul numa banca de revista, que tem muita importância para mim nestes últimos anos. Uma conversa e troca de amizade sem nenhuma competição e sim compartilhamento. As emoções tem cores as vejo nas pessoas. Antes de voltar a cidade,fiquei em silencio vendo as emoções coloridas de meus familiares e procurei o silencio. Tenho uma voz alta, carregada de emoção. Quando falo, as árvores tampam os ouvidos. Devo calar-me e escrever. Já fui performance e alguém falou que eu poderia ter feito sucesso,  faltava teorizar, para não ficar no vazio. Deixe o tempo passar a escrita se faz inútil a razão humana mas necessária ao coração. Pássaros cantam em meu coração, Manuel me abriu infinitas possibilidades… Como amigos em bancas de revista. Conheço o mundo sem sair de meu bairro. Mas não deixo de querer pisar no Chão da Amazônia, nem de andar nas areias dos lençóis Maranhenses.

Caraca não falei das mazelas dos desgovernos da politica … Danem-se as mazelas, são homens mediocres que governam … Somos tão imitadores da América do Norte que criamos ao nosso jeito, uma Republica de dois grandes partidos … Estou fora se Deus me permitir. Já não tenho tantas ilusões. Não quero um paleto de Barnabé… Só preciso de um trabalho honesto e um teclado de computador, quem sabe um Tablet para ler tantos e tantos livros que quando morrer talvez os esqueça. Assim como esquecerão minha má literatura. Esforço-me para criar meu próprio estilo. Como não há nada novo entre o céu e a terra, devo só escrever … Dias destes critiquei um texto de alguém. Não consigo ficar em silencio quando alguém que escreve muito, faz algum texto medíocre. É o sistema que nos engole. Desculpem não sou devasso. Talvez já queira ter sido. Mas nunca fui. Só está em meus escritos antigos. Passado passou … A vida sempre segue, adentro a minha Casa de Paraty…Esta vazia, mas completamente cheia de Utopia … Que Walmor descanse … A vida é longa e curta … As estrelas estão ai a nos iluminar … Preciso recolher-me ainda não é madrugada.

Fonte:

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Roberto Bolaño (Chamadas Telefônicas)

artigo por Julio Daio Borges, para o Digestivo Cultural
Roberto Bolaño tem sido ovacionado, em prosa e verso, como o novo herói trágico da literatura latino-americana. O fato de não ter sido devidamente reconhecido, o fato de não ter alcançado sucesso e o fato de desfrutar de uma glória póstuma, complementada por uma morte precoce, fazem de Bolaño o eleito para uma literatura que vê a geração do “realismo fantástico” à beira da aposentadoria. 
A verdade é que Roberto Bolaño é, mesmo, um grande escritor, apesar de toda a ovação que hoje o precede, e que, transformando-o num sucesso póstumo, gera desconfiança em leitores de agora. Uma boa introdução para Bolaño é, justamente, Chamadas Telefônicas, aparentemente mais uma coletânea de contos (para ele, que escreveu tanto…). Acontece que o livro fisga o leitor desde o primeiro conto, “Sensini”. Desde as primeiras frases se percebe a observação fina e as colocações sábias de quem entende do que fala. 
Uma das obsessões de Bolaño era o mundo literário. Falou de sua geração como ninguém. Mas falou de escritores, em geral, como poucos também. Sensini, o personagem, aliás, conclui: “O mundo da literatura é terrível, além de ridículo”. Bolaño não esquece os detalhes comezinhos, da literatura como trabalho (ou quase isso): “De vez em quando recebia um cheque por algum de seus numerosos livros publicados, mas a maioria das editoras se fazia de esquecida ou havia quebrado”. Ou das tentativas de sobrevivência dos escritores (latino-americanos ou não): “Quis voltar para a universidade mas, entre trâmites burocráticos e invejas e rancores dos de sempre, o acesso lhe foi negado e ele teve que se conformar em fazer traduções para algumas editoras”. 
A ironia de Bolaño lembra Villa-Matas, o espanhol, um dos grandes do nosso tempo: “Os maus poetas costumam sofrer como animais de laboratório, sobretudo ao longo de sua dilatada juventude”. Esse trecho, inclusive, é do conto “Enrique Martín”, dedicado a ninguém menos que… Enrique Villa-Matas (!): “Naquela época eu tinha vinte e cinco anos e pensava que já tinha feito de tudo. Enrique, pelo contrário, queria fazer de tudo e se preparava à sua maneira para engolir o mundo”. O que pensavam da obra um do outro? Bolãno teria influenciado Villa-Matas? Ou teria sido o contrário? Uma pergunta que as vindas de Villa-Matas ao Brasil provavelmente nos deixaram sem resposta. “A princípio, seu livro passa despercebido. Depois, num dos principais jornais do país, publica[-se] um resenha absolutamente elogiosa, entusiasta, que arrasta os demais críticos e transforma o livro num discreto sucesso de vendas”. 
Mas nem só de escritores vive Chamadas Telefônicas. Um dos contos mais líricos, e um dos mais tristes também, é “Joana Silvestri”: sobre uma atriz pornô italiana que vai reencontrar o amor em Los Angeles. “(…)ele tinha me chamado de Joannie, por uns segundos flutuei no ar como que drogada ou como se estivesse tecendo uma crisálida ao meu redor, mas depois me dei conta e ri e Jack soube do que eu ria sem precisar perguntar e sem precisar que eu dissesse nada”. 
Outro dos melhores contos do volume é “Vida de Anne Moore”: praticamente a crônica de desamores da personagem, que, em grande parte, transcorre nos Estados Unidos, sendo de uma verossimilhança quase absurda, para um autor “latino”. Nessa história, Bolaño não fala de escritores, mas fala de arte (ou de, ao menos, um artista): “Às vezes era insuportável, mas também sabia quando era insuportável e tinha então a virtude de se trancar no ateliê e pintar o tempo todo em que estivesse insuportável(…)”. 
No Brasil, a consagração de Roberto Bolaño tem se dado, logicamente, por Os Detetives Selvagens, sua obra-prima. Mas canhestramente, também, por 2666, uma obra póstuma, incompleta, que, na sua ambição, tem sido comparada até ao Dom Quixote. Nem tanto à terra, nem tanto ao mar: antes de encarar o gênio de Roberto Bolaño e se engasgar com sua inventividade, numa obra magna ou inacabada, a sugestão é se embrenhar pelos contos. Afinal, todo grande escritor se manifesta em qualquer formato, ou não se manifesta jamais.
Fonte:

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Nilto Maciel (Dimas Carvalho e o Reino da Poesia)

Conheço a literatura de Dimas Carvalho há muito tempo. Li quase todos os seus livros. Meu conhecimento dele, porém, veio depois. Vi-o pela primeira vez numa tarde de janeiro de 1997. Inaugurava-se o Bosque Moreira Campos (Faculdade de Letras da UFC). O evento está registrado em fotografias, três delas reproduzidas nas páginas derradeiras do Almanaque de Contos Cearenses, daquele ano. 
Não lembro mais quem me apresentou a Dimas. Talvez Pedro Salgueiro, relações-públicas da literatura cearense. Conhece todo mundo: acadêmicos engravatados, cordelistas de chapéu de couro, poetas de todos os naipes: enigmáticos, sorumbáticos, asmáticos. Frequenta, com desenvoltura, o banquete dos escritores de fraque e cartola e a alcova das hetairas. Pois deve ter sido ele o autor da apresentação de Dimas a mim. 
De longe, avistei aquela figura esquisita, a sorrir e palrar. Supus tratar-se de algum cigano (Pedro se dá bem com todas as maiorias e minorias), em busca da mulher perdida. Vestia calça de linho branco e camisa colorida (talvez portasse um punhal na cintura). Na cabeça, chapéu de feltro. No pescoço, cordão dourado. Nos braços, relógio e pulseiras de ouro. “Não vá se assustar. Dimas gosta de se mostrar assim. Além disso, anda sempre com, pelo menos, duas mulheres jovens e belas. É o dândi da ribeira do Acaraú.” Não me assustei, porque nem a poesia mais enigmática me assusta.
Depois daquele dia festivo (Moreira Campos merece mais homenagens como aquela), Dimas e eu pouco nos vimos, ele na sua Acaraú, eu em Fortaleza. Estivemos em bares e encontros de escritores, palestras em faculdades, lançamentos de livros, entrega de prêmios (as paredes e estantes de sua casa estão repletas de certificados, medalhas, etc). Tanto abocanhou prêmios que julgadores de concursos já dizem: “Não, desta vez Dimas não deve ganhar. Precisamos democratizar os concursos literários.” Não concordo com certas práticas democráticas. Pois isso ocorreu em certo concurso, do qual fui julgador. Dimas concorreu na categoria “livro publicado”. Dei meu voto, convicto de estar escolhendo o melhor. Os demais julgadores, no entanto, votaram em outra obra: “O livro de Dimas é o melhor, sim, mas ele já ganhou prêmios demais. Agora é a vez de outros.”
Amante das fêmeas humanas, Dimas escreve com um olho na folha de papel e outro nas ancas das moças. Apesar disso, não há uma só página em sua obra em que se vislumbre ao menos uma curva mais erótica.
Admirador de padre Antônio Tomás, sabe-lhe de cor todos os sonetos. E os diz, ufano, como se cantasse o Hino Nacional Brasileiro. Como o primeiro quarteto de “Verso e reverso”:
Essa mulher de face encaveirada
 Que vês tremendo em ânsias de fadiga
 Estendendo a quem passa a mão mirrada
 Foi meretriz, antes de ser mendiga. 
É sua intenção publicar em livro a obra do grande poeta de Acaraú.
Dimas é viajante nobre. Todo ano vai à Europa. Conhece, palmo a palmo, as ruas das principais cidades europeias. E tem memória fabulosa. Narra até os pormenores de seus passeios por Lisboa, Paris, Roma. Para o ouvinte é como se estivesse ao lado do poeta nas caminhadas pela História.
Por tudo isso, já valeria a pena conhecer Dimas Carvalho. Mas há ainda o poeta e o contista, ambos excelentes. É ler seus livros, suas fábulas perversas, suas pequenas narrativas, suas histórias de zoologia humana, seus poemas. O mais recente – Acaraú & outros países – é uma homenagem ao seu pequeno reino, a oeste do império dos tapuias. Nele há também um poema longo, monumental, desses que só os maiores conseguem compor: “Outros países”. São 21 sonetos de esquemas variados. Assim, os 11 primeiros se apresentam dentro do chamado modelo inglês. Todos – ou o todo – compostos como numa partitura. E então se vê, sobretudo, o rosto de Camões (não só nos versos “é para muito além que eu não desejo / cruzarmos os olhares redundantes / por mares nunca navegados dantes / dormem os caminhos que pra nós prevejo”) e o olhar iluminado do Jorge de Lima de Invenção de Orfeu (“Ser que nasceu bem antes do princípio / e que decerto nunca há de ter fim / pois ele é o próprio abismo, o berço, o início”).
Para ser poeta da estatura de colosso, bastaria este poema. Obra de quem se situa entre o eterno e o universal.
Fortaleza, 24 de agosto de 2009.
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Nilto Maciel (Carlos Nóbrega: O Quanto é Poeta)

O surgimento de mais um poeta bom – de mais um escritor talentoso, digamos – é sempre surpreendente. Porque costumamos – os leitores – dizer: a poesia se esgota em fulano, o conto atingiu o ponto culminante em sicrano, o romance teve seu último grande cultor em beltrano. Sim, Fernando Pessoa é único (ou múltiplo), Machado é quase insuperável, Guimarães Rosa escreveu um monumento.

Conheci Carlos Nóbrega recentemente, já neste século. Não sei se num bar (poetas continuam boêmios, bebedores e até morrem de cirrose). Talvez numa livraria (os bons escritores leem). Arredio, na grande cidade de Fortaleza ninguém o sabia poeta. Talvez apenas seus familiares e amigos. De ultimamente para cá tem me visitado em casa. Bebe e fala muito, lê demais e escreve como poucos. Na verdade, só fala muito depois de muito beber. Começa nas notas musicais: dó, re, mi… Depois do segundo copo, abraça os dissílabos: dose, reto, mito. Mais uns goles e chega aos trissílabos: dolente, rotundo, mítico. Quase bêbado, tropeça nos polissílabos: transforma tempestades em copos d’água, arrosta potestades, enfrenta malfeitores de versos. Mas sempre sóbrio, nem nobre, nem brega. Apenas Carlos Nóbrega, apenas poeta:

“Sou só Carlos, mas sou livre
E vivo mais do que é preciso. ”
(“Autobiografia”) 

Ofertou-me, neste julho de 2009, exemplar de seu mais novo livro: O quanto sou (Fortaleza, Expressão Gráfica, 2009). Li-o em algumas manhãs de muito sol na pequena sala onde passos grande parte do dia. Nela estão poucos livros: os meus, dos cearenses, ensaios, dicionários, gramáticas. O arroz-com-feijão do dia-a-dia. Nela estão também canetas, papel, computador, long-playings.

Carlos Nóbrega é sóbrio, na aparência: nada de barba, nenhum boné, roupas simples. 

“O artista é um paisano 
não precisa usar farda; 
Não precisa de uma barba 
 à Hemingway ou retilínea, 
 Nem dizer grandes palavras… 
Não precisa de uma blusa 
desleixada ou bonitinha 
Ou do boné, que é de Neruda 
nem da boina de Guevara. 
Ao artista basta a arte 
Não precisa de mais nada.”
 (“Contratipo”) 

Parece um homem comum, desses que se casaram para sempre, que frequentam templos, veem telenovelas com a esposa, torcem pelo Flamengo ou pelo Corinthians. Não, ele é incomum: é bom poeta: “Contra o torpor, / todo dia eu me fascino.” (“Imunização”) Veio ao mundo para compor versos como os do poema “Jogo”: 

“Vivo sempre neste jogo
Fugir de onde eu me pus
De dia eu quero sombra
De noite eu quero luz.
Me bastasse uma coisa só
Por exemplo luz e sol
Ou por outro cinza e sombra
O meu olho só teria
A cegueira do esplendor
Ou a certeza dos escombros.”

Não tivesse eu medo de ser copista – nos diversos sentidos da palavra –, passaria o resto destas folhas brancas (escrevo em caderno ainda) a copiar o livro de Carlos Nóbrega. Para prazer de meu punho e dos olhos de meus leitores. E haja voyeurismo!

Fortaleza, 17 de agosto de 2009.

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 25 de novembro de 1855: A Flor

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Falemos das flores.

O que é uma flor?

Será esta criação vegetal que na primavera se abre do botão de uma planta?

Não: a flor é o tipo da perfeição, é a mais sublime expressão da beleza, é um sorriso cristalizado, é um raio de luz perfumado.

Por isso há muitas espécies de flor.

Há as flores do céu – as estrelas, – que brilham à noite no seu manto azul, como os olhos de uma linda pensativa. 

Há as flores do ar – as borboletas, – que têm nas suas asas ligeiras as mais belas cores do prisma.

Há as flores da terra – as mulheres, – rosas perfumadas que ocultam entre as folhas os seus espinhos.

Há as flores dos lábios – os sorrisos, lindas boninas que o menor sopro desfolha.

Há as flores do mar – as pérolas, – filhas do oceano que saem do seio das ondas para se aninharem no seio de uma mulher morena.

Há as flores da poesia – os versos, – às vezes tão cheios de perfumes e de sentimentos como a mais bela flor da primavera.

Há as flores da religião – as preces, – modestas violetas que perfumam a sombra e o retiro.

Há as flores da harmonia – os gorjeios – que brincam nos lábios mimosos de uma bonequinha sedutora.

Há as flores do espírito – os ziguezagues, – que nascem sobre o papel como rosas silvestres e sem cultura.

(Não falo dos nossos ziguezagues, que, quando muito, são flores murchas).

Há enfim uma espécie de flor que é tão rara como a tulipa negra de Alexandre Dumas, como o cravo azul de Jean-Jacques, como o crisântemo azul de George Sand.

É a flor da vida, este sonho dourado, este puro ideal a que todos aspiram e de que tão poucos gozam.

Porque a flor da vida apenas vive um dia, como as rosas da manhã que a brisa da tarde desfolha.

E quando murcha, deixa dentro d’alma os seus perfumes, que são essas recordações queridas que nos sorriem ainda nos últimos tempos da existência.

Para uns a flor da vida nasce nos lábios de uma mulher; para outros no seio de um amigo.

Feliz do caminhante que à beira do bosque por onde passa colhe esta florzinha azul, espécie de urze cingida de uma coroa de espinhos.

Muitas vezes, depois de muitas fadigas, quando já tem as mãos feridas dos espinhos, e que vai colher a flor, ela se desfolha.

O vento soprou sobre ela, ou um verme roeu-lhe os estames.

Até aqui os meus leitores têm visto o mundo pelo prisma de uma flor; mas não se devem iludir com isso.

Algum velho político de cabelos brancos lhes dirá que isto são simples devaneios de uma imaginação exaltada.

A flor é a poesia, mas o fruto é a realidade, é a única verdade da vida. 

Enquanto pois os poetas vivem à busca de flores, os homens sérios e graves, os homens práticos só tratam de colher os frutos.

Eles vêem desabrochar as flores, exalar os seus perfumes, e esperam como o hortelão que chegue o outono e com ele o tempo da colheita.

E na verdade, a flor encerra sempre o germe de um fruto, de um pomo dourado, que outrora perdeu o homem, mas que é hoje a sua salvação.

A explicação disto me levaria muito longe, se eu não me lembrasse que até agora ainda não escrevi uma linha de revista, e ainda não dei aos meus leitores uma notícia curiosa.

Mas, a falar a verdade, não me agrada este papel de noticiador de coisas velhas, que o meu leitor todos os dias vê reproduzidas nos quatro jornais da corte, em primeira, segunda e terceira edição.

Poderia dizer-lhe que depois da epidemia vai-se revelando uma outra epidemia de divertimentos, realmente assustadora.

Fala-se em clube artístico, em baile mascarado no teatro lírico, em passeios de máscaras pelas ruas, numa companhia francesa de vaudevilles, e em mil outras coisas que tornarão esta bela cidade do Rio de Janeiro um verdadeiro paraíso.

Neste tempo é que os folhetinistas baterão as asas de contentes, e não terão trabalho de escrever tiras de papel; preferirão ir ao baile, ao passeio, ao teatro, colher as flores de que  hão de formar o seu bouquet de domingo.

Enquanto porém não chega esta bela quadra, essa primavera dos salões, esse abril florido da nossa sociedade, não há remédio senão contentarmo-nos com o que temos, e em vez de rosas, apresentar ao leitor as folhas secas do ano.

A respeito de teatro, não falemos; é uma casa em cujo pórtico (digo pórtico figuradamente) a prudência parece ter gravado a inscrição de Dante: – Guarda e passa.

Se desprezais o aviso e entrais, daí a pouco tereis razão de arrepender-vos.

Sentai-vos em uma cadeira qualquer: a vossa direita está um guísta; a vossa esquerda um chartonista.

Levanta-se o pano: representa-se a Norma ou a Fidenzata Corsa; canta uma das duas prima-donas, uma das duas prediletas do público. 

– Bravo! grita o gruísta entusiasmado.

– Que exageração! diz o chartonista estirando o beiço.

– Divino!

– Oh! é demais!

– Sublime!

– Insuportável!

E assim neste crescendo continuam os dois dilettanti, de maneira que o vosso ouvido direito está sempre em completa oposição com o vosso ouvido esquerdo.

Cai o pano.

No intervalo conversai um pouco com os vossos vizinhos.

– É preciso ser completamente ignorante, diz o gruísta com o aplomb de um maestro, para não se apreciar a sublimidade do talento desta mulher!

Vós, meu leitor, que não quereis assinar um termo de ignorante, não tendes remédio senão confessar-vos gruísta, e em lugar de dois pontos de admiração dais três.

– Com efeito, é uma artista exímia!!!

Apenas acabais a palavra, quando o chartonista vos interroga do outro lado.

– É possível que um homem de gosto e de sentimento admita semelhantes exagerações?

Ficais embatucado; mas, se não quereis passar por homem de mau gosto, deveis imediatamente responder:

– Com efeito, não é natural.

Daí a um momento o vosso vizinho da direita retruca:

– Veja, todos os camarotes da 4ª ordem estão vazios.

– É verdade!

Torna o vizinho esquerdo:

– Com esta chuva, que casa, hem!

– Boa!

Agora acrescentai a isto as desafinações do Dufrene, a rouquidão do Gentile, os cochilos do contra-regra, e fazei idéia do divertimento de uma noite de teatro.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 18 de novembro de 1855: Folhetim-livro

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Desta vez estou de verve; vou escrever um livro.

Se bem me lembro, já dei aos meus leitores um folhetim-romance, um folhetim-comédia, um folhetim em viagem, um folhetim-álbum.

Faltava-me porém dar um folhetim-livro, e por isso quero hoje realizar essa nova transformação do Proteu da imprensa.

De fato o folhetim já por si é um livro; é o livro da semana, livro de sete dias, impresso pelo tempo e encadernado pela crônica; é um dos volumes de uma obra intitulada o Ano de 1855.

Neste volume a cidade do Rio de Janeiro faz as vezes de papel de impressão, os habitantes da corte são os tipos, os dias formam as páginas e os acontecimentos servem de compositores.

Mas não  é disto que se trata, e sim do projeto gigantesco que concebi de escrever hoje um livro-folhetim.

Há de ser um livro completo, precedido de um prólogo, dividido em capítulos, e escrito com toda a gravidade de um homem predestinado a visitar a posteridade envolvido em uma capa de couro e na companhia das traças, das teias de aranha e da poeira das estantes.

Preparem-se pois os meus leitores, limpem os vidros dos óculos, tomem a sua pitada de rapé, e… aí têm o livro.

por ora é apenas o título:

LIVRO DA SEMANA

ou

História circunstanciada do que se passou de mais importante

nesta
Cidade do Rio de Janeiro

desde
O dia 11 do corrente mês, em que subiu aos ares com geral admiração, o balão aerostático até o dia de hoje 18

compreendendo
todos os acontecimentos mais notáveis 
da semana, não só a respeito de
teatros e divertimentos,
como em relação à política, às artes
e ciências

OBRA CURIOSÍSSIMA
em todos os sentidos

escrita
no ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo
de 1855

por
UMA TESTEMUNHA OCULAR
RIO DE JANEIRO
MDCCCLV

Tipografia do Diário do
Rio de Janeiro.

Ao título segue-se a dedicatória.

Há certas obras em que a dedicatória é um simples luxo; em outras porém, como nesta, é de rigor.

Uma dedicatória deve ser simples e verdadeira.

por exemplo:

AOS MEUS RESPEITÁVEIS LEITORES.
O. D. C.

Em sinal de consideração e preguiça de escrever o folhetim de hoje.
O  AUTOR.

(Ora muito bem: quanto a título e dedicatória, estamos arranjados; passemos à terceira página, em que naturalmente deve vir o prólogo.

O prólogo é o bom dia de um escritor ao seu leitor, é o aperto de mão amigável de um sujeito que é apresentado a outro a quem não conhecia; é a cortesia do orador que cumprimenta o seu auditório antes de começar o discurso.

Vamos ver como nos saímos do prólogo: tenha o leitor a bondade de passar à outra página).

PRÓLOGO

Não é a ambição de glória que me faz dar hoje à luz este pequeno Livro da Semana, fruto de algumas horas de trabalho; é unicamente o desejo de tornar-me útil no meu país e de concorrer com um óbulo para a grande obra da nossa literatura pátria, que induziu-me a registrar os fatos importantes da semana que acabou ontem 1.

Se o público acolher bem este meu primeiro filho, talvez que animado pela sua benevolência me resolva a continuar na carreira encetada. Do contrário consolar-me-ei com a consciência de ter cumprido o meu dever.

Rio, 18 de novembro.
O AUTOR.

Depois do prólogo, o autor costuma fazer uma introdução, na qual apresenta o plano geral de sua obra, e prepara o espírito do leitor para seguir o desenvolvimento das idéias contidas na sua obra.

Passemos pois à

INTRODUÇÃO

Esta semana que acabou apresentou uma face curiosa pelo lado da insipidez.

Portanto o leitor não deve esperar uma descrição poética, nem mesmo essa variedade que encanta e deleita.

Omnis variatio delectat2.

Apenas procurarei fazer a narração fiel, não desses boatos sem fundamento que por aí correm, mas daquilo que eu próprio vi e ouvi3.

Começarei pelo começo.

Feita a introdução, passa-se ao primeiro capítulo, que é uma espécie de segunda introdução.

Alguns autores usam capítulos com sumários; outros apenas dão uma idéia geral daquilo sobre que vão tratar.

O meu autor é deste último sistema.

Eis o índice dos capítulos, que forma a 4ª página:

Cap. 1º – Em que o autor mostra por que feliz acaso lhe veio a idéia de escrever este livro.

Cap. 2º – Em que o autor, depois de refletir profundamente; resolve-se a começar pelo princípio e acabar pelo fim.

Cap. 3º – Que serve para mostrar como o domingo e a segunda-feira foram dois dias muito insípidos.

Cap. 4º – Como o autor foi ao teatro lírico terça-feira ouvir música, e voltou muito desgostoso por causa da chuva, que fez com que a casa estivesse inteiramente vazia.

Cap. 5º – No qual se contam duas viagens importantes que fez o autor esta semana, uma ao redor da baía no vapor Marques de Olinda, e outra ao redor de uma mesa de almoço ao vapor do champanha.

Cap. 6º – Em que o autor, não tendo mais nada que contar, começa a dar tratos à imaginação para descobrir alguma boa idéia e encher o resto das páginas que lhe faltam.

Cap. 7º – Como o autor, sempre à busca da sua idéia, começa a roer as unhas, indício certo de que a imaginação já vai se iluminando.

Cap. 8º – No qual o autor lembra-se finalmente que podia falar da Grua e da Charton; mas por fim resolve-se a fazer reticência.

Cap. 9º – Em que o autor trata de diversas coisas, e especialmente de encher papel.

Cap.10º – Que serve de conclusão à obra.

Agora, eu podia escrever todos estes capítulos: mas de que servia?

Todo o mundo sabe que um livro hoje em dia não é mais do que o título, o prólogo, a introdução, e o índice dos capítulos.

O leitor passa os olhos rapidamente, folheia o livro, e apenas de espaço a espaço encontra uma boa idéia, um trecho interessante.

O mais não vale a pena ler, porque reduz-se a uma meia dúzia de palavras, a uma caterva de citações.

Suponha portanto o leitor que, depois de ter lido o título, folheia o nosso livro, e lê unicamente os seguintes trechos:

Afonso Karr diz não sei onde que o elogio não tem merecimento, senão quando aquele que elogia podia dizer o contrário, e aquele que é elogiado podia consentir que se fizesse uma censura.

Eu, que não posso deixar de aceitar este preceito de mestre, que o acho muito justo e razoável, sempre que censuro é unicamente para dar valor ao elogio quando chegar a ocasião de faze-lo.

Quando censurar a Charton, é unicamente para mostrar que os elogios que lhe fizeram foram merecidos; quando fizer um reparo a respeito da Grua, é somente porque desejo ter ocasiões de lhe fazer todos os elogios.

Demais uma censura tem sua graça e seus chistes, enquanto que o elogio constante é de uma monotonia insuportável.

Quem poderia aturar um céu azul, um sol brilhante e um dia límpido e sereno, se não fosse a chuva e a temperatura de que lhe servem de contraste?

Quem admiraria as moças bonitas, se não fosse a quantidade de mulheres feias que existe neste mundo, e que se encontra a cada passo?

Quem apreciaria certas iguarias, se não fosse a pimenta, a mostarda, e o tempero de que são adubadas?

O mesmo sucede com o elogio; a censura é a pimenta que lhe dá o sainete, é a fome  que o faz saboroso, é a tempestade que quando se desfaz deixa o céu mais límpido e sereno.

Acho esta teoria tão boa que estou resolvido, pelo bem de todos, a sacrificar-me e a não elogiar a mais ninguém.

De agora em diante arrogo-me o direito de crítico, e começo a fazer censuras por conta dos elogios que já fiz e dos que possa vir a fazer.

E portanto comecemos.

Censuro em primeiro lugar os admiradores das cantoras que não admitem a menor observação, por mais delicada que seja.

Parece que a força de olharem para o sol ficaram deslumbrados, e não vêem por conseguinte aquilo que salta aos olhos.

Censuro depois as próprias cantoras, porque julgam que é, exagerando-se que hão de realçar o seu merecimento. 

Todos nós sabemos que isto nada vale; há bem pouco tempo que o céu mesmo nos deu uma lição mostrando-nos ao meio-dia uma estrela junto do sol.

O sol brilhava, mas a estrela derramava sua luz calma e serena.

Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao meu leitor por não ter melhor empregado o seu tempo.

Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao meu leitor por não ter melhor empregado o seu tempo.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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Nilto Maciel (Mestre Moreira Campos)

Estive com Moreira Campos em duas ocasiões, apenas. Apesar disso, desde antes do primeiro encontro já sentia por ele grande amizade e, acredito, ele me dedicava o mesmo sentimento.

Não lembro quando o li pela primeira vez. Possivelmente por volta de 1964, quando passei a ler suplementos literários de jornais de Fortaleza. Nesse tempo pontificavam nas Letras cearenses os nomes de Artur Eduardo Benevides, Braga Montenegro, Eduardo Campos, Francisco Carvalho, Fran Martins, Jáder de Carvalho, João Clímaco Bezerra, Milton Dias e outros. O nosso Moreira Campos estreara em livro, com o elogiadíssimo Vidas Marginais, em 1949. Contava 35 anos de idade. Não tinha nenhuma pressa em se mostrar ao público e à crítica. Escrevia e reescrevia, como outro ilustre contista, o mineiro Murilo Rubião. E ao final de sua longa vida havia publicado apenas 137 contos.

Até 1964, Moreira Campos havia publicado apenas três livros, porém já figurava como um dos melhores contistas cearenses. Na apresentação de Uma Antologia do Conto Cearense, de 1965, Braga Montenegro dizia: “Os contistas de maior renome do atual momento da literatura do Ceará são Eduardo Campos e Moreira Campos.”

Somente em 1978 adquiri e li Os Doze Parafusos e Contos Escolhidos. Anos depois, quando já nos correspondíamos, ele me ofertou outra seleção de seus contos, intitulada Dizem que os Cães Veem Coisas. E é de maneira carinhosa que afirma a sua amizade por mim: “Para Nilto Maciel, mestre do mesmo ofício, com a velha admiração e o abraço fraterno do Moreira Campos. Fortaleza, 6/XII/87.” Pode parecer cabotinismo de minha parte o transcrever essas palavras. Porém, minha intenção é tão-somente falar dessa amizade dele por mim. Pois apenas uma grande amizade faria um mestre tratar assim um aprendiz.

Na verdade, ainda não nos conhecíamos pessoalmente, embora mantivéssemos correspondência havia algum tempo. Em 1982 enviei-lhe carta e exemplar de um de meus livros. É de 12/12/82 a sua primeira carta, que assim começa: “Recebi A Guerra da Donzela, que li numa tarde, entusi­asmado com a sua linguagem, e estrutura, suprarealista. Já o conhecia de Tempos de Mula Preta…” Não transcrevo a carta toda, porque aqui não quero falar de mim, mas dele.

Noutra missiva, de 11/2/83, ele anuncia uma viagem ao Rio, a São Paulo e a Brasília, “onde gostaria muito de encontrar-me com você.” E dias depois ele me visitou. Apresentou-se, embora já conhecesse de fotografias o seu rosto. Falou-me da viagem e de livros. Foram apenas alguns minutos de conversa.

Voltamos às correspondências alguns anos depois. E não sei explicar o motivo desse silêncio tão prolongado. Em 6/3/87 acusou o recebimento do meu Punhalzinho Cravado de Ódio. Comentou-o, elogiou-o. E anunciou a próxima edição do seu Dizem que os Cães Veem Coisas. É de 16/7/87 outra carta. Refere-se ao meu Estaca Zero.

Outro período de silêncio, e somente em 1992 voltou a me escrever. Desta vez para opinar sobre o tema “Ler ou não ler”, para a edição nº 3 da revista “Literatura”. E lá está seu desabafo: “Sou hoje um desiludido com a literatura, embora a minha crença no seu valor perene.” E não poderia ser outro o seu sentimento, pois, sendo um contista maravilhoso, nenhuma grande editora se interessava pela publicação de sua obra.

A segunda vez em que nos vimos foi no dia da morte de meu pai, em 10/1/88. E mais uma vez ficava demonstrada a sua amizade por mim. Não quero me queixar de outros amigos, por não terem comparecido ao velório e sepultamento de meu genitor. Quero tão-somente lembrar o gesto amável de Moreira Campos. E a sua preocupação em me consolar.

Outra grande virtude dele era a modéstia. Pois, apesar de citado e estudado em diversos livros; apesar de traduzido para o alemão, o inglês, o francês, o italiano e o hebraico; apesar de ser um dos melhores contistas brasileiros do século XX; apesar disso tudo, não buscava elogios e tratava os mais novos como seus companheiros de ofício. Não se julgava mestre e não chamava os mais novos de aprendizes. Como se estivesse ele mesmo em contínuo aprendizado, lendo as novidades, comentando livros novos, sem nunca deixar de lembrar os grandes mentores do conto.

Sua última carta a mim é de 10/3/93. Nela anuncia a publicação de um livro seu de contos pela editora Siciliano. A seguir veio a doença. Amigos me falavam de seu estado de saúde. E das homenagens que a ele se preparavam no Ceará, por ocasião de seu 80º aniversário. Como a edição da dissertação acadêmica Moreira Campos, a Escritura da Ordem e da Desordem, do professor José Batista de Lima.

Em 7/5/94 José Maria Moreira Campos nos deixou.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/201

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio,11 de Novembro de 1855: Um Romance

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estou decidido a não escrever hoje a minha revista, e como os meus leitores não quererão dispensar o seu folhetim dos domingos, não há remédio; vou fazer um romance.

Um romance!

Não é qualquer coisa, é uma história dividida em capítulos, que principia rindo e acaba chorando, ou vice-versa; e na qual devem entrar necessariamente um namorado, uma moça bonita, um homem mau, e diversas outras figurinhas de menos importância.

Um romance em regra só pode começar de manhã ao romper do dia, de tarde ao rugido da tempestade, e de noite ao despontar da lua: excetuam-se os romances domésticos, que não têm hora certa, e que regulam-se pelo capricho do autor.

Ora, o romance que eu pretendo fazer está inteiramente fora da regra, porque não tem começo, nem fim; e quanto aos personagens limitam-se a dois unicamente.

Enfim, sem mais preâmbulo, vou contá-lo aos meus leitores, que lhe darão o apreço que entenderem.

Foi há muito tempo.

A Malibran, a bela e poética Malibran, cismava sozinha, com a cabeça indolentemente caída sobre o ombro, e os grandes olhos negros e melancólicos vagando no espaço.

A noite estava límpidas e serena; as estrelas cintilavam no azul do céu; o vento que suspirava na ramagem das árvores mal quebrava o silêncio das horas mortas.

De repente os lábios da artista se entreabriram num sorriso, e um gorjeio sonoro, um trilo brilhante começou a brincar nas covinhas da boca, e por fim foi aninhar-se no cálice de uma margarida que crescia num vaso.

Um momento depois, o olhar da Malibran animou-se, a graça e a faceirice do sorriso desapareceram com a expressão ardente e apaixonada que iluminou o seu semblante.

A voz desprendeu-se vibrante e profunda do seio que palpitava, e soltou-se numa dessas volatas magníficas, num desses gritos d’alma que não se exprimem.

A nota pairou um momento nos ares; depois oscilou ao sopro da brisa, e caiu entre as folhas de um botão de rosa, como uma gota do orvalho da noite.

Até aqui o meu romance é muito simples e nada tem que admire.

São duas notas gêmeas, filhas do mesmo sorriso, criadas pelo mesmo sentimento, duas irmãs que a sorte deste mundo separou, dando-lhes um destino diverso.

Mas o que segue é o mais interessante; agora é que o romance vai começar.

A Malibran, apesar de artista e de achar-se então na flor da idade, aborreceu-se de cismar, e teve sono; o sono, assim como a fome, é um dos prosaísmos deste mundo a que ninguém escapa, seja rei ou poeta.

Logo que sentiu que as pálpebras lhe pesavam, a bela artista lançou um último olhar às flores do céu e às estrelas da terra, e fechou a sua gelosia.

Houve um momento de silêncio.

Depois a brisa travessa roçou ligeiramente as suas asa pelas folhas; e uns dons maviosos, um canto trinado e argentino exalou-se do seio de uma flor.

Era o gorjeio da Malibran, que balouçando-se no cálice da margarida, trilava uma ária do Barbeiro de Sevilha, como se estivesse na avant-scène do teatro lírico.

Mal tinha ele começado, quando sentiu-se um farfalhar de folhas agitadas pelo vento, e viu-se a rosa erguer a fronte de princesa, volver a haste com um meneio altivo, e deixar cair do seio uma nota límpida, sonora e brilhante, que ofuscou inteiramente o pobre gorjeio.

Desta vez era a volata da Malibran, que adormecida entre as folhas da rosa despertava de repente e se lançara no espaço, julgando que ia fazer estremecer o salão da Ópera com a tríplice salva de aplausos do costume.

Mas, em lugar desses admiradores entusiastas, não havia ali senão dilettanti modestos que apenas sabiam aplaudir com o silêncio; e por isso a viração calou-se, e as águas nem sequer murmuraram.

Entretanto a margarida teve inveja da rosa; o gorjeio teve ciúme de seu irmão, e para vingar-se abandonou o seio da flor, e transformou-se num rouxinol.

Largou-se então a cantar, a trinar, a fazer arrulhos doces e mimosos, como sons de pérola que corressem entre os dedos afilados de uma menina graciosa; tudo para ele era um hino de prazer: de um som fazia um canto, de um canto um poema de harmonia.

Todos o admiravam; porém, quando julgava o seu triunfo certo, viu deslizando nas águas tranqüilas do lago o cisne da Itália, que modulava o seu último canto, essa criação poética imaginada para exprimir o canto d’alma que se despede da terra e cria asas para remontar ao céu.

O cisne soltou um ou dois harpejos, cheios de melancolia e de sentimento; e bastou isto para que o rouxinol batesse as asas e cortasse os ares num vôo rápido.

Aqui termina a primeira parte do romance. Se quereis saber o resto, continuai a ler; se não, voltai a folha, e lede os anúncios, que não deixam de ter o seu interesse, sobretudo para quem tem de alugar amas de leite.

Voltem, aos assunto.

O rouxinol voou, até que chegou a uma bela terra toda coberta de loureiros em flor e de fustes de colunas de mármore espalhadas a esmo.

Era a Grécia, se bem me lembro.

Corria perto, entre um montão de ruínas tapeçadas de hera e de musgo, o Rio Alfeu, o amigo e colega dos poetas da Arcádia.

A alguns passos destacava-se um grupo de estátuas, que pelo primor da carnação e pela delicadeza do perfil pareciam ter saído do buril de Fídias ou Praxíteles.

O rouxinol pousou num ramo de árvore, e olhou as estátuas batendo as asas de contente; mas voltando-se viu o cisne que ele tinha deixado na Itália, banhando-se nas águas do Alfeu.

Ambos lançaram-se ao grupo das estátuas: o rouxinol aninhou-se no seio de uma ninfa, cujo nome não me lembro; o cisne pousou no ombro de uma Safo.

De repente as duas estátuas animaram-se, estremeceram, e por um movimento instintivo, elas que tinham vivido sempre juntas, elas que eram irmãs de arte e de pensamento, elas que eram feitas do mesmo mármore, voltaram-se as costas e separaram-se.

Assim viveram muito tempo, até que um dia ouviu-se um hino de amor, e as duas estátuas foram-se aproximando a pouco e pouco, sorriram uma para a outra, e deram-se as mãos.

A música que se ouvia era o spartito de Romeu e Julieta; e as duas estátuas animadas pareceram-nos…

Adivinhem os leitores, ou antes esperem pelo dia 2 de dezembro, em que nos consta se representará Romeu e Julieta: aí acharão o fim deste romance, se é que ele tem fim.

Depois de ter escrito um romance, é duro fazer uma crônica, ainda mesmo de uma semana como esta, em que nada de bom há a dizer.

No teatro lírico tem-se representado o Nabuco, com geral aceitação. O Walter é um excelente artista, e tem um canto cheio de expressão e de elegância; quando se o ouve conhece-se que há nela mais do que bela voz e boa figura, há alma e sentimento.

A Grua canta perfeitamente, canta como ela costuma cantar, mas, com licença dos admiradores, e portanto com licença de mim mesmo, o folhetinista que viu o Otelo, a Norma, Sapho e Nabucodonosor, tem o que quer que seja a dizer sobre o desempenho desses diferentes papéis.

O artista é como o Proteu da fábula; deve ter o dom de metamorfosear-se a cada momento; deve mudar de figura, de sentimento, de expressão, assim como muda de vestuário.

Norma é uma mulher selvagem que ama com essa paixão violenta e profunda das naturezas primitivas, que sacrificou ao seu amor e crença de seus pais, a sua virgindade e os votos de sua religião; e tudo isto por um inimigo de sua pátria.

Norma é uma amante criminosa, desprezada, que procura vingar-se a todo o transe, que ameaça no seu desespero a sua rival, a seu amante, e a seus filhos; e que só à beira do túmulo, junto à fogueira, torna-se mulher, e perdoa.

Safo é um espírito cultivado, uma alma de poeta, que sente todos os extremos do amor, e que o desprezo leva à morte, não por uma vingança, mas por um sacrifício voluntário, por um desapego à vida.

A respeito de Abigail não falemos; caráter ambicioso, mais orgulho do que amor, condena-se à morte por despeito ou antes remorso.

Entretanto, mudado o vestuário, há na Safo o que quer que seja do ciúme da Norma, assim como em Abigail se reconhecem ainda uns longes da musa grega e da sacerdotisa druídica.

Faltava-me defender as Mulheres de Mármore de uma acusação injusta de imoralidade que se lhes tem feito.

Mas o público que tem concorrido ao Ginásio, e os diversos folhetinistas que elogiam constantemente o drama, me dispensam de gastar tempo e papel.

É preciso saber como entende-se essa imoralidade de que se trata; porque nós já não estamos no tempo em que as meninas de 20 anos ficavam com as faces em brasa quando um pai um pouco desbocado falava por descuido em amor ou casamento.

Hoje as moças de 10 anos geralmente discutem as diversas teorias do amor, e sabem o que é preciso para não ignorar coisa alguma; falam do casamento como de uma partida de prazer; lêem romances franceses, e riem-se com muito gosto quando se representam as proezas de Richelieu.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 4 de Novembro de 1855: Pergunta aos Leitores

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Desejava dirigir uma pergunta aos meus leitores.

Mas uma pergunta é uma coisa que não se pode fazer sem um ponto de interrogação.

Ora, eu tenho uma birra muito séria a esta figurinha de ortografia, a esta espécie de corcundinha que parece estar sempre chasqueando e zombando da gente.

Com efeito, o que é um ponto de interrogação?

Se fizerdes esta pergunta a um gramático, ele vos atordoará os ouvidos durante uma hora com uma dissertação de arrepiar os cabelos.

Entretanto, não há coisa mais simples de definir do que um ponto de interrogação; basta olhar-lhe para a cara.

Vede: – ?

É um pequeno anzol.

Ora, para que serve o anzol?

Para pescar.

Portanto, bem definido, o ponto de interrogação é uma parte da oração que serve para pescar.

Exemplo:

1º Quereis pescar um segredo que o vosso amigo vos oculta, e que desejais saber; deitais o anzol disfarçadamente com a ponta da língua:

– Meu amigo, será verdade o que me disseram, que andas apaixonado?

2º Quereis pescar na algibeira de algum sujeito uma centena de mil réis; preparais o cordel e lançais o anzol de repente:

– O sr. Pode emprestar-me aí uns 200 mil réis?

3º Quereis pescar algum peixe ou peixãozinho: requebrais os olhos, adoçai a voz, e por fim deitais o anzol:

– Uma só palavra: tu me amas?

É preciso porém que se advirta numa coisa.

O ponto de interrogação é um anzol, e por conseguinte serve para pescar; mas tudo depende da isca que se lhe deita.

Nenhum pescador atira à água o seu anzol sem isca; ninguém portanto diz pura e simplesmente:

– Empresta-me 300 mil réis?

Não; é preciso que o anzol leve  isca, e que esta isca seja daquelas que o peixe que se quer pescar goste de engolir.

Alguns pescadores costumam deitar um pouco de mel, e outros seguem o sistema dos índios que metiam dentro d’água certa erva que embebedava os peixes.

Assim, ou dizem:

– Meu amigo, o senhor, que é o pai dos pobres, (isca) empresta-me 300 mil réis? (anzol).

Ou então empregam o segundo meio:

– Será possível que o benfeitor da humanidade, o homem que todos apregoam como a generosidade personificada, que o cidadão mais popular e mais estimado desta terra, que o negociante que revolve todos os dias um aluvião de bilhetes do banco, me recuse a miserável quantia de 300 mil réis?

No meio do discurso já o homem está tonto de tanto elogio, de maneira que, quando o outro lhe lança o anzol, é com certeza de trazer o peixe.

Ainda tinha muita coisa a dizer sobre esta arte de pescar na sociedade, arte que tem chegado a um aperfeiçoamento miraculoso.

Fica para outra ocasião.

Por ora basta que saibam os meus leitores que o ponto de interrogação é um verdadeiro anzol.

O caniço desta espécie de anzol é a língua, e o fio ou cordel a palavra; fio elástico como não há outro no mundo.

Ás vezes, quando se olha para esta figurinha aleijada, o ponto de interrogação parece-se mais com um daqueles corcundinhas, espécie de demoninhos maliciosos, de que falam os contos de fada e que viviam a fazer pirraças aos homens.

É que de fato há ocasiões em que ele torna-se realmente um anãozinho zombeteiro e impertinente, que leva a ousadia até a rir-se nas barbas de um pobre homem.

Haveis de ter encontrado pelo mundo algum desses homens que depois de terem feito todo o mal que podem a outro, vêm com o riso nos lábios insultar a dor e envenenar com sua baba a ferida mal cicatrizada.

Este homem atira à cara do outro o corcundinha de que vos falei, e dirige pouco mais ou menos uma pergunta neste sentido:

– Então, meu amigo, por que não me conta os seus pesares? Não tem confiança em mim?

Há também um certo ponto de interrogação que tem seus ares de mestre de latim ou de professor de primeiras letras.

Este é carrancudo e severo; tem a voz áspera e fanhosa, como do homem que toma rapé; e ordinariamente anda aos pulos.

Lembro-me perfeitamente que na minha aula de latim às vezes estava eu bem distraído, quando ele saltava-me pela frente gritando:

– Hora-ae, vocativo?

Felizmente todas as coisas deste mundo têm verso e reverso; o ponto de interrogação, que quase sempre é um anzol, um anão corcunda, ou um pedagogo, parece-se às vezes com um desses meninos travessos e gentis, um desses anjinhos curiosos e inocentes que desejam saber tudo.

Então ele pergunta, mas é como o filho à sua mãe; ri-se, mas é de prazer e de alegria; e leva todo o tempo a brincar entre as palavras, como o colibri no meio das flores.

Vou mostrar-vos essa face risonha do ponto de interrogação, esse verso da medalha cunhada pelos gramáticos.

É uma poesia que li, não sei onde, e que só tem um defeito: o de ser uma pergunta sem resposta.

Ei-la:

A Emy La-Grua

Que geme de amor,
Que beija lasciva
O seio da flor,
Colhe em teus beijos
O brando suspiro,
A brisa furtiva
Os doces bafejos
De que eu me inspiro?
A onda ligeira
Que treme e palpita,
Que de feiticeira
Murmura e saltita,
Viu-te no sorrir
Que o lábio desata
Brincar e fugir
A doce volata?

A corda da lira
Que mal estremece,
E tênue suspira
Um som que entristece,
Bebe em teu pranto
O débil queixume,
Guarda de teu canto
O eco, o perfume?

Tens nos lábios teus
A flor da harmonia,
Que dás como Deus, 
Aos sons melodia, 
Acento divino,
A vaga o seu friso,
Às auras um hino,
E a tudo o sorriso?

Dos anjos soubeste
As notas sublimes
D’harpa celeste,
Com que tudo exprimes;
Ou deu-te o amor
A chama sagrada,
O grito da dor,
A voz inspirada?

Agora é muito natural que, depois de ter lido toda esta maçada, depois de ter virado e revirado em todos os sentidos o ponto de interrogação, o meu leitor esteja desesperado por saber qual era a pergunta que eu lhe pretendia fazer, e que deu causa a todo esse aranzel, misturado de poesia.

É muito justo, e por isso vou satisfaze-lo.

Queria contar domingo passado.

É um conto a respeito das mocinhas brasileiras.

O prometido é devido.

Aí vai pois:

“Um dia a fada Beleza desceu à terra, resolvida a distribuir por todas as moças os tesouros de graça e mimos que possuía.

“Mandou que seu irmão o anãozinho Amor chamasse uma mulher de cada nação, para receber o dom que lhe coubesse.

“Quando todas estavam reunidas, a fada começou a distribuição dos seus presentes.

“Deus à Andaluza cabelos negros e tão longos que lhe podiam servir de mantilha.

“A Italiana olhos brilhantes e ardentes como as estrelas do céu de Nápoles.

“A Árabe  um moreno excitante e uma pele doce e macia como as penas do marabu.

“A Inglesa uma aurora boreal para tingir as faces, os lábios e as espáduas.

“A Alemã pérolas para os dentes e miosótis para os olhos suaves.

“A Russa a distinção de uma princesa e a nobreza necessária para trazer um nome de sete sílabas terminado por off.

“A Francesa a delicadeza do lírio com a graça e o mimo das rosas.

“Depois, passando aos detalhes, deitou a alegria nos lábios da Siciliana, o espírito na cabecinha loira da Irlandesa, o bom senso no coração da Holandesa.

“Então a Brasileira, que por modéstia e por timidez estivera retirada a um canto, puxou docemente a ponta da túnica azul da fada.

– “E eu?

– “Ah! tinha te esquecido.

– “É verdade.

“E agora como há de ser? Já dei tudo que trazia.

– “Mas eu fico sem nada?

A fada refletiu um momento: depois, chamando as outras com um sinal, disse-lhes:

– “Vós sois tão boas que espero haveis de reparar uma falta que cometi esquecendo na distribuição a vossa irmã do Brasil. Eu vos peço pois que cada uma tire um pouco do presente que lhe fiz, e o dê a esta menina tão modesta.

– Não era possível recusar.

“Todas as mulheres do mundo, com uma graciosa amabilidade, chegaram-se à Brasileira, e deram-lhe, uma os seus cabelos negros, outra as estrelas dos seus olhos, esta o sorriso de seus lábios, aquela a ondulação de suas formas acetinadas.

Eis a história que vos prometi contar domingo, quando vos falava das nossas patrícias. Ainda sei outras tão lindas como esta, mas que a pena a correr não pode demorar-se para contá-las.

Irão em ziguezague.

Não reparem se passo em silêncio pela representação de Sapho, apesar de ser a obra-prima de Paccini.

Digam o que quiserem os maestros, não gosto dessa música de barulho, que abafa a voz humana, e obriga os cantores a fazerem contorsões horríveis.

Na Norma e no Otelo, onde os cantores cantam, há prazer em ouvir-se uma bela voz, que brinca nuns lábios risonhos, desatar-se em ondas de harmonia, ou desprender-se de um seio que se ergue apenas numa ondulação suave.

Mas nestas óperas, onde a voz é um grito, onde o canto é uma convulsão, as notas são arrancadas com esforço, a boca se contrai, e a melodia desaparece num estrépido que atordoa; parece que assistimos ao martírio do cantor, a um suplício horrível da beleza, do talento e da inspiração.

Não; por mais que digam, a voz humana não foi feita para essa música de estrépito. Se desejais ouvir a natureza em suas convulsões, assisti ao espetáculo da tempestade numa costa desabrida, mas não ide ao teatro pedir a um cantor que vos venda por uma mesquinharia de dinheiro as centelhas divinas de seu gênio e de sua alma.

O talento é uma vida, é a vida d’alma, da inteligência e do pensamento; nenhum artista tem pois o direito de cometer esse suicídio moral, e de esperdiçar, como Emy La-Grua, numa só noite, a seiva e o viço de uma existência inteira.

Quando assisti à primeira representação da Sapho, pareceu-me ver um quadro, no qual um pintor de gênio, querendo tocar o sublime, derramasse toda a sua inspiração e gastasse todas as tintas de sua palheta.

Havia alguns traços belos, porém no mais eram tons carregados, claros e escuros pouco harmoniosos, perfis ásperos e destacados sobre um fundo sombrio e confuso.

Depois de todo este preâmbulo, é necessário que conte aos meus leitores os acontecimentos notáveis da semana.

Todos os reduzem a um dia (o sábado), a um acontecimento (a chegada do paquete), e a uma notícia, que anda de boca em boca e de jornal em jornal:

A TOMADA DE SEBASTOPOL

Escrevendo-a, não traço unicamente a crônica da semana, mas a história do mundo durante um ano.
(.)

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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Ivan Pessoa (Era Uma Vez Uma Cidade Bibliofóbica)

 Era uma vez uma cidade que não lia. Não que a leitura não fosse lá seu hábito, afinal os espaços reservados para tais descobertas eram poucos e, ainda que fossem poucos, agravavam-se as reformas, os trincos e o pior das doenças populares: a desfaçatez contagiosa dos políticos. Quem passasse pelos portais dessa cidade, sabiamente diria: está doente! Mas quem por lá residisse, contagiado pela cegueira letárgica dos políticos de lá, despreocupadamente diria: “bobagem, cidade como esta, jamais encontrarás”. O pior doente, como o cego, é aquele que não quer ver.

 Os egípcios tinham tanto apreço por bibliotecas que as chamavam farmácias da alma. Por Deus, será por isso que aquela cidade encontra-se momentaneamente adoecida, sem o direito legítimo de convalescença? O traço mais característico das civilizações é certamente o hábito da conservação da memória, o que franqueia às gerações subsequentes um referencial.

 O que efetiva o ser humano é a memória de seus ancestrais que lhe inculca uma maneira de ser com consequente compreensão de si e de seus semelhantes. Em um só tempo a memória faz o homem se descobrir por meio da consciência de si mesmo e descobrir a presença constante dos outros. Tal capacidade é tanto pessoal, quanto interpessoal. Como afirmara o biólogo francês Jean Rostand, para quem a civilização do homem, diferentemente da civilização das formigas e das traças não reside propriamente no homem, mas antes em suas bibliotecas, museus e códigos. A partir daí se pode pensar que, de fato, a cultura, juntamente com a memória, são os únicos elementos que nos põem a distância dos demais insetos da natureza. O bicho homem difere das formigas e das traças, por que registra os ensinamentos de seus pais e por inscrevê-los, posterga sua sobrevida para um tempo não muito determinado, para um porvir. A expectativa de um futuro insondável, de impérios e heróis que ainda virão, de pessoas e cidades que porventura possam acontecer, é justamente o elemento humano por excelência. Para que esta expectativa se faça sustentável através dos séculos, a memória precisa ser preservada e sua preservação fica a cargo das bibliotecas.

 Ao contrário de seus contemporâneos, Aristóteles teria sido o primeiro bibliófilo da história, e sob este princípio edificaria tanto a biblioteca de seu Liceu, quanto a civilização ocidental. Com efeito, Ptolomeu II Filadelfo, que adquiriria este irrepreensível acervo, no afã de lhe conservar, construiria o maior monumento da antiguidade: a biblioteca de Alexandria.

 Segundo Ptolomeu II a biblioteca serviria para reunir os livros de todos os povos da Terra, permitindo-lhes tanto, na época, quanto nos séculos vindouros, a compreensão do mundo antigo e sua especificidade. Como me compreender em um tempo e espaço determinado se sou incapaz de dimensionar a tradição pela qual sou uma consequência temporã? A lição dos livros é esta: conservar a tradição, para que as gerações futuras possam encetar o encontro consigo mesmas e com seus semelhantes. Uma geração que não lê é no mínimo uma geração perdida, certamente porque fica alijada da compreensão de si mesma e de seu povo. O que daí se depreende é: a história de um povo é a consequência daqueles que lhe conservarão. Inimaginável e igualmente bárbaro é pensar um adolescente que desconhece um luminar de sua terra, à maneira da criança que desconhece os pais. Troçar dos luminares e desconhecer os pais atesta um estado de grave incoerência, sobretudo se se pensar que tais condições são princípios elementares para as gerações vindouras.

 Que educação um pai iletrado dará para um filho que, tão carente quanto ele, está à mercê das circunstâncias? Que mundo está em construção, se o presente não sabe remeter-se ao passado? Aquela civilização do homem, pela qual Jean Rostand sobrepunha à civilização das formigas e traças, é decerto a exaltação do passado com seus feitos imemoriais. O que é a civilização grega senão a ira incontida de Aquiles e Agamenon na eterna releitura da Ilíada? Na Eneida de Virgílio, o anfitrião Enéas antevê a criação do império romano como desdobramento heróico do povo troiano e se jacta disso. Ainda hoje a remissão dos romanos a este fato, lhes põe como herdeiros de um povo intrépido. Como pensar, por exemplo, a questão judaica sem a leitura bíblica? É tal que o poeta alemão Heinrich Heine afirmaria categoricamente que a bíblia é a pátria dos judeus, tamanha é sua importância, enquanto documento identificador de uma tradição. À maneira de Heine, o filósofo Adorno diria algo igualmente relevante por considerar que para quem não tem pátria, o livro, bem como a escrita tornam-se necessariamente a sua morada. Ora, enquanto morada, o livro é o único artifício capaz de conservar a voz ancestral daqueles que cá não estarão, como se por testamento, protelasse e assegurasse a especificidade dos conselhos, orientações e discursos que precisam se fazer ouvir em um tempo a posteriori. Não sou eu quem digo, mas é George Santayana quem assim o faz: “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo .”

 Em um passado não muito diferente dos dias atuais, em que pese a violência e a barbárie pululando ostensivamente, o imperador Júlio César convocaria os serviços intelectuais de Públio Varrão, poeta romano, para organizar as bibliotecas públicas de então. Varrão o faria. Ironicamente, a história registraria uma condenação digna de reparação por parte de César que, se pondo a perseguir Pompeu, incendiaria a cidade de Alexandria e sua suntuosa biblioteca. O mesmo homem que ordena a construção de bibliotecas públicas incendeia criminosamente uma parte do maior legado da antiguidade. O certo é que a história humana apressa qualquer insinuação de decisiva hostilidade, afinal, como pensara Schiller em suas Cartas sobre a educação estética do homem: “Então de onde vem que ainda continuemos sendo bárbaros?” Pensemos bem: se com a convivência com os livros, os homens ainda são naturalmente hostis, de modo que um quê de civilização supõe um quê de barbárie, imagine a ausência de doutos ensinamentos, a intervenção de bons parágrafos? Quando Schiller bradava tais queixas, quanto ao bárbaro alemão civilizado, tais queixumes se faziam em face de um país com 80% de analfabetos, analfabetos que leriam o mundo determinando futuramente sua escritura. Aqueles trocentos analfabetos alemães forjariam os maiores monumentos da cultura europeia dos anos seguintes, ao contrário dos nossos, que duas vezes bárbaros, na educação e nos costumes, incapazes são de passar a vista nem que seja na orelha dos livros. Se um povo como o alemão concedeu ao Ocidente um celeiro de grandes intelectuais, artistas e pensadores, ainda que fosse um povo bárbaro, o que pensar daquela cidade, em específico, que tem uma tradição olvidada em função da desfaçatez contagiosa de seus políticos? Sem o usufruto da quiromancia, aquela arte de ler as mãos, sem qualquer futurologia, o certo é que os indícios não estão nada a favor, porquanto aquela cidade, carente de toda sorte de antídoto, há algum tempo fechou as portas de sua mais importante farmácia da alma, alegando uma reforma por tempo indeterminado. E quanto às obras, por tempo indeterminado o que serão? Já sei, servirão de abrigo às sociedades e aos impérios daquelas traças tão letradas, visto que se alimentam de livros e entre livros forjam suas civilizações. Como toda civilização tem um apelo eminentemente bárbaro, até os insetos nos remedam. Ou seria o contrário?

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Ed. 240. 29 de outubro de 2011.

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José Francisco Cagliari (O Desabafo de um Lápis Preto)

– Olá, meu nome é John Faber; sou filho de dona Madeira e do senhor Grafite. O nome estrangeiro não é mania de grandeza não. Aliás, grandeza é o que eu não tenho. Além de ser magrinho, eu sou daquele tipo que ao nascer começa a ficar pequeno, ao invés de crescer.

Sou negro, mas não sofro com problemas de preconceito racial ou, pelo menos, não sofria até pouco tempo.

Meu avô sempre me contava suas histórias. Ele nascera e já começara a trabalhar num escritório. Lá ele fazia de tudo: escrevia cartas, fazia anotações, desenhos, contas. O que não fazia era assinar cheques; não tinha autoridade para isso. O pior, segundo ele, era trabalhar tanto e, quase sempre, a senhorita borracha desfazer tudo. Meu pobre avô se cansou e morreu. Depois de muitos “desapontamentos”, não aguentou e sucumbiu vítima de uma gilete. Ele, que sempre esteve com os papéis, acabou embrulhado no lixo. A senhorita borracha também faleceu, vítima do “desgaste” e do stress.

Eu, como sou novo ainda, não tenho emprego, mas creio que as coisas ainda vão piorar. Meu pai foi despedido. É que o chefe contratou uma lapiseira, e agora nós somos considerados obsoletos. Minha mãe está perdendo o lugar para o plástico. Minha irmã, a caneta, está passando muito mal. A tinta acabou e não há ninguém para doar para ela. Assim, a nossa geração está sendo “apagada” do mapa. E pensar que se não fossem meus ancestrais, Castro Alves não seria ninguém. É, a vida está dura. Bem que meu avô dizia: “ser um lápis é um risco”.

Fonte:
I Concurso Literário/ Associação Paulista do Ministério Público. 1.ed. Sao Paulo: Edições APMP, 2010. p.49

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Nilto Maciel (Da Bola de Meia ao Rádio)

As casas me pareciam enormes, tetos muito altos, chão de tijolo. Quando chovia ou o sol esquentava demais, brincávamos de bola na sala ou nos quartos. Os chutes desajeitados levavam a bola para o forro de pano. E nem adiantava cutucá-lo com vara. Nunca mais a veríamos. A não ser quando algum pedreiro ou pintor fosse trabalhar, levasse escada e atendesse nossos rogos. Ou quando papai resolvesse trocar o forro. Mesmo assim, as bolas estariam endurecidas, mofadas, rasgadas.

Mamãe tinha horror a bolas. Menos aquelas das cartilhas. Mas como viver sempre estudando? Se tirávamos notas baixas, três dias sem bola e sem bila. Ou três dias lendo bulas. No quintal não havia lugar para jogos e brincadeiras. Somente árvores, plantas e animais domésticos.  O gato caçava borboletas, ratos e passarinhos, a correr e saltar entre as bananeiras. Sumia, voltava, miava, brincava, desaparecia de novo ou para sempre. Até aparecer outro e ser adotado por nós. Um deles, Mimi, viveu muitos anos. Preto, olhos verdes, sapeca. Arranhava as bananeiras, dormia debaixo das árvores, escondia-se atrás das moitas, perdia-se por dias e dias, reaparecia a miar, faminto. Os porcos roncavam no meio da lama. As lagartas infestavam a horta. 

Poucos meninos conheciam bolas de couro. Em compensação, todos tinham “bolas-de-meia” ou “bolas-de-pano”. Meia usada, furada, imprestável para o uso apropriado. O recheio podia ser de algodão, pano ou papel. Essas bolas não serviam para jogos em chão de terra. E menos ainda em dias de chuva. Jogava-se nas calçadas. Quando não o futebol, os simples chutes de um lado para outro. As paredes serviam de anteparo e ao mesmo tempo de linhas de gol. Às vezes dois jogadores de cada lado. Um chute para cada “time”. Vencia quem fizesse primeiro determinado número de gols. Ao vencedor cabia, como “castigo”, jogar, em seguida, com outro “time” ou jogador. Eu conseguia ser um dos melhores nos chutes e nas defesas. Saltava, quase voava, em busca da bola. Os outros me elogiavam. E eu me enchia de amor-próprio. Sim, quando me tornasse rapaz, iria jogar no Fortaleza. Por muito tempo sonhei ser goleiro profissional. O sonho, no entanto, cedo se desfez, e de forma melancólica. Convidado para treinar num time de futebol de salão, logo no primeiro jogo perdemos por larga margem de gols. Um fracasso! Chamaram-me de frangueiro, e nunca mais me convidaram a entrar no pequeno estádio. Frustrado com o meu futebol, deixei o campo e me postei na plateia. De ator passei a espectador. Dediquei-me a recortar fotos de jogadores e times dos jornais e das revistas, principalmente O Cruzeiro. Recortava as “figuras” e colava num caderno velho. Dos futebolistas passei a atrizes de cinema, animais, carros, aviões, cidades.

No colégio dos padres salesianos havia um “muro” a separar os alunos internos dos externos. Aqueles vinham de outras cidades, sobretudo de Fortaleza. De famílias ricas. Nós, os da cidade, éramos quase todos pobres, filhos de comerciantes locais, como eu e meu irmão Edinardo, de funcionários públicos, etc. Nunca os dois lados se misturavam. Brincavam em pátios separados. Até na igreja, construção contígua ao colégio, a separação se manifestava. Os bancos destinados aos internos se situavam na parte mais próxima do altar. Apesar disso, fomos convidados a participar das brincadeiras e jogos de fim-de-semana no colégio. Entrávamos por um portão pequeno, que ia dar numa escolinha para crianças carentes, moradoras da periferia, como Potiú e Lages. Havia muitas mangueiras e o rio corria bem próximo a uma cerca. Os internos jogavam futebol num campo grande, com traves, rede, uniformes, chuteiras, bola de couro. Nós ficávamos ao largo, chutando uma bolinha ou outra, junto aos meninos mais pobres. A bola me pareceu excessivamente pesada. Nunca havia chutado uma bola de couro. Meus pés só conheciam as bolinhas de meia. O capim molhado e alto me feria os dedos. 

O primeiro rádio em nossa casa chegou muito tarde. Depois da Copa da Suécia. Posto sobre uma mesa na sala de estar, imperava imponente no meio da pouca mobília. Media mais de meio metro. Cheio de válvulas, esquentava feito um forno. Passou a ser meu entretenimento predileto à noite. Rodava o botão para lá e para cá, à cata de novidades, músicas, notícias e jogos de futebol. Anotava tudo: nomes dos times e jogadores do Rio, de São Paulo e da Europa. Decorava e copiava letras de músicas. Quando todos iam dormir, eu continuava a manejar os botões do rádio. Mamãe se aborrecia: fosse dormir, desligasse o aparelho. Eu abaixava o volume e aproximava da tela do alto-falante um ouvido. No entanto, as ondas iam e vinham em descompasso, e ora se tornavam inaudíveis, ora cresciam.

Fontes:
Montagem da imagem com radio obtido em http://www.paulobranco.com, e a bola de meia em http://blog.cancaonova.com

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 28 de outubro de 1855: Sem Inspiração

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estava sem inspiração, o que me sucede muita vez.

Abri um livro, nem me lembra que livro era.

A primeira palavra que vi foi em latim; era um provérbio:

Res est magna tacere.

Façam idéia, pois, que impressão podia produzir uma semelhante máxima num espírito que procurava inspirações.

Quando eu desejava um tema para falar, – e falar mais do que uma moça que discute modas, ou um ministro que falta a uma promessa, – salta-me pela frente a sabedoria romana, e manda-me calar da maneira mais impertinente.

Ora para um folhetinista que não quer absolutamente indispor-se com os sábios, não havia remédio senão obedecer.

Resolvi portanto calar-me.

A resolução era a mais prudente, e também a mais cômoda possível mas tinha um inconveniente.

Os meus leitores, e sobretudo as minhas maliciosas leitoras, eram muito capazes de supor que me calava por não ter nada que dizer.

Isto seria uma quebra para a minha reputação de folhetinista; seria uma falta imperdoável para aqueles que julgam que o espírito de um escritor de revista deve ser uma esponja que durante a semana se embebeda e sature de idéias, e que ao domingo se esprema no papel, e deite uma chuva de bonitos pensamentos e lembranças graciosas.

Ora, apesar de não pretender a glória desta comparação polipiana, contudo o meu amor-próprio não podia consentir que me visse decaído das boas graças do leitor por causa de três palavras latinas.

E três palavras latinas que eram por si mesmas uma mentira e uma contradição; porque, se o tal sábio (Salomão ou Sócrates) estivesse bem convencido da utilidade de calar-se, não teria a indiscrição de falar e dizer aquelas palavras: Res est magna tacere.

Mas é que todos os sábios deste mundo são assim; pregam muito boas máximas, excelentes conselhos, e eles são os primeiros que fazem o contrário, e que dão o mau exemplo.

Tudo isto porém nada tem com a questão; o que é verdade é que me achava na mais difícil posição do mundo; por um lado a prudência e a sabedoria mandavam que me calasse, por outro o leitor e o público exigiam que falasse e escrevesse.

Se houvesse um meio de combinar as duas coisas, e ficar com ambas, seria para mim um salvatério.

Mas ainda estou pouco ao fato destes meios empregados por certos jornalistas e certos políticos, novos Janos da civilização que passam pela sociedade, sorrindo para um e outro lado com cada um dos cantos da boca.

Não me restava pois senão um expediente, e foi o que decidi-me a adotar.

Era preciso calar-me, visto que os sábios o ordenavam; mas, calando-me, restava-me o direito de dizer ao menos os assuntos diversos sobre que me calava.

Assim nem incorro na censura de falador, nem também se pode dizer que não tenho matéria sobre que escrever.

Uma das primeiras coisas sobre que eu me calo é sobre a questão atual da farinha de trigo, sobre a questão do pão.

Com efeito, poucas matérias são tão importantes como esta, que afeta geralmente a todos os diversos interesses da sociedade.

Os pobres e os ricos, os empregados, os ministros, os pretendentes, os confeiteiros, os gastrônomos, as senhoras, o país, a colonização, a estatística, enfim tudo tem uma relação imediata com esta grande questão.

Isto exige uma explicação.

Ei-la:

Há diversas espécies de pão: o pão branco e o pão de rala, o pão-de-ló, o pão d’ouro, e muitas outras espécies menos importantes; há igualmente uma espécie indefinida, genérica, ainda não caracterizada, e que se exprime ordinariamente pelo simples termo – o pão.

Esta última espécie é a mais importante; todos trabalham para ganhar o pão; o pobre muitas vezes não tem o pão para a boca; e o operário vê-se obrigado a regar o pão com o suor do seu rosto.

Já se vê que este pão não é feito nos fornos e nem se compõe de fermento, e que por conseguinte não é o preço da farinha de trigo ou uma padaria central e privilegiada que o tornarão mais fácil para o pobre.

Este pão é o pão do trabalho, do trabalho ativo, honesto e inteligente a que todo o pobre deve dedicar-se com amor, deixando os hábitos de indolência e os vícios, que quase sempre são a causa única da miséria.

Esta espécie pois exige do governo não só uma proteção à indústria do país, como uma política ativa e regular, com as competentes casas de detenção, necessárias para o trabalho dos velhos e mendigos.

A questão do pão-de-ló tem grande interesse também: este pão é muito saboroso e muito suave ao paladar, mas por isso mesmo é um pouco mais caro do que os outros.

Dizem que o pão-de-ló – higienicamente falando – é um pouco indigesto; mas a experiência tem mostrado o contrário: há estômagos que digerem um número extraordinário de boas fatias.

A respeito desta espécie já pusemos em prática o sistema francês da administração municipal da boulangerie parisienne.

Temos uma padaria central ou nacional, e diversas padarias provinciais, onde se fabrica excelente pão-de-ló, que se distribui conforme o estômago de cada um.

Esta organização precisa de uma reforma radical, que demanda longos estudos e muita prudência e reflexão da parte do governo.

Vejam pois que tinha razão quando disse que a questão do pão era uma das de maior vulto da atualidade.

Quanta reforma importante, quanta ciência, quanto estudo e prática não exige esta única palavra?

Que revolução econômica e social não são capazes de produzir estas três linhas juntinhas e cobertas com um til à guisa de chapéu-de-sol?

E ainda isto não é tudo. Disse que o país, as senhoras, as famílias, a população, a estatística, as modas, tudo enfim estava empenhado na questão do pão.

E vou prova-lo.

Mas… agora me lembro que não posso falar, que obriguei-me a calar, em deferência aos provérbios latinos.

Portanto fiquem os leitores em jejum, a menos que algum dos tais impertinentes provérbios não queira falar por mim, como por exemplo, este: Sine Cerere et Baccho friget Vênus.

A bom entendedor meia palavra basta. Aquele friget que ali está com um ar tão sonso e tão ingênuo é um brejeiro de conta; e se ele quisesse falar mostrar-nos-ia a influência legítima do pão.

Porém é um verbo muito sisudo e discreto, e por isso não há meio de arrancar-lhe uma explicação mais clara.

Há ainda outras muitas coisas sobre que podia falar, mas a respeito das quais me calo para cumprir o prometido.

Podia falar da representação da Sapho, e dizer muita coisa bonita e interessante sobre a nossa grega, que inspira com seu canto os nossos poetas, e com os seus olhos os nossos diletantes.

Podia fazer um poema sobre esta história de um amor profundo, que se reproduz entre nós todos os dias, e que acaba sempre por um passo de Leucate.

A única diferença que existe é na posição geográfica e na qualidade do passo de Leucate moderno, o que é devido à diferença dos países e à diversidade das idades, dos usos e costumes.

Assim, o passo de Leucate antigo era um rochedo à beira do mar; o da Idade Média era um convento no cimo de uma montanha; o de nossos dias é um casamento de conveniência.

As Saphos de hoje, quando chegam ao triste desenlace de uma história de amor, sobem ao altar e de lá precipitam-se…

Precipitam-se nos braços de um homem que não amam, precipitam-se na monótona e triste existência de um casamento mal sucedido.

Mudados pois os nomes e os lugares, o drama é o mesmo, e as personagens idênticas.

Em continuação deste tema de Sapho moderna, podia falar-vos das Mulheres de mármore, representadas sexta-feira no Ginásio, e pintar-vos uma bela cena da Grécia criada pelo pincel do Bragaldi.

Haveis de saber o admirável efeito que produziu esta representação, a que deveis ir assistir esta noite; lá conversaremos a gosto, e apreciaremos juntos a habilidade com que todos os artistas desempenham os seus papéis.

Sobre o concerto do teatro lírico desta noite, também poderia escrever algumas linhas recomendando-vos o talento da distinta harpista Mme. Belloc, que não foi feliz na concorrência.

Mas a razão, eu a sei: nesta época de tantos desconcertos era impossível que fosse bem aceito um concerto.

Agora, tendo eu me calado sobre tanta coisa, é justo que converse um pouco com as minhas leitoras.

Tenho de lhes noticiar que se acha criada uma nova ordem – A ordem das violetas…

Esta ordem é dedicada especialmente à caridade, e teve sua origem no dia do leilão das Belas-Artes, em um bouquet de violetas.

Quem a criou (o que para mim é segredo) teve uma feliz inspiração; tirou o ramo do seio, distribuiu as flores à direita e à esquerda a quem as mereceu por caridade; e o sorriso de seus lábios dizia neste momento: – Honni soit que mal y pense.

O caso é que a ordem está criada, e que agora o luxo, o chic, é trazerem os gentlemen na casaca preta a modesta e linda florzinha, que tornou-se o emblema de uma tão santa virtude.

por falar nisto lembro-me que hoje tem lugar o segundo leilão das Belas-Artes.

Quando criaram este edifício, nunca pensaram que ele teria o nobre destino que lhe deram domingo passado, e que o seu nome teria uma outra significação ainda mais apropriada.

Com efeito, que mais belas-artes, do que as artes, as travessuras, os meios engenhosos, que a caridade aí inspirou domingo passado às elegantes peregrinas da Glória?

Mas que há aí de admirar!

Eram brasileiras.

Se não sabeis o que quer dizer isto, ouvi-me.

Vou contar-vos uma história muito linda, um verdadeiro conto de fada.

Não sei se minha pena ainda se lembrará dessas coisas de outro tempo, desses contos árabes tão cheios de poesia oriental.

Mas enfim lá vai.

Foi um dia…

Lancei os olhos sobre uma página solta deste folhetim, e lá vi o meu Cabrion.

Res est magna tacere.

Calo-me pois, e desta vez seriamente; dou um ponto na boca, ou antes, no papel.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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Nilto Maciel (As Galhofas de José Alcides Pinto)

José Alcides e Nilto Maciel
Estive poucas vezes com Alcides Pinto. Antes de 1977, quando morava em Fortaleza, só o conhecia dos livros. E de ouvir falar. Não me aproximava dele, por retraimento. Talvez nem me ouvisse. Talvez nem me cumprimentasse. Ora, eu o sabia poeta muito conhecido, desde Concreto: estrutura visual-gráfica (1965) e Cantos de Lúcifer (1966), sem contar as antologias de que participara no início dos anos 1950. Além de poeta de renome, romancista, contista e autor da peça Equinócio (1973). E eu? Apenas um estudante, apenas um sonhador, apenas um quase-escritor. Mas um estudante, um leitor não podia se aproximar de um escritor, pelo menos para lhe pedir autógrafo? Podia e pode. Mas cadê coragem para tanto? Como eu me enganava! Alcides sempre se mostrou muito acessível. Nunca pareceu arrogante. Dava-se bem com jovens e velhos. Com “marginais” e “acadêmicos”.

Não lembro quando o conheci de fato. Tenho alguns livros dele autografados, quando eu morava em Brasília e certamente o procurei, em Fortaleza, em 1982: O enigma (Fortaleza: Edições Quetzalcoalt, 1974), Cantos de Lúcifer (Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966), Manifesto traído (Fortaleza: Lourenço Filho, 1979) e As águas novas (Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1975). Autografados no mesmo dia, possivelmente. Na sua casa. Vieram outros autógrafos, outros encontros, em 1998 e 2002.

Não acompanhei sua trajetória de vida, suas “loucuras” (conheço-as de oitiva), suas excentricidades. Falavam-me dele: é doido; virou franciscano; largou o emprego público para se dedicar à literatura; comprou uma fazenda no sertão do ceará, onde só brotavam pedras e onde dorme o dragão da mitologia alcideana. Nunca o vi louco, não o vi vestido de frade, não conheci a famosa fazenda Equinócio. Vivia como pobre, numa casinha de uma vila localizada na Avenida Tristão Gonçalves (sua última morada): na sala, uma rede e uma estante com seus livros (os dos outros nunca vi. Como os meus. Talvez os tenha doado. E como conseguia fazer citações? Tudo de cor. Por isso, às vezes se confundia). Uma cama no quarto. No cozinha, um fogão, uma geladeira, uma mesa com cadeiras. E só.

Fora de casa, andava sempre bem vestido. Quem não se lembra de seu terno branco, com que se apresentava em lançamento de livro, entrega de prêmio, palestra, dele ou de outros? Magro, quase esquelético, flutuava, feito pena branca. Dava gargalhadas estrepitosas, de fazer corar magistrados e madamas, nos salões mais nobres.

O Alcides que conheci vivia em constante alegria, a galhofar com tudo e com todos. Fingia-se doido, sim. Puro gracejo. Certa tarde (não lembro o ano: se antes de meu regresso a Fortaleza, em 2002, se depois), convidou-me Pedro Salgueiro a irmos visitar Alcides. Bateu palmas, à porta. Alcides gritou: Já vou. Pela frincha da porta eu vi: ele se vestia, apressadamente. Já vou, já vou. Pedro repetiu as palmas: Trouxe, para vê-lo, um grande contista cearense. O velho poeta abriu a porta, assanhado, nu da cintura para cima, olhou para mim, me abraçou com força e exclamou: Meu grande contista Airton Monte! Ora, Alcides enxergava bem e sua lucidez não confundiria Airton comigo. Aquilo não passava de mais uma brincadeira.

Visitei-o algumas vezes, ora só, ora acompanhado. Não para conversar demoradamente, mas para vê-lo e levar-lhe alguma publicação, sobretudo a revista Literatura, na qual publiquei poemas e artigos dele, assim como uma entrevista que me concedeu em 2003. Recebia-me com alegria, como certamente acolhia outros amigos e conhecidos. Brincalhão como sempre, quando nos víamos, divertia-se muito: Só existem dois escritores bons no Ceará: eu e você. Se eu mencionava o nome de algum conterrâneo, ele sorria: Esse não sabe escrever.

Vez por outra, telefonava para mim ou eu telefonava para ele. Constantemente a brincar: Poeta (tratava assim todo mundo; pelo menos, os escritores), venha me visitar. Arranjei uma namorada, mas não tenho mais condições de fornicar. Venha me substituir. Eu prometia visitá-lo. E assim o tempo ia passando, até que um dia a outra namorada de todos nós – aquela que aguardamos, mas não queremos –, até que um dia Ela, montada numa motocicleta, o encontrou desprotegido e só, no meio de uma rua, e o levou para as núpcias eternas. Sua última galhofa, em 2 de junho de 2008.

Fortaleza, 5 de outubro de 2009.

Fontes:

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Nilto Maciel (Como me Tornei Imortal)

A grande maioria dos seres humanos acredita na imortalidade. Cada um deles se diz constituído de corpo e alma. Aquele morre, se desfaz, vira pó. Esta permanece intacta – a pensar e sentir – e, após a morte de sua metade, voa para o céu, o paraíso, onde está Deus, ou para o inferno ou sabe-se lá para onde. Essa grande maioria é resignada, vive rindo, brincando, feito eternas crianças, por se crer regida por Deus ou o Destino. Mesmo quando choram – diante do corpo sem vida de filhos, pais, irmãos, amigos, ídolos – parecem rir: Deus quis assim, Deus quis agora.

A pequena minoria dos seres humanos ou desacredita na imortalidade ou desconfia dessa possibilidade. Cada um deles assim sofisma: Se não sou imortal, se meu corpo é minha única morada, só me resta inventar outra eternidade. E assim surgiram as agremiações de letras e artes.

Para alguns escritores há duas maneiras de se alcançar a duração perpétua: pelo ingresso numa dessas corporações ou com a publicação de suas obras por uma grande editora. Se as duas portas se abrirem, melhor ainda: A vida eterna estará garantida. Para os mais presumidos só serve a Academia Brasileira de Letras. Os institutos menores (estaduais) ficariam para os escritores impúberes ou mais pequenos. Os minúsculos (municipais) se reservariam aos escritores insignificantes. Há, porém, ainda outras distinções: A entidade paulista seria quase equipolente à federal; a acreana, a amapaense, a sergipana, por exemplo, se equivaleriam a sociedades municipais; a paulistana valeria por uma filial da ABL; a baturiteense não poderia se comparar à santista. Empossados nesta ou naquela academia, todos alcançariam a imortalidade, no final, embora alguns, logo após a morte do corpo, teriam a alma conduzida imediatamente ao céu, enquanto outros dilatariam a interminável fila que conduz ao ponto derradeiro do destino literário.

Publicar livros por grandes editoras é mais fácil do que ingressar numa casa de acadêmicos. Basta o sujeito ser famoso ou amigo (bajulador, dizem) de autoridades federais, de outros entes famosos, ter muito dinheiro, etc. Por editora se entenda empresa que edita livros, vende-os a livrarias, divulga-os para os meios de comunicação de massa e paga direitos autorais.

Lá pelo início de minha adolescência, compreendi que não tenho alma e, portanto, sou mortal. Consciente disso, mais me pus a ler e escrever. E mais cônscio fiquei de que não tenho alma e sou mortal. Apesar disso, passei a acreditar em mim mesmo, em poder ser lembrado por mais um tempinho após minha morte, se escrevesse bem. Minhas filhas, meus netos e seus contemporâneos poderiam se lembrar de mim e ler minhas histórias. Passei mais muitos dias a ler e escrever. Fui morar em Brasília, cidade de muitos imortais, a capital do futuro. Publiquei uns livrinhos por pequenas editoras, ganhei alguns prêmios literários, de pouca monta (nada comparado aos prêmios das loterias) e tinha sido um dos criadores da revista O Saco (que me dava certo prestígio no mundo das letras). Tudo isso junto deve ter atiçado a luxúria de alguns imortais da capital. Que certamente cochichavam, enquanto cochilavam, frases obscenas, quando me viam: A esse só falta ingressar na nossa hoste. Pois eis que no meio do caminho desta vida (eu deveria ter uns quarenta anos, supondo que viverei até os oitenta), me apareceu um desses seres eternos. Chamava-se Almeida Fischer, que queria ser mais imortal do que era, pois pertencia à Academia Brasiliense de Letras. Não se apresentou em corpo e alma, para não se fazer tão objetivo; mandou um seu colega me fazer comunicado quase letal: Eu fora escolhido para constituir a nova casa federal de letras, a Academia de Letras do Brasil. Tomei susto, mas não morri. Ora, eu não queria vestir fardão. Muito menos farda, que abominava e abomino militares. Bastavam-me calça e camisa. Recuperado do susto, ouvi o complemento da fala do emissário do futuro presidente do sodalício (assim eles, os imortais, gostam de chamar suas agremiações): Iria me visitar noutro dia, para melhores esclarecimentos. E foi. Era um sábado de muita preguiça (minha), depois de ter passado a noite em bebedeira, a ouvir chorinhos. Alcançou-me de chinelos e calção. Renovou os elogios a mim, explicou os motivos da nova arcádia, como se me fizesse grande louvor e favor. Mal o deixei concluir o discurso. Agradeci os gabos e disse duas ou três frases indecorosas: Não me sentia acadêmico, sabia-me em fase de crescimento (embora tardio, a arcádia dentária ainda em formação), despreparado para a vida (literária) adulta e não via nenhuma necessidade de novos institutos de letras. Ele parecia não acreditar no que ouvia. Talvez eu estivesse brincando. Ou delirando: Você bebeu muito ontem? Certamente me ocorria um surto de loucura. Ora, quem não quer ser imortal, quem não se sente excepcionalmente envaidecido (e comovido) de ser convidado a ingressar no círculo restrito dos imortais? Prometi escrever carta a Fischer. Explicaria as razões de minha recusa ao convite. O mensageiro saiu de minha casa como quem sai de um cinema de horror. Escrevi a carta-bomba e a enviei ao morubixaba. Dias depois eu soube da tragédia: O homem se tinha morrido. Ou tinha deixado de ser vivo. Eu continuei mortal.

Fortaleza, abril de 2010.

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Bernardo Trancoso (Diário de um Sonetista)

Tem horas que a gente fica com uma vontade louca de escrever e, mesmo sabendo que para escrever é preciso muito mais do que uma simples vontade, abre a gaveta às pressas à procura de lápis e papel. Há quem já arranque a folha do caderno antes que surjam as primeiras palavras. Há quem arrisque rabiscar o que lhe vem à mente, sem preocupação com a coerência, com a gramática, ou com o destino aonde aquilo tudo vai levar. Embora saiba o propósito deste texto, que é o de introduzir no meu sítio um lugar para a minha prosa, na intenção de que isto possa um dia ajudar alguém a começar as suas andanças pela literatura, neste exato instante eu pertenço a esta categoria de escritores compulsivos: não sei sobre o que vou escrever.

Só que minha vontade louca resolve, ao invés de enveredar pelos caminhos complicados da importância de escrever, que é tão ou mais valiosa do que a de ler, percorrer as trilhas seguras e sensatas do prazer que dá ao escritor o texto completo, bem feito. Não estou falando, outra vez, das concordâncias verbais e dos reguladores lingüísticos impostos pela gramática. Em matéria de palavras escritas, sou um pecador como qualquer outro: cometo minhas confusões com verbos, substantivos e vírgulas. Não sei mais distinguir a diferença entre uma oração subordinada causal e outra, concessiva. Agente da passiva, então, nem se fala. O editor de texto que estou usando é o meu corretor básico, o restante é o que lembro das aulas da Dona Edna e dos demais professores que tive… Enfim, perdoe-me pelos erros de português, aquela história… Mas, por favor, me deixe terminar este texto. Ou, como o autor do último livro que li dizia, não me perdoe, os erros são propositais.

Leio muito, eu. Adoro o prazer de um bom livro. Eles me fazem navegar por universos ainda inexplorados e que na maioria das vezes acabam ensinando algo. Recentemente, li um muito interessante sobre um jovem indiano que atravessa o Pacífico com uma hiena, um tigre de bengala e um orangotango… Quem tiver a oportunidade, o livro em português chama-se “A vida de Pi”. Não vou falar mais nada dele, pois livro é igual xampu: para a cabeça de uns, serve; para a de outros, não. Se você não gostar, não me culpe. Nem culpe o autor, pois ele não pode, sob nenhuma hipótese, ser retirado do pedestal onde se colocou ao romper a barreira da imortalidade e escrever um livro. Algumas dicas para ler sempre: troque regularmente de autor e de assunto, para não enjoar; se não gostar de um livro e demorar em terminá-lo, tente voltar a ele no máximo três vezes e depois desista (levei um ano para ler um livro do Salman Rushdie… arrependo-me até hoje); com todo respeito aos tradutores, se puder leia um livro no idioma em que foi escrito e, finalmente, não procure grandes livros apenas em grandes autores – é muito bom ser surpreendido por um autor pouco conhecido no meio.

Veja só o leitor como já saí do tema inicial deste texto e enfurnei-me por outros caminhos. É assim com a poesia, é assim com a vida da gente onde nem tudo sai do jeito que esperamos, por que não haveria de ser assim com um artigo de abertura de uma página sobre o prazer de escrever? A magia da escrita está na liberdade que ela proporciona. Quando lemos algo, o fim já está escrito, ainda que não o conheçamos. No ato de escrever, o poder criador passa a ser do autor. Porém, com este poder advém, de certo modo, uma responsabilidade para responder pelas suas palavras. Salman Rushdie – convém citá-lo novamente – que o diga… Por isso é que escrever é arte; ler não é arte. Voltemos, então, ao tema principal.

“Como se escreve menos hoje em dia, como se escreve tanto hoje em dia”. Li isso buscando na Internet um artigo sobre isso mesmo, e parei por aí. Escrevemos demais. Na frente de um computador, conversamos no aplicativo de mensagens instantâneas, enviamos e-mail, digitamos o endereço de uma página da Internet… A vida de muitas pessoas – a minha, inclusive, e cada vez mais a sua – gira hoje em torno de um quadrado de quinze polegadas com resolução de 800 por 600. Digito muito o dia inteiro mas, ao final, não escrevi nada. E o que isso representa? Menos livros, menos poesias, mais conteúdo para satisfazer necessidades momentâneas e egoístas e, portanto, inútil em um contexto mais amplo. Há os que alertam sobre o fim das relações entre as pessoas com o advento do Messenger e, mais recentemente, do iPod. Neste artigo, que já está ficando comprido, não entrarei no mérito deste tipo de discussão. Para mim a música é e sempre foi uma representação artística que abre a cabeça, inspirando outras artes. Basta fazer um teste para ver quantas músicas você conhece de memória. Música é poesia. Portanto, sem saber já estamos cheios de poesia dentro de nós. Agora, expressar esta poesia, acrescentando nela o elemento diferenciador de que somos feitos, que é a nossa personalidade, são outros quinhentos. E isso é o que me preocupa. Sinto que, em proporção com o século passado, estamos cada vez mais carecendo de escritores. E não estou falando apenas de dissertações, mas também de poemas e – para caber neste espaço – sonetos. Como eu gostaria de encher o meu sítio de sonetistas novos…

Não posso esquecer dos blogs, ou diários virtuais que muitos mantêm em um sítio na rede mundial de computadores. São geralmente compostos de textos curtos, relatos de acontecimentos esparsos que, sem dúvida, no mínimo ajudam a praticar o português. Afinal, ninguém gosta de entrar em um blog e encontrar a palavra “menas”, popularizada não se sabe como nem por quem, mas que é cada vez mais comum na linguagem falada e dói ao ouvido daqueles que são um pouco mais cultos. Por isso, seus donos devem ter cuidado com o que publicam. Sim, os blogs são uma tendência louvável (isso aqui é uma espécie de blog), mas sinto que ainda falta um passo na evolução, ou melhor, na recuperação do prazer da escrita na era digital.

E é aqui que este artigo termina, meu amigo, sem definir solução alguma para o problema da perda de escritores. Espero, com o tempo e com outros textos como este, dar a minha contribuição para o tema. Estou até com um livro na gaveta que pretendo publicar em um futuro não muito distante. Novos sonetos meus, que já fluíram com mais vigor, ajudar-me-ão a manter o apego pelo conjunto lápis e papel. Mas o propósito, mesmo, é repassar o lápis. E quem sabe, um dia, no meio deste amontoado de palavras e de versos, passe por aqui um sujeito tímido e sonhador, com uma mente frenética ocultada por um olhar distante, e quem sabe ele resolva que nasceu para ser escritor, e quem sabe a partir de suas palavras eu encontre inspiração para mais um artigo, que inspire outro escritor num círculo vicioso e não menos romântico… Ah, aí neste momento, já não terá sido em vão… Já estou até ouvindo a minha mãe dizer: “deixa de sonhar, menino!”.

São Paulo, 20 de março de 2005.
Bernardo Trancoso

p.s.: Relendo o primeiro parágrafo, no afã de revisar o que foi feito, empolguei-me por conseguir adequar o texto à sua proposta inicial de escrever compulsivamente. Todavia, nos demais parágrafos, senti pesar sobre mim a responsabilidade de deixar algo de inspirador e interessante para os leitores, e o que vi foi mais uma crítica do que um incentivo ao ato de escrever. Fiquei até meio triste com o texto… Será que eu também terei perdido o prazer de escrever e vou me juntar ao grupo dos que passeiam pela vida sem deixar uma mensagem escrita, como um testamento de sua alma, para as gerações vindouras? Ou tudo isso é saudade do estimado autor Fernando Sabino?
Fonte:
http://www.sonetos.com.br/vep1.php

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 21 de outubro de 1855: Olhando para o fundo do meu tinteiro

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estava olhando para o fundo do meu tinteiro sem saber o que havia de escrever, e de repente veio-me à idéia um pensamento que teve Afonso Karr, quase que em idênticas circunstâncias.

Lembrei-me que talvez aquela meia onça de líquido negro contivesse o germe de muita coisa grande e importante. E que cada uma gota daquele pequeno lago tranqüilo e sereno podia produzir uma inundação e um cataclismo.

De fato o que é um tinteiro?

É a primeira vista a coisa mais insignificante do mundo; um traste que custa mais ou menos caro, conforme o gosto e a matéria com que é feito.

Entretanto, pensando bem, é que se compreende a missão importante que tem um tinteiro na história do mundo, e a influência que pode exercer nos futuros destinos da humanidade.

Assim pôr exemplo, aquele meu tinteiro, que ali está encestado a um canto, se pôr voltas deste mundo fosse parar a Europa, podia tornar-se célebre na história do gênero humano.

Lamartine ou Vitor Hugo se quisessem tirariam dali um poema, um drama, um livro cheio de poesia e de sentimento.

Rotschild, ou qualquer banqueiro da Inglaterra, podia com uma simples gota fazer surgir milhões e produzir de repente uma nova chuva de ouro.

Qualquer mulher bonita, com um só átomo daquela tinta, faria a felicidade de muita gente escrevendo na sua letrazinha inglesa três ou quatro palavras.

Meyerbeer ou Rossini num momento de inspiração achariam ali uma ópera divina, uma música sublime, como o Trovador, a Semiramis, ou o Nabuco

Enfim, o papa amaldiçoaria o mundo inteiro, como acaba de fazer com o Piemonte; Napoleão declararia a guerra à Europa; a Inglaterra levaria a destruição pôr todos os mares; e a guerra à Europa; a Inglaterra levaria a destruição pôr todos os mares; e a guerra do Oriente se terminaria de repente.

E tudo isto, todas essas grandes revoluções, todos esses fatos importantes, todas essas coisas grandes, dormiam talvez no fundo do meu tinteiro, e dependiam apenas de um capricho do acaso.

Para mim porém, para mim, obscuro folhetinista da semana, o que podia haver de interessante nas ondas negras da tinta que umedecia os bicos de minha pena?

Um devaneio sobre o teatro lírico, uma poesia sobre algum rostinho encantador, uma crítica mais ou menos espirituosa sobre a quadra atual, tão fértil em episódios interessantes para uma pena que os soubesse descrever e comentar?

A minha pena porém, já não presta para essas coisas; de travessa, de ligeira, e alegre que foi em algum tempo, tornou-se grave e sisuda, e olha pôr cima do ombro para todas essas pequenas futilidades do espírito humano.

A culpa porém não é dela; é a influência diabólica dessa quadra, que merece ser riscada dos anais da crônica elegante.

De fato, como se pode hoje brincar sobre um assunto, escrever uma página de estilo mimoso, falar de flores e de música, se o eco da cidade vos responde de longe: – Pão, – epidemia, – socorros públicos, – socorros públicos, – enfermaria!

Estais no teatro, esquecido deste mundo e de suas misérias, ouvindo a Grua cantar algum belo trecho de música, ou a Charton trinar as suas notas de rouxinol francês; não vos lembrais de coisa alguma, senão de que tendes a alma nos olhos, e os olhos noutros olhos, – quando sentis no ouvido um zumbido pouco harmônico.

É um sujeito que acabou de cear à luta e que vos pergunta como vai a epidemia, ou vos conta dois ou três casos que ele presenciou, e cuja impressão agradável deseja comunicar-vos como vosso amigo.

Se deitais o óculo para algum camarote e começais a contemplar um talhe elegante ou um colo acetinado, é justamente neste momento que um economista de polpa vos agarra para discutir a magna questão da farinha de trigo, e do comércio do pão de rala. Ainda se fosse a questão das carnes, – podia ter sua analogia!

Como é possível pois ter um pouco de poesia, e de espírito numa semelhante época? Conto escrever duas linhas sem falar da epidemia reinante, dos atos de caridade, e das enfermarias?

Se isto continua, daqui a pouco os jornais tornar-se-ão uma espécie de boletim; não há nada que diga respeito à moléstia que não se anuncie.

Abri um jornal qualquer do dia, e vereis pouco mais ou menos o seguinte:

“O Sr. A, partiu para tal parte; o Sr. B, voltou de tal lugar; o Sr. C, vai para tal vila; o Sr. D, tem dado providências; o Sr. E, ofereceu mil cobertores; o Sr.F, adoeceu, mas já ficou bom.

E assim pôr diante; ninguém escapa a esta febre de publicação, que já se estendeu até aos diversos períodos da moléstia.

No meio de tudo isto, as mulheres andam inteiramente absorvidas com a caridade, e não pensam noutra coisa; e a tal ponto, que as moças bonitas já não aparecem, de tão ocupadas que têm estado a fazerem trabalhos para o leilão de hoje.

O que há de ser este leilão, eu adivinho; há de ser uma linda festa, muito concorrida, onde a caridade brilhará no meio de sorrisos graciosos e de olhares brilhantes; em que o amor, a vaidade, o orgulho, todas essas paixões mundanas servirão de pedestal à bela estátua da virtude celeste.

É aí, que as lindas mulheres vão retribuir à Providência, os tesouros de beleza e de graça, que a natureza lhes deu; é aí que o seu belo olhar, o seu sorriso, o seu gesto elegante, pedindo para os pobres, renderão a Deus um verdadeiro culto.

Hoje pois terá lugar uma larga remissão de pecadilhos, e uma justa penitência da parte das moças bonitas e coquettes, que pôr tanto tempo zombaram impunemente dos protestos e da paciência de seus adoradores.

Deixemos porém estes assuntos já esgotados, e voltemos ao teatro lírico, que é atualmente o ponto de reunião mais interessante desta bela capital.

Ultimamente a nossa cena lírica ia perdendo muito no espírito público; embora possuísse duas artistas de incontestável merecimento, o repertório estava já tão conhecido que não oferecia a menor variedade.

Eu, pelo menos, ia ao teatro como um homem levado pelo hábito e acostumado a ouvir todas as noites, recostado à janela, cantar nas moitas do seu jardim alguma ave melodiosa.

Uma noite, era um rouxinol que gorjeava as suas canções mimosas, – era a Charton. Outra, era a sereia que embriagava com os sons palpitantes de sua voz harmoniosa, – era Emy.

Havia gente, que gastava o seu tempo a discutir o que era mais agradável e mais artístico. Os homens de juízo e de bom gosto faziam como eu; admiravam a estrela do céu, e a flor do campo, sem procurar saber qual era mais bela.

Agora porém parece-nos que o teatro lírico vai tomar outro aspecto; preparam-se novas óperas, e trata-se de criar um novo repertório.

Além da Sapho que se deve representar breve, teremos com a Charton a Fidanzata Corsa cujo ensaio começou ontem, e depois o Nabuco com E. La Grua e o Walter.

Para o dia 2 de dezembro fala-se numa composição francesa, e numa ópera em que cantarão juntas as duas prima-donas rivais.

Com a chegada porém de Tamberlich e de Julienne Dejean, é que a nossa cena se reanimará completamente; e que fará gosto assistir a uma dessas lutas do talento e da arte, lutas cujos troféus são as camélias, as rosas, e os lindos ramos de flores que se abatem aos pés do vencedor.

A vinda do Tamberlich, é sobretudo muito necessária, não só pôr não termos um bom tenor, como pôr consideração para com as nossas patrícias.

Na verdade é uma injustiça imperdoável, que elas não tenham um cantor pôr quem se entusiasmem; entretanto, que nós temos Emy, Arsene, e Anneta; nada menos do que três, isto é; – um número suficiente para revolucionar o mundo.

Começo de novo a olhar para o fundo do meu tinteiro para ver se ainda há alguma coisa.

Esperai! Lá vejo surgir o que quer que seja, – um pequeno ponto, um ponto quase imperceptível e confuso, que vai pouco a pouco se tornando mais distinto, como uma vela que desponta no horizonte entre a vasta amplidão dos mares.

Talvez nos traga coisas interessantes e curiosas; notícias que vos compensem da insipidez destas páginas ingratas.

Oh! O ponto cresce, cresce! Vai tomando a fisionomia de uma espécie de porteiro de secretaria, ou de bedel de academia.

Agora vejo-o distintamente; é um amigo velho!

-Bem-vindo, meu bom amigo, bem-vindo, amigo sincero dos folhetinistas e dos escritores, bem-vindo, ponto final!

Não há remédio, senão ceder-vos o lugar que vos compete; ei-lo,
(.)
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 7 de Outubro de 1855: Correi, minha pena

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Correi, correi de novo, minha boa pena de folhetinista!

És livre, como tuas irmãs, que cortam os ares nas asaa ligeiras; abri o vôo, lançai-vos no espaço.

Avante.

Mas como estão mudados os tempos; como são diferentes os dias de agora, daquelas semanas em que brincavas sorrindo com os bailes, com as moças, com a música, com tudo que era belo e sedutor!

Então tudo eram flores, – flores mimosas que desabrochavam aos raios de um belo sol de primavera, – que brilhavam sob um céu azul perfumando aqueles dias tão tranqüilos e tão serenos.

Hoje as rosas murcharam, o céu turvou-se; e nesta sáfara da vida por que passamos atualmente, apenas florescem os cardos com seus espinhos, as saudades com a sua melancolia, e os goivos com o seu triste emblema.

Felizmente todo o deserto tem seus oásis, nos quais a natureza por um faceiro capricho, parece esmerar-se em criar um pequeno berço de flores e de verdura, concentrando nesses cantinhos de terra toda a força de seiva necessária para fecundar as vastas planícies.

Assim nesta quadra de amarguras e sofrimentos, encontram-se de espaço a espaço alguns corações ricos de virtudes e de sentimento; são os oásis deste tempo.

Aí sim; aí há flores; não as rosas brilhantes de outrora ou as camélias aveludadas dos salões; mas as flores modestas, filhas da sombra e do retiro, as flores do – sentimento, as violetas.

Vós, minhas leitoras, que sabeis sentir, bem compreendeis o que são estas violetas de que falo; são as flores singelas de vossa alma, – a caridade, a beneficência, o zelo e a abnegação.

Também me compreendem os pobres e infelizes, que tantas vezes durante estes tempos de provação tem sentido os perfumes suaves, a fragrância consoladora dessas flores do coração, – flores que desabrocham orvalhadas com as lágrimas da desgraça e do sofrimento.

E sobre tudo isto, há ainda a religião, – a nossa bela religião de Cristo, – mãe extremosa de todos os órfãos, – a irmã desvelada de todos os infelizes, – a amiga e companheira fiel dos pobres, – a consoladora de todas as misérias, e todas as aflições.

É ela que nos há de dar força e coragem para atravessarmos com resignação esses dias de atribuição, que felizmente parece irão pouco a pouco se acalmando, até nos deixarem aquela serenidade dos belos tempos de que hoje temos tanta saudade.

E agora, minhas leitoras, deixai-me dar-vos um conselho, que estou certo haveis de acolher com toda aquela amabilidade com que outrora acompanháveis os ziguezagues desta minha pena caprichosa, que bem vezes vos dava sérios motivos para um arrufo, para um enfado.

Voltemos porém ao conselho; não penseis já que é algum conselho muito grave, muito sério, vestido de calça e casaca preta com gravata branca, – à guisa de um antigo conselheiro da coroa.

Não; – é um pequeno conselho bem próprio para moças bonitas como sois, – um conselho que tem além de todas as outras vantagens, o merecimento de mostrar as pérolas de vossos dentes, e de fazer da vossa boca uma florzinha cor-de-rosa.

Aconselho-vos, que apesar dos tempos em que estamos, apesar de tanta tristeza e melancolia que envolve esta bela cidade, apesar de tudo, apesar mesmo das lágrimas, não deixeis de sorrir.

Notai porém que eu digo simplesmente sorrir e não rir.

O riso, é esta expressão vulgar com que exprimimos a alegria, e o humor; é muitas vezes mesmo um movimento nervoso, sem sentido sem significação, um hábito que se contrai como tantos outros, como o costume de estalar os dedos, de alisar o bigode, ou endireitar o colarinho.

Assim rir, quando alguém sofre, quando nossos irmãos padecem, é uma ofensa amarga, um insulto à dor e a desgraça; porque esse riso, se não é um escárnio, é uma indiferença fria. É uma insensibilidade estúpida.

Mas o sorriso, é diferente.

O sorriso, é esta exalação da alma, que nos momentos de calma e tranqüilidade vem desabrochar nos lábios, e abrir-se como uma dessas flores silvestres que o menor sopro desfolha.

Nunca vistes nas noites cálidas e límpidas, essas estrelas brilhantes que atravessam o horizonte, traçando no espaço um rasto luminoso, e brilhando um momento entre a escuridão das trevas?

Dizem que isto é um efeito da eletricidade. Pois o sorriso, – como as estrelas filantes, – é produzido também por esse choque de emoções, e de sentimentos, que se pode bem considerar como a eletricidade moral.

Portanto não há mal nenhum, minhas belas leitoras, em que deixeis vossos lábios sorrirem, e vossas almas expandirem-se no lindo rosto; há sorrisos alegres, porém, também os há serenos, tristes e melancólicos.

Demais, peço-vos isto também por nós. Que quereis que façamos, se nestes dias aflitos não virmos brilhar uma estrela, uma flor, um sorriso?

Quanto a mim, sou como o marinheiro do Mediterrâneo, perdido na vasta amplidão dos mares, batido pela procela, que no meio da escuridão e do vendaval, apenas vê brilhar no céu uma estrela furtiva, sente-se reanimado, cria novas forças, e murmura a sua prece. Ave Maria Stella.

Assim no meio dos desgostos e das tribulações, quando virdes um sorriso despontar nos lábios de uma linda mulher que vos ame, podeis fazer como o marinheiro; ajoelhai e murmurai a vossa prece. Ave Maria Stella.

Portanto, minhas belas leitoras, sorri, sorri sempre, como sorri o céu, o mar, e tudo que é belo; porque foi este o destino que deus deu as coisas mimosas: porque é esta a missão que representam neste mundo a beleza e a graça.

E quando quiserdes sorrir, não esquecei o vosso protegido, o Ginásio, aquele pequeno e lindo teatro, sobre o qual tantas vezes conversamos outrora, nos domingos.

Ainda é o mesmo; sempre digno da vossa solicitude, sempre esforçando-se em corresponder a amabilidade com que o tratais.

Depois que nos separamos tão repentinamente, tem havido nele muita coisa de novo, muita representação interessante; porém de tudo o que se me tem contado, a mais bela noite do Ginásio foi a de quinta-feira, – em que teve lugar o benefício dos pobres.

Se eu já não soubesse, minhas leitoras, que amais de coração este bom teatrinho, que vos dá tantas horas de agradável passatempo, podia contar que depois deste ato de beneficência, não lhe recusaríeis a vossa proteção, e sobretudo a vossa presença, que é a maior proteção que pode dar uma linda moça.

Não sei sobre que mais hei de falar-vos que já não tenha sido dito e repetido pôr tantas penas delicadas, que vos apresentam todos os domingos a história da semana.

Sobre Norma?

Quem é que não foi ver no teatro lírico esta criação de Emy La Grua; quem não ouviu esse canto inspirado e profundo que os faz correr pelo corpo um arrepio de emoção?

Norma, como a vi num desses dias no teatro lírico, fez-me compreender o episódio da Velleda dos Mártires de Chateaubriand, que, segundo dizem, forneceu o assunto deste pequeno poema de paixão violenta, de ciúme selvagem, e de amor sublime.

Falam por aí de algumas exagerações que pretendem haver na criação deste papel dramático; mas quem assim pensa, não tem uma verdadeira idéia da arte.

Por mim, não concebo que um crítico possa dizer ao poeta, ao artista, ao gênio, enfim como Deus disse ao mar: – Vós não passareis daqui.

Desde o momento em que o homem, nos vôos de sua inteligência se eleva acima das circunstâncias ordinárias da vida, desde que o seu pensamento se lança no espaço, possuído desse desejo ardente, dessa inspiração insaciável de atingir ao sublime, não é possível marcar-lhe um dique, um ponto que lhe sirva de marco.

Ide dizer ao poeta que não deixe correr a sua imaginação pelos espaços infinitos da fantasia, – ide dizer ao pintor que force o seu pincel quando corre inspirado sobre a tela, e eles vos responderão que o pensamento que os anima neste instante escraviza e esmaga a sua vontade; que a alma e o corpo cedem à força da inspiração que os arrebata neste momento.

Como o poeta, como o pintor, é o artista dramático, quando se acha possuído de seu papel, quando sente abrasar-se-lhe nas veias o fogo sagrado; é preciso ainda notar que este tem mais um motivo para deixar-se arrastar, tem os aplausos e os bravos de uma multidão inteira.

Assim, tudo isto a que vulgarmente chamam exagerações, são apenas os arrojos da imaginação do artista, os primeiros esboços de sua criação, que ele ainda não teve tempo de polir e de limar; pôr isso se houverdes visto a Norma todas as vezes como eu, de certo tereis reparado que cada dia uma dessas exagerações vai tomando nova forma, vai-se desenhando mais brilhante, mais luminosa, como um painel que se retoca.

Pôr tudo isso que tenho escrito, não penseis que me faço um defensor cego de La Grua, um defensor quand même da cantora que é hoje a estrela brilhante do teatro Lírico.

Não: – nem ao público, nem a ela, nem a nós, conviria uma admiração tão cega, que excluísse a franqueza, quando pôr acaso se tornasse necessária.

O artista, a quem julgo ofender dizendo-lhe a verdade, e apontando-lhe um erro, – é sempre um artista medíocre que vive da sombra da glória, sem merecimento real.

Por isso nós, com Emy La Grua, faremos, se for necessário, como dizia Afonso Karr a propósito das mulheres bonitas; faremos como o escultor que talha o mármore de uma estátua, não para ofende-la, mas para modelar-lhe as formas elegantes e arredondar-lhe os mimosos contornos.

Se for necessário, o dissemos nós, porque parece-nos que nunca teremos ocasião de fazer de nossa pena de folhetinista um buril de escultor.

Al.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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Izabel Santa Cruz Fontes (Perdão)

Hoje sonhei que te perdoava. Estamos sentados frente a frente, desconfortáveis, com olhares perdidos. Eu podia sentir o teu desespero mudo no ar, tocar nele, moldá-lo à minha maneira, fazer dele capricho meu. Você fingia tomar seu café e olhar pela janela. O café estava tão quente que era quase uma presença humana. Éramos, então, quatro: eu, você, o café e seu desespero, percebi nisso metáfora indizível. Mesmo no fim, mesmo em sonhos, nunca sozinhos.

Sádica, eu folheava o jornal displicentemente e jogava os cadernos pelo chão, bagunçando tudo de propósito, como que para te irritar pela última vez. Você, numa coragem súbita, quebra o silêncio. Apenas ergo os olhos, fitando-te friamente e volto a uma notícia tediosa, no caderno de política. Falava alguma coisa sobre um tratado político no Sul da África… você fala, fala, fala. Fala coisas que eu não entendo, ou não lembro. Diz que se arrepende, pede desculpas, promete o céu e felicidade eterna. Continuo a ler, termino mais uma página e a jogo no chão, quase com desprezo. Sentindo o corpo inteiro estremecer, numa raiva contida, você se limita a olhar com o canto do olho a mais uma provocação e ignora, permitindo-se um resto de orgulho.

Ao perceber que ainda somos nós — você, puro orgulho, eu, pura implicância — dou um meio sorriso, sabendo que não tenho o direito de me sentir feliz. Você, de repente, percebe tudo e dá um sorriso largo, criança em dia de natal. Surpresa, apenas arregalo os olhos, você ri do meu espanto. Mais alto. Gargalha. Contagiada, vou sentindo minha boca se abrir, tímida, até se escancarar. Sentimos o corpo tremer e rimos, em uma crise guardada, sem explicação, sem motivo.

Passamos tempo incontável assim, a rir sem motivos e, de repente, paramos. Pela primeira vez, nos olhamos de verdade, com olhos de quem ri, inocentes e carinhosos. Finalmente, nós dois entendemos e, calados, aceitamos nosso destino: orgulho e implicância. Nos perdoamos.
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Izabel Santa Cruz Fontes (1987) é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Diz fazer da escrita uma forma de “existir um pouco mais no mundo.”

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 8 de julho: As Ações de Companhias

Se não quereis ficar doido, abandonai a cidade, fugi para Petrópolis, ou fechai-vos em casa.

Sobretudo não vos animeis a deitar a cabeça à janela ou a sair à rua, ainda mesmo de noite.

Apenas deres os primeiros passos, encontrareis um homem grave, que vos apertará a mão como antigo conhecido.

Pensais que vai perguntar pela vossa saúde, ou falar-vos de algum negócio particular? Enganai-vos completamente.

Desde terça-feira que não há nesta grande cidade senão um negócio. A forma vulgar da saudação, o clássico bons dias, foi substituído por um cumprimento mais cheio de interesse e solicitude:

– Então, quantas teve?

– Vinte.

– Ah! dou-lhe os parabéns.

E o sujeito deixa-vos com um pequeno sorriso de despeito ou de vaidade satisfeita.

Daí a dois passos encontrais um outro conhecido de mãos nos bolsos e chapéu à banda.

– Meu amigo, quer vender?

– O que, senhor?

– As suas ações.

– Ah! as minhas ações! Não se vendem.

– Pois, se quiser, fico com todas as dez.

Este especulador, que tomais por um comprador de ações, está desesperado por vender as suas antes do dia onze.

Mais adiante tomam-vos o braço de repente, e vos arrastam para a porta de uma loja ou para alguma esquina deserta.

– Quero pedir-lhe um favor.

– Pois não, senhor.

– Em quem vota?

– Em… Não sei ainda.

– Pois então peço-lhe o seu voto para o meu candidato.

– É membro da comissão?

– Não.

– Pois então está servido.

– Fico-lhe muito agradecido.

E continuais o vosso caminho, já um pouco azoado.

– Psiu!…psiu!

É um amigo que vem a correr, naturalmente para participar-vos alguma novidade importante.

– Sabe alguma coisa de novo?

– A respeito…

– Ora, a respeito das ações.

– Não; não tenho ouvido dizer nada.

– Fala-se numa segunda errata.

– Qual! não tinha jeito nenhum.

– Como! O regimento de custas era obra de jurisconsultos, e teve duas erratas.

– Tem razão!

– Adeus.

Quando pensais que vos desvencilhais do homem das erratas, caís nas mãos de um esquecido, que trata de comentar a grande lista dos agraciados, de princípio a fim.

Começa a calcular pelas famílias, depois passa a analisar os indivíduos, examinar a sua profissão, e por fim entra no vasto campo dos paralelos e das comparações.

O homem tem na memória uma certidão de batismo de cada um dos agraciados, e um registro dos bens, da morada e do gênero de vida de todos os agraciados na grande loteria do caminho de ferro.

Se o deixarem falar, disserta cinco horas a fio, sem copo d’água, sem mesmo temperar a garganta, sem fazer uma pausa, nem titubear numa vírgula.

Afinal vos larga para ir continuar além a sua propaganda, para ir pregar a nova cruzada contra os homens da comissão.

Assim enfastiado, aborrecido de todas estas coisas, tendo gasto inutilmente o vosso tempo, entrais no Wallerstein para conversar com algum amigo que não esteja contaminado.

Achai-vos no círculo de flâneurs, que passam o tempo alegremente a divertir-se a semear algumas flores neste vale de lágrimas.

Conversa-se sobre as novidades do dia, sobre a probabilidade da vinda de Thalberg e a notícia do contrato da Stoltz, sobre a próxima representação lírica em favor da Beneficência Francesa.

Se falais de uma moça elegante, de um lindo toilette preta que brilhava um desses dias nos salões, de uns bonitos olhos e de uns requebros graciosos, vos interrompem de repente:

– O pai não teve ações!

Se vos lembrais da Charton na Filha do Regimento, e se despertais todas as vossas belas recordações para sacia-las segunda-feira, ouvindo aqueles gorjeios maviosos de envolta com as facécias do Ferranti, não vos deixam acabar.

– É verdade, diz um, a propósito de Ferranti, deram-lhe dez ações!

E saís desesperado, correndo para a casa antes que vos venham atordoar novamente os ouvidos com a maldita palavra que está na ordem do dia.

Quanto mais se soubesseis o que é realmente para toda a sociedade a lista que publicaram na terça-feira os jornais diários da corte.

É uma espécie de cadastro, de registro, de livro negro da polícia, no qual se acham escritas as ações de cada um, por conseguinte o seu talento, a sua virtude, a sua consideração na sociedade.

As moças lá vão procurar os nomes dos noivos; os negociantes indagar se os seus devedores merecem a continuação do crédito; os amigos saber o grau de amizade que devem despender mutuamente.

Os curiosos divertem-se com as comparações, e os parasitas estudam os nomes daqueles a quem devem tirar o chapéu ou fazer simplesmente um cumprimento de proteção.

E assim são as coisas deste mundo.

Dante os homens tinham as suas ações na alma e no coração; agora tem-nas no bolso ou na carteira. Por isso naquele tempo se premiavam, ao passo que atualmente se compram.

Outrora eram escritas em feitos brilhantes nas páginas da história, ou da crônica gloriosa de um país; hoje são escritas num pedaço de papel dado por uma comissão de cinco membros.

Aquelas ações do tempo antigo eram avaliadas pela consciência, espécie de cadinho que já caiu em desuso; as de hoje são cotadas na praça e apreciadas conforme o juro e interesses que prometem.
…………….

Mas temos muita coisa agradável sobre que conversar, e não vale a pena estarmos a gastar o nosso tempo com esta questão de jornais.

Enquanto senadores, deputados, empregados públicos, desembargadores, negociantes e capitalistas correm à praça para saber a cotação das ações, vamos nós para o teatro ver o benefício do Gentile.

O público deu-lhe todas as demonstrações de apreço e simpatia; os ramos de flores e os versos choveram dos camarotes, e a Charton cantou melhor do que ela mesma costuma cantar.

É um pouco difícil, mas é verdade. Há certas noites em que se conhece que não é a obrigação que a faz cantar, mas a inspiração, um movimento espontâneo, uma necessidade de expansão.

Nestas noites canta como o poeta que escreve versos inspirados, como o pintor que esboça o quadro que a sua imaginação ilumina, como a alma triste que dirige a sua prece a Deus, como a moça que sorri, como a flor que se expande, como o perfume que se exala.

Os lábios vertem os eflúvios d’alma, as melodias que um gênio invisível lhe murmura aos ouvidos, os segredos divinos que alta noite, a horas mortas, lhe contaram as estrelas, as sombras, as brisas que passavam sussurrando docemente.

Mas isto são coisas que se sentem, que se compreendem, e que não se explicam. Ouvi um artista cantar num dos seus bons dias, e percebereis essa nuança inexprimível que vai de bem representar o bem sentir.

Ia-me esquecendo dar-vos notícia do vosso pequeno teatro, do vosso protegido, minhas belas leitoras.

Se soubesseis como vos agradece a bondade que tendes tido em anima-lo, como se desvanece pelo interesse que vos inspira!

Agora já não é somente um pequeno círculo de homens de bom gosto que aí vai encorajar o seu adiantamento e aplaudir aos seus pequenos triunfos.

Na balaustrada dos seus camarotes se debruçam as senhoras mais elegantes, as moças as mais gentis dos nossos aristocráticos salões.

O lindo rosto expandindo-se de prazer, o sorriso da alegria nos lábios, elas esquecem tudo para interessar-se pelo enredo de uma graciosa comédia.

E depois a sua boquinha feiticeira vai repetir no baile, ou na partida, uma frase espirituosa, um dito chistoso, que requinta de graça, conforme os lábios são mais ou menos bonitos.

No Teatro Lírico podeis ver um semblante triste, uns olhos vendados pelos longos cílios de seda, uma fronte pensativa e melancólica.

Mas no Ginásio o prazer roça as suas asas d’ouro por todos esses rostos encantadores; e bafeja com o seu hálito celeste todos os pensamentos tristes, todas as recordações amargas.

Tudo sorri; os olhos cintilam, as faces enrubescem, a fronte brilha, o gesto se anima, e a alma brinca e se embala nas emoções doces, calmas e serenas.

A dor, a tristeza, a velhice e o pensamento, nada há que resista a esta franca jovialidade, que como um menino travesso não respeita nem as cãs, nem as lucubrações sérias, nem a gravidade e a sisudez.

E quando por volta da meia-noite vos retirais, ides satisfeito, julgando o mundo melhor do que ele realmente é.

E tudo isto é obra vossa, minhas amáveis leitoras: podeis ter este orgulho. Fostes vós que criastes este teatro; que o animastes com um sorriso, que o protegeis com a vossa graça, e que hoje o tratais como vosso protegido.

Entretanto peço-vos que, quando tiverdes ocasião, não lhe deixeis de dar umas dessas doces repreensões, uma dessas ligeiras advertências, como só sabem dar os lábios de mulher.

Dizei-lhe que faça com que seus artistas decorem melhor os papéis, e aprendam a pronunciar com perfeição os nomes estrangeiros.

Esqueci-me de pedir-vos isto naquela brilhante reunião em que vos encontrei seta-feira, tão bonitas, tão satisfeitas, tão risonhas, que bem se via que esta noite tem de ficar gravada na vossa memória, até que outra a venha fazer esquecer.

E agora atirai o jornal de lado, ou antes passai-o ao vosso marido, ao vosso pai ou ao vosso titio, para que ele leia o resto.

Bem entendido, no caso de que não esteja pensando em ações, porque então é escusado; não me dará a atenção de que eu preciso para falar a respeito da discussão que tem havido ultimamente na câmara.

O Sr. Sayão Lobato fazendo a exumação dos partidos políticos, procurou demonstrar que as idéias liberais tinham sido sempre estéreis para o país.

Em resposta duas vozes se ergueram; a do Sr. Melo Franco que defendia seus aliados, ea a do Sr. F. Otaviano que tomou a si a causa nobre do fraco e do proscrito.

Perdoe-nos o ilustre orador, que com tanto afã defende o passado de seu partido e que, apesar de magistrado imparcial se mostra parcialíssimo político nos seus retrospectos históricos.

Se o partido liberal não escreveu leis de 3 de dezembro, e não fez grande cópia de regulamentos, nem por isso deixou de fecundar as instituições do país com o germe civilizador de sua idéia, de suas crenças, de sua constância em pugnar pelas reformas úteis e necessárias.

A sua história é a história de muito pensamento generoso e nobre no nosso país, desde a sua independência até a calma e tranqüilidade de que atualmente gozamos.

Foi ele que nos deu, e que tem defendido ardentemente o júri e a imprensa; foi ele que primeiro proclamou o princípio das incompatibilidades, das eleições diretas, da independência do poder judiciário, que iniciou todas estas reformas que hoje se trata de realizar.

Não podemos estender-nos mais; porém em qualquer tempo aceitaremos com o maior prazer esta discussão; pela nossa vez também, revolveremos as cinzas dos túmulos, mas para honrá-las, esquecendo os erros dos mortos, e não para profana-las excitando o desprezo dos vivos.

Os partidos desapareceram da cena política; pertencem ao domínio da história. Simples investigadores, podemos apreciar os fatos com a calma necessária, sem sermos influenciados por interesses pessoais.

***

E agora, vem minha boa pena de folhetinista, minha amiga de tantos dias, companheira inseparável dos meus prazeres, confidente de meus segredos, de minhas mágoas, dos meus prazeres.

Vem! Quero dizer-te adeus! Vamos separarmo-nos, e talvez para sempre!

Tenho saudade desses dias em que brincava comigo sorrindo-me, coqueteando, desfolhando as flores da imaginação, e levando-me por estes espaços infindos da fantasia.

Oh! tenho muita saudade! Sempre me lembrarei dessas nossas conversas íntimas ao canto de uma mesa, com os olhos nos ponteiros do relógio, aproveitando as últimas claridades do crepúsculo para recordar ainda algum fato esquecido.

Mas é necessário. Faço-te este sacrifício, bem que me pese, bem que o levem a mal os meus melhores amigos.

Os outros te esquecerão, mas eu me lembrarei sempre de ti: basta isto para consolar-te.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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José de Alencar (Ao Correr da Pena)Rio, 24 de junho: A Botafogo

A Botafogo!…


Acompanhemos essa linha de carros que desfila pela Glória e pelo Catete; sigamos esse numeroso concurso que vai pouco a  pouco se estendendo pela praia, ao longo do parapeito.

O sol já descambou além dos montes; e as últimas claridades de um dia turvo e anuviado, foram se extinguindo entre as sombras do crepúsculo.

Daí a pouco fechou-se a noite; e no meio da escuridão e das trevas sobressaía uma multidão de luzes, refletindo-se sobre as águas do mar.

Ranchos de moças a passearem, bandas de música tocando nos coretos, senhoras elegantes debruçadas nas janelas iluminadas, muita concorrência, muita alegria e muita animação; tudo isto tornava a festa encantadora.

Quanto ao fogo, queimou-se às oito horas; dele só restam as cinzas no fundo do mar. Não estranhem, portanto, que o respeite como manda a máxima cristã. Parcis sepultis.

Às dez horas, pouco mais ou menos, tudo estava acabado. A praia ficara deserta; e nas águas tranqüilas da baía, apenas as nereidas murmuravam, conversando baixinho sobre o acontecimento extraordinário que viera perturbar os seus calmos domínios.

Não é preciso dizer-vos que isto se passava domingo, no começo de uma semana que prometia tantas coisas bonitas, e que afinal logrou-nos em grande parte.

Tivemos algumas boas noites de teatro italiano, e ouvimos o Trovador e o Barbeiro de Sevilha, com uma linda ária do Dominó noir, que foi muito aplaudida.

Se é verdade o que nos contaram, brevemente teremos o prazer de ouvir toda essa graciosa ópera, em benefício da Sociedade de Beneficência Francesa. A lembrança é feliz, e pode realizar-se perfeitamente com o concurso dos artistas franceses que possui atualmente o nosso Teatro Lírico.

A diretoria decerto não se oporá a uma representação, que, além do auxílio poderoso que deve dar a um estabelecimento de beneficência, não pode deixar de fazer bem aos seus artistas, fazendo-os conhecer num gênero de música diverso, e no qual é muito natural que se excedam.

Quem sabe mesmo se, depois deste primeiro ensaio, a empresa não julgará conveniente, para a variedade dos espetáculos e para excitar a concorrência, dar de vez em quando uma pequena representação francesa?

Sei que a música italiana é a mais apreciada no nosso país; porém lembro-me ainda do entusiasmo e do prazer com que foram sempre ouvidas em nossas cenas a Nongaret, a Duval e mesmo a Preti.

Já que não podemos ter ao mesmo  tempo uma companhia italiana e uma francesa, não vejo porque não se hão de aproveitar os atores que atualmente possuímos, e, contratando mais um ou dois, deram-nos algumas óperas francesas, que estou certo haviam ser mui bem aceitas.

Se não há algum obstáculo, que ignoramos, é de crer que  a diretoria pense em fazer valer este meio de tornar o Teatro Lírico mais interessante e mais variado.

As óperas francesas têm grande vantagem de não fatigarem tanto os atores como a música italiana; e por conseguinte se faria um benefício aos artistas, reservando os meses da força do verão para esse gênero de cantoria.

Assim, podiam-se das as representações italianas com maior intervalo, e não se sacrificaria a voz de alguns cantores, obrigando-os a executar música de Verdi duas ou três vezes por semana.

Fui-me deixando levar pelo gosto de advogar os vossos interesses, minhas belas leitoras, e esquecia-me contar-vos uma cena terna que teve lugar sexta-feira no teatro, quando se representava o segundo ato do Trovador.

Uns bravos e umas palmas fora de propósito acolheram a entrada em cena da Casaloni, e continuaram enquanto ela cantava e seu romance da Cigana.

A princípio a artista procurou resistir à emoção que de certo lhe causava essa zombaria imerecida; mas afinal o soluço cortou-lhe a voz e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

Lágrimas de mulher… Quem pode resistir a elas?

Depois de alguns momentos de confusão, em que a cena ficou deserta e a música em silêncio, a Casaloni entrou novamente em cena com os olhos rasos de pranto e a voz trêmula.

Neste momento é que eu reconheci bem o nosso público, e senti o coração generoso que animava todo esse concurso de espectadores que enchia o salão.

Ninguém disse uma palavra; mas uma salva continuada de aplausos percorreu todos os bancos de ponta à ponta: tudo que tinha um pouco de generosidade no coração e um pouco de sentimento no fundo d’alma protestava contra aquela amarga zombaria, contra aquela ofensa sem causa.

A mulher ofendida que chora é uma coisa sagrada e que se deve respeitar. Dizem que a lágrima é o símbolo da fraqueza; entretanto quantas armas, quantos braços fortes não se têm curvado ao peso dessa gota de linfa que não umedeceria sequer uma folha de rosa?

Deixemos aqui este episódio da semana, que não tem outro interesse senão o de mostrar o efeito de uma imprudência, e de provar a delicadeza do público que sabe preferir uma cantora, sem por isso ofender e maltratar a outras.

O Ginásio Dramático também teve esta semana uma noite feliz, honrada com a presença de SS. MM., que se dignaram estender sobre ele sua benéfica e augusta proteção.

Representavam-se nessa noite duas comédias, cujos papéis foram muito bem desempenhados pelo artista da pequena companhia, que parece se esmerou em dar provas dos progressos sensíveis que tem feito.

O Episódio do Reinado de Jaques I é uma comédia histórica e de muito espírito; tem algumas cenas de uma singeleza e de uma naturalidade encantadoras.

É um idílio de amor aos quinze anos, começado nos muros de uma prisão, à leitura da Bíblia, e entre as flores de clematites, – que de repente se vê oprimido nos salões de um palácio suntuoso, no meio das etiquetas da Corte.

O idílio esteve quase a transformar-se em drama ou tragédia; mas felizmente achou refúgio num coração de rei, coração cheio de bondade e de virtude, e aí continuou a sorrir em segredo até que…

Até que caiu o pano.

Todos os personagens estavam bem caracterizados e vestidos com bastante luxo e riqueza para os recursos da pequena empresa, que não se poupa a sacrifícios sempre que se trata de promover um melhoramento.

Suas Majestades prometeram voltar ao Ginásio esta semana. Neste fato devem os meus leitores ver a prova a mais evidente dos serviços que este teatro vai prestando à arte dramática do nosso país.

Animado por tão alta proteção, acolhido pela boa sociedade desta corte, o Ginásio poderá brevemente estabelecer-se em um salão mais espaçoso e mais elegante, e aí abrir-nos as portas ao prazer, à alegria, a um inocente e agradável passatempo.

No resto das noites, em que os teatros estiverem fechados, muita moça e muita família passeou pela Rua do Ouvidor para ver o modelo de casamento da Imperatriz Eugênia, que se achava exposto na vidraça do Beaumely.

As moças admiravam mais o vestido de cetim branco e o penteado, que dizem ser de um gosto chic; os homens, porém, admiravam mais as moças que o vestido, de quem tinham ciúme, porque lhes roubavam os olhares, a que supunham talvez ter direitos.

É incompreensível este costume que têm certos homens que gostam de uma mulher de se julgarem com direito exclusivo aos seus olhares, sem que ela lhes tenha feito a menor promessa.

Parece que o olhar de uma mulher bonita é como uma vaga de senador. Ninguém tem direito a ela, o que quer dizer que todos o têm.

Assim um fashionable apaixona-se por uma bonita mulher, e, sem que ela lhe tenha dito uma palavra, sem mesmo consulta-la, atravessa-se diante dos seus olhares, segue-a por toda parte como a sombra do seu corpo, julga-se enfim com direito a ser amada por ela. Se a moça de todo não lhe presta atenção e não se importa com a perseguição sistemática, o apaixonado toma uma grande resolução, e despreza a mulher bonita de que ele realmente não faz caso.

O mesmo sucede com a vaga de senador.

Um homem qualquer que tem quarenta anos, seja ou não filho de uma província, tenha ou não a afeição dos povos de certas localidades, sem consultar os votantes, apresenta-se candidato, enche o correio de cartas.

Se a província mostra não se importar com a sua candidatura, o homem de quarenta anos toma igualmente uma resolução, renuncia à eleição a que tinha direito.

Ora, eu não sei como se chama o homem de quarenta anos que renuncia à vaga de senador; mas o apaixonado que despreza a mulher bonita é conhecido entre certa roda pelo título de comendador da Ordem dos Verdes.

Esta ordem é a mais antiga do mundo; é anterior mesmo à época da cavalaria e da mesa redonda. Data dos tempos em que os animais falavam, e deve a sua origem a uma raposa espirituosa, que numa circunstância memorável soltou esta palavra célebre: Estão verdes.

Muito tempo depois Eduardo III, apanhando a liga da Condessa de Salisbury, disse também uma palavra, que é pouco mais ou menos a tradução daquela: Honny soit qui mal y pense.

Assim como desta palavra se criou a jarreteira, estabeleceu-se muito antes a Ordem dos Verdes, na qual são comendadores do número os namorados que desprezam as mulheres bonitas, os ministros que recusam pastas, os patriotas que renunciam a candidatura, os empregados que pedem demissão, e muitos outros que seria longo enumerar.

A insígnia da ordem é uma folha de parreira, que outrora foi o símbolo da modéstia e do pudor.

A cor é o verde, como emblema da esperança; porque o estatuto da ordem embora imponha a abnegação e o sacrifício de uma honra ou de um bem, não inibe que se trabalhe por alcançar coisa melhor.

Os membros desta ordem gozam de grandes honras, privilégios e isenções, e especialmente da graça de obterem tudo quanto desejarem. Para isso são obrigados apenas a uma insignificante formalidade, que é não desejarem senão o que puderem obter.

Concluiria aqui esta revista, se não tivesse dois deveres a cumprir.

O primeiro é a respeito de uma questão que tem ocupado a imprensa desta corte, e que atualmente se acha entregue aos tribunais do país.

Falo de abalroação da Indiana, simples fato comercial, a que a imprensa tem querido dar o caráter de uma questão de classe e de brios nacionais.

Um estrangeiro que perde o seu navio não poderá defender os interesses do seu proprietário e dos carregadores, somente porque semelhante defesa vai ofender a tripulação de um vapor brasileiro?

Ninguém mais do que eu sabe respeitar o espírito de classe, e apreciar a generosa fraternidade que prende os homens de uma mesma profissão; porém confesso que essa maneira de identificar o homem com a classe, de julgar do fato pelo mérito pessoal, não é a mais acertada para a questão.

O comandante do vapor Tocantins pode ser um excelente oficial, a sua  tripulação pode ser a melhor, e entretanto ter-se dado um descuido que ocasionasse o sinistro.

Felizmente hoje a questão vai ser perfeitamente esclarecida por testemunhas imparciais e dignas de todo o sinistro.

O Tocantins foi encontrado na mesma noite de 11, meia hora antes do sinistro, por um navio cujo capitão já atestou que o vapor trazia apenas uma luz ordinária, e não tinha sobre as rodas os faróis verde e encarnado.

Como este, existem muitos outros depoimentos importantes que aparecerão em tempo competente, e que mostrarão de que parte está a verdade e o direito.

O segundo ponto sobre que tenho de falar é a respeito dos espetáculos líricos no Teatro de S. Pedro de Alcântara, dos quais tratei na revista passada.

Um correspondente do Jornal do Comércio contesta a possibilidade desses espetáculos em virtude de um privilégio dado à atual empresa lírica. 

Entretanto semelhante privilégio não pode existir; se o governo o concedeu, praticou um ato que não estava nas suas atribuições, um ato nulo, porque é inconstitucional.

Não é monopolizando uma indústria já conhecida no país, não é destruindo a concorrência que se promove a utilidade pública.

A própria diretoria do Teatro Lírico deverá desejar esta concorrência; porque se, como ela supõe a nova empresa não levar avante, dando-lhe nova força e novo prestígio.

Ainda voltarei a esta questão, que na minha opinião interessa muito ao futuro da arte nesta corte.

Por hoje faço-vos as minhas despedidas.

Vamos ver as fogueiras de São João, brincar ao relento, e recordar as poéticas e encantadoras tradições de nossos pais.

P.S. – À última hora recebo a minha carta prometida para quinta-feira; desta vez reservo para mim a carta, e dou-vos unicamente os versos.

O pronome (em falta do nome) persiste em ser lido em francês, e não em português; porém agora afianço-vos que estou convencido do contrário.

Podeis crer-me. 

Rio de Janeiro, 1855.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 10 de junho: Um Tema Delicado

Falemos de política.

É um tema muito delicado, sobretudo na época atual.

Mas o que é política?

Se a etimologia não mente, é a ciência do governo da cidade.

Pode ser que esta definição não lhes agrade; mas isto pouco me embaraça. Estou expondo um novo sistema social; é natural que me aparte das opiniões geralmente admitidas.

Continuemos.

A política é o governo da cidade. A cidade se compõe de freguesias, de ruas, de casa, de famílias e de indivíduos, assim como a nação de províncias e municípios.

Já se vê, pois, que a política deve ser também a ciência de bem governar a casa ou a família, e de promover os interesses dos indivíduos.

Isto é lógico, e ninguém me poderá negar que, promovendo-se estes interesses, não se concorra poderosamente para o melhoramento da freguesia, da província e finalmente do país.

Daqui resultam, portanto, dois grandes sistemas políticos, dois princípios únicos da ciência do governo.

Um que procede à guisa da análise, que parte do particular para o geral, que promove os interesses públicos por meio dos interesses individuais.

O outro é uma espécie de síntese, desce do geral ao particular, e, melhorando o país, assegura o bem-estar dos indivíduos.

Este método, tanto em política, como em lógica, tem geralmente pouca aceitação: do contrário os espíritos esclarecidos preferem a análise.

Quereis saber como se faz a análise em política?

Em vez de examinarem-se as necessidades do país, examinam-se as necessidades deste ou daquele indivíduo, nomeiam-no para um bom  emprego criado sem utilidade pública, e o país se incumbe de alimenta-lo por uma boa porção de anos.

Lá chega um dia em que se precisa de um ministro, e lança-se mão daquele indivíduo como de um homem predestinado, o único que pode salvar o país.

Eis, portanto, os favores feitos àquele indivíduo dando em resultado um benefício real à causa pública; eis a política por meio do empenho – quero dizer da análise, – criando futuros ministros, futuros presidentes, futuros deputados e senadores.

Alguns espíritos frívolos, que não têm estudado profundamente este sistema político, chamam a isto patronato! 

Ignorantes, que não sabem que cálculo profundo, que sagacidade administrativa é necessária para criar-se um homem que sirva nas ocasiões difíceis!

Estes censuram o deputado que, em vez de se ocupar dos objetos públicos, trata dos seus negócios particulares; falam daqueles que sacrificam os interesses de sua província às exigências de sua candidatura de senador.

E não compreendem que estes hábeis políticos, promovendo os interesses de sua pessoa, de sua casa e de sua família, não tem em vista senão auxiliar o melhoramento do país, partindo do menor para o maior.

De fato, algum dia eles pagarão à nação tudo quanto dela receberam, em projeto de reformas, em avisos, em discursos magníficos. Isto enquanto não vão à Europa passear e fazer conhecida do mundo civilizado a ilustração dos estadistas brasileiros.

E há quem chame a isto patronato, empenho ou desmoralização! Como se em muitos outros paises, e até na França, não estivesse em voga este mesmo sistema de governar!

Outrora se dividiam as forma de governo em república, monarquia representativa e monarquia absoluta. Hoje está conhecido que estas duas divisões são puramente escolásticas, e que não há senão duas maneiras de governo: o governo individual e o governo nacional, o governo dos interesses particulares e o governo dos interesses do país.

Cada um deles pode conduzir ao fim desejado, procedendo por meios diversos.

Um, por exemplo, escolhe o indivíduo para o emprego, segundo a sua aptidão; o outro escolhe emprego para o indivíduo, segundo a sua importância.

O primeiro ganha um bom empregado, o segundo um excelente aliado. Um pode errar na escolha do indivíduo; o outro pode ser traído pelo seu protegido.

Se os meus leitores acham muito extravagante esta preleção política, têm bom remédio; é não lerem segunda vez, se tiverem caído na atualidade.

Não pensem contudo que pretendo fazer concorrência às últimas declarações feitas na Câmara dos Deputados; de maneira alguma.

Qualquer dos métodos ali apresentados é inquestionavelmente melhor do que o meu, começando pelo de um nobre deputado de São Paulo.

Que política salvadora! Voltaremos ao tempo das revoltas, das perseguições, das eleições armadas. Teremos uma espécie de fanatismos político, uma cruzada, a que se chama saquaremismo puro!

Ora, é inegável que se podem obter grandes resultados com esta política. A revolução, segundo dizem, é uma força civilizadora, regenera como o fogo, purifica como o martírio.

Portanto não há que hesitar! Adotemos esse programa salvador; arranjemos quanto antes uma meia dúzia de São José dos Pinhais, e avante, que o futuro é nosso! A jovem oposição entrará no senado, e teremos dado um grande passo para o engrandecimento da nossa pátria.

E a respeito de política, estou satisfeito, quero dizer estou suficientemente enfastiado.

E, o que mais é, não tenho nada de bonito que dizer-vos. A semana que acabou foi unicamente de esperanças. Todo o mundo esperava; nestes sete dias passados ninguém teve um pensamento que não fosse uma expectativa.

Até quinta-feira esperou-se que a procissão de São Jorge fosse brilhante, e por isso uma concorrência extraordinária enchia as ruas privilegiadas.

Quase todas as moças bonitas da cidade estavam reclinadas pelas varandas dessas casas, tão tristes e tão soturnas nos outros dias.

Cada janela era um buquê; e como um buquê pode ser bonito ou feio, perfumado ou inodoro, segundo as flores de que se compõe, deve cada um entender a palavra a seu modo.

Há gente que gosta da rosa, porque tem espinhos; há outros que preferem a violeta, porque é modesta; e talvez que alguns apreciem o cravo amarelo, a papoula, e achem um certo sainete no cheiro da arruda e do manjericão.

Para todos estes gostos havia flores nos buquês de que falei. O jardim era completo, principalmente no que diz respeito a girassóis.

A procissão saiu.

Se ainda não sabeis, podeis ficar certo disto, assim como do logro que nos pregou. Anunciavam uma procissão muito bonita, e saiu uma muito feia.

São Jorge apareceu vestido de novo, mas posso afiançar-vos que não estava à son aise. Induzi isto da palidez, da cor de mortalha que tinha o seu semblante.

De fato o ativo guerreiro não podia estar ao seu gosto dentro daquele manto enorme, que cobria cavaleiro e cavalo, de tal maneira, que de longe apenas se via um capacete e uma capa que caminhavam com quatro pés.

Depois da imagem vieram as irmandades do costume; houve porém, uma que eu não conheci, e que entretanto ia de envolta com a do Carmo; falo de uma  que trazia capa amarela, cor que não me consta tenha sido adotada por nenhuma confraria desta corte.

Depois de quinta-feira começou todo o mundo a esperar pelas ações da estrada de ferro, e pelo resultado das cartas entregues à comissão, as quais montam já a mais de cinco mil!

Nem os ministros, nem as moças bonitas, nem os lentes no tempo de  exames, ou os eleitores em época de eleição, são capazes de apresentar um tal número de billets doux.

A comissão tem, portanto, de fazer o milagre de Jesus Cristo, dividir esse pão, não em fatias, porém sim em migalhas.

E é essa divisão que todos esperam ansiosos, calculando já pelos dedos os resultados prováveis do emprego deste dinheiro que tem seguro um interesse de sete por cento.

Além desta expectativa, preocupou igualmente os ânimos a esperança de uma decisão do governo a respeito da questão do Paraguai; porém, como todas as esperanças da semana, esta ainda não se realizou.

Entretanto, apesar de não sermos dos mais entusiastas da política atual, estamos convencidos que a resolução do governo, qualquer que seja, será ditada pela solicitude que nos inspira a todos a honra e a dignidade nacional.

Enquanto o mundo da sociedade, que passa o seu tempo a brincar e a divertir. O baile do Cassino na terça-feira equivale a uma expedição do Paraguai.

A diretoria, qual novo Pedro Ferreira, levou-nos para o salão da Fileuterpe, no qual tiveram lugar as exéquias do baile aristocrático.

Diz Auguez que para muitos homens a vida começa num salão de baile e acaba na sacristia de uma igreja.

Pode ser; mas o que sou capaz de apostar é que esse baile de que fala o escritor do Mosqueteiro não teve de certo nenhuma semelhança com o de terça-feira.

A casa, que é uma excelente estufa para curar constipações, parece que foi construída na Rússia ou na Sibéria, e de lá mandada vir de encomenda.

Demais, tem uma escada imoral, porque deixa ver as pernas de todas as moças e velhas que sobem. Basta postar-se um homem no saguão durante a noite para fazer um estudo completo da pernologia da cidade.

Pernologia é um termo novo que eu inventei na noite do Cassino, por não ter outra coisa que fazer; mal sabia eu que me havia de servir dele tão cedo.

Quanto ao serviço do Cassino, não direi mais do que três palavras: não havia pão.

Um baile sem pão é uma falta imperdoável, é um atentado à galantaria, uma coisa incompreensível.

E se não que reflitam no provérbio antigo, na máxima dos tempos em que se sabia amar e se prezavam todas as belas-artes: Sine Cerere et Baccho friget Vênus.

Uma sociedade como o Cassino deve ter um serviço magnífico, um serviço delicado e que não seja uma espécie de segunda edição do que se encontra por aí em qualquer bailezinho.

Já  me enfastia esta infernal monotonia, que me persegue em todas as reuniões. É um drama em quatro atos que se repete mais do que os milagres de Santo Antonio. Ás dez horas – primeiro ato – chá. Às onze horas – segundo ato – sorvetes. Á meia noite – terceiro ato – empadas. A uma hora – quarto ato – chocolate.

Há mais de três anos que os bailes do Rio de Janeiro rezam por esta cartilha, e reduzem-se a apresentar-nos empadas, como se já não estivéssemos faros delas.

E, a propósito de empadas, quero comunicar-vos umas reflexões que fiz há tempos sobre o casamento, em um sábado de tarde quando passavam uns carros destinados para este fim.

Em primeiro lugar, não pude deixar de estranhar que se escolhesse o sábado para a celebração deste ato, quando, segundo a tradição popular, é neste dia que os diabos andam soltos.

Depois, lembrei-me do que diz um escritor, cujo nome não me lembro; esse santo homem, que naturalmente é celibatário, só compreende que se casem três classes de indivíduos: os políticos, os ambiciosos de fortuna e os velhos reumáticos e caquéticos.

Os políticos desposam uma boa posição na sociedade, uma proteção valiosa, uma família influente, um nome de prestígio. Para eles a mulher é um diploma.

Os ambiciosos casam-se com uma boa porção de contos de réis, com uma excelente mesa, um palácio, e todas as comodidades da vida. Para eles a mulher é uma letra de câmbio, ou uma hipoteca sobre boa herança.

Os velhos reumáticos casam com as cataplasmas e as tisanas.

Para estes a mulher é uma enfermeira, uma irmã de caridade, um xarope de saúde.

Além destas três classes gerais, há algumas exceções, que não deixam de ter a sua originalidade.

Há sujeitinho que casa unicamente para dizer – eu casei; outros que mudam de estado e deixam a vida de ser solteiros para fazer a experiência.

Alguns entendem que devem ter uma bela mulher na sua sala, assim como se tem uma étagère, um lindo quadro, ou um rico vaso de porcelana de Sèvres. 

Gostam de levar pelo braço uma bonita moça, porque faz o mesmo efeito que uma comenda ou uma fita do Cruzeiro: chama a atenção.

Muitos casam para terem um autômato que lhes obedeça, sobre quem descarreguem o seu humor, a quem batam o pé e ruguem o sobrolho, como Júpiter Olímpico.

Finalmente, uns dizem que casam por inclinação e por amor, isto é, casam porque não têm motivo, e por isso são obrigados a inventar este pretexto.

Mas deixemos esta matéria vasta, e voltemos ao nosso pequeno mundo de seis dias.

Sabeis que vamos ter breve uma celebridade lírica no nosso teatro?

Temos tanto esperado, que já é tempo de uma vez cumprirem as velhas promessas que nos costumam fazer.

A nova cantora, o novo rouxinol da Ausônia, que vem encantar as noites da nossa terra, chama-se Emmy La Grua.

É uma bela moça, de formas elegantes, de grandes olhos, de expressão viva e animada. A boca, sem ser pequena, é bem modelada; os lábios são feitos para esses sorrisos graciosos e sedutores que embriagam.

Bem entendido, se o retrato não mente, e se aquela moça esbelta e airosa que vi desenhada não é uma fantasia em crayon.

Quanto à sua idade, bem sabeis que a idade de uma moça é um problema que ninguém deve resolver. Os indiscretos dizem que tem vinte e três anos; quando mesmo tenham trocado os números, não é muito para uma moça bonita.

As belas mulheres não têm idade; têm épocas, como os grandes monumentos; nascem, brilham em quanto vivem, e deixam depois essas melancólicas ruínas, em face das quais o viajante da terra vem refletir sobre o destino efêmero das coisas deste mundo.

Terminando, tenho de dar-vos os meus parabéns pela escolha do novo senador pelo Pará, o Sr. Conselheiro Souza Franco. É uma daquelas graças que honram a quem as faz, honrando ainda mais quem as recebe.

Como sei que alguns dos meus leitores são amantes de originalidades, recomendo-lhes que não deixem de ir contemplar uns jardins babilônicos que a Câmara Municipal e a polícia estão mandando fazer na Rua do Ouvidor, esquina da  Vala.

Tem a altura de cerca de quarenta palmos; e, se um dos jarros cair, poderá esmagar algum pobre passante.

Mas é tão divertido, que não vale a pena proibi-los, por causa de tão mesquinha conseqüência.

Deveis ter lido hoje no Correio Mercantil um artigo da Revolução de Setembro sobre o tráfico de africanos no Brasil. Isto mostra quanto é apreciada, mesmo nos países estrangeiros, a grande regeneração que devemos aos esforços do Sr. Eusébio de Queirós.

É também um motivo para que paguemos com generosidade quaisquer serviços que se tenham prestado neste importante objeto; há dívidas sagradas que, uma vez contraídas, importam a honra e dignidade do governo, que neste caso equivale a uma injúria; e o governo não pode deixar de fazer calar essas queixas, ou pelo menos justificar-se delas.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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Isabel Furini (Viver ou Ver a Vida Passar?)

 Penso que A VIDA É UMA VIAGEM. Não podemos ficar como barcos encalhados. 

Nos anos 90, uma amiga me convidou para participar de um curso de organização mental. Para reconhecer afinidades entre os participantes, a professora, já na segunda aula, deu-nos um questionário. Uma das perguntas era: o que você quer mudar de sua vida?

Céus! A maioria de nós queria mudar tanta coisa que ficamos surpresos porque minha amiga disse: Eu não quero mudar nada, quero que tudo continue igual, sou aposentada. Uma vez por semana vou até Araucária para ver minha cunhada, uma vez por mês desço à praia para comer um peixinho em Paranaguá e duas vezes no ano vou ao Rio para visitar minha irmã. Eu não quero que nada mude.

– Mas você não disse ontem que mora sozinha?

– Sim, mas eu gosto de morar sozinha.

– E não disse que não gosta do clima frio de Curitiba?

– Sim, mas eu não vou mudar de residência.

– Você não disse que gostaria de cantar?

– Sim, mas tenho tempo de participar de um coro. Eu tenho minha vida bem organizada.

– Desculpe, mas se quer que tudo continue igual, quer dizer que não tem nenhum sonho? Nenhuma meta?

– Não! Já fiz tudo o que eu queria na vida. Entrei em uma empresa como estagiária, antes de terminar a faculdade, trabalhei lá toda a vida e me aposentei. Não quero nada novo, quero que minha vida continue como está.

– Parece que deixou de viver… – afirmou a professora.

Um dos alunos, um rapaz muito brincalhão, exclamou: 

– Parece uma morta-viva!

E a namorada do rapaz começou a caminhar como um zumbi pela sala. Minha amiga ficou zangada e reclamou dizendo que quando eles envelhecerem, verão como é a vida realmente.

– Desculpe, senhora. – disse o rapaz – Idosos também têm sonhos. Veja o caso de dona 

Claudina (a velhinha estava sorridente), ela quer conhecer as pirâmides do Egito. Para mim o problema não é que a senhora seja idosa. Para mim, o problema é que a senhora já morreu e ainda não sabe disso.

Eu fiquei impressionada porque esses jovens me apresentaram um retrato de minha amiga que eu não conhecia. Eu tentei falar com ela, mas ela não queria dialogar. Não queria mudar. Entendi que era o momento de afastar-me dela, pois precisamos de amigos vivos, com metas, com sonhos, com alegria. Pessoas capazes de dialogar e, se for preciso, de criar mudanças. Não importa aposentar-se de um trabalho, mas não podemos aposentar-nos dos sonhos, porque a vida é um constante aprendizado.

A VIDA É UMA VIAGEM. Não podemos ficar como barcos encalhados.

Fonte:

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Átila José Borges (O Circo de Nhô Belarmino e Nhá Gabriela e o Dia em que Roubei um Cavalo do Exército)

         Morávamos na antiga Rua Padre Antonio no bairro Alto da Glória. Nossa casa fazia fundos com o campo do Coritiba que era todo cercado por altas cercas de tábuas. Na divisa existiam alguns pés de eucalipto que foram plantados propositalmente com atribuições divisórias. Nos dias de futebol fazíamos uso dos mesmos para apreciar panoricamente os jogos. Um dia meu pai sempre criativo teve a feliz idéia de podar a copa de um deles e lá colocou tábuas que serviam como nossa arquibancada. E foi lá de cima das copas eucalipticas  que nasceu minha estima pelo Coritiba.

         Bem, a história acima não tem nada a ver com  o titulo.

         Nossa casa tinha uma coisa muito especial. Na frente dela, bem na frente mesmo, moravam nada mais nada menos que os ídolos do rádio Belarmino e Gabriela. Naturalmente eram meus ícones.

         Belarmino teve um velho circo e guardava em sua casa alguns panos do que sobrara.

         Como sabem, minha paixão pelo circo já foi revelada anteriormente.

         Aproveitando a boa vontade e o incentivo do inesquecível Belarmino, usava alguns de seus panos para montar o “meu” cirquinho, no qual era polivalente, isto é, era artista, “peludo”, bilheteiro, palhaço e outras coisas mais. Satisfazia-me com o reduzido público composto de crianças da vizinhança. Mas glória mesmo foi quando o Belarmino e a Gabriela foram ver o meu “show”. Sem nenhuma cerimônia, sentaram no chão e me aplaudira. Glória máxima.

         Certo dia meu pai recebeu a visita de um amigo que estava cursando o CPOR (Curso de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército) e justamente na arma de Cavalaria. Acredito que a visita só foi um pretexto para que o cavalariano desse uma “paquerada” na minha irmã Aryclê. Nada mais romântico do que chegar montado em reluzente corcel tal qual um príncipe.

         O cavalariano armado “armado!” com seu uniforme verde-oliva, sem antes procurar chamar a atenção de todos, amarrou o antípoda de rocim junto à cerca defronte a nossa casa. EUA estava ali quedado e de olhos esbugalhados apreciando o apeamento do “fidalgo”. Juro que desde o inicio prestei mais atenção ao cavalo do que ao cavaleiro.

         O condutor do eqüino entrou e nos deixou ali o cavalo e eu, um olhando para o outro. Vencida a primeira emoção aproximei-me do imponente animal e passei acariciá-lo, sendo muito bem recebido. Foi então que uma idéia me explodiu na cabeça.

         Atravessei a rua e fui correndo ao Belarmino para lhe pedir emprestado o seu megafone. Na realidade é aquela corneta de lata que os propagandistas usavam para dar o seu recado. Com a boca no instrumento gritavam naquele cone de lata que ampliava os berros.

         Voltei para casa. Subi na cerca, desamarrei o cavalo, fui fazendo afagos e de repente estava montado nele. Docilmente obedeceu minhas orientações. Saímos lentamente. Depois de uma boa distância e com megafone forçado na boca, comecei a gritar:

         – Não percam. Hoje as três horas sensacional espetáculo no Circo do Chico Bóia…

         Realmente é um nome estranho para um circo, mas não sei porque assim o batizei.

         Apenas 0,10 o ingresso. Venham se divertir.

         Andei várias quadras. Fui até onde praticamente acabava Curitiba, no antigo Curtume da Itupava. Eram aproximadamenter umas quinze quadras do estádio do Coritiba. Gritei muito e o cavalo comportou-se admiravelmente. Levei um bom tempo montado. Imaginem só, um menino de dez anos montado num fogoso cavalo do Exército Brasileiro.

         Agora a pior parte… Após a visita e as despedidas de praxe o cavalariano levou um tremendo susto! Cadê o cavalo? Procurou pelas redoindezas e nada. Todo mundo saiu para procurar o cavalo. Depois de andarem algumas quadras acabaram sabendo que um menino fora visto gritando em cima de um bonito cavalo. Arfando, o cavaleiro veio ao meu encontro aos gritos. Desci do cavalo e passei-lhe as correias, que me foram tomadas violentamente. O megafone do Belarmino voou alto e caiu em cima de uma pedra amassando. De toda a história esse foi o pior pedaço para mim.

         Desapeado a contragosto da minha portentosa montaria e com o megafone do Belarmino agora amassado voltei para casa. Fiquei muito preocupado com o fato. Como iria me desculpar se o mesmo tinha sido emprestado com tanta solicitude?

         Confesso que nem dei atenção aos desaforos proferidos pelo cavalariano do Exército. Achava-me triunfante. Dera o recado. A repercussão foi tão boa que tive um dia de casa cheia no meu circo, Fui obrigado a arrumar uns artistas improvisados.

         Fica aqui minha homenagem saudosa ao valoroso cavalo do Exército que soube compreender o sonho de uma criança.

Fonte:
Átila José Borges. Emoções  eu vivi. Ed. do Autor. p.41

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Tatiana Belinky (Crônica para Dona Nicota)

Foi nos anos finais da década de 40. (Há tanto tempo!) Meu primogênito Ricardo completara 6 anos de idade, e resolvemos matriculá-lo no primeiro ano primário da Escola Americana, do já então tradicional Mackenzie College, que ficava a três quadras da nossa casa. E Ricardinho, que era uma criança tímida e um tanto ensimesmada, não gostou nem um pouco da experiência de ficar “abandonado” num lugar estranho, no meio de gente desconhecida — uma coisa para ele muito assustadora. E não houve jeito de fazê-lo aceitar tão insólita situação. Ele se recusava até mesmo a entrar na sala: ficava na porta, “fincava o pé”, sem chorar mas também sem ceder… Eu já estava a ponto de desistir da empreitada, quando a professora da classe, dona Nicota, se levantou e veio falar conosco. E todo o jeito dela, a maneira como ela olhou para o Ricardinho, o timbre e o tom da sua voz, a expressão do seu rosto e até a sua figurinha baixinha, meio rechonchuda, não jovem demais, muito simples e despojada, causaram imediatamente uma sensível impressão no menino. A tensão sumiu do seu rostinho, seu corpo relaxou, e — ora vejam! — ele respondeu com um sorriso ao sorriso da dona Nicota!

— Vem ficar aqui comigo — ela disse. 

— Você vai gostar. — E acrescentou, para minha surpresa, — Eu mesma vou levar você para a sua casa. E amanhã cedo, eu mesma vou buscar você, para vir à escola comigo.

Eu não sabia como agradecer. E nem foi preciso — o que dona Nicota disse, ela cumpriu. E durante vários dias, até semanas, ela passou pela nossa casa, pouco antes do início das aulas, e levou o Ricardinho pela mão, a pé, até a escola e a sua sala. E o trouxe de volta, da mesma maneira. E até quando, certo dia, o menino estava adoentado e não pôde ir à escola, ela voltou para lhe dar uma “aula particular”, em casa – para ele não se atrasar no programa. Tudo isso na maior simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo…

O Ricardinho adorava a dona Nicota — e não era para menos. Dona Nicota era a mais perfeita e linda encarnação da “professora primária” ideal — a mais nobre e fundamental das profissões: a de ser a primeira a preparar uma criança pequena nas suas primeiras incursões na vida real — com competência, dedicação, compreensão, paciência e carinho. E a consciência plena de estar dando à criança uma verdadeira base para o futuro cidadão.

Por que estou contando tudo isso a vocês, hoje? Porque, no Dia do Professor, eu senti que não poderia prestar maior homenagem a todos os “mestres-escolas” do Brasil do que incluí-los nesta “crônica-tributo” a dona Nicota, exemplo e paradigma de uma modesta e maravilhosa professora “montessoriana” e um grande ser humano.

Ricardo saiu de sob a asa de dona Nicota lendo e escrevendo. E hoje, jornalista, tradutor e escritor, esse avô de três netos continua se lembrando de dona Nicota, com carinho e gratidão.

Essa dona Nicota que a estas horas deve estar dando aulas montessorianas aos anjinhos do céu. 

Fonte:
Revista Nova Escola

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