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Adriana Kairos (Eu Conto Carneirinhos)

Gosto de sonhar. Penso que os sonhos são passeios da alma. Sabe,quando queremos espairecer. Sair por aí. Distrair.

 Só que os sonhos fazem viagens bem mais empolgantes. Viajam pelas lembranças, exploram o desconhecido, visitam até o que tememos e nos assustam com terríveis pesadelos. Mas são só pesadelos.

 Revemos amigos, outros bem mais queridos e encontramos até gente nova. Sim!!! Acredito nisso. Sabe quando vemos alguém pela primeira vez e dizemos: “Eu não te conheço de algum lugar?” Sei lá, mas eu acho que é lá das voltinhas dos sonhos, que já o vimos antes.

 Por isso é que gosto quando a noite chega. E espero ansiosa a hora de dormir, só pra saber a surpresa que terei. Que passeio farei, embalada em canções antigas de ninar. Quem sabe hajam caminhos de jujubas e rios de refrigerantes, laguinhos de chocolate com patinhos de bombom. Sei lá… As vezes a grande viajem é refugiar-se apenas no inimaginável.

 Não sou mística ou qualquer outra coisa. Nem gosto de religião. Só quero compartilhar os meus humildes pensamentos. E convidar a sua alma a pôr o pé na estrada te lembrando o quanto é bom sonhar.

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Vicência Jaguaribe (Complô no Reino da Fantasia)

Uma palavra para o leitor

Esta história não deve, de maneira alguma, causar-lhe estranheza, leitor, pois o fenômeno não é novo: não é a primeira vez que personagens de ficção saem das páginas dos livros, ganham autonomia e penetram no mundo real. Vou dar só um exemplo: na peça teatral Seis personagens à procura de um autor, do italiano Luigi Pirandello, seis personagens, ao serem rejeitadas por seu criador, entram na vida real e tentam convencer um diretor de teatro a encenar suas histórias.

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Conta-se — mas eu não assino embaixo — que, certa vez, viu-se, no castelo do Príncipe Rodolfo, herdeiro do reino da Appelândia, uma movimentação desusada: há três dias, cavalariços sonolentos limpavam as cocheiras e reorganizavam as baias para receber mais animais; fornecedores chegavam a todo momento para abastecer as despensas; criados domésticos limpavam e arejavam os aposentos fechados e com cheiro de mofo, trocando a roupa de cama, acendendo lareiras e enchendo as grandes tinas de banho, com uma água que talvez nem fosse usada — dizia-se, em surdina, que a maioria dos príncipes não gostava de banho —; chefes de cozinha de fama internacional começavam a preparar pratos que, só de olhar, despertavam não apenas a fome, mas a vontade de comer.

Sua Alteza Real receberia em seu castelo os príncipes que tinham suas vidas e aventuras registradas e deturpadas nos tradicionais contos de fada. Ele próprio fora atingido no papel que desempenha no conto “Branca de Neve e os sete anões”. Mas isso vamos deixar para depois.

Tudo pronto, o príncipe Rodolfo vestiu sua roupa principesca, com manto de príncipe, sapato de príncipe, chapéu de príncipe e tudo o mais de príncipe, e esperou. Se alguém duvidava ser ele um príncipe de verdade, a dúvida acabava ali, naquele momento. Ser príncipe estava em seu corpo e em sua alma: no jeito de olhar, de falar, de andar, de dar ordens, de amar e de odiar. Dizem que os príncipes fazem tudo isso diferente de nosotros. Não confirmo nem nego essa afirmação porque nunca em minha vida vi um príncipe de verdade.

Os convidados fizeram-se anunciar um a um para imprimir à entrada mais pompa e circunstância: 

Sua Alteza Real o Príncipe Nicolau, do Reino da Hipnolândia e da história “A Bela Adormecida”;

Sua Alteza Real o Príncipe Alexandre, do Reino da Cindelândia e da história “Cinderela”;

Sua Alteza Real o Príncipe Aníbal, do Reino da Ferolândia e da história “A Bela e a Fera”;

Sua Alteza Real o Príncipe Orlando, do Reino da Ursolândia e da história “Branca de Neve e Rosa Vermelha”;

Sua Alteza Real o Príncipe Alberto, do Reino da Bravolândia e da história “O príncipe que não temia coisa alguma”;

Sua Alteza Real o Príncipe Ambrósio, do Reino da Sapolândia e da história “Rei Sapo ou Henrique de Ferro”.

E foram anunciados outros príncipes de terras longínquas, cujas histórias eram pouco conhecidas. O príncipe Rodolfo encaminhou suas altezas a um grande salão decorado de espelhos e de lustres feitos do cristal mais puro. 

Todos entraram e a porta foi fechada. Aquela era uma reunião cuja pauta devia ficar em completo sigilo. Príncipes de reinos mais pobres olhavam aparvalhados para tanta beleza e luxo. Os do Oriente admiravam-se com a diferença do gosto e da noção de beleza. Os dos países mais próximos observavam tudo com uma pontinha, deste tamainho, de inveja.

Quando todos se acomodaram, o Príncipe Rodolfo, sentado na cabeceira da enorme mesa, abriu a reunião, falando o maravilhês, língua usada por todos os que vivem na dimensão da magia e do maravilhoso.

— Meus amigos, dignos Príncipes dos reinos vizinhos e dos reinos longínquos, vocês devem ter ficado curiosos e também preocupados com o meu convite. Deixem-me dizer-lhes o motivo pelo qual eu, presidente da Associação dos Príncipes dos Contos de Fada — APCF —, convoquei-os para esta reunião: rever a posição e a caracterização dos príncipes nos contos de fadas. Relendo, há pouco tempo, algumas obras famosas, tomei consciência de como somos tratados nas histórias. E não gostei do que descobri.

(Vamos dizer a verdade sobre o despertar da consciência crítica do Príncipe Rodolfo. Não foram os livros que ele diz haver lido, mas algo muito mais sério. Um dia, quando admirava aquela sala e seus lustres, acompanhado do pai, o Rei William, ouviu dele a informação do encantamento que envolvia o aposento: se uma pessoa tivesse certeza do que queria, se estivesse disposta a corrigir os erros de uma situação, ao fixar-se em um dos espelhos teria o senso crítico intensificado. Na primeira oportunidade, o Príncipe voltou ao salão e, ao mirar-se em um dos espelhos, enxergou a própria vida e a de muitos dos seus pares, como elas eram retratadas nas histórias. E não gostou do desvelamento feito pelo seu senso crítico agora aguçado.)

— Nossas vidas são exatamente como vou aqui expor. Digo, sem titubeio, que não temos nenhuma importância, nenhum carisma e, principalmente, não temos caráter ou personalidade.

— Vossa Alteza nos chamou aqui para nos falar de nossos defeitos e fraquezas? — Ouviu-se a vozinha fraca do Príncipe Sapo.

— Não. — Retomou a palavra o Príncipe Rodolfo. — Chamei-os para alertá-los sobre a maneira como os escritores nos apresentam em suas histórias. Eles desvalorizam nossas figuras. Esse é um ponto que atinge todos os príncipes dos contos maravilhosos, que só existem neles e por eles. Nesses contos, não temos nem nomes; somos conhecidos pelo nome da protagonista da história, que geralmente está presente no título da narrativa — o príncipe de “Branca de Neve”; o príncipe de “Rapunzel”, e assim por diante. Cada um de nós é simplesmente o Príncipe, como se não fôssemos indivíduos, mas entidades sociais ou pessoas jurídicas. Você, por exemplo, Príncipe Nicolau, seu nome não aparece uma única vez na história da Bela Adormecida. E, o que é mais, grave: amputaram o seu conto. Ele termina no seu casamento com a princesa ex-adormecida. Nada daquele final macabro, que faz até jacaré chorar.

— É verdade que o cortaram nesse ponto?! E o que fizeram com o restante?

— Ora! Amassaram e jogaram no lixo. Não vê que agora, no mundo do reality show, é proibido contar para as crianças certos detalhes das histórias. Também inventaram um tal de politicamente correto, que está levando os novos escritores a deformar as histórias tradicionais.

— Como pode ser isso? — Perguntou o Príncipe Ambrósio.

— Pode, meu amigo, no mundo do reality show, as coisas mais estapafúrdias acontecem. E tudo é muito contraditório. A minha história foi alterada: inventaram que  Branca de Neve acordou com um beijo meu. Imaginem se eu beijaria uma defunta ou uma quase! Os deuses me protejam! A verdade é que, quando a vi deitada no esquife, bela como eu jamais pensara que uma princesa pudesse ser, apaixonei-me. Tentei comprar o esquife, mas os anões negaram-se a vendê-lo. Quando, porém, entenderam que eu ficara profundamente apaixonado pela garota e ouviram minha declaração de amor — Dai-me, então, como um presente, pois não posso viver sem ver Branca de Neve.  —, tiveram piedade de mim e mandaram-me levar o caixão. Os servos que traziam o esquife para o meu castelo tropeçaram. A urna não caiu, mas balançou muito, o que fez a princesa expelir o pedaço da maçã envenenada preso em sua garganta. Imediatamente após o incidente, pedi a princesa em casamento.

E com sua história — “Rei Sapo ou Henrique de Ferro” —, Príncipe Ambrósio, ainda foi pior. Nem príncipe aparece. Em uma das versões modernas da história, o sapo se transforma, vejam só, em um corretor de imóveis, que planeja construir, na bela floresta do reino da Sapolândia, o que eles chamam de shopping- center. Outro detalhe: até o criado tem nome — Henrique. E Vossa Alteza, nada.

— Mas qual a razão de fazerem isso com a minha história?

— Acho que foi para denunciar a destruição das florestas que está acontecendo por lá, pelo mundo da realidade.

— E o que houve com minha história? — A pergunta vinha do príncipe Alexandre.

— A sua história, Alteza, já é ridícula desde que foi inventada — falou o príncipe Rodolfo, com sua franqueza habitual. Quem já viu um príncipe de sangue real ir de casa em casa com um sapato na mão, procurar a dona desse sapato, que poderia até ser uma plebeia, para com ela se casar! E, ainda por cima, Vossa Alteza prepara a festa, dança com a jovem desconhecida e ninguém sabe, nem a jovem, muito menos o leitor da história, que seu nome é Alexandre.

— Suas palavras me ofendem, príncipe Rodolfo. 

— Desculpe-me. É esta minha boca que insiste em ser sincera, por isso exagera na verdade.

— Desculpas aceitas, Príncipe Rodolfo.

— E sabe, Príncipe Alexandre  —, continuou o Príncipe Rodolfo — que os estudiosos descobriram uma versão da sua história muito mais antiga do que a europeia que conhecemos? E, talvez, bem mais interessante. É chinesa e parece ter sido a primeira versão escrita do conto “Cinderela” ou “Branca de Neve”.

— Interessante, muito interessante! Mas humilhante para este Príncipe aqui, que nem original é. — Choramingou o Príncipe Alexandre.

— Bem — retomou a palavra o Príncipe Rodolfo — para encerrar nossa reunião, um detalhe dos mais graves: todos nós, os príncipes, parecemos, nos contos de fada, uns idiotas. Apaixonamo-nos, à primeira vista, pela primeira jovem bonitinha que aparece e, rápido como a queda de um raio, contratamos casamento. E ainda somos apresentados como uns imbecis e preguiçosos, que levam a vida caçando, passeando e tentando encontrar dragão. Não temos nenhum papel no reino, a não ser procurar uma noiva e defendê-la dos dragões e das maldições das bruxas. Isso me deixa desolado. E tem mais: aquele felizes para sempre já está tão fora de moda! Quem é feliz para sempre, principalmente casando com as princesas mofinas dos contos de fada? Princesas que não fazem nada de proveitoso, não conseguem nem vestir-se sozinhas, passam os dias esperando a chegada de seus falsos heróis. São tão sensíveis, mas tão sensíveis mesmo, que sentem o desconforto causado por uma ervilha colocada sob vários colchões. Me dá vontade de falar como falam os príncipes e os não príncipes do mundo real: Minha amiga, me dá um tempo. Que tal se garantir um pouco e esperar menos?  Afinal de contas, o que as pessoas do mundo do reality show pensam que nós, moradores do mundo paralelo da fantasia, somos, para nos representar assim?

— É, a situação é grave e vergonhosa. O que Vossa Alteza sugere que façamos? — Perguntaram os príncipes ao mesmo tempo.

— Sugiro uma crise de ilustrações. Sem ilustrações, nada de livro para criança. Cada um de nós se encarregará de achar alguém com o poder de fazer desaparecerem todas as ilustrações das histórias que foram alteradas. Vamos marcar outra reunião para de hoje a um mês.

Satisfeitos, Suas Altezas dirigiram-se à sala onde serviriam o almoço, que foi digno dos deuses. Depois do almoço, repousaram uma meia hora e foram à caça. O Príncipe Rodolfo, com seu senso crítico hipertrofiado pela permanência na sala mágica, pensou um pensamento tão estranho quanto polêmico: Será que os contadores de histórias não estão certos na caracterização — ou falta de caracterização — dos príncipes? Parece que somos todos iguais: parasitas em busca de aventuras e de um amor instantâneo, feito leite em pó.

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P.S. A partir daquele dia, as editoras que trabalhavam com livros infantis foram processadas e tiveram que pagar boas indenizações aos clientes, por venderem livros cujas ilustrações se apagaram.

Fonte:
A Autora

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Ceará.

Olga Agulhon (Na Safra da Vida, a Magia das Cores)

Cronica Vencedora do Concurso Nacional de Crônicas do 3º Jogos Florais de Caxias do Sul (RS) – 2011

No espelho não mais encontro aquela jovem que um dia foi a noiva de branco a se olhar uma última vez antes de se entregar… Um último retoque nos negros fios encaracolados; uma última ajeitada na grinalda de flores de laranjeira… e pronto! Tão linda imagem… perfeita! Estava ali a encarnação da esperança!

Tudo perfeito, afinal, naquele dia. Em cadeiras caprichosamente arrumadas sob a sombra do parreiral em cachos, amigos e familiares em sincera torcida… Quase toda a italianada da colônia…

As uvas pendiam roxas e perfumadas, indicando fartura e bons presságios ao alcance das mãos.

O noivo, de pé, no altar, com brilho de gel nos cabelos, vestia, com certeza, o seu melhor traje. Aguardava, aflito, a donzela que tomaria por esposa como quem espera, finalmente, começar a viver… Cheio de sonhos no olhar!

Não vi, ao caminhar em sua direção, nada além daqueles olhos de anil e promessas… Olhos que guardariam aquele momento para sempre em sua retina… Olhos que me diziam: – Venha, não tenha medo, ninguém aqui ousará ofendê-la, e hoje é o seu dia de rainha.

Unidos pelo santo laço do matrimônio, não mais enfrentaríamos a resistência dos sogros… Estava feito!

Outras safras vieram, ano após ano. Junto com a colheita da uva e a produção do vinho, comemorávamos o aniversário de casamento e, de quando em quando, a dádiva da vida sendo gerada em ventre fértil.

Nem tudo foi assim tão lindo do jeito que foi sonhado… Nem todas as promessas foram cumpridas… Algum encanto se desfez aqui ou acolá, mas tudo foi bem-vindo…  Estávamos juntos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença… Fomos abençoados com cinco valorosos filhos, que formavam lindo degradê, e nossas vidas estariam para sempre entrelaçadas. 

Volto a me buscar no mesmo espelho da penteadeira de imbuia, na mesma casa caiada com as cores da terra… e o meu amor está de partida.

Busco-me no espelho e não me vejo. Na imagem refletida, uma outra habita. Insisto e me procuro naquela imagem de cabelos de neve cobertos… Não reconheço nenhum traço. Não vejo quem sou, não encontro quem fui quando trocamos o “sim” diante do altar…

Lembro-me dos olhos de promessas cheios…  Éramos outros… Tão jovens!

A velhice enrugou o nosso olhar… Não me reconheço diante do espelho e meu loiro não pode me ajudar nesse momento, pois trava um longo combate com a morte, no quarto ao lado… Insisto, aprumo os óculos, fixo-me bem posicionada… nada! O velho espelho também exibe as marcas do tempo. Choro… e as lágrimas silenciosas escorrem lentamente, percorrendo os inúmeros sulcos esculpidos em meu rosto.

Recomponho-me! Aprendi a aceitar os punhados de dor que a vida me reserva e esconde entre tantos potes de felicidade.

Volto e sento-me a seu lado. Ainda ouço um último sussurro: – Te amo, minha nega!… E então, finalmente, me reencontro naquelas retinas, que sempre me viram além da cor e das marcas do tempo.

Firme, seguro sua mão até a travessia, com a certeza de que, na minha hora, ele estará me esperando na margem de lá, com a mão estendida…, e ao caminhar em sua direção não verei mais nada além daqueles olhos de anil e promessas…

Outra safra se aproxima e a saudade ainda machuca o peito, mas alegro-me com a chegada dos filhos ao nosso pedaço de terra nesse cantinho do mundo.
A natureza novamente em cachos perfumados e coloridos.

Agradeço ao Criador da vida! O meu quinhão de alegria sempre foi maior que o meu quinhão de dor…

Meus filhos, participando da colheita da uva, são como bálsamo para os meus olhos… Lindos e fortes, uma mistura perfeita de raças, o branco e o negro em profusão de amor: na safra da vida, a magia das cores!

Fonte:
Jornal O Diario. Caderno D+. 31 janeiro 2012.

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Marina Colasanti (A Moça Tecelã)

Ilustração de Ana Peluso
 Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

 Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos  do algodão  mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.  Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Fonte:
Marina Colsasanti. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. RJ: Global Editora , 2000.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Rio de Janeiro

Agatha Christie (O Crime da Fita Métrica)

Politt segurou a argola da porta e bateu levemente. Após alguns segundos, tornou a bater. O embrulho que trazia no braço esquerdo ameaçou cair, e ela voltou a arrumá-lo. Este continha o vestido verde da Sra. Spenlow, que ela havia acabado de aprontar. Na mão esquerda, Politt carregava uma sacola de seda preta com uma fita métrica, uma almofada de alfinetes e uma tesoura.

Politt era alta e esquálida; possuía nariz e lábios finos, cabelos ralos e acobreados. Ela hesitou um pouco antes de bater pela terceira vez. Lançou os olhos pela rua e viu alguém que se aproximava a passos largos. Era a Srta. Hartnell — vinte e cinco anos, alegre, um tanto envelhecida — que cumprimentou-a com sua voz de contralto:

— Boa tarde, Politt!

— Boa tarde, Srta. Hartnell — respondeu a costureira. Sua voz era excessivamente fina, e o sotaque um pouco afetado. Seu primeiro trabalho tinha sido como dama-de-companhia de uma senhora.

— Por favor — continuou Politt —, sabe dizer se a Sra. Spenlow está em casa?

— Não faço a menor idéia — retrucou a Srta. Hartnell.

— Não sei o que fazer. Combinamos que hoje, às três e meia, ela experimentaria o vestido novo — disse Politt. A Srta. Hartnell consultou o relógio:

— Já passa um pouco das três e meia.

— É. Eu já bati três vezes, mas ninguém atendeu. Acho que a Sra. Spenlow precisou sair e esqueceu o combinado. É estranho, porque ela não tem o hábito de esquecer seus compromissos e ainda mais que ela precisa do vestido para depois de amanhã.

A Srta. Hartnell abriu o portão e aproximou-se de Politt.

— Por que será que Gladys não abre a porta? — perguntou. — Ah, já sei! Hoje é quinta-feira e ela está de folga. Provavelmente a Sra. Spenlow está dormindo. Creio que você não bateu o suficiente.

Dizendo isso, agarrou a argola e bateu violentamente na porta. Não satisfeita, bateu também com toda força nas almofadas da porta e gritou:

— O de casa! Há alguém aí? Não houve resposta.

Politt murmurou: — Acho mesmo que ela esqueceu e saiu. Eu volto outra hora. — E dirigiu-se para a saída.

— Tolice! — disse a Srta. Hartnell com firmeza. — Ela não pode ter saído. Encontrei-me com ela ainda há pouco. Vou olhar pela janela, e ver se ela dá algum sinal de vida.

Ela soltou uma risada para indicar que era brincadeira, e olhou, sem muito interesse, pela veneziana da janela mais próxima. -Digo sem muito interesse porque ela sabia que a sala da frente raramente era usada. O casal preferia a saleta dos fundos. Mesmo desinteressado, o olhar da Srta. Hartnell encontrou o que procurada. De fato, a Sra. Spenlow não deu sinal de vida, mas de morte, caída sobre o tapete ao lado da lareira.

— Sem dúvida — disse a Srta. Hartnell ao relatar o que se passara. — Eu tive que me controlar. Politt não saberia o que fazer. Disse-lhe que precisávamos manter a calma: ela ficaria lá e eu iria falar com o Investigador Palk. Ela disse que não queria ficar sozinha, mas não dei atenção. Era preciso ser firme com ela. Sempre achei que esse tipo de pessoa gostava de criar problemas. Assim eu já estava de saída quando o Sr. Spenlow surgiu de um dos lados da casa.

Neste ponto, a Srta. Hartnell fez uma pausa significativa que levou as pessoas que a ouviam a perguntar: — Como estava ele? A Srta. Hartnell prosseguiu:

— Sinceramente, eu suspeitei dele imediatamente. Estava calmo demais. Não parecia nem um pouco surpreso, e não creio que seja natural um homem saber que a esposa está morta e não demonstrar o menor sinal de emoção.

Todos concordaram.

A polícia também concordou. Tão desconfiados estavam do alheamento do Sr. Spenlow que nem perderam tempo em verificar em que situação ele ficara com a morte da mulher. Quando descobriram que ela era rica e que com sua morte o marido seria o único herdeiro, de acordo com um testamento feito pouco depois do casamento, as suspeitas aumentaram ainda mais.

Miss Marple, a doce — e, alguns diziam, um tanto maldizente velhinha que morava ao lado da igreja, foi chamada a depor cerca de meia hora após a descoberta do crime. Foi interrogada pelo Investigador Palk, que folheava um livro com ar de importante.

Se não se importa, senhora, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

— A respeito da morte da Sra. Spenlow? — disse Miss Marple. Palk ficou surpreso. — Desculpe, senhora, mas como soube disso?

— Um passarinho me contou… — disse Miss Marple.

Palk compreendeu logo a resposta. Provavelmente o filho do dono da pensão ter-lhe-ia contado, quando foi levar-lhe o jantar. Miss Marple prosseguiu calmamente:

— Deitada no chão da sala de estar, estrangulada — talvez com um cinto bastante estreito. Mas, com o que quer que tenha sido, já não estava lá.

Palk estava intrigado… Como é que o pequeno Fred sabe disso?…

Miss Marple interrompeu o investigador:

— Há um alfinete no seu paletó.

Palk não esperava o comentário, mas não perdeu a calma.

— Como diz o velho ditado, encontre um alfinete em sua roupa, retire-o e terá sorte o resto do dia.

— Espero que seja verdade. Mas… o que deseja saber? Palk pigarreou, esticou os ombros e consultou seu livro:

— De acordo com o que ouvi do Sr. Spenlow, marido da finada, às duas e meia ele atendeu a um telefonema de Miss Marple, que lhe perguntou se ele poderia ir até sua casa por volta das três e quinze, porque ela precisava muito falar com ele. Isto é verdade?

— Evidente que não! — disse Miss Marple.

— A senhora não telefonou para o Sr. Spenlow às duas e meia?

— Nem às duas e meia e nem em qualquer outra hora.

— Ah! — fez o investigador, passando a mão pelo bigode com grande satisfação.

— Que mais disse o Sr. Spenlow?

— Disse que veio até aqui, como lhe fora solicitado, tendo deixado sua casa às três e dez. Chegando aqui, foi informado pela criada de que Miss Marple não se encontrava em casa.

— Isso é verdade — disse Miss Marple. — Ele esteve aqui, mas eu estava numa reunião da Sociedade Feminina.

— Ah! — fez novamente o investigador.

— Diga-me, Sr. Palk: suspeita do Sr. Spenlow?

— Ainda é cedo para dizer, mas… é como se alguém, sem querer citar nomes, tivesse sido… bastante engenhoso.

Miss Marple disse quase que para si mesma:

— O Sr. Spenlow?

Ela gostava do Sr. Spenlow. Ele era baixo, magro, rígido e convencional — o máximo em respeitabilidade. Era estranho que ele tivesse vindo morar no interior, pois vivera a maior parte da sua vida na cidade. A Miss Marple ele contou por quê:

— Sempre pretendi, desde criança, ir viver no campo um dia, e cultivar um jardim. Sempre adorei flores. Minha esposa tinha uma floricultura. Foi lá que a conheci.

Esta frase, aparentemente seca, deixava entrever todo um romance. A Sra. Spenlow, jovem e bonita, rodeada de flores.

O Sr. Spenlow, entretanto, nada sabia a respeito de flores. Não entendia de sementes, de podas, de canteiros, de temporadas. Vislumbrava apenas a imagem de um jardinzinho em uma pequena casa de campo, repleto de flores perfumadas e coloridas. Havia pedido a Miss Marple algumas informações, e anotado todas elas cuidadosamente em um caderninho.

Era um homem metódico. Talvez por causa disso a polícia tenha se interessado tanto por ele quando sua esposa foi encontrada morta. Com paciência e perseverança, os homens da lei aprenderam muito a respeito da Sra. Spenlow — e logo toda a cidade de St. Mary Mead também.

A Sra. Spenlow começou a vida como criada em uma mansão. Deixou o emprego para casar-se com o jardineiro, e com ele montar uma floricultura em Londres. O negócio prosperou, mas o jardineiro, que há muito andava doente, morreu pouco depois. A viúva deu continuidade ao negócio, aumentou-o e fê-lo prosperar. Depois, vendeu-o por um bom preço e casou-se pela segunda vez — com o Sr. Spenlow, um joalheiro de meia-idade, que havia herdado uma pequena loja que não dava lucros. Algum tempo depois, venderam a joalheria e foram morar em St. Mary Mead.

A Sra. Spenlow tinha uma boa situação. Os lucros provenientes da venda da floricultura tinham sido investidos, sob orientação espiritual, como ela fazia questão de explicar. Os espíritos tinham-na aconselhado com surpreendente sagacidade. Todos os seus investimentos prosperaram, alguns de forma inesperada. Ao invés desse fato aumentar a sua crença no espiritualismo, o casal Spenlow praticamente abandonou os médiuns para envolver-se completamente com uma seita de inspiração hindu. Entretanto, quando a Sra. Spenlow chegou a St. Mary Mead, voltou-se por um certo tempo para a igreja ortodoxa inglesa. Estava sempre na paróquia, e ia aos cultos regularmente. Patrocinava obras sociais da cidade, interessava-se pelos acontecimentos do local e jogava bridge. Levava uma vida rotineira. E, de repente, foi assassinada.

Coronel Melchett, o delgado, chamou o Inspetor Slack. Slack um homem firme. Uma vez tendo formado uma opinião, tinha realmente certeza do que dizia; e desta vez já tinha vaticinado:

— Foi o marido!

— Você acha mesmo?

— Acho. Basta olhar para ele. Culpado dos pés à cabeça. Nunca demonstrou o menor sinal de pesar ou emoção. Voltou à casa sabendo que ela estava morta.

— Não acha que ele poderia ter representado o papel de marido desesperado?

— Ele não faria isso. Está muito contente. Há pessoas que não sabem fingir. São insensíveis demais.

— Havia alguma outra mulher em sua vida? — perguntou o Coronel Melchett.

— Não descobri nada a respeito. Ele é esperto. Evidentemente deve ter encoberto suas pistas. Acho que ele simplesmente estava farto de sua esposa. Ela tinha dinheiro, e creio que devia ser mesmo horrível viver com ela — sempre falando de religião. Então, decidiu livrar-se dela e viver confortavelmente sozinho.

— Isso pode muito bem ter acontecido.

— Foi o que aconteceu. Planejou tudo com cuidado. Fingiu receber um telefonema…

Melchett interrompeu-o: — Fingiu?

— Sim. E isso também quer dizer que ele mentiu ou que aquela chamada foi feita de um telefone público. Os únicos telefones públicos da cidade são o da estação e o do correio. Do correio não pode ter sido. A Srta. Blade vê todas as pessoas que entram lá. Da estação, sim. Há um trem que chega às duas e vinte e sete, e sempre se forma um certo tumulto. O principal é que ele disse que Miss Marple telefonou para ele e isso certamente não é verdade. A chamada não partiu de sua casa. Ela própria estava na Sociedade Feminina.

— Você não está considerando a possibilidade de o marido ter sido deliberadamente afastado da casa por alguém que desejasse assassinar a Sra. Spenlow, está?

— O senhor está pensando em Ted Gerard, eu sei. Já investiguei isso também. Não creio nessa possibilidade. Ele não ganharia nada com isso.

— Mas ele não presta. Já deu um desfalque uma vez.

— Não estou dizendo que ele preste, e sim que, de uma forma ou de outra, ele restituiu o dinheiro daquele desfalque. Seus chefes é que não tiveram bom senso.

— E está ligado ao tal Grupo Oxford — disse Melchett.

— Mas arrependeu-se e fez tudo o que pôde para emendar-se. Admito que ele tenha sido astuto. Devia saber que suspeitavam dele e resolveu bancar o penitente.

— Você é um céptico, Slack — disse o Coronel.

— Já falou com Miss Marple?

— E o que ela tem com isso?

— Nada. Mas ela sabe de tudo o que acontece na cidade. Por que não bate um papo com ela? E uma velhinha bastante esperta.

Slack mudou de assunto:

— Gostaria de perguntar-lhe uma coisa: aquele primeiro emprego da falecida — a casa do Sr. Robert Abercrombie… Não foi lá que houve um roubo de jóias? Esmeraldas… Uma fortuna. Os ladrões nunca foram apanhados. Estive investigando isso. Deve ter acontecido quando a Sra. Spenlow ainda trabalhava lá, embora ela fosse quase uma menina na época. Ela não poderia estar metida nisso? Spenlow era um desses joalheiros pobretões — a pessoa indicada para isso.

Melchett abanou a cabeça:

— Não acredito nisso. Ela nem conhecia Spenlow naquela época. Lembro-me bem do caso. Na polícia, era voz corrente que um dos filhos de Abercrombie, Jim, estava envolvido no caso. Um perdulário! Nadava em dívidas e, logo depois do roubo, elas foram saldadas. Disseram que fora ajudado por uma mulher muito rica, mas eu não me convenci. Principalmente porque o velho Robert tentou afastar a polícia do caso.

— Foi apenas uma idéia — disse Slack.

Miss Marple recebeu o Inspetor Slack com alegria, principalmente quando soube que ele tinha sido enviado pelo Coronel Melchett.

— Foi uma gentileza do Coronel. Não sabia que ele se lembrava de mim.

— É claro que se lembra. Contou-me que aquilo que a senhora não sabe a respeito de St. Mary Mead não vale a pena procurar saber…

— Ele é realmente muito gentil, mas eu não sei mesmo nada a respeito desse assassinato.

A senhora sabe como se comenta sobre isso.

— Sim, claro! Mas de que adiantaria ficar repetindo fofocas? Slack tentou ser esperto:

— Isto não é um interrogatório. Ê uma conversa informal.

— Quer mesmo saber o que as pessoas estão dizendo, e se é verdade ou não?

— Isso mesmo!

— Bem, as pessoas sempre exageram muito as coisas. Além disso, há duas correntes de opinião: uma acredita que foi o marido. O companheiro é, de uma forma ou de outra, a primeira pessoa de quem se desconfia, não é mesmo?

— Pode ser — disse o inspetor, com cautela.

— Há também o lado financeiro. Soube que o dinheiro que possuíam era dela e que o Sr. Spenlow seria beneficiado com sua morte. Neste mundo corrompido, as piores maldades acabam tendo justificativa.

— Ele ficou com uma soma respeitável.

— Exatamente. Seria plausível que ele a tivesse estrangulado, deixado a casa pelos fundos, vindo pelo campo até minha casa, perguntado por mim, fingindo ter recebido um telefonema e voltado para casa, encontrando a esposa assassinada. Esperava, por certo, que o crime fosse atribuído a algum vagabundo ou ladrão.

O inspetor concordou:

— E o dinheiro? Eles poderiam não estar se entendendo bem ultimamente.

Miss Marple não o deixou continuar:

— Eles se entendiam muito bem!

— Como pode estar tão certa?

— Todos saberiam se eles brigassem! A criada, Gladys, teria espalhado o fato por toda a cidade.

O inspetor murmurou entre os dentes:

— Ela provavelmente não sabia… — e recebeu um olhar descrente como resposta.

Miss Marple prosseguiu:

— Há quem diga que foi Ted Gerard — um rapaz bem apessoado. Acho que o senhor sabe, a aparência às vezes influencia mais do que deve. Lembra-se do último vigário que tivemos? Foi um achado! Todas as moças compareciam à igreja, de manhã à noite, e muitas senhoras tornaram-se anormalmente diligentes no trabalho da paróquia. Isto sem contar os casacos e os cachecóis que faziam para ele. Muito embaraçoso para o rapaz!

— Mas, o que eu estava dizendo? Ah, sim! Esse tal Ted Gerard… Têm falado nele. Vinha vê-la com freqüência, embora a própria Sra. Spenlow tenha dito que ele era membro do tal Grupo Oxford — um movimento religioso. São bastante sinceros e fervorosos e a Sra. Spenlow estava muito impressionada com isso.

Miss Marple fez uma pausa e continuou:

— Eu estou convencida de que não havia nada além disso, mas sabe como é o povo. Muita gente acha que a senhora Spenlow estava encantada com o rapaz e que lhe havia emprestado uma soma considerável. Além disso, ele foi visto na estação naquele dia, saltando do trem das duas e vinte e sete. Mas é claro que seria mais fácil para ele pular para o outro lado da linha, entrar pelo atalho, saltar a cerca e contornar a sebe, sem passar pela estação. Assim, evitaria ser visto a caminho do sítio. E, logicamente, a roupa que a Sra. Spenlow estava usando era um tanto… imprópria.

— Imprópria?

— Um quimono, e não um vestido. — Miss Marple enrubesceu. — Esse tipo de coisas não deixa de ser sugestivo para algumas pessoas.

— A senhora também acha?

— Não, não. Eu não acho! Para mim, isso é perfeitamente normal.

— A senhora acha normal?

— De acordo com as circunstâncias, sim. — O olhar de Miss Marple era frio e pensativo.

O Inspetor Slack disse:

— Isso poderia ser mais uma prova contra o marido: ciúme.

— Não creio. O Sr. Spenlow nunca seria ciumento. Não é do tipo observador. Se sua esposa o tivesse abandonado e deixado um bilhete de despedida, esta seria a primeira vez que ele pensaria no assunto. — O Inspetor Slack estava intrigado com a maneira decidida pela qual ela o olhava. Tinha a impressão de que a conversa tinha por objetivo tocar em algum ponto que ele ainda não havia captado. Ela disse com firmeza:

— O senhor não tem nenhuma pista, inspetor?

— Ninguém deixa pegadas ou pontas de cigarro hoje em dia, Miss Marple.

— Mas esse eu tenho a impressão de ter sido um crime à antiga — sugeriu ela.

Slack retrucou:

— O que quer dizer com isso? Miss Marple respondeu calmamente:

— Acho que o Investigador Palk poderá ajudá-lo. Ele foi a primeira pessoa a chegar ao local do crime, como se costuma dizer.

O Sr. Spenlow estava sentado em sua espreguiçadeira. Parecia perplexo. Após algum tempo, disse, com um fio de voz:

— Posso imaginar o que ocorreu. Já não escuto tão bem quanto escutava antes, mas ouvi distintamente um garotinho dizer na rua: “Quem é o assassino?” Isso… Isso me deu a impressão de que ele estava querendo dizer que eu matei minha querida esposa.

Miss Marple, despetalando delicadamente uma rosa, disse:

— Essa era a impressão que ele queria dar, sem dúvida.

— Mas o que poderia ter sugerido essa idéia a um menino? Miss Marple pigarreou:

— Sem dúvida, a opinião dos pais.

— A senhora realmente acredita que outras pessoas pensem assim?

— Quase a metade do povo de St. Mary Mead.

— Mas, minha senhora, o que poderia ter dado ensejo a essa suposição? Eu gostava muito da minha esposa. De fato, ela não se adaptou tão bem à vida no campo quanto eu gostaria, mas ninguém pode concordar em tudo. Isso é um ideal impossível. Asseguro-lhe que senti muito perdê-la.

— E provável. Mas, se o senhor me desculpar a indiscrição, não parece.

O Sr. Spenlow ergueu-se e disse:

— Minha senhora há alguns anos li que um filósofo chinês, quando perdeu sua esposa, continuou calmamente a tocar um gongo pela rua — um costume chinês, eu acho — como se nada houvesse acontecido. O povo da cidade ficou muito impressionado com isso.

— Mas — disse Miss Marple — o povo de St. Mary Mead reage de maneira um pouco diferente. A filosofia chinesa não tem muito prestígio por aqui.

— E a senhora? Entende? Miss Marple fez que sim:

— Meu tio Henry — explicou — possuía um autocontrole fora do comum. Seu lema era nunca demonstrar emoção e também gostava muito de flores.

— Eu estava pensando — disse o Sr. Spenlow com certo entusiasmo — que poderia cultivar ramadas no lado oeste do sítio. Rosas vermelhas e glicínias também. E há um tipo de flor estrelada, cujo nome não me lembro agora e que…

Usando o mesmo tom com que falava com seu sobrinho-neto de três anos, Miss Marple disse:

— Tenho um catálogo de flores ilustrado, que é muito interessante. Gostaria de dar uma olhada? Preciso ir até à cidade.

Deixando o Sr. Spenlow no jardim a examinar o catálogo, Miss Marple subiu até seu quarto, embrulhou rapidamente um vestido num pedaço de papel pardo e saiu em direção ao correio. A Srta. Politt, a costureira, morava num pequeno apartamento, no segundo andar do edifício.

Todavia, Miss Marple não subiu imediatamente até lá. Eram duas e trinta, e uma perua estacionou na porta do correio. Isso acontecia todos os dias em St. Mary Mead. A funcionária do correio andava de um lado para outro, despachando pacotes, porque, além de cuidar do correio, ela vendia balas, livros de bolso e brinquedos.

Por alguns minutos, Miss Marple viu-se sozinha nas dependências do correio.

Antes que a funcionária retornasse, Miss Marple subiu até o apartamento da Srta. Politt e explicou que gostaria de reformar seu vestido cinza — torná-lo um pouco mais moderno, se fosse possível. A Sta. Politt disse que ia ver o que podia fazer.

O delegado ficou surpreso quando soube que Miss Marple desejava vê-lo. Ela entrou na sala e foi logo pedindo desculpas:

— Desculpe incomodá-lo. Eu sei que o senhor é um homem muito ocupado, mas tem sido sempre tão atencioso, que eu preferi vir falar diretamente com o senhor ao invés de procurar o Inspetor Slack. Eu não gostaria de criar problemas para o Investigador Palk. Quero dizer: acho que ele não deveria cuidar desse caso.

O Coronel Melchett olhou-a espantado:

— Palk? Mas ele é o investigador de St. Mary Mead! O que foi que ele fez?

— O senhor não se lembra? Havia um alfinete no seu paletó no dia do crime. Ocorreu-me que o alfinete poderia ter ido parar lá porque ele estivera na casa da Sra. Spenlow.

— É possível. Mas, afinal, o que representa um alfinete? Ele pode ter ficado preso na roupa dele quando ele estava examinando o corpo. Ele veio aqui ontem e contou isso a Slack. Acredito que ele o tenha feito falar. Não deveria ter agido assim, é claro, mas como eu já disse, o que pode representar um alfinete? Era um alfinete comum — o tipo da coisa que qualquer mulher usa.

— Não, não, Coronel Melchett. Aí é que o senhor está enganado. Um homem não saberia distinguir um alfinete comum de um especial, e aquele era especial, muito fino, geralmente usado por costureiras.

Melchett ficou paralisado. Aos poucos, parecia ir compreendendo tudo. Miss Marple sacudia a cabeça veementemente.

— Mas é claro! Para mim está claro como água! A Sra. Spenlow estava usando um quimono porque ia experimentar um vestido novo. Ela foi até a sala de estar e a Srta. Politt disse alguma coisa a respeito de tirar medidas e colocou a fita métrica em torno do seu pescoço. Depois, foi só puxar a fita. Fácil, não parece? Então ela saiu e ficou do lado de fora batendo a porta como se tivesse acabado de chegar. O alfinete prova, no entanto, que ela já havia estado lá.

— E foi Politt quem telefonou para Spenlow?

— Sim. Do Correio, às duas e meia. Exatamente na hora em que a perua chega e o local fica vazio.

— Minha cara Miss Marple, por que motivo ela faria isso? Por Deus! Não se pode assassinar alguém sem motivo.

— Eu acho, Coronel, que isso é uma velha história. Fez-me lembrar meus dois irmãos: Anthony e Gordon. Tudo o que Anthony fazia dava certo, o que não acontecia com Gordon. Cavalos adoeciam, a lavoura não progredia e a propriedade ia cada vez pior. Acho que isso deve ter acontecido com as duas mulheres. Elas devem ter trabalhado juntas no passado.

— Em quê?

— No roubo. Há muito tempo. Eram esmeraldas valiosíssimas, pelo que eu sei. A dama-de-companhia e a criada. Porque… uma coisa não está clara. Como a criada casou-se com o jardineiro e logo montou uma floricultura? Logicamente, com a sua parte do roubo. No final tudo deu certo. O dinheiro foi bem aplicado — rendeu. Mas a outra moça não deve ter sido bem-sucedida e acabou se tornando apenas uma costureira de cidade do interior. Aí novamente se encontraram. Tudo parecia ir bem até Gerard aparecer. A Sra. Spenlow tinha crises de remorso, tornara-se fervorosamente religiosa. O rapaz, sem dúvida, instigava-a a purificar-se, e não duvido que ela própria estivesse realmente inclinada a fazê-lo. Miss Politt, porém, não pensava assim. Começou a achar que poderia ir para a cadeia por um roubo que praticara há muito tempo e resolveu acabar com a Sra. Spenlow. Acredito que ela sempre tenha sido um pouco fraca. Provavelmente não moveria uma palha se o Sr. Spenlow fosse incriminado. O Coronel Melchett disse bem devagar:

— Há um dado da sua hipótese que podemos verificar: o fato de a dama-de-companhia dos Abercrombie e a Srta. Politt serem a mesma pessoa, mas…

Miss Marple insistiu:

— Não será difícil. Ela é o tipo da mulher que confessará tudo no momento em que for acusada. Além disso… ontem eu apanhei sua fita métrica quando fui experimentar uma roupa. Ela vai dar falta do objeto e pensar que poderá ir parar nas mãos da policia. É uma pessoa ignorante e pensará que isso é uma prova decisiva contra ela.

Miss Marple sorriu encorajando-o:

— O senhor não terá trabalho, pode estar certo.

Falou como lhe falara sua tia, dando-lhe certeza de que iria passar na prova para a Academia de Polícia. E ele passou.
Fonte:
Christie, Agatha(1891-1976). Os Três ratos cegos e outras histórias (tradução de Regina Saboya de Santa Cruz Abreu). Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1979.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Inglaterra

Agatha Christie (Estranha Charada)

— E esta — disse Jane Helier, terminando as apresentações — é Miss Marple!

Como toda atriz, conseguiu o seu intento. Aquilo era realmente o clímax, o triunfante final! O tom de sua voz era igualmente respeitoso.

O estranho é que a pessoa tão efusivamente apresentada não passava de uma solteirona afável e bisbilhoteira. No olhar dos dois jovens a quem Jane, tão gentil, a tinha apresentado, havia incredulidade e uma certa decepção. Eram ambos bonitos; a moça, Charmian Stroud, morena e elegante, e o rapaz, Edward Rossiter, louro, alto e amável.

— É um prazer enorme conhecê-la — disse Charmian, um pouco ofegante. Mas lançou um rápido olhar, cheio de dúvidas, para Jane Helier.

— Querida — disse Jane, em resposta a seu olhar —, ela é uma pessoa maravilhosa. Deixe tudo por conta dela. Prometi que a traria e cumpri a promessa. — E voltando-se para Miss Marple: — Você resolverá tudo para eles, tenho certeza. Não será difícil.

Miss Marple volveu os calmos olhos azuis para Edward: — Poderia dizer-me do que se trata?

— Jane é uma grande amiga nossa — disse Charmian, impaciente. — Edward e eu estamos com um problema sério. Então, Jane nos convidou para esta festa, dizendo que nos apresentaria a alguém que poderia… bem, que talvez pudesse…

— Jane nos disse que a senhora é uma excelente detetive, Miss Marple — completou Edward.

Os olhinhos da solteirona piscaram, mas ela protestou, humilde: — Não, Não! De forma alguma. É que quem mora em uma cidadezinha como essa sempre acaba conhecendo um pouco melhor a natureza humana. Mas agora vocês me deixaram curiosa. Qual é o problema?

— Acho que é algo terrivelmente corriqueiro… um tesouro enterrado — informou Edward.

— É mesmo? Isso parece muito interessante!

— Pois é. Como a Ilha do Tesouro. Pena que no nosso caso falte o romantismo de costume. Não há mapas marcados com uma caveira ou um fêmur, nem indicações como “quatro passos à esquerda, a oeste pelo noroeste”. É bastante prosaico o lugar onde devemos procurá-lo.

— Vocês já tentaram?

— Nós cavamos cerca de dois acres. O local foi preparado para virar uma horta. Agora estamos decidindo se devemos plantar verduras ou batatas.

— Será que, realmente, devemos falar-lhe a respeito disso? — interrompeu Charmian.

— Mas é claro, minha querida!

— Então, só precisamos encontrar um lugar tranqüilo. Venha, Edward. — Ela saiu da sala apinhada e sufocante de fumaça e dirigiu-se a uma saleta no segundo pavimento.

Sentaram-se, e Charmian disse, de chofre:

— Bom, é o seguinte. Tudo começou com tio Mathew, quer dizer, um tio de nosso avô, meu e de Edward. Ele era muito velhinho, gostava bastante de nós e sempre dizia que, quando morresse, nos deixaria todo o seu dinheiro. Tio Mathew morreu em março e deixou tudo o que tinha para ser dividido igualmente entre Edward e eu. Pode até pensar que é mentira, mas sua morte não me alegrou absolutamente. Gostava dele, de verdade. Mas já estava doente há algum tempo.

— O problema é que tudo o que ele deixou era praticamente nada. Isso, francamente, foi um choque para nós, não foi, Edward?

Edward concordou, dizendo: — Sabe… nós estávamos contando com isso. Quando se espera receber uma bolada, não se faz muito esforço pra ganhá-la… de outra forma. Sou da Marinha e só tenho o meu soldo, e Charmian não possui nada. Trabalha como assistente de diretor num teatro de segunda categoria. É um trabalho interessante que ela gosta de fazer, mas não ganha quase nada. Pretendíamos nos casar e não estávamos preocupados com dinheiro porque sabíamos que, algum dia, ficaríamos bem.

— E como vê, não estamos! — disse Charmian. — E, o que é pior, Ansteys, a propriedade da nossa família, provavelmente terá que ser vendida. Edward e eu a amamos tanto! Acho que não suportaríamos isso! Se não encontrarmos o dinheiro de tio Mathew, é o que teremos de fazer.

— Charmian, ainda não tocamos no X do problema — disse Edward.

— Fale, então.

Edward encarou Miss Marple. — À medida que tio Mathew envelhecia, ia-se tornando cada vez mais desconfiado. Suspeitava de tudo e de todos.

— Muito sensato de sua parte — retrucou Miss Marple. — A ambição dos homens pode chegar a limites inacreditáveis.

— É. Tem razão. Era o que tio Mathew também pensava. Ele tinha um amigo que perdera todo o dinheiro em negociatas bancárias, e outro que fora arruinado por um advogado desonesto e ele próprio já havia perdido o dinheiro que investira em uma companhia fraudulenta. Tio Mathew ficou tão impressionado com esses acontecimentos que decidiu de uma vez por todas, transformar o dinheiro em tesouro, e enterrá-lo.

— Ah — disse Miss Marple. — Começo a compreender.

— Os amigos argumentaram com ele, fazendo-o ver que não obteria nenhum lucro desta forma, mas ele estava irredutível. Dizia que seu dinheiro deveria ser guardado em uma caixa debaixo da cama ou ser enterrado no jardim.

— E, quando morreu, deixou muito pouco em ações, apesar de ser muito rico. Por isso acreditamos que tenha, realmente, feito o que dizia — concluiu Charmian.

Edward continuou a explicação. — Descobrimos que tinha vendido algumas ações e retirado grandes somas em dinheiro, mas ninguém sabe o que fez dele. É provável que tenha agido de acordo com seus princípios, ou seja, comprado ouro e enterrado.

— Ele não disse nada antes de morrer? Não deixou nada escrito? Um documento, uma carta…?

— É isso o que nos deixa loucos. Ele não deixou nada. Ficou inconsciente por alguns dias, mas voltou a si pouco antes de morrer. Olhou-nos e suspirou levemente. Depois disse: — Vocês estarão bem, meus queridos pombinhos. — Então piscou o olho direito e morreu. Pobre Tio Mathew!

— Ele piscou o olho… — repetiu Miss Marple, pensativa. Edward replicou ansioso: — Isso lhe diz alguma coisa? Fez-me lembrar de uma história de Arsène Lupin. Havia alguma coisa escondida no olho de vidro de um homem. Mas tio Mathew não tinha olho de vidro.

Miss Marple abanou a cabeça. — Não… Não me ocorre nada no momento.

Charmian estava desapontada. — Jane jurou que você diria logo onde deveríamos cavar.

Miss Marple sorriu. — Bem, não sou mágica. Não conheci seu tio, não sei que tipo de homem era ele e não conheço nem a casa nem o solo.

— E se o conhecesse? — perguntou Charmian.

— Talvez fosse fácil dizer alguma coisa — respondeu Miss Marple.

— Ótimo — disse Charmian. — Venha conosco a Ansteys para ver o que pode fazer.

Ê possível que Charmian não imaginasse que Miss Marple fosse levar o convite a sério; porém, ela disse logo: — É muita gentileza sua, minha querida. Sempre desejei procurar um tesouro escondido, e — continuou olhando para eles com um jeito romântico e cúmplice — ainda mais havendo amor em jogo!

— Aqui estamos — disse Charmian, gesticulando vivamente. Acabavam de visitar as dependências de Ansteys. Estiveram no jardim (que mais parecia uma trincheira), andaram pelo pequeno bosque, onde, em volta de cada árvore, havia uma escavação, e olharam tristemente para as alamedas outrora limpas e belas. Estiveram também no sótão, onde velhos baús e cômodas foram esvaziados. Entraram em porões onde lajes foram retiradas à força dos suportes. Mediram e deram tapas nas paredes e mostraram a Miss Marple todas as peças do antigo mobiliário que pudessem abrigar uma gaveta falsa.

Uma pilha de papéis jazia sobre uma mesa do escritório — todos os documentos deixados pelo finado Mathew Stroud. Nenhum fora destruído e Charmian e Edward sempre voltavam a relê-los, examinando cuidadosamente cada promissória, convite ou correspondência, na esperança de se deparar com uma pista que, até então, tivesse passado despercebida.

— Será que sobrou ainda algum lugar? — perguntou Charmian, ansiosa.

Miss Marple abanou a cabeça. — Parece que nada foi esquecido, minha querida. Talvez tudo tenha sido vasculhado demais. Sempre achei que se devia ter um plano. É como diz uma amiga minha, a Sra. Eldritch, cuja criada era especialista em polir assoalhos. Um dia ela tanto se esmerou em polir o chão do banheiro que a Sra. Eldritch, ao sair do banho, escorregou, caiu e quebrou a perna. Foi um lamentável acidente porque a porta do banheiro, como era de se esperar, estava fechada e o jardineiro teve que subir numa escada e entrar pela janela, situação muito embaraçosa para a Sra. Eldritch, uma mulher de respeito.

Edward mexia-se na cadeira impacientemente.

Desculpem-me, por favor. Estou sempre me desviando do assunto. E que uma coisa lembra outra, e isso, às vezes, ajuda. O que quis dizer é que se tentássemos imaginar um lugar…

Edward interrompeu. — Pense, Miss Marple. O meu cérebro e o de Charmian não são mais capazes disso!

— É claro, meu querido! É muito cansativo para vocês. Se não se importam, gostaria de examinar tudo isso — e apontou os documentos que estavam sobre a mesa. — Isto é, se não forem confidenciais. Não quero parecer bisbilhoteira.

— Esteja à vontade. Mas acho que não vai encontrar nada. Miss Marple sentou-se e começou a examinar aquele amontoado de papéis. Ã medida que os examinava, ia organizando-os em pequenas pilhas. Quando terminou, ficou olhando para elas por alguns minutos.

Edward perguntou, com um toque de malícia na voz: — Então, Miss Marple?

Ela sobressaltou-se. — Desculpe-me. Estava distraída.

— Encontrou alguma coisa importante?

— Não, não. Mas acho que descobri que tipo de pessoa era seu tio Mathew. Bem parecido com meu tio Henry — amigo de brincadeiras óbvias. Um solteirão, evidentemente, não sei bem por que, talvez uma desilusão na juventude… metódico, não gostava de se sentir preso; poucos solteirões gostam!

Por trás das costas de Miss Marple, Charmian fez um sinal para Edward indicando que Miss Marple estava ficando gagá.

Miss Marple continuou a falar animadamente de seu tio Henry. — Gostava de charadas. Algumas pessoas sentem-se mal com charadas; um simples jogo de palavras pode ser irritante. Era desconfiado também. Estava definitivamente convencido de que os criados o estavam roubando. E, às vezes, eles estavam mesmo, é claro. Isso tomou conta dele de tal maneira — pobre homem! — que, no final, desconfiava de que estivessem envenenando sua comida. Passou a só comer ovos quentes. Costumava dizer que ninguém pode envenenar um ovo quente. Querido tio Henry! Eu o conheci tão alegre… gostava tanto de um cafezinho depois do jantar… Costumava dizer: — Este café está muito frio — o que se podia traduzir por: — Quero mais um.

Edward sentiu que se ouvisse mais alguma coisa a respeito do tio Henry iria enlouquecer.

— Gostava dos jovens — continuou Miss Marple —, mas tinha certa tendência a instigá-los. Costumava colocar sacos de balas fora do alcance das crianças.

Deixando a educação de lado, Charmian disse: — Ele me parece horrível!

— Ah, não, querida! Era apenas um velho solteirão não muito ligado a crianças. Até que ele não era de todo ruim. Guardava uma boa quantia em dinheiro em casa, dentro de um cofre seguro, e fazia muito alarde sobre isso. Por causa de todo o seu falatório, uma noite ladrões entraram em sua casa e arrombaram o cofre.

— Bem feito! — disse Edward.

— Ah, mas não havia nada no cofre — disse Miss Marple. — Ele guardava o dinheiro em outro lugar — atrás de algumas obras religiosas na biblioteca. Dizia que ninguém retirava um livro desse tipo da prateleira!

Edward interrompeu. — É uma idéia! Que W olharmos na biblioteca?

Charmian sacudiu a cabeça com desdém.

— Você acha que ainda não tinha pensado nisso? Procurei atrás de todos os livros. Foi terça-feira passada, quando você foi a Portsmouth. Tirei todos os livros das prateleiras. Sacudi-os. Nada!

Edward suspirou. Depois levantou-se e tratou de livrar-se estrategicamente de sua indesejável hóspede. — Foi muito gentil de sua parte ter vindo e tentado nos ajudar. Sentimos muito desapontá-la e tomar seu precioso tempo. Vou tirar o carro e a senhora poderá apanhar o trem das 15 e 30…

– Mas… — disse Miss Marple — precisamos encontrar o dinheiro! Você não pode desistir, Edward. Se não conseguir a princípio, tente, uma, duas, três vezes, mas tente novamente!

— Quer dizer que devemos continuar tentando?

— Exatamente — disse Miss Marple. — Eu ainda nem comecei. “Primeiro cace sua lebre…” como ensina aquele famoso livro de receitas. Um livro maravilhoso, mas caríssimo e a maioria das receitas começa assim: “Tome meio litro de leite e uma dúzia de ovos”.Mas onde é que estava mesmo? Ah, sim. Acho que nós, de alguma forma, caçamos nossa lebre, ou seja, seu tio Mathew, e só nos falta descobrir onde ele escondeu o dinheiro. E isso deve ser bastante simples.

— Simples? — exclamou Charmian.

— Sim, querida. Estou certa de que ele teria feito o óbvio. Uma gaveta secreta, este é meu palpite.

— Ninguém poderia esconder barras de ouro em uma gaveta secreta — disse Edward, secamente.

— Não, não, é claro que não. Mas não há razão para crermos que o dinheiro esteja em ouro.

— Mas ele sempre dizia…

— Meu tio Henry também. Lembra-se do cofre? Eis por que acredito que aquilo fosse uma pista falsa. Diamantes, por exemplo, poderiam estar em uma gaveta secreta.

— Mas nós procuramos em todas as gavetas secretas! Clamamos um carpinteiro para examinar a mobília.

— Verdade? Você é esperta. Eu sugeriria… a gaveta da escrivaninha de seu tio. É aquela ali, perto da parede?

— É. Vou mostrar. — Charmian foi até ela. Retirou a tampa. Dentro dela havia caixilhos e pequenas gavetas. Abriu uma portinhola central e tocou uma mola por dentro da gaveta da esquerda. O fundo da parte central soltou-se. Charmian retirou-o, revelando uma cavidade vazia.

— Isso não é uma coincidência? — exclamou Miss Marple. — Tio Henry tinha uma escrivaninha semelhante a esta; apenas a madeira era diferente.

— De qualquer forma — disse Charmian —, não há nada lá, como se pode ver.

— Acredito — disse Miss Marple — que o carpinteiro fosse muito jovem para conhecer tudo a respeito de sua profissão. Antigamente, os carpinteiros eram mais engenhosos quando fabricavam esses esconderijos. Há segredos dentro de segredos.

Ela apanhou um grampo do coque dos cabelos grisalhos e impecáveis; espetou em um orifício quase imperceptível, que havia num dos lados do segredo. Com um certo esforço, puxou uma gavetinha dentro da qual se via um maço de cartas amareladas e um papel dobrado.

Edward e Charmian debruçaram-se sobre o achado, ao mesmo tempo. Com os dedos trêmulos, Edward desdobrou o papel para logo deixá-lo cair com um grito de decepção.

— Uma receita! Presunto ao forno.

Enquanto isso, Charmian desatava a fita do maço de cartas. Escolheu uma e leu-a rapidamente. — Cartas de amor!

Miss Marple exclamou romanticamente: — Que lindo! Talvez esteja aí a razão por que seu tio nunca se casou.

Charmian lia:

— “Meu querido Mathew: Devo confessar que parece ter passado muito tempo desde que recebi sua última carta. Tento ocupar-me com minhas tarefas e sempre penso que sou mesmo muito feliz por ter a oportunidade de conhecer o mundo e que nunca poderia imaginar que viajaria tanto por essas ilhas, desde que cheguei à América”.

Charmian interrompeu bruscamente a leitura:

— De onde é esta carta? Do Havaí! — E prosseguiu:

Por incrível que pareça, esses nativos são mesmo de um primitivismo incrível. Não se vestem, são selvagens e passam a maior parte do tempo nadando, dançando e adornando-se com guirlandas de flores. O pastor Gray já fez algumas conversões, mas o trabalho é quase sempre inútil, e tanto ele quanto sua esposa estão muito desmotivados. Tenho feito o que posso para encorajá-los, mas também às vezes me sinto triste por um motivo que você conhece, meu querido. A distância é uma prova muito severa para um coração apaixonado. As suas sinceras manifestações de carinho e afeto animaram-me muito. Agora e sempre você é dono de meu devoto e fiel coração, querido Mathew. Seu verdadeiro amor, Betty Martin.

P.S. — Esta está endereçada à nossa amiga Matilda Graves, como sempre. Espero que Deus me perdoe este pequeno subterfúgio.

Edward assoviou. — Uma missionária! Eis o romance de Tio Mathew! Por que será que nunca se casaram?

— Ela parece ter viajado pelo mundo inteiro — disse Charmian, examinando o resto das cartas. — Mauritânia, toda espécie de lugares. Provavelmente morreu de febre amarela ou coisa parecida.

Um leve suspiro chamou-lhes a atenção. Miss Marple estava muito intrigada. — Muito bem — disse ela. — Vejam isto agora.

Ela lia a receita de presunto ao forno. Sentindo seus olhares inquiridores, começou a ler em voz alta: “Presunto ao forno com espinafre. Tome um bom pedaço de presunto defumado, recheie com cravo-da-índia e cubra com açúcar mascavo. Assem em forno morno e sirva com purê de espinafre”.O que acham disso?

— Que estranho — disse Edward.

— Não, talvez fosse até gostoso. Mas o que acham disso tudo? De repente o rosto de Edward iluminou-se. — Acha que isso pode ser um código? — Apanhou o papel. — Olhe, Charmian. É evidente! Por qual outro motivo ele guardaria esta receita numa gaveta secreta?

— Exatamente — disse Miss Marple. — Isto é muito significativo.

— Quem sabe não é o truque da tinta invisível? Vamos aquecer o papel. Acenda o fogo — disse Charmian.

Edward assim o fez mas não havia sinal de tinta invisível.

Miss Marple pigarreou. — Realmente acho que vocês estão tornando tudo muito difícil. A receita deve ser apenas uma pista. As cartas é que devem ser importantes.

— As cartas?

— Sim, especialmente a assinatura.

Mas Edward nem a ouviu. Gritava, animado:

— Charmian, venha cá! Ela está certa! Veja, os envelopes são antigos, sim. mas as cartas foram escritas há pouco tempo.

— Exatamente — disse Miss Marple.

Elas foram envelhecidas. Aposto como foi o próprio tio Mat quem as envelheceu!

— Exatamente — disse Miss Marple.

— Tudo deve ser código. Nunca houve missionária alguma! -Minhas queridas crianças! Não há razão para dificultar as brincadeiras. Realmente um homem muito simples. Quis apenas brincar.

Pela primeira vez os dois jovens deram total atenção a Miss Marple.

— O que quer dizer com isso, Miss Marple? — perguntou Charmian.

— Quero dizer, querida, que você tem o dinheiro em suas mãos neste momento.

Charmian fitou as próprias mãos.

— A assinatura, querida! É a chave de tudo. A receita é apenas uma pista. Cravos-da-índia, açúcar mascavo e tudo o mais, o que significa? Ora, presunto e espinafre. Presunto e espinafre! Significam… nada! Está claro, então, que as cartas, sim, são importantes. Principalmente se levarmos em consideração tudo o que seu tio fez pouco antes de morrer. Ele piscou o olho, não foi o que disse? Muito bem. Eis a pista!

— Quem está louco aqui, nós ou a senhora? — perguntou Charmian.

— Sem dúvida, minha querida, você já deve ter ouvido uma expressão que indica que alguma coisa não é o que parece, ou será que já não é mais usada? numa situação como esta costumava-se dizer: “um piscar de olhos e Betty Martin”.

Edward ficou sem ação. Seus olhos estavam fixos no papel que tinha nas mãos. — Betty Martin…

— É claro, Edward. Como você mesmo disse, não existe ou não existiram tais pessoas. As cartas foram escritas por seu tio e acredito que ele se tenha divertido muito com isso. Os envelopes são bem mais antigos; não poderiam pertencer às cartas porque o selo postal data de 1851.

Ela estacou e repetiu bem devagar. — 1851. Isso explica tudo, não?

— Não para mim — disse Edward.

— Claro! — exclamou Miss Marple. — Também não faria sentido para mim se não fosse meu sobrinho-neto, Lionel. Um menino maravilhoso e um apaixonado filatelista. Sabe tudo sobre selos. Foi ele quem me contou a respeito de um tipo de selo raro e valiosíssimo. Um deles foi achado recentemente e leiloado. Era um selo de dois centavos, datado de 1851. Foi arrebatado por 25.000 libras, se bem me lembro. Imagino que os outros selos também devam ser raros e valiosos. Sem dúvida seu tio os comprou através de intermediários e tomou todo cuidado para não deixar pistas, como se diz nas histórias policiais.

Edward resmungou alguma coisa, sentou-se e escondeu o rosto nas mãos.

— O que houve? — perguntou Charmian.

— Nada. Apenas um mau pensamento. Se não fosse por Miss Marple, nós teríamos queimado essas cartas sem dar-lhes maior atenção.

— Ah! É isso que esses velhinhos espirituosos nunca imaginam. Meu tio Henry, por exemplo, certo Natal enviou uma nota de cinco libras para sua sobrinha favorita. Colocou a nota dentro de um cartão de Boas Festas, fechou-o e escreveu: “Todo o meu amor e votos de felicidades. Sinto só poder enviar-lhe isso este ano”.

— A moça, desiludida com a mensagem, atirou o cartão na lareira sem ao menos abri-lo. E ele acabou tendo que enviar-lhe outra nota.

A impressão de Edward a respeito de tio Henry sofreu uma completa transformação.

— Miss Marple — disse ele — vou abrir uma garrafa de champanha. Vamos beber à saúde de seu tio Henry.

Fonte:
Christie, Agatha(1891-1976). Os Três ratos cegos e outras histórias (tradução de Regina Saboya de Santa Cruz Abreu). Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1979.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Conto, Inglaterra

Clevane Pessoa (O Anjo, a Rosa, o Beija-flor)

                       Um dia, a rosa mais olorosa do jardim, sempre cuidada por um pequeno ser de luz- amante de sua beleza inefável, mãos pacientes e cuidadosas, a afofar e regar a Terra, arrancar ervas daninhas e afastar as formigas, mesmo sujando-as ou ferindo os dedinhos leves-recebeu a visita fremente de um beija-flor. Este, tão pequeno quanto o outro, mas dono das asas que ele não possuía e um bico que podia extrair o nectar precioso, encantou a pequena rosa orvalhada…

                      O anjinho luminoso, observando toda a perfeição daquilo, o encantamento do beija-flor batendo as asas centenas de vezes a equilibrar-se no ar, a cumprir um ciclo vital, um equilíbrio necessário na Natureza, resolveu ir embora, para não sofrer mais… Para sempre. Doía-lhe muito porque outro cuidava de sua flor, agora. Mas apenas quem ama verdadeiramente é realmente capaz de renunciar… Afastou-se de vez,-e então, abriu-se nele um par de asas luminosas, por ele desconhecidas, mas presentes desde que nascera para amar- e foi então que, travestido em um colibri de arco-íris nas asinhas vibráteis, ele pôde reaproximar-se da rosa que o reconheceu, no momento exato em que ela fenecia, pois tinha a vida efêmera, arrependida de não ter conseguido reconhecer a tempo toda a dedicação de quem cuidara de si desde que abrira as pétalas pela primeira vez…Agora era muito tarde…O que precisa ser feito em amor, não deve ser adiado, nunca…É preciso ser ousado para viver plenamente o momento amoroso…E então, a flor se foi…

                     O anjinho beija-flor,porém, por representar Eros, tinha o dom da eternidade e foi assim que ele descobriu outras rosas, outras flores e seguiu através dos séculos a cultuar o AMOR…

Fonte:
Clevane Pessoa de Araújo Lopes/Brasil,no e-book “Pequenas Histórias em Atos”-Ensaio Poético da AVBL,organizado por Maria Inês Simões

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Belo Horizonte, Minas Gerais

Vicência Jaguaribe (A Casa do Topo da Colina)

Sempre que ela saía, passava em frente à casa de Laura. E, como a casa ficava em uma curva, o motorista da limusine diminuía a velocidade. E a madame estranha, dona daquele carrão comprido que lembrava à menina um enorme cachorro linguiça, ficava bem visível.

Ela morava na casa grande e bonita, mas sinistra, construída em uma colina. Laurinha não sabia nada sobre aquela mulher. Fazia pouco tempo que sua família se mudara para aquele bairro, por isso não conhecia quase ninguém. Mas estava se coçando, com a curiosidade à flor da pele. Ah! Já sabia o que fazer: ia falar com Carlos, um colega de escola, seu amigo, com quem ela gostava de conversar. Se Carlos não soubesse alguma coisa, ninguém mais saberia. Ele conhecia todo mundo, afinal, nascera e se criara naquele bairro. Era a ele que ela ia especular — assim a vovó falava, lembrou-se — sobre a estranha madame.

Naquela sexta-feira, a aula terminou mais cedo e ela chamou o Carlos:

— Carlos, vamos sentar na praça que eu quero lhe perguntar umas coisas.

Sentaram-se no banco de madeira, velho, mas inteiro.

— Carlos, você conhece a dona da casa grande da colina?

— Conheço, mas nunca me aproximei dela. Os adultos dizem que é uma mulher muito perigosa. Mas falam baixinho, para ela não saber. Se souber que alguém faz comentários sobre a vida dela, ê, ê, o tempo fica feio.

— Mas o que é que ela faz de tão terrível?

— Vou lhe contar o que ouvi durante os dez anos da minha vida. Dizem que ela vem de uma família muito antiga. Tão antiga que está ameaçada de extinção, como os animais pré-históricos. Resta uma única herdeira: ela. Aquela mansão do alto da colina foi construída por seus avós há mais de um século, quando saíram da fria Europa do Norte e vieram para a América — vieram fazer a América, como se diz —, fugindo dos credores.

— Isso quer dizer que a família estava devendo muito dinheiro, e as pessoas a quem eles deviam começaram a cobrar?

— Isso mesmo, Laurinha.

— Então, ela é americana por causa de uma negociata da família que deu errado? — Perguntou a menina rindo.

— É. Mas que jeito engraçado você tem de falar! O que significa negociata?

— Ora, Carlos, eu conheço essa palavra porque meu pai é advogado e defende muita gente que entra em negociata. É um negócio suspeito, em que há trapaça, roubalheira.

— Ah! Entendi. Mas continuando: a família não chegou à nova terra desendinheirada, não. Os negócios na Europa foram à bancarrota, mas os donos continuaram endinheirados, como quase sempre acontece.

— Agora sou eu que pergunto: o que é bancarrota?

— Ah! Essa palavra eu ouvi de uma cliente do meu pai, que é contador. Achei o som dela tão engraçada, que fui ao dicionário: significa quebra, falência.

— Certo. Mas, voltando à madame. Como é mesmo o nome dela? E ela não tem marido, nem filho, nem irmão, ninguém? E quantos anos ela tem?

— Calma, vamos por parte. O nome dela é Malvina Cruela. Mas ninguém sabe exatamente a sua idade. Alguns dizem que tem pra lá de cem anos.

— Mas ela parece tão jovem!

— Aí é que está. Muitos acreditam que ela é uma bruxa e toma um elixir da longa vida que ela mesma criou. E, como já lhe disse antes, é a última representante da família. Depois dela, ninguém.

— Mas ela é rica? Em que ela trabalha?

— Parece que é muito rica, riquíssima. Mas não trabalha.

— E o que faz na vida?

— Ela faz uma coisa muito ruim, que é até proibido por lei: rouba e cria animais que tenham o couro apropriado para fazer roupa. Parece também que exporta madeira nobre.

— O que também é proibido.

— É. E ela já foi presa por causa disso.

— Carlos, você tem coragem de ir comigo espiar a casa dela?

O menino tomou o maior susto da vida dele. Nunca pensara em fazer uma coisa daquelas. Será que a Laurinha era corajosa assim?

— Não será perigoso?

— Que nada! A gente tem cuidado. Que tal amanhã, que é sábado?

— Tá fechado. Passo na sua casa às oito horas. Mas o que vamos dizer para sua mãe? Vamos mentir?

— Não, a gente diz que você vai me mostrar a colina, que eu ainda não conheço.

No dia seguinte, mais preciso do que os relógios de Cabo Canaveral, exatamente às oito horas, estava Carlos no portão da menina. Sem perda de tempo, dirigiram-se à colina, mas, em vez de passear ou apreciar a bela paisagem que se perdia por falta de quem a admirasse, foram fuçar a casa da Malvina Cruela. Ela ainda não havia acordado, mas os empregados já estavam na labuta. Os dois aproveitaram a saída de uma criada que deixara a porta aberta e, de repente, viram-se dentro daquela casa imensa, sem saber o que fazer nem para onde ir?

— E agora, Carlos, o que é que a gente faz, para onde a gente vai? — Tremia a voz da Laurinha.
— Eu não sei, não. Não foi você que quis vir! Pois agora diga o que fazer.

Ninguém falasse assim com aquela menina. Ouvir alguém duvidar de seus conhecimentos e de sua coragem era o mesmo que engolir um pouco do espinafre do marinheiro Popeye. Ela criava coragem e adquiria força. Nunca lhe dissessem que ela não sabia fazer alguma coisa.

— Vamos, vamos procurar os cachorros. — Era a fala da Laurinha, bastante aborrecida. — Se estamos aqui, vamos fazer alguma coisa útil.

— Mas como vamos encontrar esses cães?

— Abrindo os olhos e aguçando o faro, ora. — E a Laurinha saiu com uma cara de dar medo, tendo o Carlos atrás dela.

Andando com muito cuidado para não fazer barulho atravessaram uma grande sala e entraram em um comprido corredor meio penumbroso. Até agora tinha sido fácil. Os serviçais encontravam-se na cozinha ou no quintal da mansão, esperando que a patroa acordasse. Au, au, au… au, au… Os dois pequenos audaciosos ouviram os latidos e seguiram na direção deles, que pareciam vir de um lugar distante. Mas não, eles vinham do interior da casa… do…

— Do subsolo. — Disseram os dois um para o outro, bem baixinho.

À frente deles havia um porão, cuja porta não estava trancada. Desceram uma primeira escada, uma segunda e uma terceira. Aí viram um quadro muito triste: vários dálmatas, muitos dálmatas, incontáveis dálmatas dentro de jaulas recebendo raios de sol artificial. Aliás, tudo ali, como os meninos iriam constatar, era artificial: o sol, a lua, as estrelas, a comida, a água… Algumas máquinas dispostas no imenso calabouço produziam a ilusão do sol e da lua; água e comida em forma de cápsulas e imitavam até o som de outros animais para acalmar os cães.

— Será que não vai aparecer ninguém por aqui? — Perguntou Laurinha mais para si mesmo do que para o Carlos.

— É melhor a gente sair daqui. Vamos. — Disse Carlos com um medo evidente.

— Não. Vamos tentar soltar os cães.

Mal a Laurinha terminou de falar, ouviu-se um clique e apareceu uma grande tela na parede e, na tela, a figura de Malvina Cruela. Uma voz grave, que fazia estremecer, preencheu o aposento.

— Ah! Então são vocês os invasores da minha casa, detectados pelo radar, hein. Que vieram fazer aqui? — Perguntou a malvada, mas não deu aos meninos tempo de dizer nada. — Seja o que for que vieram fazer, não interessa. São meus prisioneiros. Lembram-se da história de João e Maria? Vocês vão ser bem alimentados e, quando estiverem bem gordinhos vão ter serventia… Ah, ah, ah, ah, ah…

Horrorizados, os meninos escutaram a batida de uma porta e o barulho de uma chave na fechadura. Carlos quis chorar, mas Laura deu-lhe força:

— Não vamos ficar muito tempo aqui. Nossos pais vão nos resgatar.

Há dois dias os pais das crianças e alguns policiais as procuravam. A única pista: eles haviam subido a colina para passear.

—Só podem ter entrado na casa da Cruela, concluíram os soldados. E a bruxa os aprisionou. Vamos esperar que anoiteça e escalar o muro de pedra da mansão.

— Mas a casa tem alarme e radar. — Avisaram os pais do Carlos.

— Sim, mas o radar só detecta alguém ou alguma coisa a partir de determinada altura. E o alarme é fácil desativar. Temos um aparelho eletrônico que faz isso com a maior facilidade.

Assim que anoiteceu, os soldados e os pais subiram a colina e conseguiram entrar na casa por uma janela dos fundos. Com as armas destravadas, alcançaram a sala de jantar, onde se refastelava a Cruela com uma bela e suculenta lagosta ao molho, e à cozinha, onde se encontravam reunidos todos os empregados, esperando um chamado da patroa. Os serviçais foram obrigados a dizer onde estavam os meninos. Enquanto os soldados e os pais resgatavam as crianças, deixaram a bruxa amarrada a uma cadeira. Minutos depois, quando voltaram à sala, ouviram o barulho de um helicóptero. Procuraram a Cruela, mas não a encontraram. Ora, o campo ficou livre. Ela, então, assoviou o assovio combinado com o piloto do helicóptero, que não estava com os empregados, mas escondido. Ele entrou e d esamarrou a patroa. Correram os dois para o heliporto disfarçado, e a máquina voadora, pilotada com perícia, e com as luzes momentaneamente apagadas, confundiu-se com a escuridão.

Malvina Cruela deu uma gargalhada e disse para o piloto:

— Vamos tirar umas longas férias no Caribe. Aqui os meus advogados resolverão tudo. Quando voltarmos, a tempestade já terá passado e começarei tudo de novo.

Enquanto o helicóptero transportava a bruxa para as férias antecipadas, as crianças foram levadas, cada uma para sua casa. Os cães ainda ficariam presos por uma noite. No dia seguinte bem cedo, a carrocinha iria apanhá-los. E começaria a luta por adoção. Como eram muitos animais, despachariam alguns para outros estados.

Carlos e Laura iriam ajudar no resgate, e cada um ganharia um dálmata bebê.

Fonte:
A Autora

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Ceará.

Rachel de Queiroz (Marmota)

Aqui ninguém duvida de que marmota existe. Quase todo o mundo já viu. De noite, nas conversas do terreiro, é raro quem não tenha seu caso a contar. Marmota não é bem fantasma, pode ser alma do outro mundo, ou é uma aparência, uma coisa do mato, quem sabe? Às vezes é um bicho. Em geral é um vulto; e também um ruído, uma chama. Aparece de noite ou de dia.

Todo mundo encara as marmotas como realidades do cotidiano, que fazem um medo desgraçado, mas com as quais se tem que contar. E há delas passageiras, como há outras muito antigas. No caminho de chegada à fazenda de minha irmã, no Choró, existe uma pedra grande, escura, bem na descida de um alto. O povo a chama “Pedra do Bicho”, porque ali costuma aparecer uma marmota; e já faz mais de cem anos que ela se mostra. Milhares de pessoas já a encontraram. Pode ser do tamanho de um porco, ou do tamanho de um cavalo, mas é sempre preta e com uma barriga mole, se arrastando. Às vezes se encontra cascavel morta junto da pedra, às vezes um preá. É o bicho que mata. Alguns falam que há muitos anos apareceu ali uma ossada de gente, ainda com as carnes. Engraçado, nesses anos todos nunca mudaram o caminho.

No corte da estrada de ferro, na saída da lagoa da Carnaúba, compadre Chico Barbosa vinha uma noite com o seu filho Eliseu e de repente lhes surgiu à frente aquele vulto preto, de andar arrastado, como um bicho grande e disforme, tomando o caminho. Eles desviaram à esquerda, o bicho também, desviaram à direita, o bicho também bandeou. Chico trazia um facão, brandiu o ferro, a marmota nem se importou. Riscaram um fósforo, sacudiram em cima, o bicho nada. Afinal resolveram fechar os olhos e o pai esgrimindo com o facão, o filho açoitando o ar com uma vara, correram em frente, com bicho e tudo. Não sabem como atravessaram nem como chegaram em casa. Mas ainda hoje ficam com as carnes tremendo quando se lembram.

Pedro Ferreira vinha de uma noitada de jogo, sozinho, pela meia-noite. Eis que numa vereda lhe apareceu a marmota – alta, de braços abertos, no sistema de uma pessoa. Ele trazia um pau grosso na mão, plantou o pau no bicho, facheou o pau todo, a visagem não se espantou. Pedro sentiu que o cabelo lhe crescia na cara, na nuca. Sentou-se no chão, ficou de olhos fechados, esperando, com vontade até de chorar. Afinal olhou – a marmota tinha sumido. E o pau, que ele largara no chão, ao seu lado, tinha sumido também.

Comadre Delurdes ia de manhã ao roçado, levar ao marido o “sonhim” de pão de milho. Junto à capoeira velha deu com uma coisa – não era bem uma marmota, era mais uma aparência, um rasgar forte de pano, e um rufar de asas grandes, uma coisa agitando o ar, aquele sorvo, que não se via mas se sentia. Ela correu tanto que ao chegar em casa teve uma oura, quase morreu. O marido zombou, no outro dia foi com ela – e aí quem correu foi ele. Ninguém da família vai mais sozinho ao roçado.

Certa noite um bando de gente vinha de uma festa, pela rodagem do Quixadá. Zéza, a hoje finada Dora, Terezinha, seu marido Chico Ferreira, e outros. Ao passarem perto do local onde foi encontrada a ossada de Chico Preto (morto misteriosamente há alguns anos), viram um vulto agachado ao pé de uma imburana. A coisa olhava de um lado e de outro da árvore, como quem brinca com criança. Chico Ferreira soltou um uivo e desabou; e as mulheres correram atrás, lutando para ver se chegavam na frente dos homens. E, se a visagem quisesse tinha até apanhado um menino, coitadinho, que ficou por último na disparada. Na hora do medo parece que até coração de mãe se esquece.

O mesmo Pedro Ferreira tem outra recordação do seu tempo de jogador. Vinha em noite escura, por um caminho que passa perto da represa do açude velho do Junco, cansado, com fome e frio. Nisso avistou um fogo e se alegrou – deviam ser uns amigos que planejavam uma pescaria. Parece que tinham tocado fogo num toco e as suas sombras iam e vinham ao redor. Pedro chamou, ninguém respondeu. Aí a chama baixou e voou brasa pra todo lado, como se alguém batesse com uma vara no fogo, estilhaçando-o. Assustado ele parou – firmou a vista – agora não tinha mais toco, nem fogo, nem brasa, só um escuro mais escuro, como um vulto, no lugar onde o fogo estivera. O chapéu lhe subiu nas alturas; ele sentiu que o vulto se deslocava em sua direção. Correu, botando a alma pela boca. Mas o bicho, lerdo, não o perseguiu.

E até mesmo aqui perto de casa, antes de se atravessar o riacho do açude, tem uma moita de mofungo, junto a um pé de violeta, onde o povo sempre encontra uma marmota. Tem dia em que ela balança a moita, e solta gemidos, aqueles ais. Ou se divisa um vulto por baixo da moita, e então se escuta um ruído forte de dentes, como um cachorrão quebrando ossos.

As pessoas que contam esses casos nunca mentem em outras coisas. São gente de respeito, nem é impressão de bebida – como se diz: “visagem de bêbedo fede a cachaça”. Será que elas mentem só nesses casos? Ou se enganam, ou sonham?

Fonte:
Governo da Paraíba – A União.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Ceará., Estado do Rio de Janeiro

Rachel de Queiroz (Rapadura)

 Outro dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno sábado de feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada que exigiu doze pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um paralelepípedo de doce bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.

A banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o infiel asperamente ralhou: “Cala a boca, mulher, senão aparece a polícia”.

Mas avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela, certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela música em que RC declara à amada : “Você vai aprender a ser gente!”

– Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.

Mas o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete: “Recebi a medida e lhe mando a encomenda”.

A bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.

Agora porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e bradou esteje preso para os mais.

Na delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava até de meu bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava. Só sabia que vinha fazer umas compras, e passando pela banca de rapadura, viu aquela piranha com os dentes na cara do marido – marido de padre e juiz! – Sentira um escurecimento de vista – e aí não sabia mais de nada.

O delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha, bate de correia, a vizinhança toda sabe!

Aí a mulher do marido interrompeu agastada: “Minha mãe cale sua boca, que o caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no que é dele”. (Vide Nelson Rodrigues.)

A sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando “mal agradecida!”, mas nesse ínterim o         delegado se levantara e pedira silêncio. E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais. Falou, estava falado.

O cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.

O marido infiel levou a mulher para casa – conta a vizinhança que lhe deu uma surra para ela deixar de ser valente. E depois foram muito felizes.

 Fonte:
Elenco de Cronistas

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronica, Magia das Palavras

Carol Ryrie Brink (Belita)

 O inverno estava começando quando Rogério Moura chegou a Campo Florido, no Rio Grande do Sul, com um rebanho de cerca de mil carneiros. Pretendia ir mais para o oeste, onde os campos abertos eram ótimos pastos; mas, naquela época, as estradas não eram boas e, por esse motivo, o inverno o alcançou em meio da viagem. Naquela manhã havia chovido muito, por isso o dia se tinha conservado sombrio. Mesmo assim, quando chegou, restava ainda um pouco de claridade vinda da luz solar que, rasgando as densas nuvens, dourava levemente a triste paisagem; mas a noite não tardaria a chegar. Era preciso, portanto, arranjar urgentemente um abrigo.

Celina Vieira e o irmão mais novo, Augusto, estavam empoleirados na cerca que demarcava a fazenda de seus pais apreciando o entardecer, enquanto esperavam a ceia. Ronaldo, irmão mais velho de Celina, estava de pé, com os cotovelos apoiados na cerca e junto dele, sentado, o cãozinho Piloto.

– Céu vermelho à tarde, sol de manhã – disse Ronaldo, abanando a cabeça como um previsor do tempo.

– A tarde esta linda – disse Augusto – mas esta noite será muito fria. Preferia morrer a ter de passar a noite ao relento.

– Ouçam! – disse Celina, levantando o dedo. – Que barulho esquisito lá no morro! Vocês não ouviram?

– Parece de badalos, disse Augusto. Não nos faltou nenhuma vaca esta tarde, faltou?

– Não – respondeu Ronaldo. – E… nossos badalos não soam assim. Além disso, Piloto não deixaria que nenhuma vaca se extraviasse, mesmo que nós deixássemos.

Piloto geralmente abanava a cauda quando seu nome era mencionado; mas desta vez não se mexeu. Com as orelhas de pé, estava preocupado pelo estranho ruído.

– São carneiros! – disse Celina, depois de algum tempo. – Ouçam o balido! Mé… mé… mé…! Se não for um rebanho, comerei meu chapéu novo.

– Aquele que tem uma pena? – perguntou Augusto, incredulamente.

– Devem ser carneiros! – concluiu Ronaldo.

Instantes depois surgiram na estrada, como uma enchente, os mil carneiros de Rogério Moura. À frente vinha um casal de cães irlandeses, felpudos que, latindo, procuravam conservar o rebanho reunido. Era um espetáculo desolador! Mil carneiros magros, cansados e tristonhos, baliam incessantemente, num protesto contra a longa viagem. O condutor do rebanho cavalgava atrás, em um cavalo coxo, que não estava em melhores condições. O pastor era alto, de rosto magro e queimado pelo sol; os olhos eram azuis e brilhavam de maneira estranha nas órbitas fundas. Parecia exausto e esfomeado.

– Quer dizer a seu pai que preciso falar-lhe… – pediu a uma das crianças, assim que as viu.

Ronaldo deu um gritinho alegre e saiu à procura do pai. Em pouco tempo todas as pessoas da casa vieram contemplar o curioso espetáculo. Ali no vale criavam-se vacas, cavalos e bois; mas, nenhum dos fazendeiros tinha ainda experimentado a criação de carneiros.

Celina e Augusto ficaram de pé em cima da cerca, fazendo perigosas acrobacias para contar os carneiros

Piloto corria em redor dos cães, sem saber se os devia tratar como amigos, pois estava profundamente impressionado com o balido dos carneiros.

De repente, Celina deu um pulo no meio da carneirada.

– Veja, senhor! Aconteceu alguma coisa a esta ovelha.

Realmente, uma ovelha havia caído e parecia estar morrendo. O Sr. Moura e o pai das crianças conversavam animadamente e por isso não lhe deram atenção.

– Celina! Ronaldo! Augusto! – chamou o pai. Venham ajudar o Sr. Moura a encontrar esta noite um abrigo para os carneiros. Corram às fazendas vizinhas e perguntem aos amigos se podem desocupar parte do celeiro e do curral para colocar estes animais. Perguntem, também, se querem vir ajudar nesse serviço.

As três crianças partiram imediatamente em direções diferentes.

Embora Rogério Moura fosse completamente estranho naquele lugar, todos os homens das fazendas vizinhas, em pouco tempo reuniram-se e vieram em seu auxilio, salvar o rebanho fatigado da inclemência do tempo. Em meio de gritos, latidos e balidos, foram divididos os carneiros em pequenos grupos e levados para as diferentes fazendas, onde os abrigaram até mesmo junto aos montes de feno e embaixo de telheiros improvisados.

Quando o último carneiro estava sendo levado, Celina lembrou-se da ovelha doente, e então correu para ver o que lhe teria acontecido. Ela ainda estava estendida no mesmo lugar, os olhos meio fechados e a respiração tão fraca que parecia próxima a sua morte.

– Oh, veja, Sr. Rogério! – gritou Celina. O Sr. precisa atendê-la ou ela morrerá.

– Hum! – disse o pastor. – Não posso perder tempo com uma ovelha quase morta, quando tenho centenas vivas, enregeladas, precisando de auxilio imediato.

– Se o senhor não tem tempo, eu tenho – ofereceu-se voluntariamente Celina.

– Muito bem – disse o Sr. Rogério. – Ela será sua, menina, se salvá-la.

– Realmente? – gritou Celina. – Está feito!

Em pouco tempo, a menina recrutou os serviços de Ronaldo e Augusto. Juntos transportaram cambaleando, a ovelha doente para dentro do cercado. O pai das crianças observava aquela cena assombrado.

– Que é que vocês vão fazer com esta ovelha? – perguntou-lhes.

– Nada, ela está morrendo; mas Celina pensa que pode salvá-la.

– Oh, papai – gritou Celina. – Posso colocá-la no celeiro e lhe dar alguma coisa para comer? É disso que ela está precisando.

O pai sorriu e balançando a cabeça deu o seu consentimento.

– Irei vê-la, mais tarde – disse-lhe.

Só muito mais tarde, foi que o pai das crianças teve tempo para visitar a ovelha doente. Encontrou Celina sentada, ao lado de um candeeiro, contemplando a ovelha. Nunca o Sr. Vieira vira a filha tão triste!

– Papai, – disse a menina – estou certa de que ela está com fome, mas não consigo que coma. Não sei mais o que fazer.

O Sr. Vieira ajoelhou-se ao lado do animal; apalpou-lhe o corpo para ver se encontrava algum ferimento. Depois abriu-lhe a boca, correndo os dedos delicadamente nas suas gengivas.

– Bem, Celina, acho que você terá de fazer uma dentadura postiça para ela.

– Dentadura postiça! – exclamou Celina. E, passando os dedos nas gengivas do animal, disse: – Ela não tem nenhum dente! Não era de admirar que não pudesse mastigar o feno! Que resta fazer agora?

O Sr. Vieira olhou para o rosto aflito da filha, pensou durante alguns segundos e disse:

– Bem, vai ser uma trabalheira; não sei se você quer encarregar-se disso.

– Quero, sim, disse Celina. Diga-me o que devo fazer.

– Mamãe recebeu uma grande remessa de batatas. Peça-lhe para cozinhar algumas, mas não as deixe ficarem cozidas demais, misture-as com farelo, leite e faça um pirão. Você verá como este pobre animal o comerá facilmente. Isto deve ser feito todos os dias; acho, porém, que você se cansará depressa deste trabalho.

– Não me cansarei, papai. É preciso que alguém o faça; não podemos deixá-la morrer de fome.

Naquela tarde, o Sr. Rogério ficou com para cear com a família Vieira. Papai e Mamãe sentaram-se nas cabeceiras da mesa e, em volta, os seis filhos e mais o Sr. Rogério, Roberto Gonçalves, o capataz, e Catarina Machado, a governanta. Havia, portanto, um auditório apreciável; por isso, o Sr. Rogério começou a contar prazenteiramente a história de sua longa viagem. Contou como vagabundos e as onças lhe tinham roubado alguns carneiros; pormenorizou como um pastor que vinha em sua companhia apanhara uma febre e morrera no caminho, sendo enterrado próximo a um povoado, e explicou como tinha atravessado rios e escapado de um furacão.

Guando terminou a ceia, o pastor colocou Teodora e Rosinha nos joelhos e lhes falou sobre os mais estranhos casos que encontrara pelos caminhos. Abriu depois uma sacola que trazia por baixo do blusão de couro e lhes mostrou um verdadeiro tesouro. Nesse momento todos o rodearam. Mostrou, então, um trevo de quatro folhas amarelado pelo tempo.

Enquanto o desconhecido narrava sua história, Celina pensava na ovelha doente, e uma idéia acalentava-lhe o íntimo: “Ela comeu o pirão de batata. Logo, se eu lhe prestar toda a assistência de que necessita, por certo viverá e isto será devido à minha dedicação. Gosto mais dela do que de todos os outros animais de estimação, exceto, naturalmente, Piloto”.

No dia seguinte Rogério foi ao centro da “vila” vender os carneiros. Era preciso desfazer-se deles o mais rápido possível. Como já sabemos, o inverno começara de repente e, embora estivesse viajando havia muito tempo, encontrava-se ainda longe dos pastos para onde se dirigia. Campo Florido era apenas um lugarejo e ele só pôde vender parte de seu enorme rebanho. Por isso, fez um acordo com o Sr. Vieira e com os outros fazendeiros: eles poderiam guardar tantos carneiros quantos pudessem alimentar e abrigar. Em troca, ele queria na primavera a metade da lã que os carneiros produzissem.

– E da minha ovelha? – perguntou-lhe Celina.

O Sr. Rogério riu e respondeu:

– Não quero nada, mocinha. Você ganhou a ovelha por direito e tudo que a ela pertencer.

A ovelha já ficava de pé; balia e cheirava as mãos de Celina sempre que a menina dela se aproximava.

Aquele inverno foi trabalhoso para Celina. Todos os dia pela manhã, antes de ir à escola e, à tarde, quando voltava, preparava o pirão de batata com farelo e leite para Belita.

– Qualquer dia, você desistirá, disse Ronaldo.

– Belita! – zombou Augusto. – Isto não é nome próprio para uma ovelha. Você devia chamá-la de Biti.

– Nada disso – retrucou Celina, com firmeza. – Belita é o nome da ovelha de Celina Vieira e vocês verão que não desistirei de preparar sua comida.

Quando os dias começaram a se alongar e a ficar mais quentes, Celina passou a levar Belita para pastar com os outros carneiros. No começo ela amarrava-lhe uma fita vermelha no pescoço porque todos os carneiros se parecem e Celina não queria trocar sua ovelha. Na realidade tal precaução era desnecessária, porque assim que aparecia com o prato de pirão, Belita abandonava os outros carneiros e tirava uma linha reta de onde estava para alcançar Celina mais depressa. À noite voltava para o celeiro e esperava que a menina a deixasse entrar.

Numa manhã de outubro, como de costume, Celina levantou-se cedo para dar de comer a Belita. Quando se aproximava do celeiro, viu que Roberto saía e, minutos depois, defrontou-se com ele. Celina havia posto o xale de sua mãe por cima do avental e trazia nas mãos o prato com o pirão de batata ainda quente, próprio para aquela manhã fria de primavera.

Pela primeira vez Celina viu que Roberto não cantava nem assobiava; reparando bem, Celina notou na fisionomia do honesto capataz uma mistura de tristeza e contentamento que a menina não pôde compreender.

– Aconteceu alguma coisa a Belita? – perguntou-lhe.

– Sim mas, por Deus, não maldiga o sucedido – respondeu Roberto seriamente.

O coração de Celina quase parou. Algo terrível tinha acontecido à querida Belita! Correu imediatamente para o celeiro.

– Não adianta se afligir agora, queridinha – disse Roberto quando alcançou a menina. Você fez por ela mais do que qualquer outro ter feito.

As palavras de Roberto nada significaram naquele momento para Celina, porque aquele frágil fio de vida que a menina tinha conseguido conservar durante todo o inverno, acabava de ser arrebentado. Belita estava morta!

Celina jogou fora o pirão que trazia e ajoelhou-se diante da ovelha. Não podia falar nem fazer outra coisa qualquer, mas as lágrimas que corriam  queimavam-lhe as faces e salgavam-lhe os lábios. O coração de Celina estava prestes a sucumbir diante de tanta tristeza!

– Hurra! Hurra! Hurra! – gritou Roberto inclinando-se e olhando aquela cena com simpatia. – Nem tudo está tão mal. Por que não procura ver se a morte de Belita não lhe trouxe algum conforto?

Celina sacudiu a cabeça, apertando os olhos para conter as lágrimas que corriam abundantemente.

– Veja! – insistiu ele.

Roberto aproximou-se e colocou uma coisa macia e quente nas mãos da menina. No mesmo instante, uma vozinha fraca baliu:

– é… é…!

– Veja! – disse Roberto, – a mãe dela está morta mas ela escolheu você para substituí-la! E sabe por que o fez.

Celina abriu os olhos e as lágrimas pararam de correr porque Roberto havia colocado em seus braços um ser tão pequenino, tão adorável, que fez desaparecer sua tristeza como por encanto.

– É uma ovelhinha! – disse Celina para si mesmo, e depois para Roberto: – É filha de Belita, não é?

– É – respondeu Roberto. – E continuou: – Belita estava cansada para poder criá-la. “É melhor eu dormir e deixar Celina cuidando dela”, pensou com certeza Belita. “porque Celina é uma mãezinha extraordinária”.  

Celina enrolou o xale na ovelhinha e embalou nos seus braços aquele pequeno e friorento ser.

– Pirão de batata não serve – disse ela para si mesma. – Leite morno é do que ela precisa e talvez mamãe me possa dar uma mamadeira do Zequinha para eu poder alimentá-la melhor.

A ovelhinha encontrou nos braços de Celina o agasalho e a proteção de que necessitava e, como num agradecimento, baliu mais uma vez:

– Mé!… Mé!…

 Fonte:
O Mundo da Criança – “Magical Melons”.

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Carina Isabel M. Cardoso (Luzia)

Por aqueles corredores com pisos soltos, paredes encardidas e descascadas, Luzia transitava todos os dias, vendo sua vida passar sem perceber o dia lá fora.

Mulher magra e muito alva, com aparência cansada e desleixada de quem tem pouco tempo para si, mas ainda mostrando-se bela, apenas descuidada, ela segue mais uma vez para o quarto da mãe doente e moribunda. Luzia cuida da mãe com todo o zelo que uma filha pode dispor à sua progenitora, apesar de seus olhos não esconderem o desprezo por aquela mulher que apesar de velha e doente ainda consegue ser tão cruel, com uma língua tão ferina.

Apesar de religiosa, D. Matilde não tinha nem de longe um coração puro, tinha um olhar que só passava frustração, mágoa e inveja a quem o fitasse. Nada de bom se aprendia com aqueles olhos negros e fundos, mesmo sendo tão experientes e sábios.

D. Matilde sempre foi uma mulher ligada à igreja, querida pelos que compartilhavam sua fé, tão caridosa, tão solicita aos necessitados que a comunidade ajudava, mas, dentro de casa sempre levou a família com mãos de ferro, nunca dando a menor mostra de carinho e afeição pela única filha e nem ao marido que sempre fez de tudo para agradá-la, bancando todos os seus caprichos, até mesmo concordando que Luzia, por ser a única filha, não deveria se casar enquanto os dois ainda estivessem vivos, que ela deveria era cuidar dos pais e da casa, pois eles não tinham mais ninguém por eles, e mesmo que ela se casasse e morasse perto não seria suficiente, teria que morar sempre com eles, até o fim.

Quando o pai faleceu, Luzia perdeu sua única alegria de estar ali, pois o pai era um homem muito gentil, e apesar de fraco, nunca retrucou uma palavra maldosa de sua esposa, mesmo assim sua relação com ele era muito boa, ela procurou aceitar que o pai agia dessa maneira para manter as coisas em harmonia.

Agora que estavam sós, apenas as duas vivendo na casa, as coisas eram levadas na base da diplomacia entre elas, e ao entrar naquele quarto escuro, fétido e triste ela se preparava para ouvir qualquer coisa de sua mãe, e quando entrava aquela troca de olhares, o ódio com que aqueles olhos negros e profundos das duas se encontravam, chegava a doer na alma. E, D. Matilde não aceitava o fato de estar tão doente, sempre colocando a culpa na filha, pois se não a tivesse parido com certeza sua saúde estaria muito melhor, não teria perdido tanto tempo cuidando de uma criança e sim de si mesma, e não precisaria de ajuda de ninguém.  Era inaceitável para ela ter que ser guiada até o banheiro, tomar banho na cama, mas Luzia mesmo com tantos motivos para odiar sua mãe, não conseguia apenas se sentia muito pequena diante daquela mulher na cama, emagrecida e doente. Queria apenas um pouco de respeito, afinal ela se abandonou completamente para estar ali, não amou, não estudou, não viveu nada além daqueles corredores com pisos soltos e paredes encardidas, ouvindo as amigas de sua mãe dizer o quanto ela era boa e generosa, o quanto ela deveria ser grata por ter nascido em um lar tão abençoado, e aquelas palavras acabavam por diminuir ainda mais sua esperança de respeito, apesar de seu tamanho, ela se imaginava quase invisível aos olhos negros, profundos e cheios de rancor com os quais sua mãe a fitava entrando no quarto trazendo sua comida, esperando até que ela desse a última garfada e para limpar a boca da mãe.

Rezava todas as noites para que aquela fosse a última de sua sina, já não aguenta mais, não o trabalho a ser feito, mas sim o desprezo, mas então outro dia recomeçava e com ele a sina que parecia não ter fim, e a cada dia que passava ficava mais difícil encarar aqueles olhos, aquele rancor. E então, aquela menina que tanto lutou para não ter aqueles olhos, os viu no espelho quando refletia a sua imagem e não a dela; viu a mesma amargura, o mesmo mal, sem saber de onde veio o dela; sabia exatamente o quando e o porquê seus olhos se tornaram brilhantes como duas pedras de ônix; mas o brilho não era bom, não era agradável, e então ela soube que era hora de acabar com sua sina, foi até o seu algoz e com toda a coragem que o mundo poderia lhe dar naquele momento, em uma última tentativa de viver bem, abraçou sua mãe, disse que a amava e que iram ter novas regras em casa a partir daquele momento; não suportaria mais aquelas palavras cruéis, os olhares de desdém, o rancor e a culpa, tomaria as rédeas da situação e que a mãe pensasse o que quisesse daquilo. Foi então que viu sua mãe chorar pela primeira vez em sua vida de quarenta e dois anos, um choro verdadeiro e sentido, vindo da alma, como se descarregasse o peso acumulado a vida inteira, mas nunca explicou o porquê daquele choro tão dolorido, mas a partir daí as coisas ficaram diferentes, Luzia conheceu o amor e casou-se, teve filhos e ninguém mais soube de D. Matilde, o que houve com ela só a filha sabe, e o motivo daquele choro também não foi revelado…

Luzia nunca mais pisou naquela casa de pisos soltos e paredes encardidas…

Fonte:
Clic – Palavra de Mulher
http://sorocult.com/palavrademulher/escritora.php?codigo=53

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Marcia Tiburi (O Desejo do Tempo)

 Os antigos gregos tinham em Chronos, deus do tempo, a imagem do pai todo poderoso devorador dos filhos. Ele criava, ele mesmo aniquilava. O tempo cronológico é apenas o tempo que passa. Mas a experiência do tempo não passa tão simplesmente, somos nós que passamos por ela. Nos constituímos, em nossa interioridade, a partir dela. Como dizia Santo Agostinho, o tempo é algo complexo demais, sendo muito difícil para cada um explicá-lo. Tanto quanto é fácil de entender, pois estamos nele desde sempre. O tempo nos possui e não o contrário.

UM DIA DE CADA VEZ

É melhor viver um dia de cada vez? É provável que ouçamos ou pronunciemos esta frase em vários momentos da vida. Quando incertezas e desesperanças se põem em cena é a reflexão sobre o tempo (seja ele dito na forma dos dias, das horas, do tempo ao tempo) que sustenta nossas ponderações. Ou na básica ansiedade que move o cotidiano, quando não compreendemos as próprias direções, quando, sem perspectiva ou foco, parece que não buscamos nada. Ansiosos quando queremos muito, nem sempre sabemos bem o que queremos. E nos angustiamos porque estamos no tempo, medido, e não na eternidade, desmedida. A vida exige solução, mas o tempo é o limite de toda vontade. Por isso, ele também é possibilidade.

A frase traz uma sabedoria básica na forma de um conselho sobre o uso e a compreensão do tempo, do qual depende o desejo, nome que se dá ao modo de nos relacionarmos ao futuro, o nosso e o que compomos junto de outros. A frase nos diz sobre um modo de tratar com a frustração comum na sociedade de hoje: a da ausência do desejo que diz respeito a uma incapacidade de criar projeto de vida. Ou seja, o que fazer da vida dentro de seu limite. “Um dia de cada vez” significa: “vá com calma, aproveite o tempo presente”, mas por outro lado, também diz “esqueça a totalidade da vida”. Aí conhecemos o conflito com a “temporalidade” sobre o qual vivemos cegos. Se pensarmos em termos de vantagens, talvez não seja frutífero ter em mente a vida inteira, o todo do que podemos fazer com o tempo que dispomos, pois não há certeza sobre o que virá. Porém, sem pensar no todo da vida, que é o tempo que temos para viver, talvez fique difícil orientar-se dentro dela. Sem sabermos do nosso tempo, estamos perdidos de nós mesmos, sem futuro. A dimensão do tempo é mais que psicológica e metafísica, ela é também prática. Põe-nos diante de nossa liberdade de decisão, define o destino, ou o tempo, que devemos construir.

 A experiência do tempo pode ser uma experiência de angústia, de que algo desconhecido nos espreita. Só o desejo é a cura desta sensação de opacidade da vida. O desejo não é tormento, mas o caminho para sair dele. Ela não vem do nada. Nasce do tempo experimentado em seu limite, do fato de que há a consciência perturbadora da existência que é a morte. Enquanto esperamos seguimos a “viver um dia de cada vez”. No tempo que é sempre medida, a soma dos dias, compõe o sentido da vida, o valor da eternidade.

OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA

Assim como damos “limites” às crianças para que possam orientar seus desejos, seus quereres e poderes, nós, mesmo adultos, deveríamos nos reorientar no nosso limite com a vida, a que chamamos tempo. O tempo, todavia, não é a mera duração da vida. A duração é só o tempo do relógio, ela se parece mais com o espaço que percorrem os ponteiros no mostrador. Nosso modo de compreender o tempo é o que nos orienta na vida: o tempo do trabalho, o tempo do lazer, o tempo do conhecimento, do amor, o tempo interior, o tempo domesticado pela vida orientada e administrada que vivemos. O tempo é um radar que nos ensina aonde ir, nossas urgências, os caminhos que precisamos escolher diante da impossibilidade de seguir todos.

 A frase sobre o dia a dia a ser vivido de um em um, nos serve de antídoto quando vivemos esta frustração tão específica que é a do tempo que não aprendemos a experimentar em seus dois pólos, o do todo fora de nós (a família, a sociedade, a história, o planeta) e o do que se elabora em nossa interioridade. De um lado, vivemos o nosso tempo pessoal, o tempo de cada individualidade, de cada um que experimenta seu corpo, seu sentimento, medos, anseios, possibilidades, e sua noção de morte. O tempo individual é sempre o tempo da insegurança. Buscamos os outros: filhos, maridos, amigos, trabalho, para participarmos do tempo coletivo onde, ao partilharmos a insegurança com as demais individualidades, a eliminamos. Para tudo isso é preciso sempre muita atenção sobre o que estamos vivendo.

A AVAREZA DO TEMPO

Por outro lado, todos aqueles que sabem o valor do tempo, costumam pensá-lo em analogia com o dinheiro: tempo é dinheiro. Quem dispensa tempo, dispensa dinheiro ou, em termos mais técnicos, dispensa lucro. Mas o que é o lucro senão a vantagem que temos em relação aos outros, ao trabalho, à vida? O lucro é um “a mais”, mas a vida não vai nos dar mais tempo. Logo, tempo não é necessariamente dinheiro, mas justamente o que nos logra se a vida não foi bem vivida. Se o avaro economiza dinheiro, quem economizar tempo não poderá ser avarento, a rigor, o tempo é algo que sempre se multiplica. O tempo se multiplica na generosidade. É uma questão de organização. O desejo só surge como mensagem na garrafa àquele que entendeu a função de seu tempo próprio no tempo coletivo.

Fonte:
Revista Vida Simples. Janeiro de 2007. Ed. 49. P. 56-57.
http://www.marciatiburi.com.br/textos/odesejodotempo.htm

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Júlia Lopes de Almeida (A Caolha)

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.

O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora…

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas… os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo – o filho da caolha.

Aquilo exasperava-o; respondia sempre:

– Eu tenho nome!

Os outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!

As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

– Taí, isso é para o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:

– Filho da caolha, filho da caolha!

O Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:

– Sou muito feliz… o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.

Ao princípio pensava: – É o pudor.

Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora da caolha, ou coisa semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!

Depois o seu rancor se voltou para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente…

Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor…

Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.

A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de… uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
– Limpe a cara, mãe…

Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:

– Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

– Foi uma doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!

– E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

– Porque não vale a pena; nada se remedeia…

– Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja… já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa… É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.

A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:

– Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!

O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.

Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cabaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.

Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

– Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!

– Que verdade, madrinha?

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas… Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.

A madrinha do Antonico começou logo:

– O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!

– Cala-te! – murmurou com voz apagada a caolha.

– Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

– Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:

– Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!

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Vássia Silveira (Pássaros Nasceram para Voar)

O mundo sempre me pareceu um grande mistério. Lembro que ainda pequena, eu devia ter uns seis ou sete anos, vi minha irmã mais velha abater um passarinho para depois, com a ajuda de alguns amigos, dissecá-lo como a um sapo de laboratório familiar. Não arrisco explicar, aos olhos daquela menina, todo o sentimento que a cena lhe trouxe. Mas desconfio que deva ter sido algo aterrador, pois desde então, e observe que já se passaram muitos anos, passei a sentir a vida como uma eterna sucessão de enganos. Eu não cabia na família, na escola, no trabalho e, de resto, nem em mim mesma.

De início, achavam que se tratava apenas de timidez. Depois, os suores nas mãos e o silêncio que podia durar uma festa inteira, passou a ser visto pelos outros como arrogância. ‘Sofia, você precisa aprender a controlar suas emoções’, diziam-me os amigos mais próximos. No meio em que convivia, tornei-me o laboratório ideal para as frustrações alheias. E de tanto ouvir conselhos e repreendas, acabei por ter a sensação de que me dissecavam como àquele passarinho morto por minha irmã.

Primeiro arrancaram-me as pernas. Disseram-me que elas não me levavam na direção correta e que, portanto, não me eram úteis. Em seguida, analisaram e descartaram, um a um, os componentes desse pobre corpo. Foi quando descobri que ao invés de músculos, eu possuía raízes que se entrelaçavam e que pareciam expressar as mais longínquas memórias. E que no lugar de sangue, meus corredores vertiam um líquido gelatinoso e branco, uma seiva de vida que encerra um susto qualquer.

A simples idéia de que tal segredo pudesse vir a ser desvendado por algum de meus perscrutadores, congelava-me a alma. Pobre de mim. Como se não bastasse ter emprestado a esse mundo pernas, bocas e gestos aceitáveis, tinha ainda que esforçar-me para trocar com o ambiente externo, sentimentos corriqueiros, enxaquecas plausíveis, preocupações banais e um choro compreensível aqui e acolá.

Foi agarrada a essa indiscutível certeza que procurei encenar, neste grande palco, um medíocre, porém razoável, papel. Fiz-me mulher e deixei que rasgassem, dentro de mim, as mais finas veias. Como um acrobata, lancei-me em mãos e teias de palavras vilipendiosas. Deixei-me sugar até a última gota e derramei intranqüilas lágrimas em lençóis que nunca envelheciam. Ao final de cada espetáculo, retornava sozinha para o camarim. E ali ficava, ora imóvel — perturbada pelas ondas que me engoliam na mansidão do nada —, ora debatendo-me nas paredes invisíveis que me serviam de prisão.

Com o tempo, desisti de procurar aceitação. Percebi que de alguma forma não merecia ser amada, nem tampouco compreendida. Agarrei-me aos galhos que cresciam silenciosamente em meu mundo, adubando, no frescor das noites insones, algumas poucas lembranças que me pudessem ser úteis. Deixei que transbordasse nas veias partidas pelos inúmeros erros que cometi, aquilo que outrora era líquido e que não sei por qual motivo específico, tornara-se uma gosma pegajosa. Na solidão e na ausência, preguei em cada parede um retrato do que poderia ter sido minha existência e lancei-me aos ventos, experimentando a liberdade do pássaro que desconhece o momento exato da morte. E é feliz por existir na inocência de que está sempre pronto para o abate.

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Vássia Silveira nasceu em Belém (PA), em 1971. É jornalista, mãe de Clara e Anaís e autora do site “Ana e suas mulheres”. Foi editora da revista “outraspalavras”, no Acre. Atualmente mora em Fortaleza e tem textos publicados nos sites Cronópios e Bestiário, entre outros. Assina também o blog “Gavetas e Janelas”. Em julho de 2007 lançou seu primeiro livro, “Braboletas e Ciúminsetos” (literatura infantil), pela Editora Letras Brasileiras, com ilustrações de Marcelo Vaz.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_vassia_passaros.asp

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Yara Maria Camillo (Noite de Gala)

Passa da uma da manhã. A Missa do Galo foi longa e a fila para beijar os pés do Menino Jesus estende-se, procissão para além do pátio, até a esquina da Rua Glicério.

A Menina arregala os olhos para tudo: esta sua Noite de Gala. Delicia-se com o Hosana das Filhas de Maria e o presépio junto ao altar, onde chegará para beijar os pés do Deus feito Menino.

Não a incomoda, como às vezes ocorre, a mão esquecida da mãe sobre a sua, nem o ajuntamento, nem o olhar do “tio” que, meio-rude-meio-terno, afasta-lhe a outra mão que estava a explorar o nariz meio chato, nariz que é a primeira coisa que ela sente ao acordar, porque a avó o aperta de leve, todas as manhãs, . afilando-o para que assuma a forma do nariz materno, para que perca a qualidade esborrachada, herança do pai, herança de negro. Apenas, a avó, nesse obstinado ato de esculpir um novo nariz, se esquece de arrebitar-lhe a ponta, de modo que com o passar dos anos ele se tomará afilado, sim, mas ligeiramente adunco.

—TIra a mão do nariz — diz o “tio”. — É feio.

Ela consente. Peçam-lhe o que quiserem.

A fila anda mais rápido.

— Beijem o Deus Menino e deixem para rezar em volta do presépio; não vamos retardar a fila — adverte o Padre Romano, que a Menina acha muito bonito, assim, vestido de branco.

A poucos passos do altar a mãe se abaixa e avisa:

— Não encoste a boca no Menino Jesus. Beije de longe, que é a mesma coisa.

…Coisa que a Menina não obedece, porque tomada pelo Adeste Fidelis, porque feliz. Sabe que na volta a mãe e o “tio” Rodrigues serão os primeiros a entrar no kitchenette, sabe que ficará na portaria esperando, junto com a avó, enquanto os dois vão ver se os presentes já chegaram.

Sabe e não tem pressa, prolonga com delícia o gozo próximo.

Se a mãe a viu beijar de verdade os pés do Menino, se a viu encostar a boca onde todos encostam, fingiu que não.

A noite é sereno na volta, os quatro dobram a esquina da Rua Oscar Cintra, a Menina de mãos dadas com a avó, e entram no Edifício Ouro Branco.

A mãe passa altiva pelas louras oxigenadas e um marinheiro, todos aglomerados na portaria, tomando champanhe barato com o zelador. Passa altiva, braços dados com o “tio”, que assume ares de carranca.

A avó, soltando a Menina, senta-se no banco de madeira, junto à árvore de Natal, armada perto dos elevadores.

A Menina acha bonitas aquelas moças decotadas, de cabelos cor de ouro; sorri de volta aos sorrisos, e também para o marinheiro Rosalvo, que uma vez lhe deu um chinezinho de louça, pelado.

— Eu queria ser bonita como a Nina — ela disse, um dia, à mãe, que comentou com o “tio” a urgência de sair daquele prédio, “antes que a Menina cresça e comece a entender”.

Também agora a Menina queria ser Nina, a mais loura, a mais linda; queria ser Rosalvo, que a abraça.

O “tio” volta pelo corredor e avisa que os presentes chegaram. Estabanada ante o gozo iminente, a Menina dispara corredor afora, escorrega no capacho para deslumbrar-se com os jogos, a boneca, uma xícara com desenhos de flores, um vestido amarelo, tanta coisa, um carrossel com cinco cavalinhos que giram como no Parque Xangai.

Foi-se a surpresa, nada mais a esperar. A Menina sabe que agora virá o guaraná e avelã e amêndoas, sabe que virá o sono e então o dia, os dias.

Mas a noite acontece em outro tom: a avó se levanta da mesa e se apóia na guarda da cama, arfante, a mãe atrás. A Menina quer ir para as duas, o “tio” avisa que fique onde está.

— Rodrigues, corre aqui.

O “tio” se ergue, depois de repetir a ordem.

— Acode aqui, Rodrigues.

Não é a primeira vez da avó doente.

— Um táxi. Chama um táxi.

A Menina se agita. Ela pode ajudar? Não pode, e termina o guaraná que de repente perdeu o gosto. Com quem a deixarão dessa vez, se a vizinha, Dona Laura, viajou?

Demora.

A avó respira com dificuldade, dói só de olhar.

Demora.

A mãe reza, lamenta-se, “linda, a minha mãe”, pensa a Menina.

Demora.

O “tio” volta, o táxi chegou. A Menina segue os três pelo corredor, a porta ficou aberta.

Na portaria, as mulheres e o marinheiro correm a ajudar. A mãe chama o zelador para pedir que fique com a filha, desiste ao vê-lo cambaleante e solícito.

Com quem deixar a Menina?

— Você fica — o “tio” propõe à Mãe, que não responde, apenas olha todas aquelas pessoas coloridas, não tem muito tempo, a avó arqueja.

– Se o problema é a Menina, pode deixar que eu tomo conta —diz Nina. — Deixe comigo… Senhora.

A mãe, altivez pejada, assente:

— Obrigada… Nina.

— Por nada… Senhora.

A Menina quer juntar a alegria de ficar com Nina a essa hora triste dos seus, da avó que parece um brinquedo quebrado, assim, encolhida.

A mãe avisa a Nina que a porta do kitchenette ficou aberta, agradece, olha a filha, sai. O táxi contorna a praça, entra na contramão na Rua Helena Zerrener e desaparece. Chuvisca.

A sós com tantos ídolos, a Menina quer rir.

— A tal pensa que tem o rei na barriga — ouve Nina dizer. — Grande senhora ela é, só porque tem um caso permanente.

As mulheres brincam com a Menina, inesperada boneca. Uma delas passa-lhe batom. Rosalvo, o marinheiro, promete-lhe uma tiara. De que cor? Azul. Você gosta de azul?

Gosta, a Menina diz que sim. A avó doente vai virando uma dor longínqua, com gosto de ontem; a alegria do agora vai contagiando a Menina, que não sente medo, como quando fica com Dona Laura, que logo a põe na cama e apaga a luz.

Nina deixa que ela experimente o champanhe, um gole só. A Menina quer… E adora.

O tempo não passa, de tão novo. É um olhar demoradamente para cada mulher, brincos, golas, saias, relógios, meias, é um gostar demais do uniforme azul-marinho de Rosalvo. Timidamente, a Menina aponta-lhe o quepe:

— “Seu” Rosalvo, deixa eu ver seu chapéu?

É bom que todos sorriam com ela, o centro, o miolo da flor cujo pólen é inteiro e somente para Nina, que se despede dos outros e, tomando a mão da Menina, pergunta cadê a chave.

— A porta ficou aberta.

— É mesmo.

A mão conducente de Nina é um suave caminho.

— Então é aqui que você mora? Que chique!

Nina é toda sorrisos, a Menina deslumbra-se mil vezes, mostra os presentes, oferece avelãs e amêndoas e nozes. As duas comem e brincam e riem e tudo parece assim, diferente.

— Agora, cama.

— Não.

— Já, gracinha.

O tempo se apaga, a Menina acorda e vê Nina sentada aos pés da cama, fumando, olhando. A luz acesa.

— Mamãe não voltou ainda, meu bem. Pode dormir de novo, que a Nina está aqui com você.

— Nina?

— Que é?

— Eu suei.

— Você o quê?

— Suei.

— Você… — Dos cabelos louros de Nina, que se abaixa para descobri-Ia, exala um perfume forte.

— Deixa eu ver… Ah, você fez pipi. Levanta daí.

Em pé, na cama, a Menina apóia-se na mulher, que lhe tira o vestido e a calcinha.

— Vamos trocar de roupa.

— Erguendo-a nos braços, leva-a até o bidê. — Senta aí pra eu te lavar. Veja se a água está muito fria… Muito fria?

— Não.

— Bom. Então… Pronto.

A toalha não é tão macia quanto as mãos de Nina.

— Agora me diga onde estão suas roupas.

— Ali — a Menina aponta a cômoda.

— Vem.

Nina a coloca em pé sobre o colchão e abre a primeira gaveta.

— Nina, você foi na Missa do Galo beijar o Menino Jesus?

— Você é meu Menino Jesus, benzinho.

Risos. Nina encontra uma camiseta, uma calcinha:

— Tá bom assim?

— Tá.

— Deixa eu te vestir. Dá o pé, louro.

A Menina obedece e enlaça Nina, aspira com deleite o perfume dos cabelos claros. A mulher a aperta contra si. A Menina não quer soltar-se nunca mais.

— Você é meu Menino Jesus — Nina repete, repelindo-a com doçura.

— Jura?

— Juro.

—  Você é linda, Nina. Linda como a Nossa Senhora.

— Não fala assim, gracinha. É pecado.

A Menina se atira no colo que ainda quer rejeitá-la, mas não consegue. E é como se algo nascesse, na noite sem idades.

O marinheiro Rosalvo bate levemente e entra. Com os olhos, Nina lhe pede silêncio. A Menina está quase dormindo. Rosalvo toca o ombro da mulher, deixa que a mão escorregue até os seios. Nina o repele com um tapa. A Menina se mexe um pouco, depois se abandona. Rosalvo volta a apoiar a mão no ombro de Nina, perguntando-se que bicho a terá mordido. Mas não ousa outro gesto e apenas fica ali, imóvel, olhando e olhando.

Num quintal da Rua Tabatingüera, o primeiro galo canta.
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Yara Maria Camillo (1957) nasceu e mora em São Paulo, capital. Escritora, diretora e atriz, desde cedo freqüentou a biblioteca próxima a sua casa, na Vila Buarque. É formada em Comunicações, com especialização em Cinema, pela Faculdade Armando Álvares Penteado – FAAP. 

Fonte:
“Hiatos”, RG –  Editores – S. Paulo, 2004. in http://www.releituras.com/ne_ymcamillo_noite.asp

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Efigênia Coutinho (Mulher Mãe e Futura Avó)

Eu vou vendo na face da terra muitos animais errabundos, são aves, peixes, quadrúpedes. Vejo o bailado das andorinhas fenderem o céu atravessando o Oceano infinito. E vi o alcião nunca repousar as asas cansadas, suspensas sempre entre o azul do céu e o azul do grande mar. Sei também que os peixes passam dum a outro mar, e que as baleias viajam dum a outro pólo. Mas nenhuma espécie destas, vive uma vida como nós os seres humanos.

Talvez eu tenha ânsia em procurar para minha vida, um sentido mais alegre, como se eu fosse um peixe, pois procuro mais a fonte que a terra, e onde ela esta se não se espelha na onda, afigura-se que está morta toda a natureza humana. Procuro a água, amiga minha, ao pé das geleiras, onde gota a gota, estilando entre os granitos, vai beijando os macios musgos e miosótis azuis.

Murmuram, ou antes balbuciavam aquela água palreira, como os sons duma criança que aprende a falar. Provei desta água, e achei-a doce como mel, continuei minha busca, desci da geleira pela encosta dos montes, e arroios, regatos e torrentes me encantavam as alegrias da água criança tornada menina.

Bebi sedenta daquela água, e achei-a mais doce ainda. Os regatos e as torrentes desciam sempre, desciam todos, procurando no leito dos rios, não sei dizer o que, talvez o puro Amor, para o qual correm com ânsia fadigosa todas as criaturas vivas. Continuei a descer os rios, que correm um após outros com fúria crescente. Provei todas essas águas, e eram sempre adocicadas.

A água criança havia-se tornado menina, e depois uma mulher, e um tempo depois uma MÃE. Todas essas águas são doces, porque são lágrimas espremidas dos olhos duma mulher Mãe, das que Amam e são Amadas, das que bendizem ao bom Deus pela vida vivida. E regatos palreiros, e torrentes ruidosas, e rios murmurantes desta vida, tem pouca água, visto como as alegrias duma Mãe que vai vendo a vida nascendo noutro ser, e o poder sublimado de Deus em ser Avó.

Fontes:
A Autora

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Libia Carciofetti (Os Amigos São…)

Glicinia
Libia Beatriz Carciofetti é natural de Argentina.

(tradução por J. Feldman)

Os amigos são como o “cachecol” que me teceu minha mãe … Tão quente e macio! para conservar o seu perfume, embora ela não esteja comigo.

São os caramelos de menta que tenho sempre em minha mesa de cabeceira, no caso de eu ter uma tosse à noite, estendo o meu braço e costumo sentir o “barulhinho” do papel celofane ao desenrolar-los, já me acaricia a garganta ..

Os amigos são os “sapatos” que conservo escondido por ali… e quando eu provei pela primeira vez dei-me conta que eu estava usando uma luva …

São as “figurinhas” brilhantes que jogava no playground com cara ou coroa, e ganhava e as acomodava entre as páginas do meu livro bem passadas… e não queria perdê-las.

Os amigos são como os “kinder ovos” que papai me trazia porque sabia que toda a noite eu estive pensando “qual seria a surpresa que traria consigo? sem importar se eu comer a cobertura.

São como o “lenço” no bolso da roupa ou avental, pois se me resfrio …dobrado em triângulo com pontinha tecida por minha avó.

Os amigos são como o “cartão postal” de aniversário que me enviou meu pai. Porque trabalhava muito longe e não podia estar quando eu fiz 5 anos.

São como as “meias” de lã com as quais “patinava” no assoalho da casa sem raspar.

Os amigos são como o “chocolate” quente nas tardes de inverno, que nos alegra o dia… pois com seu calor nos aquece até a alma.

São como o “cofrinho” que nunca se enche, porque sempre que precisamos de “ajuda financeira” sem ser visto abrimos e tiramos moedas.

Os amigos são como as “canetas” que às vezes não escrevem e devemos esfregar o cartucho, aquecê-los para continuar escrevendo.

São como a mascote que sempre nos recebe ao entrar em casa e faz palhaçadas para nós a percebamos.

Os amigos são o “oásis” no deserto da vida, sempre tem algo para nos dar, e quando são verdadeiros, nunca nos censuram, nem pedem nada em troca.

Eles são como as “flores” que adornam os jardins, deleitando os olhos e perfumando a todos que passam.

Meus amigos são como um bando de “glicinas”, minha flor favorita … cada flor ligada a um galho e todas formam um ramalhete… se … se … meus amigos são isso, um buquê de florzinhas perfumadas, que no muro de minha vida se vão misturando e me afogando em amor e ternura … São de sexos diferentes, raças diferentes, idades diferentes, culturas diferentes …

São como as velas de aniversário que se sopra para apaga-las, mas elas continuam brilhando.

E hoje o mundo comemora o dia do amigo, eu agradeço a Deus, porque graças a Ele, compreendi o verdadeiro significado da amizade … e por me amar tanto, me deu até seu filho, o único que tinha … e disse em sua palavra que eu sou sua amiga se eu fizer o que ele quer … para servir e amá-lo …

Não é uma bênção ser amigo de Deus?

Obrigado, amigos queridos, por perfumar minha vida com sua amizade!

Fonte:
Texto enviado pela autora no Dia do Amigo

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Argentina

Teresa Lopes (Doutora Saladina – Bruxa para Todos os Males)

Para a Margarida e para a Pilar, sem outro sentir que não o do bem-me-quer.

Toda a gente sabe, ou se não sabe devia saber, que os reinos das bruxas e das fadas existem bem perto de nós. Só quem tem coração de pedra é que os não vê.

Ora num desses reinos havia uma bruxinha que, desde muito pequena, se habituara a brincar ao esconde-esconde com uma pequena fada do reino vizinho.

Isto acontecia porque, claro está, nenhuma das famílias tinha conhecimento de tal facto insólito.

Encontravam-se as duas nos limites dos respectivos reinos, escondidas entre os carvalhos e os abetos que serviam de fronteira. Era um regalo vê-las juntas, como se este mundo fosse um só: a fada sempre vestida de cor-de-rosa, asas de tule a esvoaçar ao vento e uma varinha de condão que era a prova incontestável de que ela era realmente uma fada.

A bruxinha, essa vestia sempre de negro, uma túnica que quase lhe chegava aos pés e um chapéu de alto bico que, dada a sua tenra idade, lhe tombava para o lado, sem, porém, nunca lhe ter caído.

Cavalgava, não uma vassoura de piaçaba, mas um modelo mais recente, semi-a-jacto, que seus pais lhe haviam dado pelo seu último aniversário.

Saladina, a bruxa, e Gilda, a fada, voavam por entre as árvores sem lhes tocar, faziam piruetas de sobe-e-desce, e passavam tangentes às corujas e às andorinhas sem nunca, mas nunca, terem tido o menor acidente.

Quando, porém, chegou o dia de frequentarem as respectivas escolas, cada uma seguiu o seu caminho e o tempo para as brincadeiras acabou-se para tristeza de ambas. E nunca mais Saladina viu Gilda. E nunca mais Gilda viu Saladina.

Os anos foram passando, no calendário das bruxas e das fadas, que por acaso é o mesmo, até que um dia Saladina completou o décimo segundo ano e teve de escolher uma profissão: queria ser doutora, mas doutora-médica.

Os pais pasmaram com tamanha pretensão.

.Que bruxa és tu, minha filha! . dizia o pai.

.Querer ser médica? . interrogava-se a mãe.

.Mas, afinal, tu és uma bruxa ou uma fada? . questionavam ambos.

Saladina estremeceu. Será que alguém tinha descoberto o seu segredo de há tantos anos? Que seria feito de Gilda? Não, não era possível. Além de tudo isso ela tinha a certeza que era uma bruxa de pele e osso e ninguém conseguiria demovê-la de seus intentos.

E assim foi. Entre o choro da mãe e o olhar reprovador do pai, lá seguiu para a Grande Escola de Medicina que ficava no reino dos humanos, pois no país das bruxas só havia a Escola Superior de Feitiços e de Magia.

Para trás ficou a túnica negra, o chapéu alto e a vassoura semi-a-jacto. Ficou também a mágoa não só da família, mas de toda a comunidade, que estas notícias espalham-se depressa e ferem a honra. Sim, que as bruxas também têm honra!

Depressa acabou Saladina o seu curso. Aluna brilhante, nunca reprovou nenhum ano e quando se viu com o diploma na mão, não cabia em si de felicidade. Só havia um problema: que fazer agora? Como iriam seus pais recebê-la?

Quando bateu de mansinho à porta de sua casa, o nº 13 da Rua da Assombração, o seu coração de bruxa, pela primeira vez, fraquejou. E, apesar de a terem deixado entrar, logo sentiu que a sua atitude não fora perdoada.

.És a vergonha das bruxas! . disse-lhe o pai. . Mas és feitiço do meu feitiço. Podes ficar nesta casa, embora sejas pouco digna das teias de aranha que te cobrem a cama.

Foi neste ambiente que Saladina se aventurou a abrir o seu consultório. Tudo a rigor, como aprendera com os humanos. À entrada, um letreiro que dizia:

DRª SALADINA
Médica Para Todos Os Males

Pouca sorte tinha esta nossa amiguinha. Ninguém lhe batia à porta, nem ninguém lhe marcava uma consulta que fosse. Nem uma assistente conseguira arranjar.

Resolveu, então, na esperança de aparecer alguma emergência, mudar-se de vez para o seu consultório. Ali dormia, ali comia e ali ia espreitando pelas cortinas esfarrapadas da janela, na ânsia de que alguém necessitasse da sua prestimosa sabedoria.

Ora, uma bela noite de lua nova, estando Saladina a contemplar as constelações, apercebeu-se de grande alvoroço no céu. Luzes para aqui, luzes para acolá e um pó dourado que se espalhava por todo o lado. De repente começa a ouvir gritinhos de todas as bruxas e bruxos que deambulavam pela rua e que tombavam no chão como cerejas maduras.

Saladina não pensou duas vezes: toca a recolher os doentes no seu consultório. Os que ainda se conseguiam manter de pé, entravam a correr, tamanha era a sua aflição. Queriam lá saber se ela era a Drª Saladina! Só queriam cura para doença tão súbita e estranha.

Saladina teve necessidade de se concentrar. Sim, porque havia já algum tempo que não praticava. Curou as feridas que viu, ligou os entorses como muito bem aprendera e esperou que os doentes acordassem. Nada. Não acontecia nada. Então Saladina, sem perceber como, ergueu os braços e começou a praguejar:

Afasta-te pó de fada,
Renego teu perfume já.
Xô, xô, penugem de tule,
Abracadabra, já está!

Como por magia, todos acordaram. Quando se aperceberam de quem os tinha salvo, nem queriam acreditar. Muito a medo, lá foram agradecendo à doutora-médica. E envergonhados, saíam fazendo vénias, sem ousar voltar as costas!

Nos jornais do dia seguinte, a nossa amiga era figura de destaque. Que tinha sido corajosa enfrentando aquela epidemia misteriosa. Que até os bruxos mágicos haviam recorrido aos seus serviços.

E nos televisores a notícia repetia-se constantemente, em emissões de última hora.

Quem não entendia muito bem este fenómeno era a própria Saladina, que ainda hoje está para saber como lhe foram sair tais palavras da boca.

O que ela também não sabe é que, naquele dia, os Serviços Secretos do Reino das Bruxas tinham registado uma invasão do seu espaço aéreo por um pelotão de fadas, comandado por Gilda, mais conhecida no meio da espionagem por Agente Secreto Zero-Zero-Pó-Dourado.

Claro está que este facto não veio nos jornais e permaneceu fechado a setenta chaves no cofre dos segredos da bruxa reinante.

Quando passarem por aquela rua além, aquela logo ali acima, se estiverem atentos, poderão ver a fila de clientes que Saladina tem à porta do consultório.

E talvez, com um pouco de sorte, consigam vislumbrar um vulto cor-de-rosa que esvoaça levemente sobre o edifício para não ser detectado pelos radares do reino.

Quem poderá ser?

Pois se virem tudo isto, não se assustem. É que, bem perto de nós, há o Reino das Bruxas e o Reino das Fadas. E só não os vê quem não quer, ou quem tem coração de pedra.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

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Teresa Lopes (O Sol e a Lua)

ilustração de Sara Costa
Nunca ninguém diria, quando o Sol e a Lua se conheceram, que seria um caso de amor à primeira vista. Mas a verdade é que assim foi.

Ainda o mundo não era mundo e já os dois trocavam olhares de enlevo, já os dois se iluminavam como candeias acesas na escuridão do universo.

Quando, de uma enorme explosão cósmica, a Terra surgiu, logo o Sol e a Lua decidiram velar por aquele pedaço de matéria, que não era mais do que uma massa disforme e sem vida.

O Sol encarregou-se de tratar dos solos. E não tardou que altas montanhas se erguessem, que árvores frondosas enfeitassem os vales e que planícies infindáveis se fizessem perder no olhar.

Depois nasceram as pedras e sempre soube o Sol colocá-las no local preciso: ora no cimo dos montes escarpados, ora dispersas, salpicando o solo fértil das terras planas, até se tornarem areia fina, escondida sob os leitos silenciosos dos rios.

À Lua coube a tarefa de criar as águas. Águas profundas que dividiram grandes pedaços da Terra e águas mais serenas que desciam das montanhas e se alongavam pelas planícies.

Tudo perfeito. Mas acharam, o Sol e a Lua, que alguma coisa faltava naquele mundo à medida. E como sempre se haviam entendido, a novas tarefas se propuseram.

Assim surgiram animais de toda a espécie: grandes, pequenos, uns mais dóceis, outros mais atrevidos, uns que caminhavam pelo chão, outros que se aventuravam pelos ares e ainda outros que só habitavam o reino das águas.

Agora, sim. Todos viviam em harmonia: o mundo do Sol e o mundo da Lua. E eles continuavam cada vez mais enamorados.

O Sol aquecia a Terra e dava-lhe a vida. A Lua embalava-a e dava-lhe sonhos repousantes e noites lindas, tão claras que até pareciam dia.

Mas todas as histórias têm um se não. A certa altura em que Sol e Lua andavam entretidos nas suas tarefas, vislumbraram, bem lá no meio de uma planície, uma espécie de animal que não se lembravam de ter colocado onde quer que fosse.

Não voava, não nadava, nem andava de quatro patas. Pelo contrário, erguia-se como o pescoço de uma girafa e parecia querer ser o rei dos animais.

Decidiram vigiá-lo, não fosse ele perturbar o encanto daquele mundo.

Vigiaram dia e noite, noite e dia, sem interferir. E, ao longo dos séculos, no correr dos milénios, não gostaram do que viram.

– Então que faz ele às árvores que eu ergui? – interrogava-se o Sol.

-E que faz ele das águas que eu pus a correr? – indignava-se a Lua.

De comum acordo combinaram assustá-lo. Mandaram fortes raios de luz sobre a Terra, mas o animal protegeu-se em quantas sombras havia. Mandaram trombas de água infindáveis, mas ele fechou-se no seu covil e de lá não saiu enquanto os rios não voltaram ao normal.

E tudo o que Sol e Lua puderam fazer não foi suficiente para parar aquela espécie, que ainda hoje habita um planeta chamado Terra e de quem diz ser seu legítimo dono.

Vocês já ouviram falar dele?

Pois nunca esse bichinho reparou no trabalho do Sol, nem no labor da Lua. Nem em quanto eles são apaixonados um pelo outro. Nem em quanto eles querem bem a esse planeta perdido na imensidão do Universo.

E é por tudo isto que vos contei, acreditem, que a Lua tem aquele ar sempre tão triste, quando, nas noites em que está cheia, ela nos olha sempre como num queixume.

E é também por causa disso que o Sol por vezes se esconde atrás de nuvens sombrias: vai buscar conforto à Lua e lembrar-lhe, sim, que nunca é de mais lembrar, o quanto ele é apaixonado por ela.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

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Tereza Lopes (O Soldadinho de Saco às Costas)

Para o João Pedro,
que nunca prove o gosto do inimigo.

Tolentino Esteves da Silva nasceu, por assim dizer, soldado.

Na noite em que veio ao mundo, seu pai logo profetizou: um rapagão assim só pode servir nosso mestre e nossa pátria.

Não podiam ser para ele os rebanhos que a família guardava havia séculos, nem o amanho da terra que a alimentava. Destino maior teria Tolentino e assim estava decidido.

Quando completou dezoito anos, o pai mandou-o inscrever-se no exército, conforme prometera à sua nascença. E poucos meses volvidos chegou a carta que mandava Tolentino apresentar-se no quartel mais próximo. A mãe juntou-lhe alguma roupa, um pedaço de presunto, meia dúzia de chouriças, um naco de pão e enfiou tudo num saco. Lágrima de mãe no canto do olho, disse-lhe que fosse em paz e pediu-lhe que nunca se esquecesse dela.

O pai, esse estava orgulhoso.

Tinha, finalmente, chegado o dia de mostrar àquela aldeia, que ficava nos confins da serra, que dali também partiam homens guerreiros, como sempre ouvira dizer que tinham sido seus antepassados.

Por isso ninguém lhe viu uma lágrima que fosse, embora elas estivessem todas a correr para dentro do peito e a magoarem-lhe a alma.

Dois dias e duas noites foi quanto Tolentino levou a chegar ao quartel. Apresentou-se, deram-lhe uma farda, uma arma, um número para pôr ao pescoço e disseram-lhe:

– Tens que obedecer aos teus superiores. Fazer tudo que te mandam, ouviste bem?

– Sim, senhor, que bem ouvira e que bem entendera. Que tudo faria a gosto de suas senhorias. Pois não era para isso que ali estava?

Depressa passou o tempo da recruta. Tolentino, bem mandado e forte como era, foi considerado um dos melhores. E que orgulhoso que ele estava. Não podia esperar mais pela hora de ir para a guerra, lutar contra o inimigo.

– Onde está ele, meu capitão? Onde fica a guerra, meu sargento? Quero ver a cara desse malandro já, meu cabo!

Os três entreolharam-se, admirados. Tanto empenho e tanta dedicação daquele soldado durante a recruta deviam ter-lhe afetado o pensar. E depois de uns segundos de silêncio, disse o capitão a Tolentino:

– A guerra acabou, bom homem. Tu, bravo soldado, mataste o inimigo.

– Mas como, se nunca eu vi a cara do safado?!

– Pois tu não sabes como o inimigo era esperto? Como ele se escondia atrás de cada colina por onde andaste? Entre os barcos que alvejavas escondido no pinhal? No meio das nuvens para onde descarregavas a tua arma?

Ainda incrédulo, Tolentino teve de se render às evidências. E, sempre bem mandado, lá arrumou o seu saco, pô-lo às costas e regressou a casa, bem no alto de uma serra, não sem antes ter feito um pequeno desvio.

Foi dia de festa quando o avistaram. A mãe deu-lhe um grande abraço, o pai, esse fez-se de forte e para que todos da aldeia ouvissem, perguntou-lhe:

– Então, meu filho, que tal a guerra? Que é do inimigo?

– Saiba meu pai e toda esta gente, para vosso descanso, que a guerra acabou e que o inimigo jaz no campo de batalha. E fui eu, Tolentino Esteves da Silva, que pus fim a tudo. Assim disseram o meu capitão, o meu sargento e o meu cabo.

Todos pasmaram com tamanha bravura e logo quiseram saber pormenores.

Tolentino tirou o saco das costas, meteu a mão com muito cuidado por um pequeno orifício da abertura e mostrou para que vissem bem e nunca mais esquecessem:

– Aqui está um pedaço de erva de uma colina onde o inimigo se escondia. Esta madeira são restos de um barco que afundei.

E abrindo completamente o saco, soltou-se no ar um nevoeiro espesso e húmido que a todos assustou.

– Não temais, sossegou Tolentino, neste pedaço de nuvem jazem em pó os restos mortais do último inimigo deste país.

O nevoeiro dispersou-se no ar e quanto mais subia mais os habitantes da aldeia erguiam as suas cabeças.

O silêncio pesava quando Tolentino Esteves da Silva juntou a erva e o pedaço de madeira e os meteu de novo no saco. Pegando na enxada de seu pai começou a subir o monte e, voltando-se para todos, esclareceu:

– Vou ao pico mais alto da serra enterrar estes despojos da guerra. Nunca vi a cara do inimigo, mas também ele merece paz e descanso. Amanhã, meu pai,… amanhã tratamos da sementeira. Amanhã.

E continuou a subida, curvado, como se no saco que sentia tão pesado, estivessem os restos mortais do feroz inimigo que ele nunca vira e que tanto atormentara o sono merecido da gente daquelas paragens.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

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Teresa Lopes (A Abóbora Menina)

Para a Inês,
que também um dia voará.

Brotara do solo fecundo de um quintal enorme, de uma semente que mestre Crisolindo comprara na venda. Despontava por entre uns pés de couve e mais algumas abóboras, umas suas irmãs, outras suas parentes mais afastadas.

Tratada com o devido esmero, adubada à maneira, depressa cresceu e se tornou em bela moçoila, roliça e corada.

Os dias corriam serenos. Enquanto o sol brilhava, tudo era calma naquele quintal. Sombra dos pés de couve, rega a horas devidas, nada parecia faltar para que todos fossem felizes.

As suas conversas eram banais: falavam do tempo, de mestre Crisolindo e nunca, mas nunca, do futuro que os aguardava.

Mas Abóbora Menina, em vez de se dar por satisfeita com a vida que lhe havia sido reservada, vivia entristecida e os seus dias e as suas noites eram passados a suspirar.

Desde muito cedo que a sua atenção se virara para as borboletas de cores mil que bailavam sobre o quintal. E sempre que alguma pousava perto de si, a conversa não era outra se não esta:

– Dizei-me, menina borboleta, como fazeis para voar?

– Ora, menina abóbora, que quereis que vos diga? Primeiro fui ovo quase invisível, depois fui crisálida e depois, olhe, depois alguém me pôs estas asas e assim voei.

– Como eu queria ser como vós e poder sair daqui, ver outros quintais.

– Que me conste, vós fostes semente e vosso berço jaz debaixo desta terra negra e quente. Nunca por aí andámos, minhas irmãs e eu.

A borboleta levantava voo e Abóbora Menina suspirava. E suspirava. E de nada serviam os consolos de suas irmãs, nem o consolo dos pés de couve, nem o consolo dos pés de alface que cresciam ali perto e que todas as conversas ouviam.

Certo dia passou por aqueles lados uma borboleta mais viajada e foi pousar mesmo em cima da abóbora. De novo a mesma conversa, os mesmos suspiros.

Tanta pena causou a abóbora à borboleta, que esta acabou por lhe confessar:

– Já que tamanho é vosso desejo de voar e dado que asas nunca podereis vir a ter, só vos resta uma solução: deixai-vos levar pelo vento sul, que não tarda nada aí estará.

– Mas como? Não vedes que sou roliça? Não vedes que tenho engordado desde que deixei de ser semente?

E a borboleta explicou à Abóbora Menina o que ela devia fazer.

A única solução seria cortar com o forte laço que a ligava àquela terra-mãe e deixar-se levar pelo vento.

Ele não tardaria, pois umas nuvens suas conhecidas assim lhe haviam garantido. Mais adiantou a borboleta que daria uma palavrinha ao tal vento, por sinal seu amigo e aconselhou todos os outros habitantes do quintal a segurarem-se bem quando ele chegasse.

Ninguém gostou da ideia à exceção da nossa menina.

– Vamos perder-te! – lamentavam-se as irmãs.

– Nunca mais te veremos. – sussurravam os pés de alface.

– Acabarás por mirrar se te desprendes do solo que te deu sustento.

Mas a abóbora nada mais queria ouvir. E logo nessa noite, quando todos dormiam, Abóbora Menina tanto se rebolou no chão, tantos esticões deu ao cordão que lhe dera vida, que acabou por se soltar e assim permaneceu, liberta, aguardando o vento sul com todos os sonhos que uma abóbora ainda menina pode ter na sua cabeça.

Não esperou muito, a Abóbora Menina. Dois dias passados, logo pela manhãzinha, o vento chegou. E com tal força, que a todos surpreendeu.

Mestre Crisolindo pegou na enxada e resguardou-se em casa. As flores e as hortaliças, já prevenidas, agarraram-se ainda mais à terra.

Só a abóbora se alegrou e, peito rosado aberto à tempestade, aguardou paciente a sorte que a esperava.

Quando um remoinho de vento pegou nela e a ergueu nos ares, qual balão liberto das mãos de um menino, não sentiu nem medo, nem pena de partir.

– Adeus, minhas irmãs!… Adeus, meus companheiros!…

– Até… um… dia!…

E voou direitinha ao céu sem fim!…

Para onde seguiu? Ninguém sabe.

Onde foi parar? Ninguém imagina.

Mas todos sabem, naquele quintal, que dali partiu, numa bela tarde de vento, a abóbora menina mais feliz que algum dia poderá haver.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

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Sara Gaspar Pedro (“Vila de Rei – Rostos e Olhares” / Elisa Moniz (1990))

Capítulo 1

Passo os dias, imóvel, junto à janela, a tentar observar, de olhos semi cerrados. Hoje, uma criança brinca lá fora e tenta, com grande esforço, colocar o seu papagaio a voar. Não sei quem ela será, provavelmente a neta de algum dos anciãos que me acompanham nesta casa. Gostava de me aproximar, correr com ela, como teria feito muito anos antes com os meus irmãos.

Já conheço o mundo há oitenta e nove longas Primaveras, mas o tempo não foi simpático comigo. Hoje, quando acordei, tentei ver-me, através da branquidão que se vai apoderando do meu olhar, e não me reconheci. O meu rosto, repleto de marcas profundas mostram uma vaga ideia do que fui. As minhas mãos, marcadas pelo tempo, têm constantemente aquele aspecto de quem passou demasiado tempo debaixo de água.

Durante muito tempo fui considerada a rapariga mais bonita da aldeia de Fernandaires. O meu cabelo avermelhado, igual ao do meu pai, dava nas vistas, em especial durante o pôr-do-sol, em que parecia brilhar. Eu e os meus irmãos costumávamos mergulhar todos os dias no rio Zêzere e saíamos a tempo para observar o entardecer. A Maria era a mais velha, como tal, era quem tomava conta de todos nós. Passado um mês da minha irmã ter nascido, a minha mãe tinha engravidado novamente. O meu pai desejava ardentemente um rapaz, para que o ajudasse nos campos e na casa, e ficou radiante quando 9 meses depois recebeu dois: o Luís e o Pedro.

A minha mãe descrevia aquela noite como uma das mais assustadoras da sua vida. Estava a chover torrencialmente, a trovoada rebentava no céu e até o rio parecia zangado! Assim que se ouviram os primeiros trovões, as dores começaram, e a parteira não havia forma de chegar. As Fernandaires não eram um local fácil de aceder, pior ainda naquelas condições. As dores iam aumentando e chegaram a um ponto tal que o meu pai foi obrigado a ajudar a minha mãe a trazer ao mundo o Luís. Ela falava com carinho da cara de felicidade do meu pai quando viu o rapaz. Era pequeno mas chorava com força: “Vai ter garra este rapaz!”. Assim que disse estas palavras, a minha mãe voltou a gritar de dores, sem conseguir compreender porquê. Por momentos achou que ia morrer. Foi nesta altura que chegou a parteira, completamente encharcada e enlameada. E minutos depois nasceu o Pedro.

Enquanto cresciam, os meus irmãos eram exactamente iguais, tanto no aspecto como em tudo o que faziam, quase como se tivessem feito um pacto no ventre da minha mãe de se revezarem em tudo. Havia alturas que trocavam de lugares, sem que ninguém se apercebesse. Por mais que a minha mãe tentasse vestir-lhes roupas diferentes, de modo a conseguir distingui-los, eles arranjavam sempre forma de a confundir. Quando nasci, eles tinham apenas um ano, e já eram as crianças mais irrequietas que se tinham visto naquela pequena aldeia.

Visitaram-me há pouco tempo. Incrivelmente, mesmo na velhice, continuam iguais um ao outro. Mais que isso, conseguiram manter aquele sorriso matreiro que sempre os caracterizou. Fui sempre a sua protegida, mesmo agora, cada vez que os vejo, o meu coração sossega e acabo sempre por sorrir na sua companhia.

Capítulo 2

As dores nas minhas costas, assim como a curvatura que já as caracteriza há uns anos são marcas de todos aqueles anos que passei a ajudar o meu pai, com uma enxada na mão, dobrada, a apanhar todos os alimentos que saiam da terra. Desde muito cedo fui habituada a trabalhar com os meus irmãos nas hortas que tínhamos em volta da casa e nas margens do rio, onde as terras eram mais férteis. O meu pai cultivava tudo o que conseguia e ia todos os Domingos, ainda o sol não tinha nascido, para Vila de Rei, para vender os seus produtos no mercado.

Adorava tudo acerca do mercado: os cheiros, as pessoas, as cores, tudo. No entanto, era cada vez mais difícil vender e as terras, apesar de férteis, quantos mais anos passavam, menos frutos pareciam dar. A minha mãe, ajudava todos os Sábados a limpar as frutas e legumes, e a escolher aqueles que se iriam levar para o mercado. Os que tinham pior aspecto, ficavam sempre connosco e a minha mãe esforçava-se para fazer o que conseguia com o que sobrava. Nos piores dias, comíamos apenas uma batata cada um. Com sorte, os meus irmãos tinham pescado qualquer coisa, ou o meu pai tinha ganho o suficiente para comprar um pedaço de carne para alimentar toda a família.

Hoje relembro esses dias com nostalgia. Eram dias duros, em que se trabalhava estivesse sol, chuva, frio ou calor. Mas toda a família estava reunida, todos tínhamos um propósito e trabalhávamos para um fim. Ao final do dia, toda a família se banhava no rio, e todos sorríamos, satisfeitos com aquilo que tínhamos alcançado naquele dia.

Os gémeos costumavam fazer um jogo, em que ambos mergulhavam mas apenas um vinha à superfície, e nós tínhamos que adivinhar qual dos dois é que aparecia. Quando eram mais velhos e fazia bom tempo, costumavam percorrer o rio e ficar a pescar durante horas. No início a minha mãe ficou muito nervosa, com receio que algo de mal lhes acontecesse, mas rapidamente se convenceu com as iguarias que traziam para a nossa mesa.

Eu e a minha irmã Maria, acompanhávamos a minha mãe em tudo o que ela fazia. Rapidamente aprendemos a cozinhar, limpar e cozer, tudo o que uma boa senhora deveria saber. A minha irmã era, no entanto, muito mais habilidosa do que eu, e muito mais dedicada também. Eu tinha o hábito de desaparecer para explorar os terrenos em volta da casa. Gostava de descobrir os sítios mais recônditos e marcá-los com o meu nome, numa árvore da minha preferência. O meu nome era a única coisa que conseguia escrever, até ter começado a acompanhar o meu pai ao mercado. Rapidamente aprendi a matemática necessária, e as contas pareciam-me bastante óbvias. A escrita, nem tanto, mas todos os Domingos, a professora Amélia, da escola de Vila de Rei, ensinava-me, com a sua paciência, aquilo que conseguia. Seguia, de manhã, com o meu pai e ajudavam nas contas e em tudo o que fosse necessário. Ia ter com a professora Amélia às 2 da tarde, onde limpava a sua casa o mais depressa e o melhor que podia, para que depois ela me desse a lição. Praticava sozinha durante a semana e apresentava os resultados no fim-de-semana seguinte.

Tinha 8 anos quando recebi o meu primeiro livro, mas lê-lo não foi tarefa fácil. Era um catecismo, já com alguma idade e páginas amarelecidas. As letras eram pequenas e as palavras inúmeras, mas passado algumas semanas já sabia cada palavra de cor. Ainda o tenho guardado numa caixa debaixo da minha cama aqui no Lar. É das poucas coisas que guardo do meu pai, que quase chorou por lamentar não conseguir dar-me mais do que aquilo. Fui eu que tratei de ensinar tudo o que aprendia aos meus irmãos, o que não era tarefa fácil, mesmo sendo eles mais velhos que eu. A única escola que havia era longe e nós não tínhamos forma de nos deslocar até lá e os meus pais precisavam de nós.

Apesar de todas as dificuldades, recordo com carinho o pôr-do-sol no rio, as águas frescas, todos aqueles recantos com “Anita” escrito nas árvores… Deveria ter regressado antes que as cataratas me tivessem impedido de ver com clareza.

Capítulo 3

Em cima da minha mesa-de-cabeceira tenho uma fotografia antiga da minha família. Foi tirada antes que o meu irmão Mário tivesse nascido e antes do dia em que a minha família se começou a dividir.

Deveria ter 8 anos quando o meu tio Alberto nos veio visitar. Chegou num carro amarelo berrante, que foi a novidade do dia na aldeia. Vinha vestido com um fato bege e com uma bela gravata. Estava na Alemanha há muitos anos, e ao que parecia tinha vingado no mundo dos negócios. Foi uma noite animada, com muito vinho à mistura. Acho que nunca tinha visto o meu pai ficar com o nariz tão vermelho, mas a verdade é que já fazia dez anos que não via o irmão. Já era bastante tarde quando fomos para os nossos quartos. Os gémeos tinham bebido vinho e estavam a ressonar muito alto no quarto ao lado, apesar disso eu parecia ser a única que não conseguia dormir.

Dirigi-me para a cozinha, queria beber um copo de leite com mel, que mesmo na velhice sempre me ajudou a adormecer. Quando descia as escadas ouvi vozes no andar de baixo. Lembro-me da conversa como se fosse hoje:

“- A vida está cada vez mais difícil por aqui… A minha mulher acha que está grávida outra vez e eu não sei como vou conseguir alimentar mais uma boca. – dizia o meu pai.

– Então, deixa-me levar um dos teus filhos comigo. A vida corre-me bem, mas a Madalena não consegue gerar um filho para nós. Moramos numa zona simpática e temos uma boa vida, mas ninguém para a partilhar. Talvez a tua mais nova… – nesta altura o meu coração deu um salto. Aquilo que menos queria era ir para longe da minha família.

– Não, a Anita é óptima com as contas e já não me imagino no mercado sem ela. E não posso separar os gémeos, acho que nenhum deles sobreviveria.

– A Maria então. Prometo que a deixo bem casada e bem na vida!

– Tenho de falar com a mulher primeiro… Confio que cuides bem dela, mas é difícil deixar ir assim um filho meu. Amanhã falamos melhor sobre o assunto, preciso de pensar.”

Voltei a correr para a cama, a tremer e com suores frios, só de pensar que poderia ter de ir, de partir para tão longe, separar-me da realidade que conheço e adoro. Não há nada como o cheiro da manhã, o som dos pinheiros quando passa aquela brisa suave, a frescura da água, tão próxima, tão fresca.

Dois dias depois o meu pai anunciava que a Maria ia partir com o tio Alberto para Munique, na Alemanha. A minha mãe chorava silenciosamente e todos nós olhávamos a Maria com pesar. Tinha escolhido não lhe dizer nada, não adiantava assustá-la se nada fosse realmente acontecer. Mas agora era tudo real, ela ia partir e eu não conseguia abandonar a sensação que nunca mais a iria ver, o que acabou por acontecer.

A última imagem que tenho dela, é aquele carro amarelo a partir, com o cabelo avermelhado que caracteriza a nossa família, a brilhar ao sol, enquanto nos acena através da janela do carro, tentando esconder as lágrimas e o medo de partir com para um país novo, com um tio que mal conhecia. Foi o início do fim.

Capítulo 4

Uma das meninas que trabalha aqui no Lar da Fundada, costuma ler para mim. Acho que ela nem percebe como isso me faz feliz e infeliz ao mesmo tempo. O meu sorriso, que aparece ligeiro nos momentos felizes da história, mal transparece na minha face enrugada e sem expressão.

Durante muito tempo, a leitura foi a minha paixão, e cada livro um pequeno tesouro. Passei a minha vida a tentar ler tudo o que conseguia arranjar e adorava. Cada vez que a minha irmã nos enviava uma carta, eu lia-a e relia-a vezes sem conta. Era a única forma de me sentir mais próxima dela. Entretanto, o meu irmão Mário nasceu. Era uma criança calma e recatada, que admirava os irmãos mais velhos como se fossem deuses. Costumava vê-los a desaparecer rio abaixo, com as suas canas de pesca e desejava secretamente segui-los. Uma vez ainda o apanhei a tentar e consegui impedilo. Infelizmente, não o vi naquela tarde.

Estava um dia fantástico, solarengo e com aquela brisa que caracteriza os dias de Verão na zona do Pinhal. Os meus irmãos tinham ido à Vila com os meus pais e eu tinha ficado sozinha com o Mário. Depois de fazer as tarefas que a minha mãe me tinha deixado, peguei num livro que uma senhora da escola do Abrunheiro me tinha dado quando a visitei, e estava distraída a lê-lo à beira do rio. Hoje já não me lembro do que tratava, mas lembro-me do pânico que se apoderou de mim quando olhei à minha volta e não vi o meu irmão em lado nenhum. De repente, ouço uma rapariga a gritar, junto ao leito do rio e a pedir ajuda! Foi aí que vi que qualquer coisa contrastava com a água à sua volta, muito perto de onde se encontrava a rapariga que ainda não tinha parado de gritar. Não sei quanto tempo demorei a perceber o que se passava, mas para mim aqueles segundos pareceram horas. Atirei-me à água e lutei com as pedras do fundo para chegar o mais depressa possível onde estava o corpo do meu irmão pequenino a boiar nas águas claras do Zêzere. Trouxe-o o mais depressa que pude para a margem, mas nesse momento, fiquei sem saber o que fazer. Não conseguia gritar, nem chorar, só olhava para aquele corpo branco, sem vida… Como era possível que aquilo tivesse acontecido? Foram segundos, simples segundos de uma vida que mudaram tudo. Ainda hoje me pergunto como é que tudo se passou. Lembro-me de ver os meus pais a surgir ao longe, na sua carroça e aí começo a chorar. Não me lembro do que aconteceu depois, quase como se tivessem apagado da minha memória qualquer memória do que se passou. Nunca consegui ultrapassar aquele dia, chorei durante semanas e nesse tempo decidi que não iria ter filhos, não poderia deixar que o mesmo acontecesse outra vez, não suportaria a dor.

Uns meses depois, a minha mãe ficou gravemente doente, com febres e dores que ninguém conseguia explicar. Mas eu sabia! Era dor, a dor tão profunda de saber que o filho tinha morrido antes da mãe, não era natural. Pouco depois de a minha mãe ter caído neste estado sem razão ou cura, recebemos uma carta da Maria, a sua última carta, trazida à mão por um rapaz que transportava madeira através da fronteira, e tinha percorrido muito até nos encontrar.

Segundo o que a Maria explicava, o meu tio tinha vingado na vida, quando se juntou aos judeus influentes, ricos e poderosos do país. Com a ascensão de Hitler ao poder, todos eles estavam a ser perseguidos e tiveram de fugir. Não sabia quando poderia voltar a escrever ou se o voltaria a fazer. Mandou-nos o seu amor e a sua saudade, com a sua doce assinatura no final da carta, esborratada provavelmente pelas lágrimas. Quando li ao meu pai o conteúdo da carta, conseguia ver o carregar do seu olhar a cada palavra, e as lágrimas no seu olhar quando terminei. Aquele olhar acompanhou-me ao longo de toda a minha vida. Decidimos não contar à minha mãe, mas, a verdade é que não precisávamos porque as mães têm o poder de sentir a dor dos filhos. A cada dia, a sua condição piorava até ao dia em que o seu frágil corpo não aguentou mais e simplesmente adormeceu para um sono eterno.

Capítulo 5

Tento observar as pessoas à minha volta, as senhoras que me fazem a cama, que me trazem a comida, todas as pessoas que partilhavam a mesa comigo. Muitos comiam devagar, como se fosse um desafio enorme levar a colher com a sopa do prato até à boca. Outros, como eu, não conseguiam comer sozinhos. Eu observava mas não via, nada era nítido, apenas vultos e cores. Não conseguia distinguir caras, mesmo que estivessem muito perto dos meus olhos. Assim, a minha vida tornou-se um jogo de sombras. No entanto, era menos sombrio do que a altura da minha vida em que passei casada com o Marco.

Tinha 19 anos quando me apaixonei perdidamente e saí de casa. Entretanto os meus irmãos tinham partido juntos para Lisboa, e eu tinha ficado sozinha com o meu pai, que pareceu ter envelhecido 40 anos depois de a minha mãe ter partido.

Conheci o Marco quando passeava pelos meus recantos privados e ele estava num deles. Tinha montado uma espécie de acampamento com dois amigos, para se dedicarem à caça. Estava encostado a uma das árvores com a minha marca, e observavaa com curiosidade. Eu não estava à espera que alguém estivesse ali, pelo que não foi difícil que ele reparasse rapidamente em mim. Trocámos algumas palavras e rapidamente me senti levada por aquele rapaz grande e forte, mas com uma voz doce e olhos cor de mel. Ele seguiu o meu olhar que se dirigia para o nome que estava escrito na árvore e apenas disse: “Anita?” Eu acenei com a cabeça.“Não sabia que mais alguém conhecia estes lados. Sou o Marco. Prazer em conhecê-la, exploradora Anita.” E foi assim que ele me arrancou o meu primeiro sorriso.

Depois desse encontro, encontrávamo-nos quase todos os dias, sempre à beira do Zêzere. Levou-me a conhecer Vila de Rei, as cascatas de Penedo Furado, os Poios, as igrejas, as aldeias mais lindas. Eu mostrei-lhe todos os meus segredos, todos os espaços e todos os locais que considerava como meus santuários. Costumávamos ir a todas as festas que havia nas aldeias ao lado, e dançávamos, muitas vezes até de madrugada. Passado alguns meses, pediu-me em casamento e mudámo-nos para o Vale da Urra.

Inicialmente tudo correu bem e o amor continuou a dominar as nossas vidas. No entanto, a mesma discussão parecia surgir quando menos se esperava: ele queria filhos e eu não. Com o passar do tempo, a discussão passou a ser cada vez mais frequente e violenta. Num dia, como outro qualquer, a discussão surgiu naturalmente como nos outros dias, mas o final foi bastante diferente. Começou com uma estalada nesse dia, seguida de um grande pedido de desculpas e lágrimas. No entanto, cada semana piorava, e eu ficava cada vez mais magoada. Cheguei a um ponto que deixei de falar, não valia a pena dizer uma palavra. Eu sentia-me envergonhada, toda eu estava vermelha tal como os meus cabelos.

Apesar de tudo, continuámos a passear, e a manter a ilusão que estava tudo bem. Relembro quando apanhámos o meu pai e fomos ver a inauguração da barragem do Castelo do Bode. Não foi uma altura muito feliz para o meu pai. Com a construção da barragem ele tinha perdido todos os terrenos onde tinha as suas plantações nas Fernandaires. Quando perdeu o trabalho da sua vida, pareceu perder o seu sentido. Enquanto via o Salazar no topo da barragem, a celebrar o sucesso da sua construção, ouvia-o a rogar-lhe todas as pragas que se lembrou. Pouco tempo depois, faleceu, sentado à entrada de casa, a olhar para o rio e para aquilo que antes tinha sido o seu trabalho e a sua vida.

Após toda a minha família ter desaparecido da zona, as coisas com o Marco pioraram. Foi um amigo da minha família, o tio Elias, que me salvou daquele que poderia ter sido o meu último dia. Costumava passar no Vale da Urra para entregar o pão, tal como fazia nas Fernandaires, onde o meu pai acabava sempre por dar um cesto com fruta e vegetais para a sua família. Acabaram por ficar amigos, e várias vezes iam para as adegas um do outro. Segundo o que ele me disse depois, o meu pai tinha-o feito prometer que tomaria conta de mim quando ele já não estivesse por este mundo para me ajudar. Como tal, cada vez que passava com a sua carrinha abrandava e certificava-se que estava tudo bem. Naquele dia, percebeu que qualquer coisa não estava certa. Quando viu o Marco subir as escadas e entrar, percebeu que ele não estava no seu estado normal. Ouviu o som seco quando caí no chão após um murro no estômago. Depois, aconteceu tudo muito rapidamente: ele entrou, atacou-o, pegou no meu corpo inconsciente, meteu-me na carrinha e levou-me para casa dele, enquanto o Marco ainda estava demasiado confuso para perceber o que tinha acontecido.

Acabei por ficar em casa do Elias, na Fundada, onde encontrei naquele corpo franzino de olhos verdes, mais que um amigo mas um segundo pai. Nunca mais pensei em voltar para o Marco, apesar de ele ainda ter feito algumas tentativas. Demorei alguns meses a voltar a falar, e quando o fiz, a minha garganta estava seca e roufenha da falta de uso. A primeira coisa que disse foi: “Obrigada”.

Ele tratou-me como a filha que nunca teve e não poderia ter pois a esposa dele tinha falecido há alguns anos. Passámos muitos e bons anos juntos, em que ele me ensinou tudo o que havia para saber acerca da padaria e acabou por me deixar o negócio. No entanto, a idade acabou por levá-lo de mim com um sorriso nos lábios. Nas suas últimas palavras ele disse-me: “Graças a ti, vivi os melhores aos da minha vida. Obrigada.”

Pouco depois disso, recebi uma carta dos meus irmãos, a contar-me como estavam felizes. O Luís já tinha arranjado uma namorada e o Pedro estava noivo. Junto com a carta vinha um convite para o casamento deles, que seria dai a dois meses. Durante muito tempo não recebi notícias dos meus irmãos. Estavam ambos envolvidos em movimentos anti-fascitas, e o facto de serem gémeos permitiu que se livrassem de várias situações de perigo, pois conseguiam arranjar um alibi infalível. Apenas tiveram a sua liberdade após o 25 de Abril, no qual se destacaram sendo chamados para altos postos
na polícia.

Finalmente, tudo começava a encaixar e tinha voltado a sorrir.

Capitulo 6

Hoje o meu sobrinho João veio visitar-me. Disse-me que ainda se lembrava do cheiro do pão e dos bolos que costumava fazer na padaria com o tio Elias, e que tinha saudades das minhas aventuras culinárias que nem sempre corriam bem.

Ao contrário de mim, os meus irmãos vigoravam da terna saúde da idade, e viviam com os filhos e netos mimando-os e contando as suas histórias. Os filhos de ambos os meus irmãos, costumavam vir passar os Verões comigo. Costumava levar os meus sobrinhos a passear no rio, e a conhecer todos os recantos que eram importantes para mim. Fazia jogos e desenhava mapas para ver quem os achava mais depressa. Esses foram os melhores tempos da minha vida.

Quando da sua visita, o João contou-me que tinha remodelado a casa dos avós nas Fernandaires, e que tinha ficado absolutamente fantástica. Agora, os seus filhos poderiam ir para lá brincar no Verão e crescer com memórias do rio, que tanto marcou também a sua infância.

Naquele dia, o meu sobrinho trouxe o filho, um bebé com um ano. E apesar de não lhe conseguir distinguir bem as formas, disse-lhe que era lindo. Só poderia ser. Sempre considerei um acto de coragem ser mãe, e ver aquela criança fez o meu coração saltar. Mas ver a felicidade dos meus irmãos ao longo dos anos, dos seus filhos e agora dos seus netos fez-me sentir mais realizada que nunca.

Amava-os a todos com todas as minhas forças, mas isso já não era suficiente para me manter aqui, à espera que chegue a hora em que a misericórdia chegue e me leve em paz deste mundo, muitas vezes cruel. Em retrospectiva, apesar de todas as dificuldades que passei, nunca escolheria viver longe da minha terra, longe das águas do Zêzere.

Diz-se que na velhice se encontra a sabedoria, o que não deixa de ser verdade, mas na realidade é que a experiência e as memórias são tudo o que se tem quando a vitalidade nos começa a abandonar.

Às vezes a luta torna-se cruel, e nessa noite, não quis lutar mais. A minha vida foi completa, cheia de momentos de dor mas também vivi momentos intensos de pura felicidade. As marcas do meu rosto mostram cada desafio, cada prova que passei. O meu olhar, cada vez mais claro como o sol da manhã, impede-me de ver o que há no mundo lá fora. Talvez já tenha visto aquilo que tinha para ver nesta vida e o meu corpo não tenha mais espaço para memórias.

A menina que costuma ler para mim, passou pelo meu quarto depois de jantar.

– Quer que comece a ler outro livro para adormecer?

– Amanhã, quem sabe, amanhã…

Fonte:
Município Vila de Rei

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Portugal

Marina Colassanti (Palavras Aladas)

Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia gostar. Qualquer ruído, dizia, era faca em seus ouvidos.

Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro.

Agora sim, nenhum som entrava no castelo. O mundo podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das sedas.

– Ouçam que preciosidade – dizia o rei. E toda a corte se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.

Mas, se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta, Pois, se ainda era possível escapar às paredes. nada os libertava da redoma.

Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores, E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma galinha.

Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei.

Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.

Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno vôo. Algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos delicado “não” de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.

De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sonhos, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o mordomo real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.

Foi portanto por acaso que o rei passou diante de um desses cômodos. E passando ouviu um: murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E, inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.

A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.

– Que se abram as portas! – gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.

– Que se abram as portas! – correu o grito da sala ao salão, da escada ao jardim, muro acima, até esbarrar na cúpula de vidro, e voltar, batendo no queixo majestoso.

– Que se derrube a redoma! – lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. – Que se abatam os muros!

E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopéias, discursos e recados, e ao longe – maritacas – um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof…[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 – (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

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Sylvia Ortoff (Se as Coisas fossem Mães)

Se a lua fosse mãe, seria mãe das estrelas, o céu seria sua casa, casa das estrelas belas.Se a sereia fosse mãe, seria mãe dos peixinhos,O mar seria um jardim e os barcos seus caminhos.Se a casa fosse mãe, seria a mãe das janelas,Conversaria com a lua sobre as crianças estrelas,Falaria de receitas, pastéis de vento, quindins,Emprestaria a cozinha pra lua fazer pudins!Se a terra fosse mãe,seria a mãe das sementes, pois mãe é tudo que abraça, acha graça e ama a gente.

Se uma fada fosse mãe, seria mãe da alegria. Toda mãe é um pouco fada…

Nossa mãe fada seria.

Se uma bruxa fosse mãe, seria mamãe gozada: Seria mãe das vassouras, da família vassourada! Se a chaleira fosse mãe, seria mãe da água fervida,Faria chá e remédio para as doenças da vida. Se a mesa fosse mãe, as filhas sendo cadeiras, sentariam comportadas, teriam “boas maneiras”. Cada mãe é diferente: mãe verdadeira, ou postiça, mãe vovó e mãe titia, Maria, Filó, Francisca, Gertrudes, Malvina, Alice, toda mãe é como eu disse. Dona Mamãe ralha e beija, erra, acerta, arruma a mesa, cozinha, escreve, trabalha fora, ri, esquece,
lembra e chora, traz remédio e sobremesa…

Tem até pai que é “tipo mãe”… Esse então é uma beleza!

Fonte:
Se as coisas fossem mães, Sylvia Orthof, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Estado do Rio de Janeiro

Sylvia Orthof (Bruzundunga da Silva)

Cada livro tem uma história… mas este livro que você está começando a ler é um livro diferente. A começar pelo nome: Bruzundunga da Silva.

Você quer saber quem é Bruzundunga da Silva? Eu vou contar, só pra você, a vida dele. Bruzundunga nasceu numa casa em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Nasceu numa tarde de muito calor, no dia 6 de fevereiro de 1985. A mãe do livro, a escritora que o escreveu, ficou logo aflita quando Bruzundunga chegou neste mundo. Porque Bruzundunga chegou, olhou em volta… e ficou encharcado.

– Eu não sabia que livro chorava, eu não sabia! – disse a escritora, buscando um lenço para enxugar os olhos do seu filho-livro. – Por que você está chorando, hein? – perguntou pra ele.

– É que eu sou um livro, já nasci sabendo o que me espera.

Nasci, olhei aí para os meus irmãos-livros da sua estante, mamãe… buá, buá… eles estão com um ar tão sofrido! A mãe do livro entendeu o filho, botou no colo, ninou.

Bruzundunga foi crescendo: completou a primeira página.

Para comemorar um aniversário tão importante, a Dona Mãe de Bruzundunga fez uma festa, com bolo de letras, teatro de fantoches, bolas de soprar. O tio, Dicionário de Inglês, veio muito importante e cantou o “Parabéns”, dizendo “Happy Birthday to You”.

Mas, de repente… Bruzundunga pulou no colo da tia Enciclopédia e recomeçou a chorar:

– Buá, Buá!

– O que foi, filho meu? Mas o que será que aconteceu? perguntou a Dona Mamãe de Bruzundunga.

– Não sei, mãe… é uma aflição… tenho medo… medo… medo…

– Medo de fantasmas? – perguntou um livro de Hisórias de Botar Cabelo Em Pé, dando um susto em Bruzundunga, pois veio voando, vestido de lençol.

– Ui, ui… que susto, buá, buá! – berrou o livro.

Mamãe Dona Mãe de Bruzundunga não entendia o motivo da aflição de seu filho. Mas mesmo assim o compreendia, porque tentava entender, mas não entendia, entende? Não? Nem eu. Só sei que era assim.

O livro Bruzundunga cresceu, completou as páginas necessárias para ir ao encontro da luta pela vida. Cresceu meio magrela, sempre dando umas choradinhas. A Dona Mãe de Bruzundunga, ao contrário, nervosa com o nervosismo do filho, desatou a comer farofa com caldo de feijão. Era só o livro-filho demonstrar um nervosinho, Dona Mãe de Bruzundunga corria pra cozinha e desatava a comer, pra ficar calma. O livro ficou magrela, a Dona Mãe, ao contrário, já estava da grossura do NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, por parte de pai, e de …E O VENTO LEVOU, por parte de mãe.

São livros gordíssimos, talvez porque tenham tido problemas e tenham começado a devorar feijão com farofa, sei lá!

Bruzundunga da Silva, enfim, nervosérrimo, foi para a luta pela vida, fora do escritório da mamãe. Ainda não estava bem com jeito de livro, tinha palavras risxxx, quero dizer, riscaxxxx, ora, tinha riscos e xxxxx, remendos…

enfim, era ainda um papel, ou melhor, várias folhas de papel, com cópias de papel carbono, devidamente numeradas e grampeadas.

Bruzundunga foi posto num envelope. A Dona Mãe de Bruzundunga escreveu o nome da editora no tal envelope e enviou as cópias das páginas escritas, aquelas que tinham sido copiadas com carbono.

A editora ficava em São Paulo. Bruzundunga iria pelo correio, lá do Largo do Machado, que é um correio que fica numa praça que tem de tudo: tem trinta e nove mil pombos, uma igreja, um buraco de metrô, bancos com namorados, desquitados, divorciados e amigos em geral. Tem também crianças, barulho de buzinas… e o tal correio.

Bruzundunga tremia dentro do envelope, chorando baixo. Chorou tanto, que o envelope derreteu, furando, e Bruzundunga fugiu. Logo que Bruzundunga escapuliu, a Dona Mãe de Bruzundunga, muito distraída, foi colocar o envelope no correio, mas jogou-o dentro do buraco do metrô, lá do Largo do Machado. Em vez de selo, Dona Mãe de Bruzundunga havia comprado uma passagem de metrô, que colara, com cuspe, no envelope.

Depois, Dona Mãe de Bruzundunga atravessou a praça, o tal Largo do Machado, para comer feijão com farofa num restaurante da esquina, por nervosismo.

Mãe quando se separa de filho fica assim, geralmente. Tem algumas que ficam aliviadas, dependendo do momento…porque nenhuma pessoa é igual a outra.

Bruzundunga da Silva, livre do seu envelope, que foi enviado de metrô pra não sei onde, ficou assim, fungando, no meio dos pombos do Largo do Machado.

Bruzundunga era branco. Veio um vento, abriu suas páginas… e de repente ele voou junto com os pombos.

Olhando de longe, cá de baixo, ninguém saberia dizer quem era pombo e quem era Bruzundunga. Bruzundunga ficou assustado, vendo a igreja lá embaixo… mas bateu suas asas de papel, voou e gostou.

Foi aí que Bruzundunga conheceu Bernardina, uma pomba roliça, bonitona. Dizem até que Bernardina e Bruzundunga tiveram um caso de amor, um caso rápido, porém lindo: coisa de muita asa e vôo.

A noite chegou. Todos os pombos foram comer milho.

No Largo do Machado tem uma velha, chamada Dona Pipoca, que todas as tardes leva milho para os pombos.

Bruzundunga, achando que era pombo, viu os pombos comerem milho e… nhoc! avançou, também. Mas não conseguiu engolir. Ficou tossindo, tossindo… até que Bernardina deu um tapa nas costas dele. O tapa foitão forte que Bruzundunga subiu, subiu, depois desceu, desceu… e foi planando, planando, até cair dentro de uma coisa escura e quente.

– Ui, ui… buá… buá… – choramingou Bruzundunga.

– Mas é o meu filho! – gritou a mãe, a Dona Mãe de Bruzundunga, pescando o lambuzado filhote de dentro do prato de caldo de feijão. Ela não saíra ainda do restaurante.

– Mãe! – exclamou o filho.

– Filho! – exclamou a mãe.

– Mãezinha queridinha! – reexclamou o filho.

– Filhotinhozinho queridozinho! – reexclamou a mãe.

Os dois, abraçadíssimos, voltaram para casa. As cigarras continuavam a cantar, porque ainda era verão.

Finalmente, depois de muito conversarem, depois de muito choro, feijão e farofa, os dois resolveram que tinham que crescer.

A mãe despediu-se do filho, levou-o para a caixa do correio mesmo.

O envelope tinha uma fralda dentro, que era para o caso de Bruzundunga chorar e evitar que o envelope ficasse molhado e tudo acontecesse de novo.

O editor leu o livro, ou melhor, o editor leu as páginas, fez um contrato com a escritora. Teve um momento em que a escritora pediu mais um dinheirinho, meio envergonhada… mas, afinal, escrever livros era a profissão dela, não é? E tudo ficou combinado.

Bruzundunga ficou conhecendo o ilustrador, que desenhou a história da sua vida. Depois, foi para a gráfica… e saiu assim, livro mesmo.

Aliás, ele virou milhares de exemplares iguais.

Quando ele está numa livraria, todo bonito, exposto para ser vendido, e alguém chega, olha pra ele, gosta e compra… aí, Bruzundunga fica feliz, feliz… e parece até que engorda, pois fica inchado.

Mas tem certas gentes que olham para um exemplar de Bruzundunga, torcem o nariz e dizem:

– Gastar dinheiro com livro? Para quê? Criança lê, depois não liga… É dinheiro jogado fora!

Quando isso acontece, Bruzundunga chora, se desmancha todo: molha a estante, desbota, encharca a livraria.

Vira um problema, dizendo:

– É por causa disso que eu já chorava, quando ainda era um bebê-papel-texto-e-pauta… buá… buá… Os meus irmãos livros, logo que eu nasci, me contaram das dificuldades pelas quais passa um livro… buá… livro sofre!

Quando Bruzundunga completou a segunda edição, aí ele já ficou menos chorão. Olhava bem pra cara das pessoas que não gastavam com livros, mas gastavam com sorvetes e sanduíches.

E quando uma daquelas gentes dizia:

– Comprar livro é besteira… A gente compra um livro para uma criança, depois a criança lê e joga pro lado…

Bruzundunga olhava bem pra cara dessas gentes, botava a língua de fora, fazia uma careta amassada e respondia, malcriado:

– É? É, não é? Quer dizer que livro é besteira, porque a pessoa lê e depois joga para um lado? E sorvete? A pessoa come… e depois? Depois… o que é que acontece com o sorvete e o sanduíche, hein? Depois de comido, digerido… vira o quê, hein? E quer saber de uma coisa? Você não merece livro, tá? Quem quiser gostar de mim, vai gostar de mim… e pode até, de vez em quando, me querer de novo, reler minha história. Falei e disse!

Bruzundunga não queria contar uma história assim, que diz que livro é importante, coisas de moral de história. Ele nem foi escrito para isso… mas é que, sem querer, livro também sente, né? E Bruzundunga resolveu falar bem dele mesmo, porque Bruzundunga resolveu, ora!

Mas neste instante Bruzundunga está inchando de felicidade!

Porque você é legal: gosta de sorvete, sanduíche… e livro… porque, se não gostasse, não ia querer saber de Bruzundunga até aqui, não é mesmo?

E a Dona Mãe de Bruzundunga?

Ela está com medo das críticas sobre Bruzundunga… está nervosa… e come feijão com farofa… e mais feijão com farofa… mas, nos intervalos, lê e escreve, ora! É isso aí.

E Bernardina, a pomba?

Ela não gosta de ler: come pipoca… e descome, come e descome… mas não liga pra livrarias. Sabe por quê?

Bernardina é míope, não usa óculos porque é vaidosa. E, sem óculos, ela só gosta de livro quando pensa que livro é pombo, como aconteceu com Bruzundunga.

Tem pomba que é assim, pombas!

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof…[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 – (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

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Yara Camillo (Duas Vias)

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Ele abriu a porta do carro para que ela entrasse.

 – A velhice dando passagem à juventude?

 – Não: a sabedoria dando vez à pretensão.

 Riram. Era uma brincadeira antiga, da época em que se conheceram: ela, preparando a tese. Ele, o orientador que não chegou a sê-lo… A relação aconteceu e, de comum acordo, decidiram que ela procuraria outro professor. Nem por isso a pressão foi menor. Em muitos olhares, o imediatismo rotulava, sem sursis: veterano-estende-as-asas-sobre-a-novata. E poderia ter sido pior; tivesse a “vítima” alguns anos a menos e o crime estaria consumado, não se podia brincar com essas coisas.

 – A maré do politicamente correto extrapolou, afrontando os limites do bom senso – dizia ele. – Facilite… E até Lolita e Morte em Veneza acabarão queimados em praça pública.

 – Não exagere – dizia ela.

 Ele ria:

 – E a lei contra os Adônis que enfeitiçam os velhinhos? Deveria existir uma, não?

 Ela ria:

 – E qual seria o nome desse crime… Gerofilia?

 – Sim… Muito próprio. – E ele improvisava a premissa: – Não gerofile, para não ser pedofilado. 

 – Proponha esta na próxima reunião e estaremos condenados em duas vias, sem direito a habeas corpus.

 – Falando em habeas…

 – Falando em corpus…

 A brincadeira se repetiu ao longo dos anos, mesmo depois de perder a graça; ela, mais que ele, chamava o riso como tábua de salvação, como refúgio das crises que também se repetiam, indefinidamente.

 Passado o espanto geral, que de roldão consumira também certos encantos, as coisas começaram a se acomodar. Ninguém mais estranhava a parceria, nem a ironia que permeava o enredo natural daquele amor: ela, já não bastasse os muitos anos a menos, aparentava ser tão menina… Para entrar no cinema, só mostrando Identidade que provasse ao menos dezoito, dos vinte e três já completos. Ele, em contrapartida, já aos dezesseis se passava por “maior”, nos bailes e cinemas da cidade interiorana onde nascera. Cabelos precocemente grisalhos e o sagrado costume da cerveja completavam o quadro, adiantavam o tempo e, aos olhares alheios, alongavam mais ainda a distância entre os dois.

 O tempo. O curso. Da universidade e das coisas. E a tese, que não saía nunca.

 – Se você não pode ser meu orientador, então não quero mais ninguém – ela dizia. E se por algum tempo esse argumento surtiu efeito, foi também se desgastando, como tudo, como um todo.

 – Não era isso – ela confessou, numa das raras noites de cerveja que conseguiram a sós, porque a universidade era um mundo que se estendia para além do campus, até o bar, até a casa, até os amigos e tantas horas compartilhadas. – A Dança seria o princípio e, a Geografia, o meio… Sabe? O meio pelo qual a Dança viria a acontecer, sem as amarras das concessões profissionais necessárias à sobrevivência. Mas tudo virou do avesso, a Geografia se espalha e não faço outra coisa a não ser projetos.

 – Não há lugar para dois, com a Geografia. Ou é ela ou é ela, se é que você me entende, e eu às vezes acho que não.

 – Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no tempo e no espaço? Nunca, dirá você.

 – Nunca, tu o disseste.

 – “Salvo quando se amam”, disse o poeta. E se essa verdade não pode harmonizar a Dança e a Geografia, então quero nascer de novo.

 – Você já nasceu tantas vezes, lembra… Ou não, não mais?

 Ela fechou os olhos, fazia isso quando sentia dor ou acusava o golpe, claro, quantas vezes não dissera “acho que nasci de novo”, depois do amor?

 Foi naquele amanhecer que os dois se descobriram de partida, ele para o campus, de corpo e alma, porque aquela era mesmo sua vida, sua escolha, desde antes dela e, com um pouco de sorte, também depois dela – embora no momento ele não soubesse, não tivesse a menor ideia de como faria para sobreviver àquela ausência. E ela enfim para a dança, habeas corpus, habeas anima. Ele, que não acreditava em deuses, acabou maldizendo os desígnios que deram a ela uma bolsa, no ano seguinte, para um estágio fora do país.

 Encontraram-se uma vez, na Europa, mas aquela não valeu: ela estava embriagada demais com a liberdade e ele embriagado demais com a alegria de revê-la.

 Agora, anos depois, um novo reencontro: ele gostou de achá-la, ainda, bela. Gostou de gostar de vê-la, embora a dor.

 – Você ficou bem famoso – ela brincou, recurso que sempre usava para driblar o embaraço. – Ouvi falar, por aí. 

 – E você?

 – Como? Você não ouviu falar de mim?

 Ele ficou sério, um segundo antes do riso. Ela riu, também, e tudo foi como antes, por um instante.

 – Você está dançando?

 – Às vezes. 

 – O que houve?

 – O de sempre. Não sou articulada, não me relaciono com as pessoas “certas”, não me enquadro muito nas coisas. – E imitou o tom de voz que ele usava, quando queria ser categórico: – Se é que você me entende, e eu acho que não.

 Ele riu, de novo, agora sem muita vontade. Ela continuou:

 – Mas eu tinha que ver, não é? Eu precisava ir. E fui bem, por uns tempos… E “ir bem”, ainda que por uns tempos, deixa um gosto de “sempre”, quando se trata de Arte.

 – Isso me lembra aquela sua velha máxima: “A Arte acima de tudo.” 

 – Não – ela responde. E ele vê nisso algo de novo. – Não existe acima, nem medida alguma, nesses casos. Só uma sensação de que as coisas têm um sentido.

 – Isso você podia ter…

 – Você podia. Não eu.

 – Então, perdemos uma geógrafa brilhante… para uma bailarina…

 – Apenas razoável?

 – Eu não disse isso.

 – Claro que disse. Mas não faz mal.

 – Escute, ainda dá tempo.

 – Tempo do que, meu amor?

 – Esse “meu amor” me pegou de surpresa.

 – O que prova que você continua o mesmo… Surpreendendo-se com o óbvio e olhando com cara de velho para o que é realmente novo. Agora me leve daqui para um lugar mais decente, onde se possa tomar um bom vinho.

 – Você também não mudou. E isso, não sei por que, me faz bem.

 – Não era o que você dizia.

 – Não era o que você pedia.

 Ele abre a porta do carro, ela sorri:

 – A velhice dando vez à juventude?

 – Não, o cansaço dando lugar a algo que não quero definir agora.

 – E quem disse que é preciso definir?

 – Temes definhar ao definir?

 – Idiota! – Ela ri. – O fim vai chegar, para nós. Para todos nós. Mas não hoje.

 – Você não vai acreditar, mas isso, para mim, já é alguma coisa.

 “Acredito”, ela quis dizer, mas achou que não seria preciso.

Fonte:
Revista Pesquisa, da FAPESP, em fevereiro de 2011.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, São Paulo

Adriana Lisboa (Quintais)

 Na casa do meu avô, havia quatro quintais.

 No principal, o portão se abria para a rua, e ali ficava a casa propriamente dita, e por cima do muro baixo a gente via as cabeças das pessoas que passavam pela rua, sempre tão devagar. Às vezes vinha dar na varanda o cheiro do rio, um cheiro de pano e de barro. Na garagem descoberta, sobre os cascalhos, dormia a Variant marrom do meu avô.

 À esquerda, separado por um muro com uma passagem, ficava o universo dos abacateiros e o quartinho que o meu avô chamava de Petit Trianon. Nós apanhávamos abacates para fazer boizinhos com palitos de fósforo. O Petit Trianon eu não me lembro para que servia, ficava quase sempre fechado. Mas eu tinha pesadelos com ele.

 À esquerda, separado por outro muro com outra passagem, ficava um universo híbrido em que cabiam orquídeas numa estufa, galinhas, goiabeiras e um pé de romã quase esquecido, lá no fundo, longe de tudo. Era o quintal mais colorido. Uma vez minha irmã caiu de uma goiabeira, a barriga enterrou numa torneira e ela foi parar no hospital.

 À direita do quintal principal, ficava o último, e quase proibido. Havia o muro, mas na passagem tinha um portãozinho baixo de madeira, que às vezes a gente pulava por prazer. Lá só havia mato. Árvores altas, sombras, coisas indizíveis se arrastando junto às raízes, barulhos de insetos que nunca existiram de se ver. Lá fazia calor e férias, invariavelmente, mas também podia cair chuva, e a chuva ficava guardada para os nossos pés no tapete de folhas velhas, de frutos podres, de vermes lentos e moles.

 Os quatro quintais da casa do meu avô arrumaram-se numa bússola, e quando eu pisei pela primeira vez numa caravela fervilhando de adultos, vinha com ela no bolso. Se não como guia, ao menos como amuleto.

Fonte:
Luiz Ruffato (organização). 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, RJ: Editora Record, 2004.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Rio de Janeiro

Irene Coimbra (Roberto, Sebastião e a Feia)

Ela havia acabado de entrar no elevador, quando aquele senhor a olhou, viu-a com três livros nas mãos e disse-lhe:

– Isso é que é gostar de ler!

– Ganhei um agora e os outros dois são meus.

– Você é escritora?

– Sim.

– Posso dar uma olhada?

– Naturalmente. O senhor gosta de ler?

– Muito.

Nesse momento o elevador chegou ao térreo e os dois saíram conversando até a calçada. A seguir se despediram e quando ele já ia atravessar a rua, ela o chamou e disse:

– Algo me diz que devo dar-lhe um livro. Com ele quero passar-lhe minha mensagem: A palavra “impossível” não existe para Deus.

Ele pareceu emocionar-se e disse-lhe:

– Você acertou. Estou com problemas de saúde e precisava ouvir essa mensagem. Muito obrigado. Nunca mais vou esquecê-la.

Ela continuou seu caminho sentindo-se leve, feliz. Ia caminhando e pensando naquele encontro quando sua atenção foi atraída para dois jovens que caminhavam à sua frente.

Eles falavam num tom de voz alto e era impossível deixar de ouvi-los. De repente um deles virou-se para ela e disse:

– A senhora viu que muié feia?

Ela virou-se, instintivamente, mas viu somente as costas da mulher que acabava de passar. Viu que o vestido era muito colorido e que ela usava meias amarelas. Sorriu, mas não disse nada. E o rapaz, animado talvez por aquele sorriso, continuou:

– Num é feia mesmu?

O companheiro retrucou:

– Eu que qui ocê tem cum issu, Robertu?

– Nada. Só sei qui é muitu feia.

– Pára di falá bobêra, rapaiz.

– Pódi sê bobêra, Sebastião, mais qui ela é feia, é.

– Ocê nun sabi de nada, Robertu, é mio calá a boca.

– Nun é mio não. Vô falá até cansá. A muié é feia mesmu.

– Cala boca, rapaiz, ocê nun tem nada ca vida da muié.

– Nun tenhu mais vô falá. Ela é feia.

– Pódi sê feia procê, mais nun devi di sê pru maridu dela.

– Que issu, Sebastião? Caquela feiúra ocê acha qui ela tem maridu? Si tive é purquê u cara tem qui pagá us pecadu du mundu intêru. Si eu acordassi di manhã i vissi uma muié feia daqueli jeitu era capaiz di caí mortu di sustu. Nunca vi feiúra mais feia.

– Oia, ocê tá izageranu, Robertu.

– Quarqué izagêru ainda é pôcu pra feiúra da muié, Sebastião.

Os dois continuaram andando à sua frente enquanto ia ouvindo-os falar. Começou a observá-los. Pareciam dois amigos que acabavam de sair do trabalho. Um vestia macacão azul e o outro, calça e camisa bege. O de bege era o revoltado com a feiúra, e o de macacão, o defensor da feia. Talvez tivessem passado em algum barzinho antes e, agora, levemente embriagados, estavam mais falantes, e por isso, continuavam batendo na mesma tecla.

– Cala a boca, sô. Ocê nun tem nada mió prá falá não?

– Tenhu.

– Intão pára di falá da mardita da muié.

– Nun páru. Tô revortadu caquela muié. Ela é feia dimais da conta. Tenhu vontadi di vortá lá, oiá bem na cara dela i dizê:

– Nossa, mais cumu ocê é feia!

– I u quê ocê ia ganhá cum issu?

– Só u gostinhu di falá.

– Ocê é um besta mesmu, Robertu.

– Besta é a muié di saí na rua caquéla feiúra.

– Oia, ocê já tá mi danu nus nervu cum essa falação. É mio pará di falá.

– Só vô pará quandu chegá nu pontu di ônibus.

– Ah, mardição!

Sentiu que não ia conter o riso e se perguntava como acabaria aquele diálogo.

Finalmente chegaram ao ponto de ônibus onde eles ficaram.

Olhou para eles como se quisesse gravar para sempre aquela imagem e continuou caminhando sozinha. Enquanto isso pensava:

“Por que será que aquele rapaz se sentiu tão agredido pela feiúra da mulher? Será que ela era realmente muito feia? Por que será que muitas pessoas só enxergam o exterior?”

Meditando sobre isso chegou em casa. Foi direto para o computador, escreveu essa história que você acabou de ler e agora lhe pergunta:

– Você também se preocupa muito com o exterior das pessoas?

 Fonte:
Irene Coimbra . “Denúncias Poéticas, Contos e Crônicas”. p. 81. 

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Adélia Prado (Final Feliz)

 E o locutor da festinha continuou empolgado, fazendo bonito pra sua mulher, que deixara, naquela noite, comparecer ao seu trabalho, tendo-lhe adquirido, ele próprio, o convite. … “porque, além de militar reformado da PPMG, é ainda o proprietário do animado Bar Central, o avô da nossa Lesliene, a feliz aniversariante desta noite.” Quando disse “nossa Lesliene”, acreditou desapontado que a mulher não salvava sua inventividade narrativa. Arrependeu-se de tê-la trazido e insistiu com o moço do vídeo para que filmasse mais à esquerda do palco, a mesa da dona da festa. De verdade, queria mesmo é que a mãe de seus filhos não aparecesse no filme; uma mulher que não passava uma sexta-feira sem encher latas e latas de biscoitos e só sabia ir em festa daquele mesmo jeito: saia preta, blusa de seda, por fora, pra disfarçar as ancas e arquinho na cabeça — putisgrila —, desse tinha vários de diversas cores, devia se achar nua sem o arco nos cabelos, logo ele, um homem conhecido, com aquele talento incrível para animar festas. “… agora, senhoras e senhores, o momento tão esperado em que a nossa — olhou de novo pra mulher olhando pra ele embevecida, se esquecendo de ficar em pé —, a nossa festejada Lesliene, a menina-moça da noite, vai apagar as merecidas velinhas.” Ai, será que estava certo dizer “merecidas velinhas”? Achou ótimo ser o locutor e estar dispensado de dançar com a mulher, que não conseguia terminar o pratinho, bebendo guaraná em pequenos goles. Pensou ter sido um erro tê-la trazido à festa. Se sentia desconfortável, inseguro dos adjetivos, querendo tirar a gravata e mostrar pras pessoas o que o roqueiro doidão mostrou durante um show e acabou preso. Gente do céu, o que está acontecendo comigo? Olhou para o avô, da Lesliene. Um filho da mãe, esse “militar reformado” espancador de presos. Nem que a marica estica eu falo mais o nome dele aqui, E essa Lesliene está me saindo uma perua e tanto. Então isto é salto para uma menina de quinze anos? “… e agora, senhores — esqueceu das senhoras —, o Toniquinho do Arlindo vai tocar a valsa que a aniversariante dançará com o pai dela.” Não disse “o talentoso músico Antônio Miranda, filho do nosso popular Zico Miranda, tocará a valsa que Lesliene dançará com o seu progenitor”. Meio escondida por uma coluna do salão, sua mulher ainda não terminara os salgadinhos. Finíssima. Lembrou que ela lhe aconselhara trocar de camisa, “você fica melhor com a de linho creme”. Teve vontade de chorar e ao mesmo tempo sentiu raiva daquele amor paciente e silencioso, capaz de morrer por ele. 

 Foram pra casa calados. Quando se virou pro canto, um homem roubado, ela disse: você fala tão bonito, Raimundo! — Pois você fique sabendo que de hoje em diante não pego mais bico de locução noturna. Já tou cheio disso. Vou reabrir minha oficina que é melhor negócio. — Acho pena, você fala tão bem! — Cremilda, se eu te pedir, você nunca mais põe arquinho no cabelo? Dá pra sua irmã aquele conjunto de saia e blusa? Você me perdoa? Não entendia bem o discurso do marido, estranho naquela noite, mas era uma verdadeira mulher, fez como Nossa Senhora, disse sim ao senhor. E Raimundo fez com ela o que faz um homem competente para deixar feliz sua mulher.

Fonte:
Adélia Prado. Filandras”, Editora Record – Rio de Janeiro, 2001, pág.11.

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Mariana Portela (A Casa da Poesia)

“É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreva, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de Poeta.”
Hilda Hilst em Cascos & Carícias & Outras Crônicas
 Mais um gole de vinho, só mais um, e irei. Um único retoque na palavra difícil de pronunciar. Mais um cigarro, são apenas cinco minutos, no máximo, se eu estivesse calma. Por que me dilaceras assim, poesia maldita, no átomo iminente que divide o papel à minha própria voz?
 Este silêncio, inoportuno, que transita em meus lábios, glaciais. Ah, como o olhar dos outros parece destoar de nossa cândida comunhão! Serei capaz de dizer algo depois de presenciar este estrondoso espetáculo de erros?
 Palavras fazem, pois, cócegas dentro de mim. Invadem a corrente sanguínea até as maçãs da face. Irrompem os medos, taciturnos, exaustos da batalha. A língua percorre os versos, inauditos até então, como se eu fosse uma mera escrava, um instrumento juvenil pelo qual o lirismo pudesse habitar, sem fazer cerimônias.
 As mãos deduram o enervamento dos poros. Trêmulas. Infantes. Não se dão conta de que por detrás dos palcos existem palmas silenciosas, cobertas de coragem ontológica.
 São apenas dois, três, cinco minutos. É tempo bastante para se alcançar a nueza absoluta, não o mero subterfúgio da carne.
 Toda fragilidade é um modo de tocar o mundo, evitando dissolver-se pelos ares ― isso eu aprendi tarde demais. A entrega ao Cosmos nos faz saber quais são nossos verdadeiros contornos. Estamos todos vivenciando nossa intimidade em risco.
 Ainda bem.
 Seria a poética a nudez primeira das linguagens humanas?
 E o planeta um grande manicômio, à espera de médicos que transladem maneiras de apaziguar os incômodos existenciais, intraduzíveis?
 Saraus foram preparados para salvar-nos da lucidez.
Ah, se eu fosse capaz de remontá-los todos, em varais suspensos da memória. Quanta alegria me remetem essas centelhas galácticas de plenitude.
 Reencontrar o devaneio morto.
 Reacender as estranhezas.
 Doar-se ao inusitado.
 Compartilhar o amadorismo, tão mais próximo ao viver.
 Sem ensaios.
 Tudo alimenta e nada faz muito sentido. Uma reunião de pessoas absurdas, obtusas, vaidosas ou plácidas.
 Margens de encostas, avenidas possíveis, andares dispersos. Atalhos inviáveis. E tudo brilhando, vívido, sem realeza alguma. Todos reis, em plena subserviência àquilo que é nítido.
 E a noite se aquieta para ouvir, estupefata, os versos hibernados de um sonhador incompreendido. E a noite se aquieta para projetar os lamentos da menina que sorri, ao confessar o amor que perdeu. E a noite se aquieta para dominar a timidez hesitante do arrogante de plateias.
 As madrugadas apagam os clichês que temes em te pautar, amada poesia.
 Nestes serões, concebidos para ti, nada resta senão a doçura dos gestos, desanuviar das âncoras.
 Plana por estas tardes, germinando o cerne das paixões.
 Enclausura os pavores que sombreiam a reciprocidade.
 Deixa o seio farto de canções inéditas.
 Abençoa minha íris para atender ao insólito.
 Dê a todos os expatriados de quimeras céus excessivamente azuis, como em Lisboa.
 A arte é uma casa que resiste às tempestades da vida ordinária.
 E por isso, imploro a ti: põe raízes nos meus sonhos, para que eu possa vê-los florescer.
Fonte:

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Joana Veiga (Era uma Vez…)

Joana é aluna da 7a. Série do Colégio de Educação Básica de Montes Claros.

Era uma vez 
Um reino distante 
Onde vivia 
Um rei cintilante.

Vivia em paz 
Sem guerras, sem manhas 
Com seus amigos 
E com suas aranhas.

Um dia sua filha desapareceu 
e foi uma grande desgraça; 
O reino andava triste
E sem nenhuma graça.

Então o rei decidiu ir procurá-la:
Levou um pouco de poção
E, sem se esquecer,
Chamou o seu dragão.

Voaram, voaram,
Andaram, andaram, 
até chegarem ao castelo 
Onde vivia um ogre amarelo.

Bateram à porta,
Ninguém abriu;
Bateram novamente 
E nem um pio.

Então decidiu entrar à socapa. 
Bebeu um pouco de poção
E, com a faca na mão,
Começou a sua emboscada.

Subiu à torre mais alta
Onde estava a sua adorada,
Morta no chão
Sem nenhuma arranhão.

Foi à procura do ogre
e encontrou-o no quarto
e no meio daquela bagunça
encontrou um frasco.

O frasco dizia:
“ Cura milagrosa para a morte”.
Teve logo a feliz ideia
Que lhe daria muita sorte!

Foi buscar o frasco,
Muito sorrateiramente
Deu de beber à sua amada 
que acordou de repente.

Assobiou ao dragão
Que já sabia o que fazer:
Levou a rapariga 
Logo ao amanhecer.

Com a força de um gigante
E o coração mais contente
Afirmou que do ogre se iria vingar
Em nome de toda a gente.

Começou a berrar
 até o ogre acordar;
 mal o ogre acordou 
deu-lhe de papar.

O ogre, como era cego, 
Pensava que era um criado;
Mas quando engoliu
Sentiu um arrepio.

O ogre morreu,
Todos os seus criados se libertaram.
O rei voltou para a sua terra,
Onde todos o esperavam.

Já estava tudo bem
Tudo normal
O reino alegre
E excepcional.

Fonte:
Contos de Terror e Imaginação. Escola de Ensino Básico de Montes Claros.

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Elisa Palatnik (Vida de Pediatra Não é Bolinho, Não)

— Alô, dr. Felipe? Pelo amor de Deus, o senhor precisa ver o Dudu. Aqui é Rita, mãe dele.

— Rita? Mas peraí… eu acabei de ver o menino! Vocês acabaram de sair do meu consultório.

— Justamente. Estou aqui no elevador, falando do celular. Tô achando que do consultório até aqui, ele piorou um pouco…

— Mas…

— No décimo andar, ele ainda estava bem. No sexto, comecei a achar um pouco quente. Agora, cheguei no térreo e… ele está pelando!

— Rita, isso é impossível! Eu tirei a temperatura dele há cinco minutos! Você tem que levar ele pra casa, ficar de olho e não esquecer de pingar as três gotas no ouvido…

— Mas “três gotas” é muito vago. O senhor esqueceu de falar o… o tamanho da gota.

— Como assim, o “tamanho da gota”?! Eu sei lá! Gota é tamanho único!

— De forma nenhuma. Tem gotas gordas e gotas magras. Tamanho P, M e G! Mas tudo bem, se o senhor está dizendo que não é importante…

— Então ótimo.

— Peraí, só pra rememorar… são três gotas em cada ouvido, três vezes ao dia. Se ele tem dois ouvidos, são 18 gotas por dia. Durante 20 dias, 360 gotas. Acertei?

— Acertou. Meus parabéns. Até mais ver.

— Um momento! E se acontecer de caírem quatro gotas em vez de três?!

— Qual é o problema?

— Eu é que pergunto! Qual é o problema? Ele pode ficar, sei lá… com alguma seqüela no tímpano? Ficar surdo? Mudo? Gago? Gay?

— Se você não desligar agora, eu vou ficar com seqüelas! Eu!

— Tá, calma… Eu posso pelo menos pedir uma última coisa? Só pra eu ficar tranqüila?

— Ai, Jesus! O quê?

— Deixa eu dar um subidinha aí, rápido. Só pro senhor tirar a temperatura dele uma última vez. Eu… Tá, nem precisa tirar a temperatura, basta olhar pra ele.

— Rita!

— Tá, então eu nem subo. O senhor vê ele pela janela! Já estou aqui com ele, na calçada. Estou levantando no colo, bem alto, pro senhor ver melhor! Só uma olhadinha pela janela…

***
— Alô, dr. Felipe.

— Alôoorg… Rita, são quatro da madrugada. É a sétima vez que você me liga hoje.

— Dessa vez é grave. O Dudu vomitou!

— Claro. Ele está com uma intoxicação. E eu já passei a medicação.

— Mas é que não tá normal… Tá assim com uns grânulos… e com umas cascas… e uns pêlos… acho, inclusive, que tem uma mosca no meio.

— Rita, eu vou desligar.

— Dessa vez é diferente! Juro! A cor, sei lá… Sabe aqueles catálogos de cortina? Pois é, não encontrei nenhuma cor que corresponda…

— Procura num catálogo de estofados que você encontra. Boa noite!

— Mas a aparência está horrível! O senhor tem que dar uma olhada!

— Acontece que eu estou de férias em Cancún! Você está me fazendo uma ligação internacional! E eu não vou voltar pro Brasil pra ver as “golfadas” do Dudu!

— Então… eu tiro uma fotografia das golfadas! Mando por Sedex.

— Não faça isso!

— Vou aproveitar e mandar uma foto minha, ampliada, pro senhor ver como eu estou completamente acabada de preocupação. Alô, dr. Felipe? Ué… desligou.

***
— Dr Felipe? É o senhor?

— Não, aqui é da Funilaria Alcântara. Foi engano. Passar bem.

— Não adianta me enganar! Reconheci sua voz.

— Fala, Rita…

— É sobre a meleca do Dudu. Ela está completamente verde e…

— Claro que está verde! Eu nunca vi meleca roxa! Nem azul! Sempre foi verde! Antes de Cristo, ela já era verde. Os romanos, os egípcios… todos tinham melecas verdes! Cleópatra tinha meleca verde!

— Acontece que não é só a questão da cor. É a quantidade. Pro senhor ter uma idéia, eu já juntei um balde e dois tupper-wares só de catarro.

— Um balde e dois tupper-wares??!

— Guardei na geladeira pra poder mostrar pro senhor quando eu conseguir marcar uma hora. Mas do jeito que está difícil, pra não estragar, vou ter que congelar no freezer.

— Peraí, só pra ver se eu entendi. Você vai congelar o catarro do seu filho… pra me mostrar?

— No dia da consulta eu boto no defrost, potência alta e descongelo. A não ser que o senhor queira ver logo. Eu posso deixar os tupper-wares na portaria do consultório.

— Não! De forma nenhuma! Os… os porteiros podem pensar que… é meu almoço!

— Tá. Então eu vou deixar a fita cassete aí. Pelo menos isso.

— Fita cassete?! Que fita cassete?!

— Que eu gravei com a tosse do Dudu. Pro senhor ouvir. E gravei ele falando 33. Se o senhor não se incomodar, vou mandar também a tosse da minha mãe, que está uma coisa pavorosa — parece que ela engoliu um urso.

— Eu… tá… Manda a tosse de quem você quiser. Do seu pai, da sua tia, de alguma vizinha. Grava em fita. Faz um vídeo. Um documentário. E já que chegamos até aí… por que não um longa? Sobre catarro! O filme pode se chamar “Matou a mãe do paciente e foi ao cinema”. Que tal?
Fonte:
Projeto Releituras

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Tatiana Belinky (Lenda Popular Suiça: Guilherme Tell)

Há muitos anos, antes de ser um país livre e soberano, a Suíça era governada por um regente autoritário chamado Gessler. Todo mundo tinha medo dele, porque quem desobedecesse às suas ordens era impiedosamente castigado. A única pessoa que não o temia era um bravo caçador das montanhas de nome Guilherme Tell, respeitado pelos seus conterrâneos por ser, além de homem de bem, um exímio arqueiro. Ninguém o superava na pontaria certeira com o arco e a flecha.

O tirano Gessler, arrogante e vaidoso, gostava de aterrorizar a gente do povo. Por isso, mandou erguer na praça principal um poste no qual fez pendurar o seu chapéu. Diante desse ridículo símbolo de autoridade, todos os passantes deveriam se curvar. E todos obedeciam, de medo de ser cruelmente punidos. Todos, menos Guilherme Tell, que não se submetia àquela humilhação por considerá-la abaixo de sua dignidade. Até que um dia aconteceu de o próprio Gessler estar na praça quando Tell passou por ali com seu filho de 8 anos.

Vendo que o caçador não se curvara diante do chapéu, Gessler ficou furioso e mandou que seus soldados o agarrassem, gritando:

— Tell, tu me desafiaste, e quem me desafia morre. Mas tu podes escapar da morte se fizeres o que eu te ordeno.

E o perverso Gessler mandou que encostassem o filho do caçador ao poste com uma maçã sobre a cabeça. Então, continuou:

— Agora, Tell, terás de provar a tua fama de grande arqueiro acertando a maçã na cabeça do teu filho com uma única flechada. Se acertares, o que duvido, sairás livre. Mas, se errares, serás executado aqui, na frente de todo este povo.

E Guilherme Tell foi colocado no ponto mais distante da praça, com o seu arco e uma flecha.

— Cumpra-se a minha ordem!, bradou Gessler.

— Atire, meu pai, disse o menino. Eu não tenho medo.

Com o coração apertado, Guilherme Tell levantou o arco, apontou a flecha, esticou a corda e, de dentes cerrados, mirou em direção ao alvo. Zummmm! A flecha zuniu no ar, rapidíssima, e rachou ao meio a maçã sobre a cabeça da criança.

Um suspiro de alívio subiu da multidão, que assistia horrorizada àquele cruel espetáculo.

Nesse momento, Gessler viu a ponta de uma outra flecha escondida debaixo do gibão do arqueiro.

— Para que a segunda flecha, se tinhas direito a um só arremesso?, urrou o tirano.

Guilherme Tell respondeu, em alto e bom som:

— A segunda flecha era para varar o teu coração, Gessler, se eu tivesse ferido o meu filho.

E, pegando o menino pela mão, Guilherme Tell deu as costas ao tirano e foi embora.

Anos mais tarde, o arqueiro foi um valoroso combatente pela independência da sua terra e pela liberdade de seu povo.
Fonte:
Contos, Fábulas e outros. Revista Nova Escola.

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Mara Melinni (Lembrança de uma Caixa de Sapato)

Era o começo de uma tarde tranquila de fim de semana. Não fazia muito sol e as nuvens pareciam combinar um gesto amigo no céu, criando uma sombra agradável no jardim. Eu tinha acabado de almoçar, mas ainda podia ouvir, ao longe, o barulho dos últimos pratos e talheres que eram removidos da mesa, enquanto vozes sussurravam, entre risos, da cozinha.

Eu estava pensativa e fui me sentar debaixo das árvores. Da cadeira de balanço, no embalo do vai e vem, comecei a olhar para os meus pés pequenos, que buscavam apoio no portão da varanda. Uma leve sonolência me envolvia e revivi, naquele momento, algumas cenas e sensações dos meus primeiros anos na escola, que retornaram em uma lembrança encantadora.

E pensar que tudo começava daquele mero olhar de pés…! Partia por uma viagem no tempo… Recordava-me, perfeitamente, das chinelas que usávamos nos primeiros anos da escola. Eram todas iguais, de borracha e couro, na cor azul escuro. Minha mãe sempre comprava um número acima do meu, senão não suportariam o final do ano, já que pé de criança cresce num piscar de olhos.

Mas o auge da minha ansiedade era passar para a antiga primeira série. Deixaria de lado as sandálias azuis, que combinavam com batinhas de algodão, com uma cor para cada ano, feitas com bicos e com o nome bordado no bolso que geralmente ficava na frente, onde todos os alunos costumavam trazer um lenço. Esse era o uniforme e tudo era preparado, com capricho, em casa.

Enfim, eu estava crescendo. Já sabia ler e escrever. Era tempo de assumir novas responsabilidades e de, finalmente, poder usar o tão sonhado objeto dos meus desejos (e de todas as meninas de seis anos de minha época)! Eu nunca me esqueci da primeira vez em que coloquei os meus pés dentro daquele sapato-boneca! Ele era perfeito, preto, com um detalhe que me orgulhava: tinha um salto quadrado, mas, enfim, era um salto!

Foi amor à primeira vista, um sucesso. Eu queria passar o dia inteiro desfilando com eles nos pés, dentro de casa. Mas minha mãe logo veio me explicar que os sapatos deveriam ficar na caixa, esperando pelo primeiro dia de aula. Eu adorava estar de férias, mas a ânsia de sair com eles, pela primeira vez, fazia-me desejar que os dias corressem.

Para completar, havia outra novidade. Eu, enfim, usaria um novo fardamento na escola, composto por camiseta branca, com o símbolo do educandário pintado no peito, e mais: calça! Sim, calça de tecido azul escuro, que geralmente era brim. Tudo isso, com os meus sonhados sapatos, combinados com meias brancas. Parecia um conto de fadas ir para a escola…! 

E eu me sentia tão majestosa naqueles trajes, que não gostava do dia da educação física, quando os sapatos-boneca ficavam repousando em um dia merecido de folga. Pena que só cheguei a usá-los por dois anos, pois a escola resolveu adotar o tênis como o calçado oficial, para a tristeza de outras tantas meninas que aguardavam o momento de usar os seus quase sapatinhos de cristal.

Sinto saudade… A magia daquele singelo par de sapatos devolve-me puras e valiosas sensações. Olho para os meus pés, após um cochilo no tempo, e a lembrança revivida em minúsculos detalhes, leva-me a rir à-toa… E a vida recupera, mais uma vez, todo o encanto que eu guardava dentro daquela caixa de sapatos…!

Fonte:

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Elisa Palatnik (Preparativos de uma morte anunciada)

 — Onofre, acabei de pegar teu exame. O médico disse que você vai morrer em uma semana.

 — Hein?! O quê?!

 — Você morre terça feira que vem. Dia 25. Dia do soldado.

 — Mas… que coisa horrível!

 — Horrível por quê? Melhor que morrer, sei lá, no dia do Índio. No dia da Secretária. No dia do Ginecologista.

 — Meu Deus! Vou morrer em uma semana e você me conta assim, na bucha, sem me preparar?

 — Deixa de ser infantil, Onofre. Você não é prato de bacalhau pra eu te preparar.

 — Uma semana… Eu estou chocado! Se bem que…

 — O quê?

 — Quer saber? De certa forma foi bom saber logo. Assim aproveito o tempo que resta. Vou viajar, beber e comer tudo que eu tenho direito.

 — Aí é que está, Onofre. Você vai ter que fazer dieta.

 — Dieta?!

 — Pra emagrecer. O caixão que a gente tem não é seu número. Com essa barriga, você não entra naquele ataúde de jeito nenhum. Só entra de lado. Você quer ser enterrado de lado, Onofre?

 — Claro que não! Mas… não dá pra trocar de caixão?

 — É da loja do teu primo. Fui do médico direto pra lá, e foi o que ele me deu. Ele só trabalha com modelagem única e a gente não tem dinheiro pra comprar outro.

 — Mas não é justo! Tenho que fazer regime na última semana da minha vida?

 — E ginástica. E cooper. Talvez até balé — que só regime não vai dar conta dos 15 quilos que você precisa perder. Já te matriculei numa academia.


 — Mas…

 — Outra coisa. Não esquece de começar a convidar as pessoas pro velório.

 — Eu?!

 — É, ué. Não é você que vai morrer? Era só o que me faltava… você é que vai morrer e eu é que tenho o trabalho… Aliás, por falar em trabalho, arranja um bico extra essa semana pra conseguir dinheiro — pra pagar a dívida do mercado.

 — Peraí… regime, ginástica, e agora… trabalho extra? Eu estou doente, estou cansado!

 — Deixa de frescura, Onofre. Daqui a uma semana você vai ter tempo de sobra pra descansar. E se eu não pagar essa dívida, o seu Joaquim disse que me mata.

 — Ele disse isso?

 — Disse. E pode me matar em menos de uma semana. E aí eu vou ser enterrada no seu caixão. E você fica sem dinheiro pra comprar outro caixão. E aí você não vai ser enterrado. Vai ficar por aí, pelas ruas, em processo de decomposição.

 — Meu Deus!

 — Mais uma coisa. Você vai ter que visitar a tia Augusta.

 — Ah, não! Visitar a tia Augusta não! Estou brigado com ela, você sabe disso.

 — Vai na quinta feira. Já marquei.

 — Assim não dá! Eu, pensando que ia passar uma semana boa, tranqüila, esperando pra morrer… mas nada. Já vi que vai ser um inferno. E se eu não for na casa da tia Augusta?

 — Ela vai se sentir culpada por não ter feito as pazes antes de você morrer. E vai acabar morrendo de desgosto.

 — E eu com isso? Não quero saber.

 — Não quer saber? Acontece que está provado que uma pessoa leva, em média, uns seis meses pra morrer de desgosto.

 — E daí?

 — Daí que daqui a seis meses é o casamento da tua filha. E se a tua tia morrer, a gente vai ter que adiar o casamento. E se a gente adiar é capaz do noivo desistir de casar. Se ele desistir, tua filha vai ficar arrasada e pode sair por aí namorando o primeiro que aparecer na frente. E o primeiro que aparecer na frente pode ser um drogado. E tua filha pode virar uma drogada. E daí para o crime e para a prostituição é um passo. E daí ela pod…

 — Chega! Eu vou visitar a tia Augusta!

 — Ótimo.

 — Que mais? O que mais você quer que eu faça nessa semana? Já tá perdida mesmo…

 — Mais nada. Só cavar sua cova — pra economizar no coveiro, que coveiro está saindo pela hora da morte.

 — Deixa eu anotar, senão esqueço… com tanta coisa… Cavar a cova.

 — E não esquece de, no dia da tua morte, ir pro lugar do velório cedo. Pra morrer lá mesmo… pra gente também economizar no transporte do corpo. Vai de ônibus.

 — Mas…

 — De preferência atrás, agarrado no pára-choque, pra não pagar.

 — É uma boa… No pára-choque. Só uma coisa. Uma dúvida.

 — Fala.

 — E se, por um acaso… eu não morrer?

 — Tá maluco, Onofre? Depois desse trabalhão todo? Nem pensa nisso! Esquece essa possibilidade!

 — É que de repente…

 — De repente uma pinóia! Vê lá, hein, Onofre? Não vai me fazer a gracinha de aparecer no teu velório… vivo!

Fonte:

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Rio de Janeiro

Tatiana Belinki (As Três Respostas)

Antiga balada inglesa adaptada por Tatiana Belinky

Na Inglaterra daquele tempo, vivia na corte do rei João um importante prelado, o abade de Canterbury, tão vaidoso que um dia chegou a se vangloriar de ser mais rico e de ter um palácio mais belo do que o próprio soberano. Quando essa notícia chegou aos ouvidos do monarca, este ficou muito irritado e mandou convocar o prelado à sua presença. 

O abade apressou-se a comparecer perante o rei, sem desconfiar da surpresa que o aguardava. O rei João foi ríspido, dizendo que a gabolice do abade constituía crime de lesa-majestade, punido com a pena de morte e o confisco dos bens do réu. O abade tremeu de medo, jurando ser inocente e implorando o perdão real. E tanto suplicou que o rei João, fingindo compadecer-se dele, disse que o perdoaria, se ele respondesse às três perguntas que lhe faria em seguida.

— A primeira pergunta é a seguinte: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, dize-me quanto eu valho em dinheiro. A segunda pergunta é: quanto tempo eu levaria a cavalo para fazer a volta ao mundo? E a terceira é: o que eu estou pensando aqui e agora?

Assustado, o abade de Canterbury pediu ao rei João que lhe concedesse três dias para pensar nas respostas. O rei, fazendo-se de generoso e certo de que o prelado jamais responderia às suas perguntas, concedeu-lhe esse prazo.

O abade saiu apressado, consultou doutores, sábios e feiticeiros, mas ninguém soube responder àquelas perguntas. Ao entardecer do terceiro dia, de volta ao seu palácio, cruzou com o pastor do seu rebanho de ovelhas. Reparando no aspecto abatido do amo, o pastor lhe perguntou qual a razão de tamanha tristeza. O abade, num desabafo, contou-lhe sua infeliz e perigosa situação. E muito se surpreendeu ao ouvir do pastor uma estranha proposta.

— Acho que sei a solução para o seu caso. Repare que nós dois temos a mesma altura e o mesmo porte. Se confiar em mim, eu me apresentarei amanhã em seu lugar perante o rei, disfarçado em traje de monge. Se Deus quiser, acharei as respostas às três perguntas. 

Como não tinha nada a perder, o abade concordou com o plano. No dia seguinte, o pastor, encoberto pelo capuz do hábito do monge, apresentou-se ao rei João à espera das três perguntas, que o monarca lhe fez em seguida, sem reconhecê-lo.

— Então, abade atrevido, responde-me sem hesitar: assim como me vês, sentado no meu trono de ouro, com a minha coroa na cabeça e o cetro na mão, quanto eu valho em dinheiro?

— A resposta, disse o pastor disfarçado, é a seguinte. Nosso Salvador foi vendido por 30 moedas. Portanto, o vosso valor é 29 moedas, pois acho que Vossa Majestade concordará que vale uma moeda menos do que Nosso Senhor.

— Não pensei que eu valesse tão pouco, sorriu o rei. Mas dize-me agora em quanto tempo posso cavalgar em volta do mundo.

— Vossa Majestade, respondeu o falso abade, deve levantar-se ao nascer do dia e seguir cavalgando atrás do Sol até a manhã seguinte, quando o astro nascer outra vez. Assim, sem erro, terá dado a volta ao mundo em 24 horas. 

— Nunca pensei, riu o rei, que a volta ao mundo pudesse ser feita tão depressa. Mas agora me diga, abade, o que estou pensando neste exato momento?

— Vossa Majestade, respondeu o esperto pastor, pensa que está falando com o abade de Canterbury. Mas a verdade é que não passo de um pobre pastor de ovelhas. 

E, afastando do rosto o capuz de monge, concluiu:

— Estou aqui para pedir perdão para mim e para o meu amo, o abade.

Dessa vez, o rei João riu às gargalhadas e disse:

— Por teres alegrado o meu dia, eu te perdôo pelo atrevimento e mando te dar uma bolsa de dinheiro como recompensa. Vai em paz e dize ao teu patrão que te agradeça porque, graças a ti, eu o perdôo também. Mas ele que se guarde de novas gabolices!

Fonte:
Nova Escola. Contos, fábulas e outros.

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Ruth Rocha (Atrás da Porta)

A casa do Carlinhos era uma casa antiga, pegada à Escola Dona Carlotinha de Araújo Cintra.
Antigamente, quando a avó do Carlinhos estava viva, ela ocupava as duas casas, que eram uma só.
Depois que a Dona Carlota morreu, a família separou o casarão em dois.

Uma parte foi doada para a escola. E, na outra, ficou morando a família do Carlinhos.
Carlinhos gostava muito da avó, então vivia brincando no quarto que tinha sido dela.
Dona Carlotinha era aquele tipo de avó que todo mundo quer ter. Brincava com os netos de teatrinho, de acampamento no quintal, de amarelinha, tocava violão, cantava e contava histórias.
E que histórias! Dava a impressão de que ela sabia todas as histórias do mundo.
De fadas, de lobos ferozes, de meninos e meninas que desobedeciam aos pais (era dessas histórias que Carlinhos mais gostava), de reis, de piratas e de marinheiros.
O quarto de D. Carlotinha era todo forrado de madeira. E ainda tinham ficado nele alguns livros, muitas fotografias antigas, objetos estranhos, caixinhas de música, caleidoscópios, tinha um jogo engraçado com uma bola e um espeque, que a mãe do menino chamava de bilboquê.
Carlos se lembrava de uns livros grandes, com muitas figuras, que D. Carlota lia para ele, mas eles tinham sumido. Assim como um retrato da avó, muito mais moça, com um vestido bonito de cetim, com flores e bordados.
A mãe e o pai de Carlinhos viviam atrás dele, insistindo que ele precisava ler mais.
Mas os livros que davam para ele, do mesmo jeito que os livros que a professora mandava ler, eram muito sem graça, para quem tinha conhecido as histórias de D. Carlotinha.
Carlinhos, nas horas vagas, ficava mexendo em tudo que tinha no quarto da avó. E tanto escarafunchou dentro das gavetas, no fundo dos armários, nas molduras e nos bordados que enfeitavam as paredes, que um dia, ele rodou uma rosa entalhada num friso, a rosa estalou, a madeira se moveu e abriu-se uma porta na parede.
Era de noite. E do outro lado estava escuríssimo. Mas, embora Carlinhos tenha ficado com um pouco de medo, foi buscar uma vela e entrou pela porta, que ele já estava chamando de misteriosa.
A luz da vela tremia muito e levou algum tempo para que Carlinhos enxergasse o que estava lá dentro.
Então o coração do menino começou a bater forte, porque ele estava numa sala enorme, toda forrada de estantes de livros e no fundo, pendurado na parede, estava o retrato de sua avó, tão bonita, moça, num lindo vestido comprido, com um livro na mão.
Para Carlinhos, aquela era uma coisa mágica, era como se fosse um sonho, um espaço desconhecido.
Depois que passou a primeira emoção, o menino começou a olhar os livros nas estantes. Tinha livros de todos os tamanhos, de capas de todas as cores.
De repente Carlinhos encontrou um daqueles livrões que sua avó costumava mostrar a ele.
O menino abriu o livro com o coração batendo. Lá estava a história do Trenzinho do Nariz Frio; a do Marinheiro Tatuado; a dos Patos que Cantavam o Hino Nacional. E tinha a história da Menina que não Gostava de Nada, da Torre de Babel e uma, muito engraçada, que se chamava Enquanto eles Dormem no Japão.
Carlinhos chegou a ler uma ou duas, mas percebeu, de repente, que estava amanhecendo.
Ele não sabia bem por que, mas não queria que descobrissem o seu segredo.
Então botou o livro no lugar e voltou para o quarto da avó. Dormiu um bocadinho e sonhou com aqueles livros todos e sonhou com sua avó, tão alegre, tão engraçada, tão querida!
O menino ficou com muito sono o dia todo, até tirou uma soneca depois do almoço, o que espantou muito sua mãe.
E à noite, depois que todos foram dormir, lá foi ele outra vez para a sala misteriosa, que Carilinhos não entendia bem onde ficava. Ele achava que aquela sala era um milagre que sua avó tinha preparado só para ele.
E leu bastante, riu muito de umas gravuras e cartões-postais engraçados que descobriu, encontrou um teatro de bonecos com que brincava no tempo da avó.
No dia seguinte, o menino não pôde resistir e contou sobre a sala ao seu melhor amigo, o João.
À noite, depois que todos foram dormir, Carlinhos desceu as escadas bem devagarinho e abriu a porta da frente.
Lá estava o João, que tinha trazido a irmã, a Tuca. Os dois estavam loucos para conhecer a sala misteriosa.
E a Tuca também não pôde resistir.
No dia seguinte ela trouxe a prima, a Julinha. E a Julinha trouxe o Marcelo e o Marcelo trouxe o Cláudio, o Cláudio trouxe o Miguel e o Miguel…
Cada um trazia sua própria vela para poder ver os livros, ler à vontade e brincar com as mil coisas interessantes que todos os dias eles iam descobrindo.
Então aconteceu uma coisa engraçada.
Começou a correr pela cidade um boato que a escola Dona Carlotinha de Araújo Cintra estava cheia de fantasmas.
As pessoas juravam umas para as outras que tinham visto luzes… Luzes que andavam atrás das janelas. Luzes que tremiam…
O vigia, seu Virgolino, que na verdade dormia a noite inteira, jurava que eram mentiras, “onde é que já se viu?”.
Mas muitas pessoas afirmavam que tinham visto pessoalmente as tais luzes.
Dona Gertrudes Afonseca e Silva, que morava do outro lado da praça e ficava vigiando na janela a noite toda, confirmava:
– São fantasmas, sim senhor! Já vi cada sombra enorme lá dentro. Cruz credo!
E o seu Benício de Carvalho Pinto, que sofria de insônia e andava pela cidade a noite toda, confirmava:
– Fantasmas! Dos bons! Eu é que não passo mais pela pracinha!
Os pais do Carlinhos, dona Joana e seu Antonio, ouviram falar dos tais fantasmas, mas, como eles não acreditavam nessas coisas, não ligaram muito.
Até que um dia, a Joana levantou à noite para beber água e levou o maior susto com aquela fila de crianças de pijama, que entravam pela porta da frente, subiam as escadas e entravam no quarto de dona Carlotinha.
Então ela chamou o Antonio e os dois foram atrás da criançada.
Atravessaram o quarto e entraram pela porta secreta.
Uma porção de crianças estavam sentadas às mesas, deitadas nos tapetes, recostadas nas poltronas, com suas pequenas velas acesas, lendo!
– Ora essa! – o Antonio exclamou.
– Que ótima surpresa, essa criançada toda lendo!
Mas Joana não estava entendendo:
– Ué! Por que é que vocês não vêm ler de dia? Carlinhos respondeu por todos:
– A gente pode?
– Claro que pode – Joana respondeu.
– Para isso são as bibliotecas. Ainda mais as bibliotecas das escolas!
– Mas aqui não é a biblioteca da escola! – o João falou.
– É sim – disse Joana. – Ninguém sabia desta passagem, mas aqui é a biblioteca da escola. Vocês não conheciam?
– Nós nunca entramos aqui! – disse a Tuca. – A biblioteca está sempre fechada!
O pai e a mãe de Carlinhos se olharam!
– Ora essa! – disse Antonio. – Pra que serve uma biblioteca fechada?
No dia seguinte, Joana e Antonio foram falar com a diretora da Escola, dona Babete Ventura.
Não sei o que foi que eles conversaram. Mas na semana seguinte apareceu na frente da escola uma faixa que dizia:
…………………………
Festa da biblioteca,
não percam!
Última semana de outubro!
…………………………
A festa na Biblioteca foi ótima!
Vieram crianças de todas as escolas da redondeza.
Teve uma surpresa muito grande para o Carlinhos.
Com essa história toda, Antonio descobriu que os livrões de que Carlinhos tanto gostava tinham sido escritos a mão por dona Carlotinha.
Ele então mandou para a Editora Salamandra, e dona Regina, que é a editora lá deles, gostou muito e resolveu editar as histórias todas.
Então ela fez uma coleção bárbara, ilustrada pelo Walter Ono, pela Eva Furnari, pelo Ziraldo, pelo Carlos de Brito, pela Helena Alexandrino, pelo Ivan Zigg e por mais uma porção de ilustradores incríveis e eles todos vieram para a festa.
Teve o lançamento dos livros e a Ana Maria Machado e a Sylvia Ortoff e o João Marinho e a Anna Flora e a Edy Lima vieram e assinaram muitos autógrafos nos livros deles.
Eu fui também e ganhei das crianças o Prêmio Jacaré, que era um prêmio que elas inventaram.
E as crianças podiam andar pela biblioteca toda e ver todos os livros, e sentar às mesinhas para ler o que elas quisessem.
E, daí em diante, a biblioteca passou a ficar aberta, não só o dia inteiro, mas nos sábados e domingos e, em alguns dias, até à noite.
E a cidade inteira podia ser sócia e levar livros para casa e teve uma porção de pessoas que deram mais livros para a biblioteca, todos ótimos, que ninguém ia dar livros-porcaria para uma biblioteca tão boa.
E até tiveram que ocupar outra sala da escola, para os livros todos caberem.
E agora, quando o Carlinhos fica com muita saudade da vovó, ele vai até a biblioteca e fica lendo os livros dela: do Trenzinho que Tinha o Nariz Frio, do Marinheiro Tatuado, dos Patos que Cantavam o Hino Nacional…
Fonte:
Historinhas pescadas. Vol.2. Editora Moderna.

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Agatha Christie (Detetive Parker Pine – O Caso da Esposa de Meia-idade)

Quatro grunhidos, uma voz indignada pergun­tando por que alguém não deixava em paz um chapéu, uma porta fechada com estrondo e o Sr. Packington saiu para pegar o trem das oito e quarenta e cinco para a cidade. A Sra. Packington sentou-se à mesa do café. Tinha o rosto ruborizado e os lábios apertados: e só não chorava porque a mágoa tinha sido substituída pela raiva.
— Não agüento mais — disse a Sra. Packington. — Não agüento mais! — ficou pensativa por alguns mo­mentos e depois murmurou: — Aquela sirigaita. Que mulherzinha hipócrita e indecente! Como George pôde ser tão estúpido!
A raiva passou; voltou a mágoa. As lágrimas enche­ram os olhos da Sra. Packington e rolaram lentamente pelo seu rosto de mulher madura.
— É muito fácil dizer que eu não agüento mais, mas o que é que eu posso fazer?
De repente, sentiu-se sozinha e indefesa, comple­tamente abandonada. Com gestos lentos, pegou o jornal e leu — não pela primeira vez — um anúncio de primeira página:
CONFIDENCIAL
VOCÊ É FELIZ? SE NÃO FOR, CONSULTE O SR. PARKER PYNE. RUA RICHMOND, 17.
— Absurdo! — disse a Sra. Packington. — Comple­tamente absurdo! — e depois: — Enfim, não custa tentar…
Eis por que, às onze horas da manhã, a Sra. Packington, um pouco nervosa, entrou no escritório parti­cular do Sr. Parker Pyne.
A Sra. Packington estava nervosa, sim, mas a sim­ples visão do Sr. Parker Pyne lhe deu uma impressão de segurança. Ele era forte, para não dizer gordo; tinha uma cabeça calva bem proporcionada, óculos de lentes grossas e pequenos olhos brilhantes.
— Sente-se, por favor — disse o Sr. Parker Pyne.
— Viu o meu anúncio? — perguntou, para ajudá-la.
— Sim — disse a Sra. Packington, e não disse mais nada.
— E não é feliz — disse o Sr. Parker Pyne numa voz jovial e prática. — Muito poucas pessoas o são. A se­nhora ficaria surpresa se soubesse que muito poucas pessoas são felizes.
— É mesmo? — perguntou a Sra. Packington sem convicção e pouco se importando que as outras pessoas fossem ou não infelizes.
— Eu sei que isso não lhe interessa — disse o Sr. Parker Pyne, — mas a mim interessa muito. Veja a se­nhora que durante trinta e cinco anos da minha vida eu só fiz compilar estatísticas numa repartição do Go­verno. Agora que me aposentei, me ocorreu a idéia de aproveitar de uma maneira diferente toda a experiência que adquiri. É tudo muito simples. As desgraças todas podem ser classificadas em cinco categorias principais — nem mais nem menos, posso lhe garantir. Uma vez conhecida a causa de uma doença, a cura passa a ser perfeitamente possível. Eu me coloco no papel de um médico. Primeiro o médico diagnostica o mal do pa­ciente, depois prescreve o tratamento. Há casos em que nenhum tratamento dá resultado. Quando é assim, digo com toda a franqueza que não posso fazer nada. Mas lhe garanto, Sra. Packington, que se eu tomar conta de seu caso, a cura é praticamente garantida.
Seria possível? Seria uma tolice ou seria verdade? A Sra. Packington olhou esperançosa para ele.
— Podemos diagnosticar o seu caso? — disse o Sr. Parker Pyne sorrindo. Recostou-se em sua cadeira e juntou as pontas dos dedos das mãos. — O problema diz respeito a seu marido. De um modo geral a senhora teve um casamento feliz. Creio que seu marido prosperou. Suponho que haja uma jovem neste caso… talvez uma moça que trabalhe no escritório de seu marido.
— Uma datilografa — disse a Sra. Packington. — Uma sirigaitazinha falsa e indecente, cheia de batom e meias de seda e cachinhos. As palavras saíram aos bor­botões. .
O Sr. Parker Pyne balançou a cabeça de maneira apaziguadora. — Não há nada de mal nisso… certa­mente é isso o que o seu marido diz…
— É exatamente isso.
— E por que não poderia ele manter uma amizade pura com esta moça e proporcionar um pouquinho de alegria e prazer a sua existência tão monótona? Pobre menina! Ela se diverte tão pouco… Suponho que sejam estes os seus sentimentos.
A Sra. Packington fez que sim com a cabeça, vigoro­samente — Um embuste… tudo um embuste! Ele a leva ao rio… eu também gosto muito de ir ao rio, mas há uns cinco ou seis anos ele me disse que isso atrapalhava o golfe dele. Agora ele deixou o golfe de lado por causa dela. Eu gosto de teatro, mas George vivia dizendo que estava muito cansado para sair de noite. Agora sai com ela para dançar — dançar! E volta às três da ma­drugada! Eu… eu…
— E sem dúvida ele lamenta o fato de que as mu­lheres sejam tão ciumentas… tão injustificàvelmente ciumentas, quando não há nenhum motivo para o ciúme?
Novamente a Sra. Packington fez que sim com a ca­beça — é isso — perguntou secamente: — Como é que o senhor sabe disso?
— Estatísticas — disse o Sr. Parker Pyne com sim­plicidade.
— Eu sou tão infeliz — disse a Sra. Packington. — Sempre fui uma esposa dedicada para George. Gastei as minhas unhas até o sabugo nos primeiros anos da nossa vida. Eu o ajudei a vencer. Nunca olhei para outro homem. Suas roupas estão sempre em ordem, a comida é boa, cuido muito bem da casa, e com economia. E agora que superamos as dificuldades e poderíamos nos divertir, sair um pouco e fazer todas as coisas que eu tinha von­tade de fazer algum dia… vai acontecer isso! — ela en­goliu em seco.
O Sr. Parker Pyne concordou gravemente — Pode ficar certa de que compreendo perfeitamente o seu caso.
— E… pode fazer alguma coisa? — ela quase sus­surrou a pergunta.
— Certamente, minha cara senhora. Há cura. Cer­tamente que há cura.
— E qual é? — ela aguardava ansiosa, os olhos ar­regalados.
O Sr. Parker Pyne falou com uma voz calma e firme
— A senhora vai se colocar em minhas mãos, e meus ho­norários serão de duzentos guinéus.
— Duzentos guinéus!
— Exatamente. A senhora pode pagar isto, Sra. Packington. Pagaria por uma operação. A felicidade é tão importante quanto a saúde do corpo.
— Suponho que vou pagar depois.
— Pelo contrário — disse o Sr. Parker Pyne. — A senhora vai me pagar adiantado.
A Sra. Packington se levantou — Não vejo por que…
— A senhora teme comprar gato por lebre? — disse o Sr. Pyne jovialmente. — Bem, talvez a senhora tenha razão. É muito dinheiro para arriscar. A senhora tem que confiar em mim. Pagar e correr o risco. São estas as minhas condições.
— Duzentos guinéus!
— Exatamente. Duzentos guinéus. É muito dinheiro. Bom dia, Sra. Packington. Me avise se mudar de idéia — apertou-lhe a mão, sorrindo, imperturbável.
Depois que ela saiu, apertou um botão na sua mesa. Uma moça de óculos e ar severo respondeu ao chamado.
— Um fichário, por favor, Srta. Lemon. E pode também avisar a Claude que eu talvez vá precisar dele brevemente.
— Uma nova cliente?
— Uma nova cliente. Por enquanto ela está relu­tante, mas vai voltar. Provavelmente hoje à tarde, lá pelas quatro horas. Pode deixar entrar.
— Esquema A?
— Esquema A, é lógico. É engraçado como todo mundo pensa que o seu próprio caso é único. Bom, avise Claude. Diga-lhe para não parecer muito exótico. Nada de perfume, e é melhor ele cortar o cabelo.
Passavam quinze minutos das quatro horas quando a Sra. Packington entrou de novo no escritório do Sr. Parker Pyne. Tirou da bolsa um livro de cheques, pre­encheu um deles e o entregou. Em troca obteve um re­cibo.
— E agora? — a Sra. Packington olhou esperançosa para ele.
— Agora — disse o Sr. Pyne sorrindo, — a senhora vai voltar para casa. Pelo primeiro correio de amanhã vai receber algumas instruções que eu gostaria muito de ver cumpridas.
A Sra. Packington voltou para casa num estado de alegria antecipada. O Sr. Packington voltou com ar de­fensivo, pronto para discutir a situação, caso a cena da manhã fosse reaberta. Ficou aliviado, entretanto, ao ver que a mulher não estava com espírito combativo. Ela parecia estranhamente pensativa.
George ficou ouvindo rádio, imaginando se aquela pobre e querida Nancy consentiria que ele lhe desse um casaco de peles. Ele sabia que ela era muito orgulhosa. Não queria ofendê-la. Apesar disso, ela se queixara do frio. Aquele casaco de lã era tão ordinário; nem a pro­tegia do frio. Talvez ele conseguisse convencê-la, talvez…
Breve eles poderiam novamente sair juntos à noite. Era um prazer sair com uma moça assim e levá-la a um dos restaurantes da moda. Ele se sentia invejado por muitos rapazes. Ela era extraordinariamente bonita. E gostava dele. Para ela — como já lhe dissera — ele não era nem um pouquinho velho.
Levantou os olhos e percebeu o olhar da mulher. Sentiu-se repentinamente culpado e isto o aborreceu. Que mulher intolerante era Maria! Negava-lhe até um pinguinho de felicidade.
Desligou o rádio e foi para a cama.
A Sra. Packington recebeu duas cartas inesperadas, na manhã seguinte. Uma delas era um impresso confir­mando uma hora marcada num conhecido especialista de beleza. A segunda marcava uma hora com uma costu­reira. A terceira era do Sr. Parker Pyne, solicitando o prazer de sua companhia para um almoço no Ritz na­quele dia.
O Sr. Packington avisou que talvez não pudesse vir jantar em casa, pois tinha que ver um homem de ne­gócios. A Sra. Packington abanou a cabeça distraidamente, e ele saiu de casa satisfeito por ter escapado da tempestade.
O especialista de beleza foi admirável: — Mas que negligência! Por quê? Por que, Madame? Há muito tem­po que a senhora devia ter feito alguma coisa. Feliz­mente, ainda não é tarde!
Uma porção de coisas foram aplicadas sobre o seu rosto; ele foi massageado, apertado e tratado a vapor. Aplicaram-lhe uma máscara de lama. Aplicaram-lhe cremes diversos. Passaram pó-de-arroz. E depois houve uma série de retoques finais.
Por fim lhe deram um espelho. Acho que estou mes­mo parecendo mais moça, pensou ela.
A hora com a costureira foi igualmente excitante. Saiu de lá se sentindo elegante, atualizada, no rigor da moda.
A uma e meia da tarde, a Sra. Packington chegava ao Ritz. O Sr. Parker Pyne, impecàvelmente vestido, e envolto numa aura de serena confiança, estava espe­rando por ela.
—Encantadora — disse, com um olho experiente a examiná-la da cabeça aos pés. — Me antecipei e lhe en­comendei um White Lady.
A Sra. Packington não tinha o hábito de tomar co­quetéis, mas não disse nada. Enquanto bebia cautelosa­mente o excitante líquido, ouvia o seu paciente instrutor.
— Seu marido, Sra. Packington — disse o Sr. Pyne, —vai ser obrigado a ficar em guarda. Compreendeu? Se interessar. Para ajudá-la, vou apresentá-la a um jo­vem amigo meu. A senhora vai almoçar com ele hoje.
Neste instante entrou um rapaz, olhando de um lado para outro. Ao avistar o Sr. Parker Pyne, caminhou em sua direção, com elegância.
— O Sr. Claude Luttrell, Sra. Packington.
O Sr. Claude Luttrell talvez ainda não tivesse trinta anos. Era atraente, desembaraçado, impecàvelmente ves­tido, extremamente bonito.
— Muito prazer em conhecê-la — murmurou.
Três minutos depois, a Sra. Packington estava fren­te a frente com seu novo mentor, numa pequena mesa para dois.
Estava um pouco tímida no início, mas o Sr. Lut­trell logo a colocou à vontade. Ele conhecia Paris muito bem e passara um bom tempo na Riviera. Perguntou à Sra. Packington se ela gostava de dançar. Ela disse que gostava, mas quase não saía para dançar, atualmente, porque o Sr. Packington não gostava muito de sair de noite.
— Mas ele não pode ser tão cruel assim, a ponto de prendê-la em casa — disse Claude Luttrell, sorrindo e mostrando uma deslumbrante fileira de dentes. — As mulheres não devem mais tolerar o ciúme masculino, em nossos dias.
A Sra. Packington quase disse que o problema não era o ciúme, mas as palavras não saíram. Apesar de tudo, a idéia era agradável.
Claude Luttrell falou superficialmente de boates. Fi­cou combinado que na noite seguinte a Sra. Packington e o Sr. Luttrell iriam conhecer o popular Arcanjo Menor.
A Sra. Packington se sentia um pouco nervosa ante a perspectiva de anunciar o fato ao marido. Imaginou que George ia achar muito estranho e talvez ridículo. Mas teve sorte. Estava muito nervosa para falar com ele durante o café da manhã, e lá pelas duas horas da tarde um telefonema lhe informou que o Sr. Packington ia jan­tar na cidade.
A noitada foi um sucesso. A Sra. Packington dan­çava muito bem quando era moça, e, sob a sábia orien­tação de Claude Luttrell, não demorou a aprender os passos modernos. Ele lhe deu os parabéns pelo vestido e pelo penteado. (Tinham-lhe marcado uma hora na­quela manhã com um dos cabeleireiros da moda). Ao se despedir, ele beijou a sua mão de uma maneira eletrizante. Há muitos anos que a Sra. Packington não passa­va uma noite tão divertida.
Seguiram-se dez dias fantásticos. A Sra. Packington almoçava, lanchava, dançava tango, jantava, valsava e ceava. Ficou sabendo tudo sobre a triste infância de Claude Luttrell. Conheceu as desafortunadas circunstân­cias nas quais o pai perdera todo o seu dinheiro. Ouviu a história do trágico romance que lhe amargurava os sentimentos em relação às mulheres em geral.
No décimo primeiro dia, eles foram dançar no Almi­rante Vermelho. A Sra. Packington viu seu marido antes que ele a visse. George estava com a moça do escritório. Os dois casais estavam dançando.
— Olá, George — disse baixinho a Sra. Packington, quando passou por ele.
Foi com certa satisfação que ela viu o rosto de seu marido ficar primeiro vermelho e depois roxo de espanto. Além do espanto, havia uma expressão de quem descobre um erro.
A Sra. Packington se sentiu divertidamente dona da situação. Coitado do George! De volta à sua mesa, ela se pôs a observá-lo. Como estava gordo, como estava ca­reca, como cambaleava! Ele dançava como há uns vinte anos atrás. Coitado, que força estava fazendo para pa­recer jovem! E aquela pobre moça que dançava com ele e fingia que estava gostando. Ela agora parecia muito chateada, o rosto por cima do ombro dele para que ele não pudesse vê-lo.
A Sra. Packington pensou muito satisfeita que a sua situação era bem mais invejável. Olhou de relance para o maravilhoso Claude, agora taticamente em silêncio. Como ele a compreendia bem! Nunca discordava dela — os maridos sempre discordam depois de alguns anos.
Tornou a olhar para ele. Seus olhos se encontraram. Ele sorriu; seus lindos olhos escuros, tão melancólicos, tão românticos, olharam ternamente dentro dos dela.
— Vamos dançar outra vez? — murmurou ele.
Dançaram novamente. Era o paraíso.
Ela sentia o olhar apoplético de George a segui-los. A idéia tinha sido dela, ela se lembrava, de provocar ciú­mes em George. Há tanto tempo! Mas agora ela não queria mais despertar os ciúmes de George. Poderia abor­recê-lo. Por que aborrecê-lo, afinal de contas? Coitadi­nho! Todo mundo estava tão feliz…
O Sr. Packington já estava em casa há uma hora quando a Sra. Packington entrou. Ele parecia confuso e inseguro.
— Hum — resmungou. — Afinal você chegou.
A Sra. Packington atirou longe um xale que lhe ti­nha custado quarenta guinéus, naquela mesma manhã. — É — disse sorrindo, — cheguei.
George tossiu — Er… foi estranho encontrar você.
— Foi mesmo, não é? — disse a Sra. Packington.
— Eu… bem, eu pensei que seria um gesto delicado da minha parte levar aquela moça a algum lugar. Ela tem tido tantos problemas em casa. Eu pensei. .. bem, delicadeza, você compreende.
A Sra. Packington fez que sim com a cabeça. Pobre George — saltitando e se entusiasmando e tão satisfeito consigo mesmo.
— Quem era aquele camarada que estava com você? Eu não o conheço, conheço?
— Chama-se Luttrell. Claude Luttrell.
— Como foi que você o conheceu?
— Oh, alguém me apresentou — disse a Sra. Packington vagamente.
— É esquisito você sair dançando por aí… na sua idade. Não vá ficar ridícula, minha querida.
A Sra. Packington sorriu. Ela estava se sentindo muito satisfeita, com o mundo inteiro paria dar a res­posta óbvia. — Uma mudança é sempre agradável — disse amistosamente.
— Você precisa ter cuidado, sabe? Há uma porção destes dançarinos profissionais por aí. Mulheres de meia-idade às vezes fazem papéis ridículos. Estou só lhe avi­sando, minha cara. Não gostaria de ver você fazendo o que não deve.
— Acho muito bom o exercício — disse a Sra. Pack­ington.
— Hum. .. bom…
— Espero que você também ache — disse simpática a Sra. Packington. — O importante mesmo é a gente se sentir feliz, não é? Me lembro que você me disse isso há uns dez dias.
O marido olhou rapidamente para ela, mas não ha­via nem uma ponta de sarcasmo na sua expressão. Ela bocejou.
— Vou me deitar. Antes que eu me esqueça, George, tenho sido horrivelmente extravagante neste últimos dias. Algumas contas terríveis vão chegar. Você não se importa, não é?
— Contas? — perguntou o Sr. Packington.
— É. Vestidos. E massagens. E tratamento para os cabelos. Horrivelmente extravagante… mas eu sei que você não se importa…
Ela subiu as escadas. O Sr. Packington ficou de boca aberta. Maria tinha sido maravilhosamente gentil em re­lação ao que acontecera aquela noite; parecia não ter dado a menor importância. Mas era uma pena que de re­pente ela começasse a gastar dinheiro. Maria — um mo­delo de economia!
Mulheres! George Packington balançou a cabeça. As confusões em que os irmãos daquela garota se tinham metido nos últimos dias… Bem, ele continuava disposto a ajudá-la. Apesar de tudo… bolas! As coisas já não estavam indo assim tão bem lá pela cidade.
Suspirando, o Sr. Packington subiu as escadas de­vagar.
Às vezes, só mais tarde prestamos atenção a pala­vras que na hora não pareceram importantes. Só na ma­nha seguinte certas palavras que o Sr. Packington dis­se entraram realmente na consciência de sua mulher.
Dançarinos profissionais; mulheres de meia-idade; cair no ridículo.
A Sra. Packington era uma mulher corajosa. Sen­tou-se e enfrentou os fatos. Um gigolô. Ela sempre leu histórias de gigolôs nos jornais. Leu também a respeito de loucuras cometidas por mulheres de meia-idade.
Claude seria um gigolô? Ela calculou que sim. Mas então como é que os gigolôs eram sempre pagos e era Claude quem pagava todas as despesas? Sim, mas era o Sr. Parker Pyne quem pagava, não Claude — ou melhor, eram os seus próprios duzentos guinéus.
Seria ela uma estúpida mulher de meia-idade? Será que Claude Luttrell ria dela pelas costas? A este pensa­mento seu rosto ficou vermelho.
Bem, e se fosse mesmo? Claude era um gigolô. Ela era uma ridícula mulher de meia-idade. Logo ela devia lhe dar um presente. Uma cigarreira de ouro, qualquer coisa no gênero.
Um impulso excêntrico levou-a até o Asprey’s. Es­colheu e comprou uma cigarreira. Ia se encontrar com Claude para almoçar no Claridge.
Quando tomavam o café ela mexeu na bolsa — Um presentinho — murmurou.
Ele olhou para ela, franziu as sobrancelhas — Para mim?
— É. Eu… espero que você goste. Ele pegou a cigarreira e a empurrou violentamente para o outro lado da mesa — Por que você me deu isso?
Não quero. Leve de volta. Leve de volta! — estava zan­gado. Seus olhos escuros faiscavam.
— Desculpe — murmurou ela, e a colocou de volta na bolsa.
Houve um certo constrangimento entre os dois na­quele dia.
Na manhã seguinte ele telefonou — Preciso ver vo­cê. Posso ir à sua casa hoje à tarde?
Ela marcou para as três da tarde.
Claude chegou muito pálido, muito tenso. Cumpri­mentaram-se. O constrangimento se tornou mais evi­dente.
De repente ele se pôs de pé e ficou em frente dela — O que é que você pensa que eu sou? Foi isso que eu vim lhe perguntar. Nós temos sido amigos, não é mesmo? Sim, amigos… Mas apesar de tudo você pensa que eu sou… é, é isso mesmo, um gigolô. Uma criatura que vive às custas de mulheres. É isso que você pensa, não é?
— Não, não!
Ele interrompeu seu protesto. Seu rosto estava ainda mais pálido — É isso mesmo que você pensa! Bom, é ver­dade. Foi isso que eu vim dizer. É verdade! Eu recebi or­dens para sair com você, para lhe fazer a corte, fazer vo­cê esquecer seu marido. É este o meu emprego. Um em­prego abjeto, não é?
— Por que você me contou isso tudo? — perguntou ela.
— Porque eu estou cheio dessa história toda. Não posso mais continuar. Não com você. Você é diferente. Você é o tipo da mulher em quem eu pude confiar, acre­ditar, gostar. Você vai pensar que eu estou dizendo isso porque é parte do negócio — aproximou-se dela. — Vou lhe provar que não é verdade. Vou-me embora por sua causa. Vou tentar ser um homem de verdade, em vez da criatura repulsiva que fui até hoje.
De repente ele a tomou nos braços. Seus lábios se apertaram contra os dela. Soltou-a e se afastou um pouco.
— Adeus. Sempre fui abjeto. Sempre. Mas juro que de hoje em diante vai ser diferente. Se lembra que você falou uma vez que gostava de ler os Anúncios Pessoais? No dia de hoje, todos os anos, você vai encontrar um re­cado meu dizendo que eu sempre me lembro de você e que continuo no bom caminho. Você vai ver então o quanto significou para mim. Mais uma coisa. Não quero nada de você. Mas quero que guarde alguma coisa minha — tirou do dedo um anel de ouro. — Foi de minha mãe. Quero que você fique com ele. Agora, adeus…
George Packington voltou cedo para casa. Encon­trou a mulher sentada em frente da lareira com um olhar diferente. Falou gentilmente com ele, mas parecia es­tranha e alheia à sua presença.
— Olhe aqui, Maria — começou ele, aos arrancos. — Aquela moça.
— Sim, querido?
— Eu… eu nunca quis aborrecer você, sabe. Com ela. Não há nada.
— Eu sei. Fui uma boba. Pode vê-la quantas vezes quiser, se isto faz você ficar feliz.
Tais palavras deviam ter alegrado George Packing­ton, é lógico. Por mais estranho que possa parecer, elas o aborreceram. Como podia ele se divertir saindo com a moça, se a sua própria mulher praticamente o obrigava a isto? Francamente isso nem era decente! Toda aquela sensação de poder, de homem forte que brincava com fogo, se desvaneceu e morreu melancòlicamente. De re­pente, George Packington se sentiu cansado, esvaziado. A garota era muito esperta…
— Nós podíamos sair um pouco, se você quisesse, Maria — sugeriu timidamente.
— Não se preocupe comigo. Estou muito feliz.
— Mas eu gostaria de levar você para passear; po­díamos ir para a Riviera.
A Sra. Packington sorriu levemente.
Pobre George… Ela se orgulhava dele. Era um ve­lhinho tão terno! Não havia na vida um segredo tão lin­do quanto o dela. Ela sorriu ainda com mais ternura.
— Seria ótimo, querido — disse.
O Sr. Parker Pyne estava falando com a Srta. Lemon — Despesas com os divertimentos?
— Cento e duas libras, quatorze shillings e seis pence.
A porta abriu e entrou Claude Luttrell. Estava com um ar amuado.
— Bom dia, Claude — disse Parker Pyne. — Foi tudo bem?
— Acho que sim.
— O anel? Qual foi o nome que você mandou gra­var, por falar nisso?
— Matilda — disse Claude taciturno. — 1899.
— Ótimo. E as palavras do anúncio?
— Continuo bem. Ainda me lembro de você. Claude.
— Tome nota, por favor, Srta. Lemon. Na coluna dos Anúncios Pessoais. No dia três de novembro… deixe ver… despesas de cento e duas libras, quatorze shillings e seis pence. Por dez anos, acho. Isto nos deixa um lucro liquido de noventa e duas libras, dois shillings e quatro pence. Correto. Perfeitamente correto.
A secretária saiu.
— Olhe aqui — explodiu Claude. — Não gosto disso. É um jogo sujo.
— Meu rapazinho!
— Jogo sujo. Uma mulher decente… uma mulher direita. Contar todas estas mentiras. Enganá-la com es­tas histórias sentimentais, que horror. Isso me deixou doente!
Parker Pyne endireitou os óculos e olhou para Clau­de com uma espécie de interesse científico. — Meu caro — disse secamente, — não me recordo de nenhum mo­mento em que a sua consciência o tenha preocupado em toda a sua… ahn… notória carreira… Seus negócios na Riviera foram particularmente inescrupulosos, e a sua exploração da Sra. Hattie West, mulher do Rei dos Pepinos da Califórnia, foi notável, pelo instinto merce­nário e empedernido que você demonstrou.
— Bem, estou começando a me sentir diferente — resmungou Claude. — Não é direito… esse tipo de jogo.
Parker Pyne falou num tom de voz como o do pro­fessor que repreende o aluno favorito — Claude, meu caro, você praticou uma boa ação. Deu a uma mulher in­feliz o que todas as mulheres precisam — um romance. Uma mulher pode destruir uma paixão e não aproveitar nada de bom dela, mas um romance pode ser guardado com carinho e relembrado por muitos anos. Eu conheço a natureza humana, meu jovem, e posso lhe garantir que uma mulher alimentará um romance por muitos anos — pigarreou. — Cumprimos com pleno êxito nossa missão com a Sra. Packington.
— Bem — murmurou Claude. — Mas isso não me agrada — e deixou a sala.
Parker Pyne apanhou um fichário novo numa ga­veta. Escreveu: Curiosos vestígios de consciência num gigolô empedernido. Nota: acompanhar o desenvolvi­mento.

Fonte:
CHRISTIE, Agatha. O Detetive Parker Pyne.

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Flávio Carneiro (Aprendizagem)

Ilustração: Eva Uviedo


– Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer? 

 – Hã?  – Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo? 

 – Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha. 

 A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas. 

 – Todo dia, mãe? 

 – É, só que a gente não repara. 

 – Por quê? 

 – Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha? 

 A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto. Prefere não responder. 

 – Você é muito ocupada, não é, mãe? 

 – Hã? 

 – Nada, não. 

 A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário. 

 Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe, mas a verdade é que ficou meio torto. 

 “Nada, não cresceu nada”, ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana! 

 Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis. 

 – Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer? 

 – Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura? 

 Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder. 

 A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda. 

 – Mãe! 

 – O que foi? 

 – É que eu estava aqui pensando. 

 – Pensando o quê? 

 Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas. 

 – Vai, fala logo. 

 – Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu? 

 – Não, não entendi. 

 Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar: 

 – Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo? 

 – Ai, meu Deus! 

 Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca. 

 Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela: 

 – Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu? 

 E com um carinho: 

 – Foi minha mãe que me ensinou.

Fonte:

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Tatiana Belinky (A Luva)

Ilustração: Maria Eliana Delarissa

Foi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.
 Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e aumentando a tensão do ambiente.
 Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos… E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:
 “Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva.”
 O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e admiração de todo o público presente.
 A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de promessas, falou:
 “Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges.”
 Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa: “Dispenso a vossa gratidão, senhora!”, ele disse.
 E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.

Fonte:
Recontado de um poema de Schiller por Tatiana Belinky
Disponível na Revista Nova Escola

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Fanny Abramovich (Dona Licinha)

A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas… A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé… Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B… Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da série B… 
 Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave…era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia… Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos. 
 A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos… Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora… Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza! 
 Nunca ouvi berros, um “Cala boca”, “Aqui quem manda sou eu” e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo… 
 Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui… Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega… Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante. 
 Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula… Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas. 
 Um abraço apertado, 
 cheinho de gostosuras, da
Ciça
Fonte:

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Januária Alves (Minha Chupeta Virou Estrela)

Ilustração por Ionit Zilberman
Eu me chamo Pedro e tenho 7 anos. Eu tenho uma estrela, sabe?
 Uma estrelona, linda, que está lá no céu, brilhando, todos os dias.
Quando eu tinha 3 anos, para salvar meu dente da frente que ficou mole porque eu caí de boca brincando na gangorra da escola, minha dentista me disse que… EU TERIA QUE PARAR DE USAR A MINHA QUERIDA CHUPETA VERDE!
 – A chupeta ou o dente! – ela me mandou escolher.
 Bom, eu nem quis ouvir direito essa proposta tão maluca! A doutora Virgínia e a minha mãe tentaram conversar comigo, explicar por que era importante eu não perder um dente tão cedo e… nada. Eu só olhava com o olho mais comprido do mundo para a chupeta verde, minha companheira do sono mais gostoso do mundo! Como dormir sem ela?
 Na primeira noite em que fiquei sem a minha querida chupeta, só lembro de sentir o cheiro da minha mãe, que me carregou no colo enquanto papai dirigia nosso carro, passeando em frente ao meu parque preferido pra ver se eu enfim conseguia pegar no sono…
 No dia seguinte fui com minha mãe e meu irmão ao parque e levei pão para dar aos patos que moram num lago bem bonito que tem lá. Um pato maior e mais cinza que os outros me chamou a atenção. Ele veio várias vezes comer pão na minha mão e eu gostei dele. Parecia o patinho feio da história que meu pai sempre contava antes de eu dormir.
 Mamãe chegou perto de nós e disse que aquele era mesmo um pato especial. Ele costumava tomar conta das chupetas de alguns meninos. E fazia isso muito bem: ele transformava todas em estrelas! Superlegal!
 Pus o nome naquele pato de Pato Pão. Eu não queria perder nem o meu dente nem a minha chupeta… Talvez o Pato Pão fosse a soluçãopara o meu problema! Então… resolvi dar a minha chupeta verde para ele. Ele pegou minha chupeta verde com o bico e atirou longe, no lago. Eu fiquei olhando para ela boiando, boiando… até desaparecer… Na hora de entregar a minha chupeta verde, mesmo para um pato tão especial como o Pato Pão, eu segurei bem forte a mão da minha mãe e a do meu irmão!
 Enquanto a minha chupeta verde ia embora no lago, pensei que naquela noite ela não ia estar embaixo do meu travesseiro. Eu teria que ir até a janela se quisesse dar uma espiada nela.
 Quando a noite apareceu, meu pai chegou do trabalho e se deitou na cama comigo, olhando pro céu, procurando a minha estrela-chupeta verde. Eu vi primeiro e nós dois batemos palmas pra ela! Aí eu só me lembro de adormecer com aquele brilho de estrela no meu olho e a sensação do abraço enorme do meu pai.
 Todas as vezes em que penso na minha chupeta, olho pro céu, procurando a estrela-chupeta verde. Agora, a saudade, em vez de crescer como eu, fica menor a cada noite. Deve ser porque meninos grandes gostam mais de estrelas no céu do que de chupetas, eu acho.

Fonte:
Revista Nova Escola

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Clarice Lispector (Macacos)

Perto do Ano-Novo, a família ganhou um mico de presente. Era um macacão ainda não crescido, que não dava sossego a ninguém. A dona da casa-narradora estava exausta.

Uma amiga entendeu o sofrimento dela e chamou uns meninos do morro. Eles levaram o macaco.

Um ano depois, a narradora comprou uma macaquinha nas mãos de um vendedor em Copacabana. Era delicada e recebeu o nome de Lisette. Vestiram-na de mulher e ela encantava a todos.

Três dias depois, Lisette estava na área de serviço sendo admirada pela família. Ela encantava sobretudo pela doçura. Só que não era doçura, era a morte chegando. Levaram-na rapidamente para o veterinário, enfrentando um trânsito difícil. Ela estava tendo falta de oxigênio. Deixaram-na na clínica.

No dia seguinte, morreu. Uma semana depois, o filho mais velho disse para a mãe: “Você parece tanto com Lisette! ‘Eu também gosto de você’, respondi.”

Fonte:
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina.

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Heloísa Seixas (A Penitência das Flores)

Ontem, voltei a vê-lo. Elegante, como sempre, discreto em seu terno escuro, o colarinho branco impecavelmente limpo contrastando com a pele morena, a gravata-borboleta cor de sangue. Na cabeça pequena, os cabelos muito brancos, cortados baixinho. Nas mãos, morenas também e um tanto calosas, a cesta de flores. Não trazia rosas de várias cores dessa vez, apenas vermelhas. Cada uma delas envolta num pedaço de papel laminado, tendo junto ao cabo um raminho verde que me pareceu avenca.

O velhinho que vende flores.

Há muito não o via. Mas sempre que o encontro, devo confessar, renova-se o impacto. E dessa vez mais ainda porque ele estava diferente. Assim que entrou no restaurante, notei-o muito circunspecto, mais do que de hábito, e vi que trazia nos olhos escuros uma chispa de tristeza. Fiquei olhando-o, enquanto oferecia suas flores, na varanda do restaurante. Uma mesa ruidosa, onde oito pessoas pareciam celebrar alguma coisa, ocupou-se dele por uns instantes, as mulheres esticando os braços para tocar os botões, escolhendo os mais bonitos. Enquanto isso, o velhinho, que nessas horas costuma ser falante, estava mirando através do vidro da varanda, os olhos perdidos na noite.

Nesse instante, o garçom, meu conhecido – e que sabe do meu interesse por aquele vendedor de flores -, chegou a meu lado e disse:

– Está fazendo trinta anos hoje.

– É mesmo?

– É – respondeu o garçom, ele próprio um senhor, trabalhando naquele restaurante há mais de vinte anos.

– Como você sabe?

– Ele me disse, ontem. Às vezes conversa comigo. A senhora não notou como ele está estranho?

– É verdade – respondi, baixando a voz, porque o velhinho deixava a varanda e se aproximava de minha mesa. O garçom, discreto, se afastou.

Chegando junto a mim, o vendedor estendeu sua cesta, sem dizer palavra. Havia uma ponta de sorriso congelada em seu rosto, mas os olhos tinham um brilho insano.

Ele me olhou como se me varasse. E compreendi que o garçom dissera a verdade. A história, eu já conhecia. Só não sabia que, naquela data exatamente, fazia trinta anos que acontecera. Aquele velho, um homem bem-nascido, que tinha posses, um dia, por ciúmes, matara a mulher que amava. Fora preso, cumprira pena e, ao sair da prisão, tornara-se vendedor de flores. Assim, expiava seu pecado.

Tirei uma rosa da cesta e ergui, com uma mesura, como quem faz um brinde.

– Às flores – disse.

E ele sorriu. Em sua loucura, sabia, tanto quanto eu, que as flores eram sua penitência. E sua redenção.

Fonte:
SEIXAS, Heloísa. Contos mínimos. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Rio de Janeiro

Lola Prata (DÔ (Caminho))


Luas e sóis nos encontram a bordo. Água salgada até onde o olhar divisa. Caminhamos sobre essa água. Lar azul-marinho.

Mitiko, Shira e Yoko, pequenos rebentos de meus ramos, companheirinhas de tabi (viagem). Marido de doce espírito caminhante abre as neblinas da tristeza, deitando em nós as sementes de futuro. Enxuga nossas lágrimas com mãos jovens e calosas. Na sua face nada se nota, são como lágrimas nos olhos de peixe.

O tempo malvado traz fome. Traz sede. Traz saudades das cerejeiras, da cabana coberta de palha. Dói. Doeu deixar velho pai e velha mãe.

Estrelas da madrugada mexem-se no ritmo das vagas e das marolas inquietas. Céu dançante que preenche a insônia das cento e sessenta famílias aventureiras, vindas da direção do sol-nascente.

O vento toca flauta nos mastros do Kasato Maru. O vapor responde com as baforadas fumacentas. O silêncio ardido de cada coração ouve o estranho diálogo enquanto se distrái vendo a lua em banho de mar, vaidosa, se sacudindo como espada em mão de samurai.

Desenho ideogramas na memória de meu nikki (diário) de bordo, para não deixar Mitiko, Shira e Yoko esquecerem da saga. Será como makura-no-kotobá (palavras do travesseiro). A gorda valise de nossa roupa, onde descanso a cabeça, dita cada lembrança. Assim, faço dô para dentro de mim.

Pequenos rebentos querem liberdade, mas não podem correr. Perigo. Mar agitado pode engoli-las. Todos os rebentos ficam prisioneiros, enxertados nas mãos de suas mães. Brotos tenros têm que ser cuidados…

E, infinitamente, nuvens brancas passam em brancas nuvens. Esperamos. Esperamos. Esperamos. Muita paciência. Muito incômodo. Sofrimentos. Em tudo, porém, se sobressai o sonho-esperança que ilumina a treva da preocupação.

Na manhã de mil flores, ao apito de alegria, atracaremos. Deixaremos para trás o azul. Para a frente, o verde que nos dará a sobrevivência. Na terra marrom, pisaremos com reverência. Com respeito. Com delicadeza. Quando a ferirmos, será para fecundá-la. Assim, não zangada, gerará árvores que darão flores, que darão frutos.

Chegaremos na nova terra quando ela estiver vestida de fuyú (inverno). Inverno invejoso de nátsu (verão) quente e gostoso. Sempre nátsu no Brasil de brasa, falam por aí.

Bendito o porto firme e seguro que nos receberá! Leva o nome dos iluminados cristãos: Santos.

Fonte:
Texto enviado pela autora

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, São Paulo

Lola Prata (A Dormição de um Poeta)


Não estava muito velho. Ocupava-se o dia inteiro com a produção literária, o que o conservava entusiasmado, lúcido e atuante.

Naquela tarde, como em todas as outras, teria muitos papéis para preencher com poemas e com o que mais lhe satisfazia: autos de origem medieval renovados em estilo atual, adaptados em rimas sonoras. Tudo bem aceito pelo mercado livreiro. Letras puras, sem mesclas de maldade ou cinismo. Seu dom granjeava-lhe leitores assíduos. Frases limpas, ditadas pelo amor universal que cultivava com cuidado e que brotavam do reduto de seus sentimentos. O cérebro apenas equacionava e compunha em versos, quase sempre metrificados, o pensamento consagrado.

Assim cumpriu Dom Marcos Barbosa, o tempo a ele designado. Cumpriu-o bem até ser chamado à morada eterna para, então, ingressar na eternidade.
*
O povo contrito e vários bispos confrades do falecido, compareceram ao velório e encomendaram a Deus o corpo inerte.

Daí, alguém pediu que todos se acomodassem, pois que haveria mais uma oração. Esse alguém colocou uma fita cassete para rodar.
*
A voz de Dom Marcos irrompeu em timbre claro, perfeitamente audível. Ele fazia a própria entrega da alma à Misericórdia de Deus, a quem dedicara a vida. Foi um adeus-agradecimento aos amigos que tinham-no acompanhado na caminhada. Muitos seguraram as lágrimas quando o ouviram encerrar dessa maneira:

– Adeus…! Alegrem-se…! Estou indo para uma festa!

Fonte:
Texto enviado pela autora

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Arquivado em A Escritora com a Palavra

Darlene da Costa Diniz /PR (Nos Dois Lados do Vento)

Darlene é de Londrina/PR

Que Vento é este que me puxa para cá e me empurra para lá?

Decida Vento amoroso, pois de tanto ir para cá e para lá tonta até já fiquei.

Vou para cá só beleza vejo, vou para lá vejo tristeza. Até no meio já fiquei.

Assim no mesmo dia dava muitas gargalhadas e em seguida chorava.

Olha Vento amigo, resolva que lado quer me fazer ficar, pois nestes dois lados poderá virar uma poesia de dois horizontes.

Assim, muito sol e muita chuva e, de quebra, um presente feito arco-íris, colorida toda vou ficar.

Decida Vento, pois este arco-íris você levando o está para dois lados do rio.

Onde começa o arco-íris e onde termina.

Igual quando você, Vento camarada, me puxa para cá e me empurra para lá.

E neste puxa-puxa até deste lindo sonho despertei…

Fonte:
Câmara Brasileira dos Jovens Escritores. “Brasilidades / vol.3” – Edição Especial – Maio de 2012.

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Londrina

Vicência Jaguaribe (A Matrioska)

Para a Andrea,
a menina que não conseguiu
ficar com a sua matrioska.

Era a primeira vez que ia ao apartamento da amiga. Uma amiga recente, com quem se afinara. Tinham gostos muito parecidos. Naquele momento, ela lhe mostrava os cômodos, cuja decoração misturava o antigo com o moderno, mistura de que ela também gostava.

Pararam em frente a um pequeno armário de parede, afixado no espaço que ficava entre dois dos três quartos. A amiga abriu as duas portas do pequeno móvel suspenso, no interior do qual, envolvida pela quase penumbra do ambiente, ela identificou uma forma inconfundível.

— Que bonequinha é aquela, lá no fundo? — a pergunta sendo mais um desejo de confirmação do que propriamente uma tentativa de identificar.

— Ah! É uma matrioska. Linda, não?

Ela não ouviu a resposta da amiga. Ouviu a voz da avó, que vinha do passado, de um passado tão distante, meu Deus! que ela não pensava que ainda se lembrasse daquele episódio, muito menos daquela conversa.

A avó abrira a cristaleira e tirara lá do fundo uma bonequinha feita de madeira e pintada de cores vivas. Aquele mimo sempre atraíra a neta — ela sabia. Sentou na cadeira de balanço e pôs a menina no colo. Ela tinha o quê? Quatro, cinco anos… talvez seis. Entregou-lhe a boneca:

— Abra! Ela é oca. Veja o que há dentro dela.

Com muito cuidado, a menina abriu a boneca — separada que era em duas partes por um corte horizontal na altura da região dos quadris — e viu, surpresa, que dentro dela havia outra boneca menor. A avó, então, mandou que ela continuasse abrindo as bonecas menores. A menina foi abrindo, abrindo, abrindo… A cada nova boneca seus olhos demonstravam mais surpresa e encantamento. A operação continuou até chegar a uma minúscula boneca compacta. Junto com a avó ela contou: uma, duas, três… sete bonecas! E elas se encaixavam umas dentro das outras de maneira tão perfeita que quem via a maior não suspeitava que dentro dela havia outras seis bonecas. Era como se fosse um mundo dentro do outro, mas cada um existindo por si próprio, independente, sem misturar-se.

— Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha. Algumas pessoas acham que ela representa a família, sempre protegida pela mãe. Contam que essas bonecas se originaram no Oriente: um pintor artesanal russo, chamado Sergei Maliuntin, viu no Japão uma peça representando os Shichi-fuku-jin, os sete deuses da fortuna, que se encaixavam uns nos outros como as bonecas feitas hoje. Ele, então, pensou em aproveitar a ideia dos japoneses, só que fazendo bonecas representando pessoas. Fez a primeira e pintou-a como uma camponesa russa. E nasceu a matrioska.

A menina ficou toda animada. Em suas visitas à casa da avó, passava pela sala da cristaleira e demorava longos minutos olhando a sua boneca. A boneca que era sua, mas com a qual não podia brincar.

Nos fins de semana, nas férias, a menina ia à casa da avó. Uma grande casa assobradada, no Benfica, com muitas e frondosas árvores, principalmente mangueiras, nas quais ela, seus irmãos e primos gostavam de brincar. Escanchavam nos galhos mais altos e faziam de conta que estavam num campo de batalha, montados em belos cavalos árabes.

Um dia, ela teve coragem e perguntou:

— Mãe, o que é uma herança?

— Uma herança é dinheiro ou bens que a gente recebe quando morre um parente rico.

A menina ficou de cara amarrada o resto do dia. Então, a vovó ia morrer? Ela dissera que a boneca russa ia ser a sua herança. Eu não quero que a vovó morra. Mas também quero a bonequinha, ela pensava. Era um grande conflito atormentando a cabecinha da menina. E ela só tinha seis anos.

Um ano depois, a avó morreu. Enquanto a família toda chorava, a menina sentia o coração bater em um compasso diferente. E não era propriamente vontade de chorar o que ela experimentava. Mas precisava parecer triste. Ninguém podia desconfiar que ela, apesar de sentir a morte da avó, estava feliz porque ia ganhar a matrioska. Três dias após o enterro, o pai chamou-a para ir com ele à casa do Benfica. A menina alegrou-se como se o pai a tivesse convidado para ir a um parque de diversões. Pronto, chegara o dia de receber a desejada herança. Era só abrir a cristaleira e de dentro dela tirar aquele mimo que tanto a fascinava.

Parou em frente ao móvel, mas antes de abri-lo olhou para a sua boneca. Quase desmaia. A matrioska não estava mais em seu lugar. E as lágrimas começaram a escorrer. E os soluços se fizeram ouvir por toda a sala. Os adultos a cercaram e tentaram consolá-la pela morte da avó. E quanto mais a família tentava consolá-la, dizendo que a vovó estava no céu, mais ela chorava. Chorava e sentia remorso: ela não chorava pela avó, chorava pela matrioska, que não mais seria sua. Alguém se antecipara e achara-se no direito de ficar com a sua boneca. E todas as vezes em que a família se reunia no casarão do Benfica ela chorava. Chorava pela boneca, mas todos pensavam que era pela avó. Ela sentia vergonha e remorso daquelas lágrimas.

— Uma matrioska! Foi sempre meu sonho possuir uma dessas bonecas. — Só agora ela respondia à observação da amiga.

A amiga impressionou-se com o tom de sua voz e com o ar triste e desconsolado que lhe cobria o rosto. Tirou a matrioska do armário e a pôs em suas mãos.

— Pronto. A boneca é sua.

Ela não pôde de imediato agradecer à amiga, porque estava novamente sentada no colo da avó, que lhe contava a história da matrioska e lhe dizia o que ela sempre quisera ouvir:

— Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha…

Fonte:
Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Painel 2012 de Novos Autores Brasileiros – Contos – Maio de 2012

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Arquivado em A Escritora com a Palavra, Ceará.

Clarice Lispector (As Maniganças de Dona Frozina)


– Também com esse dinheirinho mirrado…

Isso é o que a viúva dona Frozina diz do montepio. Mas dá para ela comprar Leite de Rosas e tomar verdadeiros banhos com o líquido leitoso. Dizem que sua pele é espetacular. Usa desde mocinha o mesmo produto e tem cheiro de mãe.

É muito católica e vive em igrejas. Tudo isso cheirando a Leite de Rosas. Como uma menina. Ficou viúva com vinte e nove anos. E de lá para cá – nada de homem. Viúva à moda antiga. Severa. Sem decote e sempre com mangas compridas.

– D. Frozina, como é que a senhora arrumou sua vida sem homem?, quero lhe perguntar.

A resposta seria:

– Maniganças, minha filha, maniganças.

Dizem dela: muita gente jovem não tem o espírito que ela tem. Está na casa dos setenta, a excelentíssima senhora dona Frozina. É sogra boa e ótima avó. Boa parideira que foi. E continuou frutificando. Eu queria ter uma conversa séria com d. Frozina.

– Dona Frozina, a senhora tem qualquer coisa a ver com d. Flor e seus três maridos?

– Que é isso, minha amiga, mas que pecado grande! Sou viúva virgem, minha filha.

Seu marido se chamava Epaminondas, com o apelido de Moço.

Olhe, d. Frozina, tem nomes piores do que o seu. Tem uma que se chama Flor de Lis – e como acharam ruim o nome, deram-lhe apelido pior: Minhora. Quase minhoca. E os pais que chamaram seus filhos de Brasil, Argentina, Colômbia, Bélgica e França? A senhora escapou de ser um país. A senhora e suas maniganças. “Ganha-se pouco”, diz ela, “mas é divertido”.

Divertido como, minha senhora? A senhora não conheceu então a dor? Foi driblando a dor pela vida afora? Sim, senhora, com minhas maniganças fui escapando.

D. Frozina não toma Coca-cola. Acha que é moderno demais.

– Mas todo mundo toma!

– Eu é que não, cruz-credo! parece até remédio contra bichas, Deus me livre e guarde.

Mas se acha o gosto de remédio é porque já provou.

D. Frozina usa o nome de Deus mais do que deveria. Não se deve usar o nome de Deus em vão. Mas com ela não cola essa lei.

E ela se agarra nos santos. Os santos já estão enjoados dela, de tanto ela abusar. De “Nossa Senhora” nem se fala; a mãe de Jesus não tem sossego. E, como vem do norte, vive dizendo: Virgem Maria! a cada espanto. E são muitos os seus espantos de viúva ingênua.

D. Frozina rezava todas as noites. Fazia uma prece para cada santo. Aí aconteceu o desastre: ela adormeceu no meio.

– D. Frozina, que coisa horrível a senhora cochilar no meio da reza deixando os santos à toa!

Ela respondeu com um gesto de mão de descaso:

– Ah, minha filha, cada um que pegue o dele.

Teve um sonho muito esquisitinho: sonhou que viu o Cristo do Corcovado – e cadê os braços abertos? Estavam era bem cruzados, e o Cristo enjoado como se dissesse: vocês que se arranjem, estou farto. Era um pecado esse sonho.

D. Frozina, chega de maniganças. Fique com o seu Leite de Rosas e “io me ne vado”. (É assim que se diz em italiano quando uma pessoa quer ir embora?)

Dona Frozina, excelentíssima senhora, quem está farta da senhora sou eu. Adeus, pois. Cochilei no meio da reza.

P.S. Procure no dicionário o que quer dizer maniganças. Mas adianto-lhe o serviço: manigança – prestidigitação; manobra misteriosa, artes de berliques e berloques. (Do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa).

Um detalhe antes de acabar:

D. Frozina quando era pequena, lá em Sergipe, comia acocorada atrás da porta da cozinha. Não se sabe por quê.

Fonte:
LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. RJ: Ed. Francisco Alves, 1994.

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