Arquivo do mês: março 2009

IV Concurso Nacional de Haicais Caminho das Águas


Realização: Grêmio de Haicai Caminho das Águas, Santos /SP.
Apoio cultural: Secretaria de Cultura de Santos/SP e SESC/Santos.
As inscrições estarão abertas de 12 de março a 31 de maio de 2009.

Esclarecimentos poderão ser solicitados pelos telefones: (13) 3021-1604 (13) 3271-3296, (13) 3238-4921 ou pelo e-mail: npavesi@uol.com.br

REGULAMENTO

1. Inscrição

As inscrições estarão abertas de 12 de março a 31 de maio de 2009.

Poderão participar praticantes de haicai maiores de 16 anos residentes no território nacional, filiados ou não a Grêmios de Haicai.

Os trabalhos serão enviados pelo sistema de envelopes, via Correio, para:

IV CONCURSO NACIONAL DE HAICAIS CAMINHO DAS ÁGUAS
Rua Alexandre Martins, 03, apt.º 15-108
CEP 11025-200 Santos/SP

Para efeito de inscrição valerá a data de postagem, que não poderá ser posterior a 31 de maio de 2009.

Não poderão participar deste Concurso os atuais associados do Grêmio de Haicai Caminho das Águas.

2. Apresentação dos trabalhos

2.1.Cada participante concorrerá com 2 (dois) haicais inéditos, em língua portuguesa, sendo: 1 (um) haicai com o kigo (tema) laranja e 1(um) haicai com o kigo (tema) relâmpago.

2.2. O kigo deve constar de um dos versos do haicai.
* A referência é o haicai tradicional: 3 (três) versos (5-7-5), num total de 17 (dezessete) sílabas poéticas, com 1 kigo somente, sem titulo e sem rima.

2.3. Os haicais serão apresentados sob pseudônimo, em uma folha de papel A4, digitados ou datilografados, em fonte 14, espaço 2.0. Os 2 haicais devem ser colocados na mesma folha.

2.4. O trabalho deverá ser apresentado em 3 (três) vias com pseudônimo.

2.5. As cópias serão colocadas num envelope maior junto com um envelope menor, lacrado, contendo os seguintes dados: nome completo, endereço (com CEP), telefone, e-mail.

2.6. Por fora do envelope menor constará, apenas, o pseudônimo do autor.

2.7. O envelope maior, com o endereçamento constante no item 1.3, não conterá nada que identifique o autor. Se necessário, usar como remetente o pseudônimo e o endereço do Concurso.

3. Comissão Julgadora

3.1. Será formada por haicaistas do Grêmio de Haicai Caminho das Águas, de Santos/SP.

3.2. Os haicais serão avaliados rigorosamente dentro dos preceitos de Mestre Bashô (tradicional).

3.3. O resultado final será divulgado na 1.ª quinzena de Julho de 2009, pelos sites:

www.concursosliterarios.com.br
www.maxpressnet.com.br
www.blocosonline.com.br
www.kakinet.com
www.ubaweb.com

4. Premiação

4.1. Serão premiados os 3 (três) melhores haicais.

4.2. Os 10 (dez) primeiros classificados receberão certificados de participação e terão seus haicais publicados em Boletim Especial do Grêmio de Haicai Caminho das Águas e nos sites:

www.concursosliterarios.com.br
www.maxpressnet.com.br
www.blocosonline.com.br
www.kakinet.com
www.ubaweb.com

4.3. A reunião festiva de premiação será no dia 08 de Agosto de 2009 , 2º sábado do mês, às 15 horas, numa das salas do SESC/Santos, sito à Rua Conselheiro Ribas, 136, Bairro Aparecida, Santos/SP.

4.4. As despesas de postagem de troféus e eventuais brindes dos que não comparecerem correrão por conta dos classificados.

5. Disposições Finais

5.1 Os trabalhos enviados que não obedecerem aos critérios previstos neste regulamento serão automaticamente desclassificados.

5.2. Não haverá devolução dos trabalhos enviados. Após a divulgação do resultado, eles serão incinerados.

5.3. As decisões da Comissão Julgadora são irrecorríveis.

5.4. Os casos omissos serão resolvidos pela Comissão Organizadora.

5.5. Esclarecimentos poderão ser solicitados pelos telefones: (13)3021-1604, (13) 3271-3296, (13) 3238-4921 ou pelos e-mails:

npavesi@uol.com.br
orgone1@terra.com.br
anjosconosco@uol.com.br .

5.6. A participação no concurso implicará a aceitação deste Regulamento.

Fontes:
http://www.concursosliterarios.com.br/
Imagem = montagem em cima da capa do livro da 7a. Antologia do Grêmio de Haicai

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X Concurso Literário de Poesias da Fundação Cultural Casimiro de Abreu

Regulamento

1. Participantes:

Poderão participar do concurso moradores do município de Casimiro de Abreu e demais municípios do Brasil, com idade a partir de 16 anos.

2. Período de inscrição:

Os trabalhos deverão ser entregues na Casa de Cultura Estação Casimiro de Abreu, situada à Praça Lucio André – s/n, Centro – Casimiro de Abreu RJ – CEP 28860-000, no horário de 09h às 17h, de segunda a sexta-feira, entre 12 de janeiro e 31 de julho de 2009 ou enviadas por Correio obedecendo as mesmas datas, valendo o carimbo postal como comprovante do prazo.

3. Textos:

3.1. Deverão ser escritos em língua portuguesa, digitados em papel branco A4, de um só lado da folha em fonte Arial ou Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5, em 5 (cinco) vias;

3.2. Não serão aceitos trabalhos manuscritos.

3.3. Os trabalhos deverão ser inéditos, isto é, ainda não publicados.

3.4. Cada concorrente poderá participar com apenas 1 (um) trabalho.

3.5. Nas páginas enviadas deverão conter somente o título da obra, a obra e o pseudônimo do autor.

3.5.1. Afim de resguardar a lisura da seleção dos trabalhos, os pseudônimos NÃO deverão guardar qualquer semelhança com o nome, apelido ou outro fator de identificação do concorrente.

4. Apresentação dos Trabalhos – Envelope:

4.1. Os trabalhos deverão ser enviados dentro de um envelope endereçado da seguinte maneira:
X CONCURSO LITERÁRIO DE POESIA
Fundação Cultural Casimiro de Abreu
Praça Lúcio André s/n, centro, Casimiro de Abreu – RJ.
CEP 28860-000

No remetente deverá vir escrito o nome do autor e o endereço.

4.1.1. O pseudônimo NÃO poderá vir escrito no exterior do envelope.

4.2. TODAS as folhas dos trabalhos deverão conter apenas o pseudônimo no rodapé, sem assinatura ou qualquer tipo de identificação.

4.3. A ficha de inscrição devidamente preenchida e assinada deverá vir dentro do envelope.

4.3.1. É importante o preenchimento correto da ficha de inscrição para correta identificação do participante e para facilitar contatos posteriores.

4.3.2. O preenchimento incorreto ou ilegível da ficha de inscrição poderá desclassificar o concorrente.

4.4. Não serão aceitas inscrições pela Internet.

4.5. Não haverá devolução dos trabalhos recebidos.

4.6. Os trabalhos que não obedecerem às regras estipuladas serão automaticamente desclassificados.

5. Julgamento

5.1. O corpo de jurados será formado por profissionais da área, altamente qualificados e designados pela Comissão Organizadora do Concurso.

5.2. As decisões do júri são soberanas e irrecorríveis.

5.3. Serão ainda critérios para julgamento:

5.3.1. Demonstrar conhecimento da língua portuguesa;

5.3.2. Manter o texto dentro das dimensões propostas no Regulamento.

5.4. A comissão organizadora decidirá sobre as omissões deste Regulamento, depois de ouvida a opinião do júri.

6. Divulgação dos resultados:

O resultado será divulgado através dos sites: www.culturacasimiro.rj.gov.br, www.casimiro.rj.gov.br no dia 30 de setembro de 2009.

7. Entrega da premiação:

A premiação será entregue na Casa de Cultura Estação Casimiro de Abreu durante coquetel, às 20h, do dia 30 de outubro de 2009.

8. Premiação:

8.1. O primeiro colocado receberá 1 (uma) máquina fotográfica digital e um certificado de participação.

8.2. O segundo colocado receberá 1 (um micro-sistem) e um certificado de participação.

8.3. O terceiro colocado receberá 1 (um) aparelho MP4 e um certificado de participação.

8.4. O júri poderá indicar ainda duas menções honrosas, que receberão certificados.

8.5. Todos os concorrentes receberão certificados de participação.

8.6. Em nenhum dos níveis de premiação será permitido o empate.

8.6.1. O desempate ficará a cargo do júri, que destacará os trabalhos com o mesmo número de votos e realizará votação separada até que haja um vencedor.
8.6.2. Os critérios para julgamento serão subjetivos, dada a natureza do concurso.

8.7. Os prêmios deverão ser retirados na sede da Fundação Cultural Casimiro de Abreu ou, na possibilidade do vencedor residir em outro município, serão enviados por sedex.

8.7.1. A Fundação Cultural Casimiro de Abreu não se responsabilizará por eventuais danos ou extravios ocorridos aos prêmios durante o transporte.

9. Disposições Gerais

9.1. A Fundação Cultural Casimiro de Abreu se reserva o direito de publicar poemas, vencedores ou não, em livros, ficando explícito que o ato de inscrição através da Ficha implica em autorização para publicação.

9.2. Nos casos em que o participante for menor de idade, os pais ou responsáveis deverão assinar a Ficha de Inscrição.

9.3. No caso da publicação de livros com poemas, o autor receberá 05 (cinco) exemplares a título de direito autoral.

Casimiro de Abreu, 12 de janeiro de 2009.

REALIZAÇÃO:
PREFEITURA MUNICIPAL DE CASIMIRO DE ABREU
FUNDAÇÃO CULTURAL CASIMIRO DE ABREU
ACADEMIA CASIMIRENSE DE LETRAS E ARTES

Fonte:
http://www.concursosliterarios.com.br/

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VIII Prêmio Livraria Asabeça 2009

A Livraria e Loja Virtual Asabeça organiza anualmente o Prêmio Literário Livraria Asabeça, categorias Poesia, Contos/Crônicas e Infantil, com apoio da Scortecci Editora, para autores brasileiros, maiores de 16 anos, residentes ou não no Brasil.

O tema é livre.

O Prêmio tem por objetivo descobrir novos talentos e promover a literatura brasileira. O concurso será realizado em duas fases distintas, exceto a Categoria Infantil. Inscrições somente pela Internet.

Os vencedores, em cada uma das categorias, receberão como prêmio um contrato de edição e publicação de sua obra e terão os seus trabalhos publicados na antologia do VIII Prêmio Literário Asabeça 2009.

INSCRIÇÕES: até 30 de junho de 2009

Ao fazer a inscrição, o autor estará concordando com as regras do prêmio, inclusive autorizando a publicação dos trabalhos em livro pela Scortecci Editora e responderá por plágio, cópia indevida e demais crimes previstos na Lei do Direito Autoral.

A Livraria e Loja Virtual Asabeça escolherá uma Comissão Julgadora composta de três membros de renomado prestígio literário por categoria, e uma Comissão Organizadora que resolverá os casos omissos deste regulamento, se houver.

REGULAMENTO

O autor poderá participar das três categorias ao mesmo tempo desde que proceda em conformidade com as normas de cada categoria, pagando, inclusive três taxas de inscrição.

Os trabalhos deverão estar em língua portuguesa, o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto.

Para cada categoria será cobrada uma taxa de inscrição no valor de R$ 20,00 através de Boleto Bancário emitido pelo sistema no ato da inscrição.

ATENÇÃO:

É vetada a participação de autores que já tenham recebido prêmio da publicação, seja como Vencedor ou Menção Honrosa, o que não impede a participação dos mesmos na Antologia dos Vencedores do Prêmio Literário Asabeça.

CATEGORIA POESIA

Cada autor deverá inscrever-se obrigatoriamente com dois poemas de no máximo três páginas cada, formato A4 (210 x 297 cm), texto digitado em Word, em corpo 12 e fonte Times New Roman.

Os poemas devem ter obrigatoriamente um título. Não há necessidade de pseudônimo.

Preencher a ficha de inscrição completa que está no endereço: http://www.concursosliterarios.com.br, anexar as POESIAS (único aquivo) e enviar.

No ato da inscrição o sistema emitirá automaticamente um boleto bancário com compensação nacional com prazo para pagamento de até 3 (três) dias.

CATEGORIA CONTOS / CRÔNICAS

Cada autor deverá inscrever-se obrigatoriamente com dois contos ou crônicas de no máximo cinco páginas cada, formato A4 (210 x 297 cm), digitado em Word, em corpo 12 e fonte Times New Roman.

Os contos ou crônicas terão que ter obrigatoriamente um título. Não há necessidade de pseudônimo.

Preencher a ficha de inscrição completa que está no endereço: http://www.concursosliterarios.com.br, anexar os CONTOS ou CRÔNICAS (único arquivo) e enviar.

No ato da inscrição o sistema emitirá automaticamente um boleto bancário com compensação nacional com prazo para pagamento de até 3 (três) dias.

CATEGORIA INFANTIL

Cada autor deverá inscrever-se obrigatoriamente com uma única história de texto infantil de no máximo 10 (dez) páginas, formato A4 (210 x 297 cm), digitado em Word, em corpo 12 e fonte Times New Roman.

A história deve ter obrigatoriamente um título. Não há necessidade de ilustrações.

Preencher a ficha de inscrição completa que está no endereço: http://www.concursosliterarios.com.br, anexar o TEXTO (único arquivo) e enviar.

No ato da inscrição o sistema emitirá automaticamente um boleto bancário com compensação nacional com prazo de pagamento de até 3 (três) dias.

Não haverá segunda fase para esta categoria. O resultado final será anunciado em dezembro de 2009 quando forem divulgadas as segundas fases das demais categorias.

2ª FASE DO CONCURSO: CATEGORIAS POESIA e CONTOS /CRÔNICAS

Serão selecionados na 1ª fase do concurso 15 (quinze) autores por categoria, com base no conjunto do material entregue pelo autor.

Na 2ª fase, cada autor CLASSIFICADO deverá entregar, no prazo de até 40 (quarenta) dias a contar da data da divulgação oficial (agosto de 2009), os originais de um livro com até 80 páginas, deixando reservadas 12 (doze) páginas para folhas de abertura, créditos, dedicatória, prefácio, sumário, selo da gráfica, etc.

A Comissão Organizadora orientará individualmente cada autor, ajudando-o, se necessário, na elaboração do boneco para a 2ª Fase. Os autores que não cumprirem o prazo serão automaticamente desclassificados.

Todos os autores classificados na 1ª Fase, terão seus trabalhos publicados na Antologia do VIII Prêmio Literário Livraria Asabeça 2009, independentemente de estarem participando ou não da 2a. fase.

RESULTADO FINAL

O resultado final do VIII Prêmio Literário Livraria Asabeça 2009, 2ª Fase, dar-se-á em dezembro de 2009 e será publicado oficialmente no Portal Concursos e Prêmios Literários, no site da Livraria Asabeça e nos demais sites do Grupo Editorial Scortecci.

PRÊMIOS

1º Lugar Categoria Poesia: Um contrato de edição e impressão de 250 (duzentos e cinqüenta) exemplares (sendo 200 exemplares para comercialização através da Livraria e Loja Virtual Asabeça e 50 exemplares inteiramente grátis para o autor), com 80 (oitenta) páginas, formato 14 x 20,7cm, sendo: 1) Miolo – Impressão em duplicador digital, preto e branco, sem o uso de fotolitos, em papel offset branco 75 gramas, acabamento telado e colado em cadernos de 4 páginas. 2) Capa – Impressão em 4 cores (quadricromia), em papel Cartão branco 250 gramas, com orelhas e plastificação brilhante.

1º Lugar Categoria Contos e Crônicas: Um contrato de edição e impressão de 250 (duzentos e cinqüenta) exemplares (sendo 200 exemplares para comercialização através da Livraria e Loja Virtual Asabeça e 50 exemplares inteiramente grátis para o autor), com 80 (oitenta) páginas, formato 14 x 20,7cm, sendo: 1) Miolo – Impressão em duplicador digital, preto e branco, sem o uso de fotolitos, em papel offset branco 75 gramas, acabamento telado e colado em cadernos de 4 páginas. 2) Capa – Impressão em 4 cores (quadricromia), em papel Cartão branco 250 gramas, com orelhas e plastificação brilhante.

1º Lugar Categoria Infantil: Um contrato de edição e impressão de 200 (duzentos) exemplares (sendo 150 exemplares para comercialização através da Livraria e Loja Virtual Asabeça e 50 exemplares inteiramente grátis para o autor), com 32 (trinta e duas) páginas, formato 14×20,7 cm, sendo: 1) Miolo – Impressão em digital, 4 x 4 colorido, sem o uso de fotolitos, em papel couchê fosco 115 gramas, acabamento grampeado. 2) Capa – Impressão em 4 cores, em papel Cartão branco 250 gramas, plastificação brilhante, sem orelhas.

A título de Direito Autoral cada autor receberá 10% (dez por cento) sobre o preço de capa de sua obra comercializada através da Livraria Asabeça, pelo prazo de 1 (um) ano ou o término da edição, o que acontecer primeiro. Após o término do contrato o autor poderá adquirir o saldo com desconto de 80% sobre o preço de capa. Não havendo interesse por parte do autor os livros serão distribuídos gratuitamente para bibliotecas, escolas públicas e divulgação do próprio Prêmio Literário Livraria Asabeça.

1º ao 15º Lugares Categorias Poesia e Contos/Crônicas: Publicação dos trabalhos classificados na 1ª Fase do concurso na Antologia do VIII Prêmio Literário Livraria Asabeça 2009. Cada autor receberá 5 (cinco) exemplares da obra a título de Direito Autoral. Os autores participantes poderão adquirir exemplares da obra com 50% de desconto sobre o preço de capa, havendo livros em estoque.

Mais informações:
Livraria e Loja Virtual Asabeça
http://www.asabeca.com.br/
Telefone: (11) 3031.2298 com Pamella Brandão.
E-mail: asabeca@asabeca.com.br

Fonte:
http://www.concursosliterarios.com.br/

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Paulo Bentacur (Algumas Poesias)

Alex Matthiensen (Num cantinho da Lagoa
Ibirapuera, SC) [2007] aquarela
A PRIMEIRA NOVELA DE ERICO VERISSIMO

Amaro tem um piano.
Faz amor por aluguel.

Na pensão de Tia Zina,
fita a menina Clarissa
com nostálgica saudade
do amor que não viveu.

Um papagaio gasta o nome,
repetindo-o, sempre, sempre.
Clarissa tem um temperamento,
que a adolescência nem disfarça.

É primavera, os residentes
vêm de tantos lugares, são
tão diferentes que Amaro
perde-se em si mesmo, e
busca-se em camas sem
ilusão, em inocências
que só pode fitar,
à espera que o futuro
faça o presente dar frutos.

Amaro tem nome de luto.
Clarissa tem nome de sol.
Duas presenças opostas
que se encontram por acaso
como quem, fora de casa,
abana a um conhecido,
sorri, valeu, e é só isso.
=====================

DESPERTAR

Acordo sem um acordo com a manhã
que esguicha suas freadas já tão cedo,
e sem ceder a qualquer convite, ergo
o corpo já cansado antes dos medos
comuns a qualquer homem que caminha
entre as ruas ou mesmo entre a família.

A noite passou lenta e não me deu
sonhos, estremeções nem mesmo o peso
de um pesadelo a dar sentido ou temor
para o dia que se pretende poderoso.
Levanto, escovo os dentes, me submeto
à repetitiva água do chuveiro.

Debaixo do aguaceiro, ora quente,
ora frio, me arrepio: dia seguinte.
Ontem houve o que houve e não repete
nada, ainda mesmo que eu me esforce
na reprodução de um cotidiano.
(Arte a fixar para o amanhã.)

Tão cedo e, entre bocejos,
arquejo no esforço de pensar
que hoje é só o começo, sol penteado
no qual ruge a ordem desses tempos
empurrando-me como se tudo afinal
urgisse, por mais que eu tanto faça.

Não saberei quando parar no exato instante
em que parar. Caindo, o sol trará
a noite e, de novo, o inquieto
povoará o vencido lençol até que a luz
sacuda-o, amarfanhado rosto. O espelho
o denuncia sem que o acuda o banho.
===========================

ASCENSÃO E QUEDA DO DIÁLOGO

Um homem liga a tevê, o rádio, escuta o vozerio da rua.
Esse homem veste roupas que não combinam.
Aperta as mãos, sorri, goza o frio enervante da dúvida
em saber qualquer coisa que o conduza para algo
que se possa chamar de um lugar.
Nem precisa ser um destino.

Um homem que não conhecemos e que, cansado de si,
entende e aceita que não o verem não significa o fim
nem o começo de uma história, e portanto ele pode
continuar desse jeito, tevê, rádio e rua gritando
e ele nem aí, falando também, ao mesmo tempo,
sem que os outros escutem, imitando sua surdez.

Um homem que parece tudo, menos mudo – como tudo.
Que engole ávido a mudez a tomar conta do fluxo
de ruídos que explodem para o silêncio faminto.
=======================

CAFÉ

O marrom pleno,
quase negro.
O cheiro se evola,
o ar a bebê-lo,
enquanto olho
a xícara, a mesa
– eis minha missa
e um companheiro.

Sirvo o líquido,
aspiro o aroma,
e o beberico.
Sou homem rico
com tão pouco.
Preparo outro
e o estendo
até o amigo,
e digo: “toma”.

Nem é preciso.
As mãos seguram
a taça plena
que depois pousa
sobre a mesa.
Corpo aquecido
e o paladar
com um sabor
nunca esquecido.

Além da mente
a acordar
para o real
que ainda dorme
tão inocente.
Lá fora o dia
boceja, lento,
com sua fé.

Nada mais tem
até que alguém
beba um café.
Então, num salto,
põe-se em pé.

E é caminhar.

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Pintura = http://www.flickr.com/photos/alex_matthiensen

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Paulo Bentacur (A gênese do gênio)

John Faed (Shakespeare e seus contemporâneos) [1851]
O jornal era de circulação modesta, mas o anúncio impressionava: “Transforme-se num Shakespeare em seis meses. Curso de redação literária administrado pelo Professor Paiva.”

Paiva era bem relacionado, solteiro apesar dos circunspectos 57 anos, e além do anúncio pelo qual pagara R$ 490,00 reais para inserção diária na página 3, havia outros que davam autenticidade ao que o professor prometia. “Agradeço ao Professor Paiva por ter resolvido em meio ano o que mais de dez de prática literária constante não conseguiram. Hoje sou disputado por várias editoras.” Quem assinava o agradecimento público era um desconhecido, o que gerava desconfiança quanto à eficácia do método do Professor, mas isso Paiva explicava facilmente. Não ia um homem coberto pela glória expor-se assim; para tanto, utilizara-se de pseudônimo, registrando a gratidão justa e, ao mesmo tempo, preservando-se.

O fato é que em pouco tempo a agenda de Paiva não dispunha mais de datas: 83 alunos freqüentavam sua casa, revezando-se numa carga horária bastante puxada. Todos os dias, das 9 às 18h, Paiva recebia alguma promessa. Seu desafio era transformar essa promessa em realidade, desafio maior ainda se considerarmos que a maciça maioria não era promessa de coisa alguma.

Militares reformados com vida ociosa e fantasias beletristas, que mal sabiam redigir uma carta; senhoras viúvas, ou solteiras mesmo, que sonhavam em ocupar suas paredes com diplomas de menção honrosa; publicitários que dominavam as mumunhas da redação metida a esperta e engraçadinha e que queriam mais, bem mais. Paiva jurava que tinha mais.

Durante uns seis anos a casa de Paiva conviveu um movimento que as casas da vizinhança, mesmo aquelas dadas a festas nada ocasionais, ignoravam. Mas a constância dos alunos não repetia nomes, apenas quantidade. O Major Hipólito freqüentou aquele vetusto recinto uns três meses, e logo pediu baixa. Silvinho Cláudio, redator da Fala Ação, ficou menos tempo ainda, quatro semanas, e desistiu. Ismael dos Santos Bicalho, jornalista aposentado, foi um que entrou e saiu da casa do professor sempre disposto a entrar de novo. Não se convencia da ausência de progresso em seus textos. Culpava a si mesmo, não a Paiva, cujos esforços eram ingentes. Mas um dia Ismael cansou, ou talvez tenha ficado constrangido, nunca se sabe. Dona Élida Paranhos continuava, jamais falhou uma aula nesses seis anos, mas Élida era uma mulher de fibra, constante em tudo que fazia, e sua esperança, nada secreta, era tão vasta como vasta era sua carência, e a nada abandonava, nem sequer à decepção que sentia com as aulas de Paiva há mais de dois anos.

Enquanto mais de 75% dos alunos iam ficando pelo caminho, desistindo, dando o braço a torcer ao comentário de um parente que punha sérias dúvidas sobre o futuro do literato, os 25% que permaneciam, permaneciam porém com o ânimo arrefecido, sem forças sequer para debater o método do aplicado Paiva.

Os anúncios continuavam, e faziam aquele sucesso. Todos na cidade se admiravam que um homem pudesse transformar outro num Shakespeare, logo em quem. Mas depois de seis anos – o mundo é impaciente – os luminares da comunidade passaram a perguntar-se: falando nisso, quando é que vamos ver na prática o que a teoria tão entusiasticamente anuncia?

Nada viam surgir além dos nomes de sempre, os novos nomes de sempre, se se pode dizer assim, gente que estréia com cara de quem vai dependurar a chuteira no segundo livro, e é bom que dependure depressa, se pensa, quando não dependuram somente – mas já – no terceiro.

Enquanto isso, a cidade vizinha, com quatro universidades, três grandes jornais e sete nomes a ostentarem fortuna crítica a pô-los na lista dos cem maiores da literatura contemporânea do país (o que, somando todos, não dá meio Shakespeare), ia, de ano em ano, apresentando uma que outra novidade, a causar susto na pasmaceira geral. A novidade sacudia a rotina, ficava na vitrine algum tempo, até sumia depois, mas ficava o suficiente para dar a impressão aos conterrâneos de Paiva que o seu método não era lá essas coisas.

O próprio Paiva, homem sério, dedicado, cujo único pecado fora aceitar a oferta do departamento de Anúncios e Classificados do jornal em colocar também aquele outro tipo de anúncio, naturalmente forjado (garantir a própria sobrevivência trabalhando é de tal ordem que dispensa alguns escrúpulos), começou a ficar nervoso com a previsível queda de procura por seu curso. A queda se deu. Propaganda boca a boca, sabe-se, tem eficiência como nenhuma outra.

O Major falou com dezenas de ex-companheiros de caserna que aspiravam às letras, ao curso de Paiva, e que desistiram antes de tentar. Silvinho Cláudio até que foi piedoso, dispunha de um forte veículo, mas satisfez-se em dizer num único programa de televisão, um só, que o método de Paiva era ultrapassado, mais psicológico que literário, que era comovente, e risível, a teoria do Professor acerca da gênese do talento mais como bloqueio a ser rompido do que técnica a ser ensinada. Silvinho admitia que a idéia não estava errada, mas o papel do professor deveria ser outro, o de ensinar truques, formas, caminhos específicos, atalhos para a verdade estilística contida nos limites de cada um. O professor, no fundo, era apenas um simpático motivador, só isso. Motivação não era o que faltava àquela gente. Talvez faltasse talento, e ele independe de motivação, é outra coisa, mais obscura, menos relacionada ao caráter, ao contrário do que Paiva pregava.

O Professor, depois do programa, que, aliás, fora assistido unicamente por dois alunos seus – e ele tinha ainda 49 cândidos nomes que não ficaram sabendo do depoimento do publicitário –, decidiu acabar com tudo. Doía-lhe a derrota de ver aquela gente toda sem nenhum futuro. Doía-lhe os que haviam ficado pelo caminho. Doía-lhe, não sendo um Shakespeare, tentar fazer brotar nos outros o Shakespeare que nele não brotaria nunca. Sabia o que não fizera para que não brotasse, e gostaria de tentar, à exaustão, que seus alunos não cometessem os erros que ele cometera. Mas o mundo quer Shakespeares, precisa deles, e urgente. Seis anos é muito tempo.

Paiva tinha acumulado bons recursos durante aquele período. Podia, sem sangrar suas divisas, devolver o dinheiro dos 49 heróicos remanescente. Convocou-os em regime de urgência. Uma fila formou-se na entrada de sua casa.

Devolveu o que haviam pago como antecipação. Disse que nada podia fazer além do que eles mesmos poderiam. Sentia-se cansado, e cansaço é incompatível com criação. Quando se quer descansar é porque o mundo ou foi criado, ou foi destruído. Não pôde continuar falando.

Um vulto destacou-se do grupo que o ouvia falar. Era Élida Paranhos.

Deu um abraço comovido em Paiva.

– Gosto de ti, te acho um homem de bem, e isso vale mais que ser um gênio. Tá cheio de gênio por aí, mas homem de bem, não sei não.

O perfume de Élida era doce, porém suave, não pesava. Seu rosto branco estava levemente dourado pelo calor. Paiva não resistiu.

Beijou-a, esquecido de qualquer vergonha, e talvez já enamorado.

Aliás, nesse caso, nem Shakespeare resistiria. Nem Shakespeare.

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/

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Paulo Bentacur (1957)

Paulo (Roberto Ribeiro) Bentancur nasceu em Santana do Livramento, RS, em 20 de agosto de 1957. É escritor, poeta e crítico, praticando diversos gêneros, do infanto-juvenil à poesia. Foi editor da Imprensa Oficial do RS (2000-2002), quando, junto com o artista gráfico Antonio Henriqson, editou a revista cultural VOX XXI e Coordenador do Livro e Literatura da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.

Teve contos publicados na Argentina e na Itália.

Ganhou quatro prêmios Açorianos:
– 1995, categoria especial, a Instruções Para Iludir Relógios (um livro sem gênero);
– 1996, infanto-juvenil, a O Menino Escondido (Freud);
– 2004, categoria especial, como organizador de Simões Lopes Neto – Obra Completa;
– 2005, em poesia, para Bodas de Osso.

Ganhou dois prêmios especiais, Maria Bentancur, nascida em 1984, e Laura Marengo Bentancur, em 1999.

Trabalhou durante 20 anos em diversas editoras como revisor, preparador de originais, tradutor do espanhol e editor assistente. Atualmente presta serviços de assessoria editorial para diversas casas publicadoras.

Também ministra oficinas de criação literária e de leitura crítica, além de fazer palestras pelo País todo –acerca de sua obra, autores clássicos, questões relevantes à leitura numa nação que não lê e mistérios da arquitetura da narrativa.

Livros

Infanto-juvenis:
– Agulha ou linha, quem é a rainha? (Ed. Projeto, 1992, em 6ª edição)
– O menino que não gostava de histórias (Ed. Solivros, 1995, esgotado)
– As surpresas do corpo (Difusão Cultural, 1997);
– Quem não lê, não vê (Difusão Cultural, 1997);
– Os homens na caverna – Platão (Ed. Mercado Aberto, 1994; Ed. Artes e Ofícios, 2a ed. 2001);
– É lógico, pô! – Aristóteles (Ed. Mercado Aberto, 1994; Ed. Artes e Ofícios, 2a ed. 2001);
– O menino escondido – Freud (Ed. Mercado Aberto, 1995, Prêmio Açorianos 1996; Ed. Artes e Ofícios, 2a ed. 2001);
– O criador de monstros – Kafka (Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– As cores que tremiam – Van Gogh (Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– Entre o céu e a terra – Shakespeare (Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– A máquina de brincar (Bertrand Brasil, 2005; adotado pelo Governo do Estado de São Paulo através do PNLD);
– As rimas da Rita (Bertrand Brasil, 2005);
– O olhar das palavras (Bertrand Brasil, 2005).

Para adultos:
– Instruções para iludir relógios (contos/crônicas, Ed. Artes & Ofícios, 1994, Prêmio Açorianos 1995);
– A Feira do Livro de Porto Alegre – 40 Anos de História (ensaio, CRL, 1994);
– Os livros impossíveis (contos/crônicas, 00h00.com, Paris, França, 2000);
– Frio (contos, Ed. Sulina, 2001);
– Bodas de osso (poesia, Bertrand Brasil, 2005, Prêmio Açorianos 2005);
– A solidão do Diabo (contos, Bertrand Brasil, 2006).

Co-autoria:
– Rio Grande do Sul – Cenas e paisagens (legendas, com fotos de Eduardo Tavares; Ed. Sulina, 1997).

Obras coletivas:
– Nós, os gaúchos 2 (ensaios, Ed. da UFRGS, 1994);
– Amigos secretos (contos, Ed. Artes e Ofícios, 1994);
– A cidade de perfil (crônicas, Secretaria Municipal de Cultura, 1995);
– A magia das águas (ensaios, Ed. Riocell, 1997);
– Meia encarnada, dura de sangue (contos sobre futebol, Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– A linha que nunca termina – Pensando Paulo Leminski (ensaios, Ed. Lamparina, 2005);
– Contos de bolso (minicontos, 43 autores gaúchos, Ed. Casa Verde, 2005);
– Contos de bolsa (minicontos, 47 autores gaúchos, Ed. Casa Verde, 2006);
– Contos de algibeira (minicontos, autores brasileiros e portugueses, Ed. Casa Verde, 2007);
FICÇÃO
– Histórias para o prazer da leitura (antologia dos 50 melhores contos da revista Ficção, Ed. Leitura, 2007).

Organização e anotações críticas:
– Obra completa, de Simões Lopes Neto (Ed. Copesul/Já editores/Sulina, 2003, Prêmio Açorianos 2004);
– Grandes personagens da literatura gaúcha (ensaios e coordenação editorial, Ed. Copesul/Aplauso, 2004).

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/

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Paulo Bentancur em Xeque

Entrevista realizada por Danilo Corci, da Revista Speculum.

Crítico literário, poeta, contista, autor de romances e escritor infanto-juvenil, Bentancur conseguiu um feito hercúleo: transformar seu romance num dos grandes momentos culturais de 2006, ano que trouxe ao Brasil inúmeras bandas, exposições monstras, como a Bienal, e outros lançamentos literários relevantes. Óbvio que comparar suportes criativos diferentes é uma bobagem, mas ao extrair o sumo do que fica, “A Solidão do Diabo” é o ponto alto das novidades. Melhor ainda. Perene, pois mesmo agora, em 2007, sua leitura é mais do que recomendada.

Em 59 histórias, o livro faz uma inteligente incursão à cadência cínica e melancólica que, talvez, o suposto “homem contemporâneo” tem cultivado com tanta vontade. O “se segura malandro” brasileiro é implodido sob uma óptica muito mais afiada sobre o que nós mesmos estamos acostumados a encontrar na literatura brasileira. Menos Macunaíma, mais Constantine (mas esqueça o ícone pop), os anti-heróis brasileiros agora sentem frio e febre. Entretanto, melhor do que falar de um livro que já vem com a “Bíblia II” e com a história do homem que quer ser mágico e milagreiro só para ser muito mais cínico do que qualquer um poderia imaginar, é deixar o próprio autor falar sobre sua obra – ainda que, de fato, nem isso seria necessário já que o livro fala por si próprio.

Fale um pouco sobre sua trajetória literária. Como começou a vida de escritor?

Paulo Bentancur: Começou sem que eu mesmo percebesse. Era menino, 9, 10 anos, e já escrevia todos os dias. Quando fui ver, era tarde demais. Aos 16 já publicava em tudo que era jornal (contos, poemas, crônicas, resenhas). Demorei para lançar o primeiro livro apenas por excesso de zelo (o que nunca é demais). Mas o batismo das letras foi cedo. Ah, e minha formação, até mesmo por suas características de precocidade, foi de autodidata.

Existe algum escritor que exerce uma influência marcante no seu trabalho? Ou algum ícone não-literário

Vários escritores me influenciaram. O segredo é saber conduzir essa influência sem que ela cale a sua própria voz de escritor. Kafka, Cortázar, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Dalton Trevisan Rubem Fonseca, Bernardo Carvalho, Paul Auster. Isso na prosa. Na crítica, Paulo Hecker Filho, David Arrigucci Jr., José Paulo Paes. Na poesia, Manuel Bandeira, Drummond, Miguel Hernández, Federico García Lorca, João Cabral de Melo Neto e, mais recentemente, Paulo Henriques Britto.

Você também escreve para crianças. Qual é a diferença entre escrever um infanto-juvenil e um livro “adulto”? O que é mais complexo?

Para adultos, naturalmente, é mais complexo. Porque nos exige vir à tona, inteiramente. E o público adulto já está irremediavelmente sedado por uma série de vícios literários (entre os quais, a preguiça mental, mortal). O público infanto-juvenil é mais receptivo e dá mais prazer ao escritor, discutindo a obra em aula, em feiras de livro, em eventos ao ar livre.

“A Solidão do Diabo” não é seu primeiro livro, e notei que ele é bem consistente. Isso é resultado da tarimba, da experiência?

Isso é resultado de muuuuuito trabalho. O conto mais antigo foi escrito em 1997. O mais recente, em 2006. Logo, dez anos se passaram até o livro ficar pronto. A tarimba, a experiência, ajudam; porém, quando o escritor as usa para apressar seus resultados, dá com os burros n’água.

Como você separa todos estas multifunções que exerce: crítico, poeta, contista, romancista infanto-juvenil? Há muita interferência de estilos na hora de escrever?

Há todo o tipo de interferência, não só de estilos. De prazos, de estrutura, de público-alvo, de envolvimento do autor com o projeto. O crítico, na medida em que (por enquanto) se resume a resenhas e artigos em jornais, revistas e sites culturais do País, corre mais solto. Porém não custa lembrar que o perigo de cometer uma leviandade ao criticar a obra alheia é enorme. Então, muito cuidado, sr. crítico… O poeta vive quase ao acaso. O poema o assalta: ele, o poeta, é puramente uma vítima – que fica com o produto do assalto. Já o ficcionista, seja conto ou romance, pode ir se planejando melhor. O mesmo acontece (e com menos dificuldade) para o autor infanto-juvenil, ainda que escrever para crianças seja um delicado desafio: o de lidar com o tempo que é delas e não é nosso (o nosso, o da infância, já não serve como referência).

Voltando à “Solidão do Diabo”: O Diabo realmente está só?

Sim. O Diabo é o homem, em última instância. E, mesmo pensando na metafórica figura do demônio-mor, em quem ele poderia confiar como um parceiro à altura de sua ambição e necessidades? O Diabo é um pobre-diabo…

Seus contos, mesmo que não sejam necessariamente existencialistas, parecem embebidos num existencialismo desencantado, meio “blasé”, meio cínico. Você concorda com esta afirmação?

Concordo. Menos com o “blasé”. O desencanto não esconde (filtra) sua amargura. E não pode existir amargura “blasé”. Ela se dá ares (daí um certo cinismo), à procura de forças para resistir. Como disse Clarice Lispector, desistir de si mesmo é o único ato imoral. Meus personagens desistem de tudo menos da consciência crítica, esse crime radical, essa ação salvadora e, simultaneamente, condenadora. Meu “pós-existencialismo” repõe o “existir” como ser-tão-somente, e não como uma possibilidade de vida, o que seria um luxo. Já nem a morte assusta. Passamos desse ponto. Aí reside o escândalo.

Logo de saída, em “O Mágico do Azar”, você já brinca com o caráter dúbio de um homem. É mais ou menos assim que você enxerga o homem contemporâneo?

Menos. O homem contemporâneo protege-se numa outra espécie de ambigüidade, em que o único papel que exerce é aquele que lhe abre as portas mais facilmente, e não papéis que ele tenha prazer em criar. Ou morbidez em criar. O homem contemporâneo não cria, não arrisca. Nunca a mesquinhez esteve a serviço de um sistema tão tacanho como agora. E a razão, hoje, é cínica por demais. Qualquer risco é chamado de loucura. Daí sermos uma fábrica de doentes mentais; no mínimo, de neuróticos.

Seus contos tem um magnetismo desfragmentador de idéias, comportamento, uma melancolia embutida, mesmo quando busca uma mão mais leve, como no conto do duelo de futebol na cidadezinha. A melancolia é um dos seus assuntos preferidos?

A melancolia é um estado natural de homens submetidos. Submetidos, simplesmente. A tudo. Que lhes resta senão a melancolia, quando os prazeres estão numa espécie de índex moral e a maioria é julgada e sentenciada sem direito a um mínimo de privacidade? O mundo exige que se passeie nu no canteiro central da avenida. E riem da nossa nudez. Então a escondemos com artefatos ridículos que desenham o imaginário de péssimo gosto da época. A melancolia, em suma, é a música calada que faz bater um coração cansado e lento.

Aliás, o futebol está bem presente nas histórias. Você é um torcedor daqueles sofredores ou apenas gosta de um jogo?

Sofredor. Meu time, o Internacional, acabou de sagrar-se campeão mundial interclubes. Acham que assisti ao jogo? Enfartaria se o fizesse. Fiquei paralisado, esperando a hora de terminar o que eu imaginava um massacre do Barcelona. Quando soube do resultado, nem acreditei. Até agora não acredito. Choro mais nas derrotas do que vibro nas vitórias. Mas é temperamento, não dêem bola.

“A Solidão do Diabo” vem com um grande destaque para “A Bíblia II”. De onde surgiu a idéia de uma história como essa?

De um livro que sonho escrever, OS LIVROS IMPOSSÍVEIS. Idéia meio borgeana. Livros que nunca existiram: tipo SANCHO PANÇA SEM QUIXOTE, OS ESQUECIDOS (História sobre escritores de segunda categoria dos séculos XVIII, XIX e XX, totalmente esquecidos), e por aí vai…

Ainda sobre “Bíblia II”. Seria este seu conto favorito? Apesar de todo o destaque dado na capa, por exemplo, acredito que outros, como “O mesmo ônibus” sejam ainda mais impactantes. Você concorda com isso ou não faz distinção?

Faço, claro. Há contos que prefiro mais a outros. “A Bíblia II” foi uma jogada editorial, para chamar o público. mas me parece um conto honesto, inventivo. Para meu gosto, prefiro “Como um Anjo”, “Diante do túmulo de meu pai”, “Ruínas”, e, sim, o humor surpreendente de “O Mesmo Ônibus”.

Moacyr Scliar escreveu o prefácio. De onde vem sua relação com ele? Parceiros literários?

Sempre gostei da literatura do Scliar. Natural que mostrasse a ele meus primeiros escritos. Ele me acompanha há uns 30 anos. Sabe bem das minhas possibilidades e, me parece, escreveu sobre elas.

Febre e frio. Por que da divisão? Como você organizou esta seleção de contos para cada um deles?

A seção “Frio” já estava pronta desde 2001, quando fiz uma ediçãozinha em separado, de circulação apenas regional. Como conseqüência inevitável, me parece, surgiu “Febre”, o outro e o mesmo lado da questão, dependendo da ótica do leitor. A febre aí pode ser fria, e o frio, um arrepio na espinha, de quem sente o espírito e a carne queimarem.

Em “O Crítico” estaria você dialogando consigo mesmo?

Não. Foi uma homenagem que fiz a um grande crítico, generoso, corajoso, que metia medo nos carreiristas de sempre. O escritor que o evita é que fica mal aos olhos do leitor, acredito.

Qual sua história favorita de “A Solidão do Diabo”, aquela que você mandaria para alguém como amostra de seu trabalho?

“Como um Anjo”.

Por quê? Qual o segredo contido ali?

Acho que o livro é tão porrada, tão punk, dark, down, etc., que o anticlímax contido ao longo de “Como um Anjo”, a opção por uma vida de omissões, a paz da paz (essa antítese do êxtase, essa escolha pela não-escolha, essa morte em vida sem a sombra insuportável da tragédia), francamente, considero a idéia um achado. O conto TRAI o livro, pega o conjunto no contrapé. E, creio, vai deixar o leitor desnorteado. Daí eu gostar tanto dele. Bem, e o ritmo, cuidadoso, musical – literatura para mim é ritmo, antes de enredo. Ah, e criar um personagem sem trama alguma, pô, isso é que é desafio. Bom, e o “Crusoé”. Tem tuuuudo a ver com a atmosfera que o meu espírito respira.

Como você definiria seu estilo literário?

À queima-roupa com uma (ou várias) músicas ao fundo, tocando sem parar. Realismo perturbado de poesia.

Você encontra muitas dificuldades em viver de literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros?

Muitas. O mercado quer é exotismo (lá fora compram o Brasil da Amazônia, da Bahia, da MPB; aqui compram o Islã, que está na moda). Literatura de qualidade, ainda mais de autor nacional, vende muito pouco, quase nada. Mal conseguimos driblar o prejuízo. E a resposta está na pergunta que você fez: “um país que está bem longe de ser um apreciador de livros”. Eu completaria “de bons livros”, já que bobagem, como ficções para se matar o tempo (quando deveríamos ganhá-lo, com coisas reveladoras, transformadoras) são o que mais vende. Os besta-sellers.

Por fim, como você vê a literatura brasileira contemporânea? Quais são os escritores que você indicaria para uma leitura atenta?

Vejo muito bem em produção, não em consumo. Eu indicaria W. J. Solha e seu incrível “História Universal da Angústia”, várias histórias de crimes hediondos da humanidade recontadas de forma brilhante; Rubem Mauro Machado e um livro que interessa a todo jovem e adulto, uma história de formação, moral, emocional, amorosa: “A Idade da Paixão”; Vicente Franz Cecim e seu inclassificável “Ó Serdespanto” (assim mesmo, sem espaço), um livro que mistura filosofia, narrativa, lendas, poesia – e que acho que vai além da literatura que conhecemos. Coisa inovadora de fato! Além disso, é bom conferir Bernardo de Carvalho, Chico Buarque (o cara escreve bem mesmo), Daniel Galera (“Mãos de Cavalo”), Paulo Scott (“Senhor da Escuridão”), Luiz Ruffato (“Vista Parcial da Noite”), Flávio Braga (‘O Que Eu Contei A Zveiter Sobre Sexo”). Bom, a lista vai ficar grande demais. Porque a literatura brasileira está se mostrando grande.

Fonte:
Revista Speculum. http://www.speculum.art.br/ , em 16/03/2007.

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Theófilo de Amarante (Extractos de composição)

Salvador Dali (Cabeça nas Nuvens)
Se o Ego não fosse um computador!
Andaríamos com pilhas de alfarrábios na cabeça
que se enterraria no chão,
pela coacção do peso
e a complexidade das mensagens.

Se o estômago não fosse uma fábrica gástrica.
Teríamos no ventre,
portas e janelas dum enorme armazém de comidas e bebidas.
Estaríamos sujeitos à complexidade da conservação
e ao peso da gestão.

Se os olhos fossem uma máquina fotográfica.
Passariam a maior parte do tempo no quarto escuro,
revelando as imagens que absorve.
Viveríamos relembrando pontos fixos
sem ver a complexidade evolutiva.

Se a audição fosse um centro de gravação.
Teríamos nos ouvidos,
um auditório tão amplexo
que ouviríamos somente o boato da nascente
e o urro da morte.

Se o corpo não fosse o universo.
Seriamos diluídos nos esquemas da anteposição.
O Ego, o estômago, os olhos e a audição.
Vagariam nas trevas desunidos
na procura da união.
——————

Fonte:
Colaboração do autor.

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Eno Teodoro Wanke (Poesia)

Não gostava de poesia. Pelo menos dizia não gostar. E dizia que não gostava porque – por fantástico que possa parecer – jamais tinha lido um poema. Na verdade, não tinha o hábito da leitura.

Um dia, porém, deparou com um livro aberto sobre a mesa de jantar da pensão. Outro hóspede o deixara ali, esquecido.

Leu a primeira frase. Achou esquisita, mas agradável. Leu a segunda. Não era má. Leu a terceira – e viu que a última palavra rimava com a palavra de fecho da primeira.

Levou um pequeno susto. Era um poema, o que estava lendo!

Hesitou. Prosseguiria na leitura?

Decidiu continuar para ver no que dava. Leu o quarto verso.

é. Era interessante.

Continuou a ler. Deliciou-se. Passou para o poema seguinte. Não é que era bom?

Foi assim que o cidadão Diogo Albuquerque Mendonça perdeu para sempre o direito de dizer que não gostava de ler poesia.

Fonte:
WANKE, Eno Teodoro. Caminhos: minicontos. 1.ed. RJ: Plaquette, 1992, p.35.

Imagem = CD Rom Digeratti.

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Nelson Saldanha D’Oliveira (No Embalar das Trovas)

Luciano de Oliveira (Casal no Balanço)
Se queres um mundo aberto,
Compreensivo num segundo,
É preciso abrir primeiro
O teu coração ao mundo.

Se em troca do teu afeto
Exiges o afeto meu,
Já não tens razão de queixa
O meu coração é teu.

Passei toda minha vida
Buscando a felicidade,
No final só encontrei
Um punhado de saudade.

Primavera estação mágica
Cheia de luz e de amores,
Torna a vida mais alegre
E salpicada de flores.

Na praia ondas rolavam,
Alegremente a cantar,
Parecia até namoro
Das areias com o mar.

Recordo a vida do campo
Com ternura e com saudade,
Pois á só encontrei amigos,
Afeição, muita lealdade.

O amor se assemelha à flor,
Sem regar pode morrer,
Deixando apenas lembranças,
Perfume do bem-querer.
========

Fontes:
Antologia dos Acadêmicos: edição comemorativa dos 60 anos da Academia de Letras José de Alencar. SP: Scortecci, 2001.
Pintura =
http://fazendoarteemfeira.blogspot.com

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Nelson Saldanha D’Oliveira (1919)

Professor, contador, jornalista escritor e orador.

Nasceu em Curitiba (PR), a 1 de novembro de 1919, filho do escritor, historiador e engenheiro Dr. Bernardino d”Assunção Oliveira e Da. Francisca Saldanha d’Oliveira.

Foi agraciado em 1980 com o título de Cidadão Honorário de Ponta Grossa, onde prestou serviços como Diretor de Cultura do Município.

Membro de:
– Centro de Letras do Paraná
– Centro Cultural Euclides da Cunha (Ponta Grossa)
– Instituto Genealógico Brasileiro (SP)
– Associação Internacional da Imprensa (Montevidéu – Uruguai)
– Presidente da Academia de Letras José de Alencar (PR)
– Governador do Elos Internacional da Comunidade Lusíada, Distrito Elista (DE) 05.

Publicações:
– Cidade de Curitiba (Curitiba: O Formigueiro, 1983)
– Prelúdio de Idéias e de Palavras (Curitiba: Editora do Autor, 1945)
– Lysimaco F. Da Costa – Homem de Ciência, Mestre Erudito (Curitiba: Academia de Letras José de Alencar, 1962);
– Páginas de Seis Vidas (Ponta Grossa: Planeta, 1986).
– Páginas de Seis Vidas – livro em Braile (Curitiba: Centro de Informática para Deficientes Visuais Prof. Hermann Gorgen, 2000)
entre outras.

Fontes:
Antologia dos Acadêmicos: edição comemorativa dos 60 anos da Academia de Letras José de Alencar. SP: Scortecci, 2001.

Capa do Livro = Paisagem Campestre Paranaense de Albano Agner de Carvalho.
Fotografia para o blog = José Feldman

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97* Aniversário de Nascimento de Luís Antônio Pimentel

Fotomontagem = José Feldman

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Luís Antônio Pimentel (1912)

Luís Antônio Pimentel (Miracema, 29 de março de 1912) é um poeta, professor, jornalista e memorialista brasileiro. É membro da Academia Fluminense de Letras – AFL; Academia Niteroiense de Letras – ANL e presidente de honra no Grupo Monaco de Cultura.

Começou cedo sua atuação na imprensa carioca. Parte de sua produção de jovem jornalista, publicada na Gazeta de Notícias, compõe o livro Crônicas do rádio, nos tempos áureos da Mayrink Veiga (v. 3 das Obras Reunidas).

Tendo sido aluno bolsista em intercâmbio no Japão, residiu lá entre os anos de 1937-1942, familiarizando-se com o haicai ao ter contato com autoridades como Hagiwara Sakutarô e Takamura Kôtarô.

Retornou a Niterói e passou a dedicar-se ao ensino técnico e à imprensa na antiga capital fluminense. Diplomou-se em jornalismo pela antiga Faculdade Nacional de Filosofia, em 1952. Construiu uma obra literária marcada profundamente pela cultura japonesa.

Pimentel é um dos precursores do haicai no Brasil, responsável pela divulgação deste estilo de poesia ao lado de Olga Savary e Helena Kolody. Tem parte na cunhagem definitiva do termo “haicai” em língua portuguesa quando, estudante da faculdade de filosofia da Universidade do Brasil, encaminhou a Aurélio Buarque de Holanda, por intermédio do gramático Celso Cunha, o pedido de dicionarização, evitando que o termo se dispersasse em outras transliterações como hai-cai, hai-kai, haikai, haiku, hai-ku e hokku.

O autor reconhece ter se permitido inovar o haicai ao tratar de temas tropicais, criando também o haicai erótico, o engajado politicamente e o étnico. Contudo, estas pequenas transgressões não corrompem o cânon estético inaugurado por Matsuo Bashô, como a rigorosa métrica e a exigência da indicação da estação do ano (Kigo) e dos fenômenos da natureza.

Seu segundo livro, Namida no Kito (Prece em lágrimas), publicado no Japão, em 1940, foi o primeiro traduzido naquele país de poeta de língua portuguesa. Contos do velho Nipon, editado no Brasil, também em 1940, foi talvez o primeiro livro de autor brasileiro a divulgar a cultura tradicional japonesa em nosso país. O livro Tankas e haikais, de 1953, de rara beleza, tem como matriz estilística a poesia tradicional nipônica (v. 2 das Obras Reunidas). Desde a sua juventude, dedica-se também à pesquisa sobre a história e a cultura brasileiras, especialmente às suas tradições populares.

Sua vasta obra literária, conta com livros como: Contos do velho Nipon (1940), Tankas e haicais (1953), Cem haicais eróticos e um soneto de amor nipônico (2004). E se encontra reunida em três volumes publicados pela editora Niterói Livros, que contém o texto integral de Tankas e haicais, tal como coordenada pelo professor Nelson Eckhardt em 1953.

A obra reunida, em acurada edição crítica de três volumes, organizada por Aníbal Bragança, conta também com poesias compiladas inéditas até 2004, data desta edição e versões para diversas línguas, entre elas o japonês, na tradução de Yonekura Teruo; e o inglês, traduzida por Cyana Leahy.

Além da primeira biografia, assinada por Alaôr Eduardo Scisínio, a obra do poeta recebeu diversos estudos, como o escrito pelo filósofo brasileiro R.S. Kahlmeyer-Mertens, que abordou em 2007 seus haicais em toda sua profundidade, destacando o relevo do pensamento de Pimentel para a contemporaneidade.

Compositor bissexto em sua juventude, teve músicas gravadas por Carmem Miranda e Odete Amaral. Fotógrafo, artista plástico, historiador, biógrafo, memorialista, pertence a várias academias de Letras, Folclore e História, à Sociedade Fluminense de Fotografia e é presidente de honra do Grupo Mônaco de Cultura. Parte de sua colaboração na imprensa fluminense e seus livros sobre a cidade formam a Enciclopédia de Niterói (v. 1 das Obras Reunidas). Publica semanalmente a seção “Artes Fluminenses” nos jornais A Tribuna e Jornal de Icaraí, de Niterói (RJ).

Fontes:
http://ler-e-escrever.blogspot.com
http://pt.wikipedia.org

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Luís Antônio Pimentel (Cadeira de Haicais)

Em teus olhos, verde.
Em tua boca, vermelho.
Paro, ou continuo?
***
Levantada a antena,
Lá vai lenta a lesma lânguida
A lustrar a lápide.
***
Lento, um vaga-lume
Qual uma agulha de luz
Alinhava a treva
***
Ao anoitecer,
Um sapo faz gargarejo
Na borda do charco.
***
No pilão do céu,
A noite fabrica orvalho
Descascando estrelas.
***
No campo da noite,
A lua é foice de prata
A ceifar estrelas.
***
Completa a ternura:
Tira os espinhos da rosa
Antes de ofertá-la.
***
Há um grilo limando
A noite negra – no tronco –
Para libertá-la.
***
Paz. Forte em ruínas.
E, na boca de um canhão,
Um ninho de pássaros.
***
Luar na neblina.
Dentro da cabana escura,
Um ranger de redes
***
O vento levanta
a névoa fina do vale,
despertando a aurora.
***
Chove: chia a chuva
E, de chofre, o chão enxuto.
Encharca-se e se enxágua.
***
A onda, na bruma,
côncava, redonda, estronda.
Explodindo espuma
***
Predador perene,
pula o sapo-pipa e parte
o espelho do poço.
***
O cego pergunta:
como é o luar? E a jovem
beija-o na fronte.
***
A jovem romântica
tirou todos os espinhos
do balcão florido.
***
Lagarta, hoje verme,
amanhã, em altos vôos,
vai sugar as flores.
—————
Fontes:
Do livro Luís Antônio Pimentel – Obras reunidas – Vol. 2. Niterói Livros. 2004. Niterói/RJ. Disponível em A Cadeira. Revista Virtual. Ano 2. N.4 Out/nov/dez 2008. Academia Niteroiense de Letras. (Prata da Casa). http://www.academianiteroiense.org.br/
http://pt.wikipedia.org/
Fotomontagem em cima do logotipo da Revista Virtual A Cadeira = José Feldman

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Antônio Augusto de Assis (Cadeira de Poesias)

Carnaval

É sexta-feira,
véspera da folia.
Lá vai Maria.

Lá vai lavar em lágrimas
a vida ávida de vida,
sofrida vida dividida
em dívidas e dúvidas.

É sábado, é domingo,
é segunda, é terça gorda.
Roda no asfalto o samba,
geme o povo em sobressalto.
Roda rotunda a moça moma,
peitos nus lançando chamas.
Gemem bocas de crianças,
barrigas ocas
mendigando mamas.
Roda impávido o desfile
na avenida multicor.
Gemem pálidos
rostos esquálidos
desfilando a dor.
O sonho roda, geme o horror.

O samba-enredo, o medo em roda.
A serpentina, o ser penante.
A passarela, o pária ao lado.
O palanque, a pelanca.
O pandeiro, a pancada.
O sambeiro, o sem-nada.
O tamborim, o camburão.
O saxofone, o saque-sem-fundo.
A fantasia, a mão vazia.
A apoteose, a verminose.
A alegoria, onde a alegria?

O trilo do apito,
o grito do aflito,
o confete, o conflito.

É quarta-feira, cinzas.
Lá vai Maria.
Lavai, Maria.
Lavai o mundo, Maria.
Lavai o imundo,
mundo imundo vasto mundo,
lavai o mundo, Maria!
––––––––––––––––––––
Luolhar

Duas luas
viu Ismália
na noite em que enlouqueceu:
“viu uma lua no céu,
viu outra lua no mar”.

Bem mais louco,
vejo três,
quando me ponho a cismar:
a terceira é a que flutua
tentadoramente nua
na noite do teu olhar.
–––––––––––––––––

Terceira infância

Meu neto
me disse um dia:
— Converse comigo, vô,
mas converse como amigo,
mais amigo do que vô.

Desfez-se logo a distância.

Conversamos.
Conversamos.
Conversamos.

Ele na primeira,
eu na terceira infância.
=====================

Aurora bela

Da janela do meu quarto
vejo Aurora na janela.

Toda tarde, à mesma hora,
Aurora lá.
Que será que ela olhará?

Aurora, Aurora,
Aurora bela,
bela Aurora da janela,
Aurora
de olhar sem fim…

Se sobrar uma olhadinha,
por favor, olha pra mim!
===========================

Por um beijo

Por um beijo eu lhe dou o que sou e o que tenho:
os bons sonhos que sonho, as plantinhas que planto,
a pureza, a alegria, as cantigas que eu canto,
e o meu verso se acaso houver nele arte e engenho.

Por um beijo eu lhe dou, se preciso, o meu pranto,
as angústias da luta em que há tanto me empenho,
as saudades da infância e do chão de onde venho,
as promessas que eu faço em segredo ao meu santo.

Por um beijo eu lhe dou meus anseios de paz,
minha fé na ternura e no bem que ela faz,
meu apego à esperança e ao que a possa manter.

Por um beijo, um só beijo, um momento de amor,
eu lhe dou meu sorriso, eu lhe dou minha dor,
o meu todo eu lhe dou, dou-lhe inteiro o meu ser!
——

Fontes:
– A Cadeira. Revista Virtual. Ano 2. N.4 Out/nov/dez 2008. Academia Niteroiense de Letras. (Prata da Casa). http://www.academianiteroiense.org.br/
– Fotomontagem em cima do logotipo da revista virtual A Cadeira = José Feldman

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Comemoração de Aniversário da Biblioteca Comunitária Prof. Waldir de Souza Lima (Itu)

CONVITE

O PONTO DE LEITURA – Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima – tem o prazer de convidar V. Sa. e família para a comemoração de um ano de atividade, a ser realizada no dia 28 de março de 2009 (sábado), a partir das 16 horas na sede localizada à Rua Floriano Peixoto, 238 – Centro – Itu (SP).

Na ocasião acontecerá um Sarau Literário e Musical com a presença dos grupos Coesão Poética (Sorocaba), Sarau Largo 13 (São Paulo), Cia. Teatral Metamorfose (Itu) e Apotheke Blues Band (Itu).

Contamos com sua presença. A entrada é gratuita.

Fonte:
Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima

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Bolsas de pesquisa em Portugal

A Cátedra Jaime Cortesão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, está oferecendo bolsas de estágio de pesquisa em Portugal. As inscrições vão até o dia 31 de março.

A cátedra, criada em 1991, tem entre seus objetivos promover o desenvolvimento de pesquisas no campo da história e cultura de Portugal e do mundo de língua portuguesa. Com apoio do Instituto Camões, selecionará cinco pesquisadores interessados em bolsas de duração máxima de dois meses para a realização de pesquisas em arquivos, bibliotecas ou centros de memória e documentação em Portugal durante 2009.

O auxílio de 700 euros por mês se destina ao custeio da permanência em Portugal (diárias). Os candidatos devem estar inscritos em programas de pós-graduação (em nível de mestrado ou doutorado).

O processo seletivo ocorrerá em duas fases. Para se inscrever, os candidatos devem apresentar os documentos indicados até o dia 31 de março. Com base na análise dos documentos, no dia 13 de abril serão divulgados os selecionados na primeira fase, que serão convocados para entrevista.

Valor do auxílio:

700,00 € (euros) / mês

Duração:

Um ou dois meses, de acordo com o interesse e o plano de trabalho do candidato.

Prazos de inscrição

05/03/2009 a 31/03/2009 inscrição no processo seletivo – nos dias e horários indicados

13/04/2009 divulgação do resultado da primeira fase

22 a 24/04/2009 entrevistas com os candidatos

30/04/2009 divulgação do resultado final

Documentos para inscrição:

1. ficha de inscrição preenchida – disponível no site da cátedra

2. projeto de pesquisa (mestrado, doutorado ou pós-doutorado);

3. plano de trabalho em Portugal (descrevendo as atividades a serem realizadas, como entrevistas, pesquisas em arquivos, bibliotecas e/ou centros de memória e documentação), com definição do período almejado para a viagem e aceite do orientador;

4. carta-convite de um pesquisador em Portugal;

5. duas cartas de recomendação de pesquisadores reconhecidos no Brasil;

6. comprovação (declaração) de inscrição em programa de pós-graduação;

7. histórico escolar da graduação;

Envie e-mail, com todos os documentos e ficha de inscrição anexos, de preferência, de segunda à sexta-feira, das 11h às 19h.

O e-mail não deve conter texto, apenas arquivos, um para cada documento e ficha de inscrição
O título do email deve ser: INSCRIÇÃO (SEU NOME) Exemplo: INSCRIÇÃO PAULO TIAGO

Aguarde o e-mail de confirmação da inscrição e sigas as instruções nele contidas.

Mais informações: www.fflch.usp.br/cjc e (11) 3091-1511/2010 (das 11h às 19h).

Fontes:
Douglas Lara.
http://www.sorocaba.com.br/acontece
http://www.fflch.usp.br/cjc/bolsas/bolsaportugal2009/index.html

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Arioswaldo Trancoso Cruz (1942) poesias

Contraponto

Eu fui feliz quando te vi cantando,
Como feliz eu fui quando sorrias.
Na tua vida fui-me abandonando,
Nos teus caprichos consumi meus dias.

Hoje, tu passas, nem sequer notando
Este coitado em quem tu te valias
Quando, de angústia, muita vez chorando,
Neste ombro amigo as mágoas desfazias.

Mas, pouco importa se tudo esqueceste,
Pois, de nós dois, somente tu perdeste
Quando, afinal, me deste liberdade.

Um coração magoado injustamente,
Compreende logo que uma dor mordente
É o contraponto da felicidade
————————–

Despertando

Não temo este universo em que desperto
Da fuga interminável de sonhar,
Quando nem consegui reter por perto
Fragmentos do estar, ou do passar.

Foi um completo turbilhão, deserto
De valores vitais em que apoiar
O leque de experiências em aberto
Que nunca me cabiam vivenciar.

Pressinto já momentos de beleza,
Numa vida juncada da certeza
Multiforme do despertar seguro,

Que é saudade agridoce o sonho albino
Deste misto de humano e de divino
Cujo ser se projeta no futuro.
——————————–

Sobre o Autor

Filho de Bernardo Cruz e de Oscália Trancoso Cruz, nasceu em Morretes, Paraná, em 29 de julho de 1942. Sua formação acadêmica e profissional foi realizada em Porto Alegre, onde viveu dos 7 aos 38 anos de idade. Retornou ao Paraná, em Curitiba, em 1980, atuando alguns anos no comércio de panificação.

Professor de Filosofia e História na Rede Pública Estadual de Ensino.

Poeta, artesão e desenhista.

Integrante das entidades culturais:
– Centro de Letras do Paraná;
– Academia de Letras José de Alencar (atualmente como presidente)
– Sala do Poeta do Paraná

Possui sonetos premiados por estas entidades curitibanas, além de poesias publicadas em periódicos locais e no livro “Poetas e Poesias de Ouro”, da Editora Litteris, Rio de Janeiro.

Fonte:
Antologia dos Acadêmicos. Edição Comemorativa dos 60 anos da Academia de Letras José de Alencar. SP: Scortecci, 2001.

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72. Aniversário do Nascimento de Affonso Romano de Sant’Anna

Fotomontagem = José Feldman

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Affonso Romano de Sant’Anna (O vôo da águia)

Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crônica, coisa tipo “propostas para um novo milênio”, como o fez Ítalo Calvino. Mas à$ vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos. Ei-lo:

“A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.

Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.

Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.

A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver mais 30 anos.”

Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é “Renovação”.

Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando janeiro nos inunda com sua luz.

Este texto vale mais que mil ilustrações.

Sei como é difícil uma nova ou surpreendente idéia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.

A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. “A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.” ·

Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contato com forças profundas de sua personalidade.

Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.

Já mencionei em outras crônicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajetória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenômeno.

O ano está começando.

Mais grave ainda: um século está se iniciando.

Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milênio está se inaugurando.

Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milênio.

Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!… a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.

Pois bem: “A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.” ·

Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.

Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.

Então a águia, digamos, acabou de descasar.

(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objetos e sensações, reassumir filhos.)

Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.

(Tem que descobrir outro trajeto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)

Então, a águia,digamos, acabou de mudar de país.

(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)

Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.

(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)

Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.

(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)

Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.

Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.

Época de metamorfose.

Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.

Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.

Mas que fique sempre no azul o imponderável vôo da águia.

Fontes:
Jornal “O Globo”. Segundo Caderno, 3 de janeiro de 2001.
Imagem = http://blog.cancaonova.com/

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Affonso Romano de Sant’Anna (1937)

Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em 27/03/1937, em Belo Horizonte – MG

É um caso raro de artista e intelectual que une a palavra à ação. Com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista.

Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras – UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países.

Nascido em Belo Horizonte (1937), desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória.

Data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Embora jovem, seu nome já aparece nas principais publicações culturais do país. Por isto, como poeta e cronista foi considerado pela revista “Imprensa”, em 1990, como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país.

Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes, PUC/RJ, estruturou a pós graduação em literatura brasileira do Brasil, considerada uma das melhores do país. Trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault e apesar das dificuldades impostas pela ditadura realizou uma série de encontros nacionais de professores, escritores e críticos literários além de promover a “ Expoesia” – evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia brasileira.

Durante sua gestão, pela primeira vez no país a chamada literatura infanto-juvenil passou a ser estudada na universidade e a ser tema de teses de pós-graduação. Foram também abertos cursos de Criação Literária com a presença de importantes escritores nacionais.

Foi autor, dentro da universidade, de trabalhos pioneiros sobre música popular, como o livro “Música popular e moderna poesia brasileira”.

Como jornalista trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do Brasil (pesquisa e copydesk), Senhor(colaborador) ,Veja(critico), Isto É(Cronista), colaborador do jornal O Estado de São Paulo. Foi cronista d da Manchete e do Jornal do Brasil . e está n’O Globo desde 1988.

Considerado pelo crítico Wilson Martins como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, no sentido de desenvolver uma “linhagem poética” que vem de Gonçalves Dias, Bilac, Bandeira e Drummond, realmente substituiu este último como cronista no “Jornal do Brasil”, em 1984. E foi sobre Carlos Drummond de Andrade a sua tese de doutoramento (UFMJ), intitulada:”Drummond, o gauche no tempo”, que mereceu quatro prêmios nacionais.

Nos duros tempos da última ditadura militar, Affonso Romano de Sant’Anna publicou corajosos poemas nos principais jornais do país, não nos suplementos literários, mas nas páginas de política . Poemas como “ Que país é este?” (traduzido para o espanhol, inglês, francês e alemão), foram transformados em “posters”, aos milhares, e colocados em escritórios, sindicatos, universidades e bares.

Nessa época produziu uma série de poemas para a televisão (Globo) .Esses poemas eram transmitidos no horário nobre, no noticiário noturno e atingiam uma audiência de 60 milhões de pessoas.

Como presidente da Biblioteca Nacional — a oitava biblioteca do mundo, com oito milhões de volumes — realizou entre 1990 e 1996 a modernização tecnológica da instituição, informatizando-a, ampliando seus edifícios e lançando programas de alcance nacional e internacional.

Criou o Sistema Nacional de Bibliotecas, que reúne 3.000 instituições e o PROLER ( Programa de Promoção da Leitura), que contou com mais de 30 mil voluntários e estabeleceu-se em 300 municípios em 1991 lançou o programa “Uma biblioteca em cada município”.

Criou na Biblioteca Nacional os programas de tradução de autores brasileiros, de bolsa para escritores jovens e encontros internacionais com agentes literários.

Seu trabalho à frente da Biblioteca Nacional possibilitou que o Brasil fosse o país-tema da Feira de Frankfurt( 1994), o país-tema, na Feira de Bogotá(1995) e no Salão do Livro( Paris, 1998).

Lançou a revista “Poesia Sempre”, de circulação internacional, tendo organizado números especiais sobre a América Latina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha.

Foi Secretário Geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas(1995-1996), que reúne 22 instituições desenvolvendo amplo programa de integração cultural no continente.

Foi Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe-CERLALC), 1993-1995.

Como poeta participou do “International Writing Program”(1968-1969) em Iowa, USA, dedicado a jovens escritores de todo o mundo.

Tem participado de dezenas de encontros internacionais de poesia. Esteve no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia(2005) , realizou uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda (2004), esteve na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins (1996), na Casa de Bertold Brecht, em Berlim (1994), no Encontro de Poetas de Língua Latina (1987), no México, no Encontro de Escritores Latino-americanos em Israel (1986).

Mereceu vários prêmios nacionais destacando-se o da Associação Paulista de Críticos de Arte pelo “conjunto de obra”.

Foi júri de uma série de prêmios internacionais como o Prêmio Camões (Portugal/Brasil), Prêmio Rainha Sofia (Espanha), Prêmio Peres Bonald (Venezuela), Prêmio Pégaso/Mobil Oil (Colômbia/USA), Reina Sofia (Espanha).

Diversos textos seus foram convertidos em teatro, balé e música e tem diversos CDs de literatura gravados com sua voz e na voz de atores diversos.

Sua obra tem sido objeto de teses de mestrado e doutorado no Brasil e no exterior.

Recebeu algumas das principais comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tiradentes, Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dummont.

É casado com a escritora Marina Colasanti.

Prêmios Literários:
. “Prêmio Mário de Andrade” – Com o livro “Drummond, o gauche no tempo.”
. “Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal” – Com o livro “Drummond, o gauche no tempo.”
. “Prêmio União Brasileira de Escritores” – Com o livro “Drummond, o gauche no tempo.”
. “Prêmio Pen-Clube” – Com o livro “O canibalismo amoroso”
. “Prêmio União Brasileira de Escritores” – Com o livro “Mistérios Gozosos”
. “Prêmio APCA-Associação Paulista de Críticos de Arte”, pelo conjunto de obra

OBRAS DO AUTOR:

Poesia

. “Canto e Palavra”- 1965 – Imprensa Oficial de Minas Gerais
. “Poesia sobre Poesia”- 1975 – Imago/RJ
. “A Grande Fala do Índio Guarani”- 1978 – Summus Editorial/SP
. “Que País é Este?”- 1980 – Civilização Brasileira – 1984 – Rocco/RJ
. “A Catedral de Colônia e Outros Poemas”- 1987 – Rocco/RJ
. “A Poesia Possível” (poesia reunida) – 1987 – Rocco/RJ
. “O Lado Esquerdo do Meu Peito”- 1991 – Rocco/RJ
. “Epitáfio para o século XX” (antologia) – 1997 – Ediouro/SP
. “Melhores poemas de Affonso Romano de Sant’Anna – Global/SP
. “A grande fala e Catedral de Colônia” (ed. comemorativa) -1998 – Rocco, Rio
. “O intervalo amoroso” (antologia). – 1999 – L&PM/Porto Alegre
. “Textamentos” – 1999 – Rocco/RJ
. “Vestígios” – 2005 – Rocco/RJ
. “A cegueira e o saber” – 2006 – Rocco/RJ

Crônicas:
. “A Mulher Madura”- 1986 – Rocco/RJ
. “O Homem que Conheceu o Amor”- 1988 – Rocco/RJ
. “A Raiz Quadrada do Absurdo”- 1989 – Rocco/RJ
. “De Que Ri a Mona Lisa?”- 1991 – Rocco/RJ
. “Mistérios Gozosos”- 1994 – Rocco/RJ
. “A vida por viver” – 1997 – Rocco/RJ
. “Porta de Colégio” (antologia) – 1995 – Ática/SP
. “Nós os que matamos Tim Lopes” – 2002 – Expressão e Cultura
. “Pequenas seduções” – 2002 – Sulina
. “Que presente te dar” – 2002 – Expressão e Cultura
. “Antes que elas cresçam” – 2003 -Landmark
. “Os homens amam a guerra” – 2003 – Francisco Alves
. “Que fazer de Ezra Pound” 2003 – Imago

Ensaios:
. “O Desemprego da Poesia”- 1962 – Imprensa Universitária de Minas Gerais
. “Drummond, o “gauche” no tempo” – Record/Rio – 1990
. “Política e Paixão”- 1984 – Rocco/RJ
. “Análise Estrutural de Romances Brasileiros” – 1989 – Ática/Petrópolis
. “Por um novo Conceito de Literatura Brasileira”- 1977 – Eldorado/RJ
. “Música Popular e Moderna Poesia Brasileira” – 1997 – Vozes/Petrópolis
. “Emeric Marcier “- 1993 – Pinakothec/RJ
. “O Canibalismo Amoroso”- Rocco/RJ – 1990
. “Paródia Paráfrase & Cia.”- 1985 – Ática/SP
. “Como se Faz Literatura “- 1985 – Vozes /Petrópolis
. “Agosto 1991: Estávamos em Moscou”- 1991 – Melhoramentos/SP (com Marina Colasanti)
. “O que aprendemos até agora?” – Edutifia, São Luís, Maranhão (1984). Ed. Universidade de Santa Catarina – SC, 1994
. “Barroco, alma do Brasil.” – 1997 – Comunicação Máxima/Bradesco, RJ
. Reeditado em inglês, francês e espanhol , 1998
. A sedução da palavra(ensaio e crônicas). Letraviva. Brasili, 2000
. Barroco, do quadrado à elipse. Rocco,Rio, 2000
. Desconstruir Duchamp, Vieira e Lenti Casa Editorial, 2003

Fonte:
http://www.cronicascariocas.com.br/

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Affonso Romano de Sant’Anna em Xeque

Affonso Romano de Sant’Anna conversa sobre os universos paralelos da mente do escritor, em entrevista para André Azevedo da Fonseca

Com tanta informação circulando no planeta nos veículos de comunicação, por que ainda precisamos de literatura para pensar sobre a condição humana?

Por uma razão muito simples: a literatura é uma espécie de parábola da realidade e da condição humana, e através das parábolas você espelha muito mais a realidade do que através de análises objetivas e científicas. Mesmo porque um dos efeitos da parábola — ou seja, da ficção e da poesia — é solicitar da cabeça do leitor que ela se ponha também em movimento para articular o imaginário. Então é uma obra a muitas mãos, uma leitura a muitas mãos.

Mas através das notícias a mídia também parece capaz de oferecer essas parábolas. Por exemplo, a cobertura jornalística sobre o maníaco do parque ofereceu ao imaginário da cultura de massa um personagem quase literário, pronto para encarnar um novo mito, ou uma atualização de um mito. Não há uma conversa entre real e imaginário na imprensa?

Sim, a mídia hoje é o grande romance de folhetim. A novela é apenas uma parte de um grande romance de folhetim que começa no jornal de manhã, continua nos programas infantis, nos desenhos animados, nos esporte e nas mesas redondas, no Jornal Nacional, no Fantástico. É um mundo como espetáculo, como representação. E isso provoca até situações muito intrigantes, porque o indivíduo que não está equipado para decompor esses elementos que são atabalhoadamente jogados na telinha, ou que se amontoam no jornal, ele tem uma visão das coisas muito surrealista. Eu tenho a impressão que grande parte do povo brasileiro mistura o Fantástico com Jornal Nacional, com a Bíblia, e faz um “melê” que é difícil deslindar exatamente.

Às vezes, quando penso em livros, me vem a idéia que o leitor e o escritor não passam de sujeitos covardes que, por não ter coragem de experimentar a vida de forma carnal e se entregar às aventuras reais, se contentam em ser voyeurs de personagens fictícios. Paulo Freire ensinava que nos alfabetizamos não apenas na leitura das palavras, mas na leitura do mundo. Será que um dia conseguiremos nos livrar da mediação dos livros e aprender a ler o mundo diretamente, sem esse intermédio simbólico?

Eu colocaria de outra maneira. A escritura e a leitura são modos de extensão da vida, de complementação da vida. Eu não posso ir à Lua. Julio Verne também não podia. Mas ele descreveu a viagem à Lua. Julio Verne não podia fazer uma viagem submarina. Mas ele imaginou como seriam as 20 mil léguas submarinas. José de Alencar, ou um dos autores românticos, não viveram na Idade Média mas viajaram lá através da imaginação. Mesmo o romancista que narra histórias fantásticas está dilatando o seu universo e dilatando o universo dos outros. As pessoas não cabem dentro do seu próprio corpo. Por isso elas sonham de noite. Como elas não cabem dentro do próprio corpo elas têm que ler livros e ver novelas. E têm que amar os outros.

O que têm a ver o amor e a idéia de extensão da vida?

O amor é um ato de transferência de você para o outro. Você se muda para dentro do ser alheio. E no caso dos místicos, eles tentam imigrar de vez para a humanidade inteira se fundir com a figura de Deus.

Lembro-me de Schopenhauer quando ele diz que nós, antes de nos materializarmos enquanto animais biológicos, na verdade já começamos a existir quando ainda somos um mero desejo expresso na troca de olhares de nossos pais. Na verdade ele diz que as idéias e pensamentos se esforçam para apoderar-se da matéria para se transformar em algo físico, pois no instante mesmo do desejo o real já está sendo construído. A literatura faz isso, não?

É. O real é uma construção. Assim como em um teatro de arena, onde cada espectador está vendo a cena de um ângulo diferente, o real é algo sempre construído e desconstruído. O que a arte faz sistematicamente é destruir e reconstruir a realidade. Veja as peças de Shakespeare: de repente, como tem no Rio agora, e ocorre de vez em quando em várias partes do mundo, vem um diretor e apresenta um Hamlet, um McBeth totalmente diferente e às vezes até oposto e contraditório ao que seria o Shakespeare original. Não existe um Shakespeare original, assim como a realidade em si é uma coisa que nós temos que aprender a construir e ler diariamente.

Gostaria que você falasse um pouco das diferenças que no livro A sedução da palavra (Letraviva, 2000) você estabelece entre o autor e o escritor.

Todo mundo pode ser autor. Qualquer pessoa pode dizer: ah, vou escrever a vida no meu sítio, ou escrever a história da minha tia, ou a história da minha cidade, do meu cachorro; um médico pode fazer um livro de medicina… todos são autores. Agora, o escritor é alguém que, além de ser autor, se dá ao luxo de ter heterônimos, pseudônimos, pode multiplicar a sua personalidade. O escritor é alguém que tem um trato com a linguagem muito especial. Ele constrói as coisas a partir da linguagem. Ele sabe que as coisas não existem antes da linguagem dar consistência a elas. Ou seja, a diferença entre um escritor e uma pessoa comum é que a pessoa comum diz: minha vida daria um romance; e o escritor faz um romance. Porque vida de ninguém é um romance. A vida das pessoas é interessantíssima, mas só viram romance não se forem simplesmente escritas, mas se forem muito bem escritas. E para isso tem que ser escritor.

No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

O escritor lê porcaria até sem querer, né? Assim como a gente assiste a filme ruim propositalmente, e há alguns filmes ruins que são ótimos, como há romances e poemas kitsch que são ótimos, volta e meia você se surpreende cantando tangos e boleros, né? O kitsch e o mau gosto fazem parte da realidade. E a formação nossa, tanto na hora de colocar um vestido, escolher um sapato, quanto na hora de escolher um bom livro, um bom concerto, é saber distinguir o que é a coisa kitsch e o que é a coisa mais bem elaborada, o que é o chamado mau gosto e o que é um gosto mais sofisticado. Então essa questão passa por tudo. Da escolha do que se vai comer no restaurante ao livro de poemas que vamos ler.

Metade do autor é o leitor?

Metade. E às vezes há casos até curiosíssimos de autor que é um leitor voraz, um leitor insaciável, como é o caso do Borges, que vivia dizendo: enquanto outros se orgulham dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que eu li. Porque para ele escrever é uma forma de ler e reler.

Nas obras deles, Marquês de Sade arreganhava elogios à depravação total; Thomas de Quincey defendia que assassinatos eram obras de arte; os poetas da beat generation faziam apologia ao uso desenfreado de drogas. A literatura pode ser perigosa como dizem que é a TV? Ou, pelo contrário, num outro extremo, não há perigo algum nesses atrevimentos literários?

Tudo pode ser perigoso ou não. A palavra farmácia vem do grego farmakon, que significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Então quando você entra na farmácia, você acha veneno e remédio. Se tomar alguma coisa errada você pode morrer, se tomar a coisa certa você pode se curar. Nesse sentido a literatura, como a música, não é em si nem boa nem má. Pode potencializar nas pessoas aquilo que elas têm numa ou noutra direção. Por exemplo, na música você pode pensar assim: Mozart é uma coisa sublime, rock é coisa pesada; uma é angelical, outra é diabólica. Isso é um estereótipo, porque se algumas pessoas já cometeram violência e crime “por causa” do rock, nem todas as pessoas cometem crime e violência por causa do rock. E ao contrário, muitos dos carrascos nazistas gostavam de Bach, de Mozart. Então… é o farmakon.

Essa do farmakon foi boa! Vamos a próxima. Livro é muito caro. Hoje a média é R$30, ou seja, uns 10% do salário mínimo — isso se o Lula passasse o mínimo para R$300. Você defende o direito de que quem não tem grana possa “xerocar” os seus livros?

Realmente, o livro dentro dos padrões brasileiros é muito caro. Até na China, que tem 400 milhões de leitores, o livro custa entre R$2 e R$3. A questão do xerox tem sido debatida no mundo inteiro. Eu participei de vários seminários internacionais, sobretudo quando dirigi a Biblioteca Nacional. Cada país tenta defender uma estratégia determinada: alguns colocam uma taxa na produção da máquina que vai reverter como direito autoral para os autores, outros têm outras estratégias. No caso brasileiro especificamente, não há como impedir, por mais que se aconselhe. O professor quer dar um livro, ainda que ele recomende a compra, mas o livro está esgotado. Como fazer? O professor não vai dar aula sobre aquele livro? Por outro lado, em muitos livros você precisa só de um capítulo. Não precisa do livro inteiro. Então é uma questão muito complexa. Não de trata de proibir. Trata-se de estabelecer uma política mais ampla disso.

Você deu aulas nas Universidades da Califórnia e do Texas, nos EUA; na Universidade de Colônia, na Alemanha; e na Universidade Aix-en-Provence, na França. Como essas coisas são discutidas por lá?

Você entra numa universidade americana e em cada andar da biblioteca tem máquinas de xerox. Você compra um cartãozinho na entrada e copia quantos livros quiser, quantas páginas quiser. É só comprar e renovar o cartão. Eu já saí de bibliotecas americanas com “toneladas” de xerox.

Mas como eles lidam com a questão dos direitos autorais neste caso?

Eles têm um processo. Aquele dinheiro cobrado pelo xerox vai reverter de alguma maneira para uma política do livro, para o autor.

É uma boa idéia.

É necessário rever isso tudo. Por exemplo, em alguns países da Europa o autor ganha pelo fato de em uma biblioteca pública alguém tirar o livro dele para ler. Cada leitor da biblioteca pública é computado e o autor ganha uma comissão. É uma coisa interessante.

Você conhece um conceito que se chama copyleft?

[Sant’Anna me olhou meio de lado e vi surgir uma interrogação sobre sua cabeça.]

Esse termo inventado por um hacker americano é uma inversão da idéia de copyright.

[O escritor percebe imediatamente a idéia e se diverte com o trocadilho, soltando uma risadinha. Mesmo assim prefiro explicar melhor]

É um tipo especial de licença que ao mesmo tempo em que garante a propriedade intelectual, autoriza expressamente que os leitores reproduzam a obra à vontade, desde que não seja para fins comerciais. Se uma editora quer comercializar a obra, paga os direitos autorais. Se é para uso pessoal você pode comprar o livro ou então copiá-lo gratuitamente. A idéia é que, na verdade, quanto mais a obra circula, mesmo que seja através de cópias, mais ela vende. De cada vinte leitores que copiam, seguramente uns três ou quatro vão acabar comprando, porque ao gostar do texto não vão querer guardar as folhas grampeadas do xerox, mas sim a cópia durável e de bom acabamento do livro.

Claro.

O que acha dessa idéia?

É uma proposta interessante. Agora, embutida nessa questão tem um outro problema que acho riquíssimo e que foi exposto implicitamente num filme que se chama “O Homem que copiava”. Eu até escrevi duas crônicas sobre isso, dentro de um conjunto de análise que eu estava fazendo da arte contemporânea, sobre a questão da cópia. O problema da cópia é interessantíssimo, porque a sociedade em que vivemos, que é chamada de pós-moderna, instituiu perversamente a idéia de que o autor não existe. Qualquer um pode se apoderar de qualquer coisa. O sujeito não existe. Isso, filosoficamente, redunda em uma tragédia epistemológica, porque se o sujeito não existe somos todos objetos. Eu não gosto de uma cultura onde todos são objetos. O esforço é para que as pessoas se transformem em sujeitos.

Conheço outra linha de discussão: o autor não existe porque o que ele faz é pouco mais do que copiar e cruzar vários outros autores que estão dentro de seu universo mental. Tom Zé chama isso de estética do plágio, ou estética do arrastão. Para ele, nós somos o nosso contexto, somos a nossa circunstância. [a observação ia ficando longa, e o entrevistado já ficava inquieto para falar]. Não será por mero acidente que conseguimos escrever algo novo?

Aí tem várias coisas interessantíssimas. Tem um lado que é verdade: na natureza nada se cria, tudo se transforma. É uma lei da Química. Por outro lado, dentro do folclore, da literatura, as histórias são recriadas. Você encontra pedaços da lenda do Rei Arthur em Mil e Uma Noites, em Decameron e em vários lugares. Agora, isso é uma coisa, é um fato real — o processo de metamorfose, de transformação que existe na natureza, na cultura. Outra coisa é a cultura da leviandade que a pós-modernidade cultiva. Ou então certas coisas que são veiculadas através da chamada estética do falso.

O que é isso?

Autores que fazem romance jogando com a idéia da falsidade, levantando uma questão que em última instância é a seguinte: alegam que numa sociedade se mente muito, numa sociedade tudo é falso, tudo é fake. Então a pessoa produz uma obra falsa, uma obra fake. Então eu digo: é juntando mentira a mentira que vamos combater a mentira? É juntando falsidade a falsidade que nós vamos combater a falsidade? Em termos de arte e escatologia, é juntando merda a merda que nós vamos sair da merda?

O que é uma obra falsa?

Pois é. O que é uma obra falsa?

Ou o que seria a estética do falso?

A estética do falso pretende que não há autoria. Há um deslizamento constante através do qual todos participam, que tem seu lado verdadeiro. Quando entra na moda usar um tipo de calça, de camisa, todo mundo se apropria daquilo. Mas estou desenvolvendo já há algum tempo um raciocínio que, ao lado de reconhecer o que há de natural nisso, há um outro lado perverso: a questão da apropriação. Em arte se usa muita técnica de apropriação, mas os bandidos também usam. Como um caso de um artista na França que resolveu fazer uma exposição chamada “Tudo Aquilo que Roubei de Vocês”. Ele roubou vários objetos dos amigos e fez uma exposição. Os amigos não gostaram e chamaram a polícia.

Aí surgiu uma discussão, que envolveu Ministro da Cultura e Ministro da Justiça na França, se roubar é um ato artístico, um gesto estético. Até que ponto é apropriação, ou quem sabe, que é a minha ótica, a gente não deve analisar isso tudo dentro de um contexto? Analisando dentro de um contexto gestaltiano mais amplo, você entende Fernandinho Beira-Mar, o narcotráfico, a violência da nossa sociedade e a falta de caráter geral.

Entende ou justifica?

Entende. Justificar jamais. A grande ansiedade do ser humano é entender as coisas, pelo menos. Chega alguém e mata outra pessoa, você fica horrorizado, você quer entender por que matou, tem que ter uma causa, tem que ter uma razão! Não vai justificar, mas tem que entender.

Patrick Grainville, em entrevista a Betty Milan, diz que é muito importante que o escritor tenha um ofício qualquer fora da literatura, porque senão ele fica maluco, fica muito distante do mundo e se perde. O que você acha disso?

Isso é um problema dele.

Perguntei isso consciente desse contexto em que vivemos, no qual o escritor, com as raras exceções, não consegue viver de sua obra. Então…

Eu adoraria ficar só escrevendo poesia, se me financiassem por aí. Adoraria enlouquecer escrevendo poesia. Não teria nenhum medo. [nesse momento ele fez uma pausa retórica]

Você tem uma sugestão para…

Ao contrário. Quando eu trabalhava em banco, e era estudante de letras, ficava possesso porque estava jogando meu tempo fora em vez de estar escrevendo literatura. Esse Patrick pode voltar a trabalhar no banco porque eu já passei por essa experiência.

[Enquanto ria, lembrei sofregamente que, sobretudo quando entrevistamos escritores, é uma peleja para discernir quando eles já disseram tudo, quando querem deixar a coisa ambígua, ou quando o momento de silêncio é apenas uma pausa retórica na exposição do raciocínio.]

Qual a sua sugestão para pensar esse problema de o autor não conseguir viver de sua obra?

Olha, aí tem duas coisas. Uma: em qualquer profissão é complicado. Jovem arquiteto, jovem médico, jovem advogado, jornalista, costureiro, estilista, todo mundo tem uma certa dificuldade. A quantidade de pessoas que abrem lojas e fecham é muito grande. Então há uma dificuldade que no caso brasileiro se agrava porque estamos em recessão há trinta anos. Agora, nos países que têm uma estrutura econômica e social mais estável é possível viver de literatura, não só através do livro, mas de uma série de estímulos que governo, fundações e instituições culturais e fornecem — como bolsas e auxílios de pesquisa. Eu mesmo estive em uma meia dúzia de bolsas dadas por fundações estrangeiras. A última foi em Bellagio, na Itália. Eles tinham pago umas vinte pessoas no mundo inteiro para ficarem um mês, sem nenhuma preocupação, para executar um projeto, seja um livro, uma pesquisa etc. Tudo pago. Tinha escritores lá, e eu fui para terminar um livro que eu estava fazendo. E isso é muito comum na Europa e nos Estados Unidos.

Dá para adaptar essas idéias no Brasil?

Quando eu dirigi a Biblioteca Nacional eu criei um sistema de bolsas de escritores dando umas dez ou quinze bolsas por ano para o escritor terminar o trabalho dele. Criei o sistema de financiamento de tradução de autores brasileiros no exterior. Umas trinta ou cinqüenta obras traduzidas no exterior por ano. Então há mecanismos. Se você ganhar da prefeitura daqui, ou de uma fundação, uma bolsa durante um ano ou dois anos para uma pesquisa ou um livro, você estaria vivendo de literatura.

Mmmmmm, seria um sonho! Há escritores que só escrevem sob pressão, e há mesmo quem diga que a calmaria e a estabilidade não é criativa. Orson Wells tem disse aquela famosa frase, dizendo que enquanto a Itália cheia de guerras gerou a Renascença, a pacata Suíça produziu apenas o relógio cuco. O que acha disso?

A questão, outra vez, é diversificada, é complexa. Há pessoas que só conseguem funcionar, para tudo, sob pressão. Eu conheço donas-de-casa que resolvem experimentar em um jantar — onde vêm convidados! — pratos que nunca fizeram, sem saber se vai dar certo. A Marina [Colasanti] é assim.

Muito bom isso.

A tensão de fazer um negócio que nunca fez, que é desafiador, mobiliza. Como o ladrão que está correndo da polícia, ou correndo de um pitbull, ele pula um muro de cinco metros de altura. Se não tiver o pitbull, ele não pula nem um metro. Então há pessoas que precisam dessa adrenalina, outros não. Tive até duas experiências curiosas com isso. Uma vez eu estava em um programa de jovens escritores em Iowa, nos Estados Unidos, em uma dessas bolsas. Eram quarenta escritores do mundo inteiro. Dois terços diziam que não conseguiam escrever porque tinham saído exatamente de seus países onde viviam sob pressão, tendo que trabalhar, cuidar da família, não sei o quê. Ficaram num lugar só para escrever e não conseguiram escrever. Eu levei um projeto para escrever, que era a minha tese sobre Drummond, e fiz a tese normalmente; enquanto um dramaturgo turco, quinze dias antes de terminar esse período de nove meses, não tinha conseguido escrever uma linha. Já em Bellagio, onde fui mais recentemente, eu tinha levado um projeto de ensaio; mas aquele clima de paz, de beleza, de encantamento era de tal ordem que eu joguei aquilo pra lá e fiquei um mês só transando poesia.

Em Canibalismo Amoroso você desenvolve um conceito muito interessante ao considerar o texto como uma “manifestação onírica social”. Você poderia falar um pouco sobre isso?

A idéia básica desse livro — na verdade é uma idéia básica para se entender a literatura — é que o escritor é uma espécie de sonhador de utilidade pública. Ele fantasia coisas que não são apenas fantasias pessoais, mas fantasias comunitárias. Ele é apenas, como propunha Ezra Pound, uma antena que está captando algumas coisas. Daí certos livros terríveis, O médico e o monstro, os livros policiais, etc. Por que as pessoas lêem isso? Você pode pensar: o autor devia ser um neurótico. Mas por que milhões de pessoas lêem Agatha Christie? Porque através do crime e do mistério elas estão elaborando os seus fantasmas. Então a literatura e a arte em geral é o lugar de elaboração de grandes fantasmas de fantasias.

Ops, eu pulei uma pergunta. Antes de falar de Canibalismo Amoroso eu queria ter conversado sobre o movimento antropofágico. Depois da minissérie da Globo, todo mundo comemora a aventura de Oswald e Mário de Andrade. Apesar de reconhecer a importância da Semana de 22, sei que você tem críticas ao modernismo. Você pode falar sobre isso?

Eu tenho várias considerações. Primeiro, o modernismo foi muito importante mas cometeu vários equívocos, várias injustiças. Ensinou uma geração a ter preconceito contra o século 19, contra certos poetas parnasianos, simbolistas, contra a literatura romântica, e isso por um vezo futurista de querer ser diferente do outro. Entende-se perfeitamente que isso tenha ocorrido num primeiro momento. Agora, além disso eu tenho uma outra colocação sobre a Semana de Arte Moderna. É que à rigor ela não aconteceu em fevereiro de 1922. Ela não só começou a acontecer muito antes disso, com Brás Cubas, com Sertões de 1902, com Lima Barreto e por aí a fora, como em 1922 aconteceu uma certa coisa da qual o país não tomou o menor conhecimento na ocasião. Mas aquela coisa tinha uma força original que foi captada por outras pessoas. Então, a Semana da Arte Moderna começou a acontecer, sistematicamente, depois. Ou seja, todo autor que estudou um autor modernista é um modernista, ajudou a fazer o modernismo. Quando alguém analisa Oswald de Andrade, dá interpretação nova, analisa Drummond, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano, é como se estivesse batendo esse bolo que está fermentando, que está crescendo, como se estivesse sendo um acionista de uma grande empresa. E isso chegou a um ponto tal que virou essa novela da Globo. Essa novela foi a apoteose popular de uma semana que continua sendo inventada. O que aparece ali não tem nada a ver com o que foi em 1922. Ou seja, a idéia da Semana é uma idéia em construção. Ela não acontece em 22.

Antropofágica pra valer!

É. Então estou devorando a Semana, fazendo uma “meta-antropofagia” com a Semana. Estou reduzindo ao meu estômago aquela semana que aconteceu.

Em seu livro você defende que o canibalismo é um traço fundamental de nossa cultura. Por quê?

Eu comecei a colecionar notícias policiais envolvendo canibalismo. Que é impressionante. Não é apenas essa coisa imaginária que existe na literatura, ou um ato episódico dos jogadores uruguaios que caíram na neve e começaram a comer os companheiros e tal. Isso existe como um impulso neurótico e Freud consegue explicar de certa maneira essa perversidade oral. E é muito comum. Ainda agora aquele programa Linha Direta vai mostrar um criminoso de São Paulo chamado Chico Picadinha, que pegava as mulheres, sobretudo prostitutas, retalhava, picava e comia; como aquele canibal alemão que pôs um anúncio na Internet porque queria comer uma pessoa e, entre vários candidatos, um se ofereceu realmente e foi devorado por ele. Existe uma coisa, um desvio, uma perversão que no lado mais ameno e mais normal se dá numa relação amorosa, que são grandes “entredevorações”.

Sua pesquisa mostra como que na poesia, do parnasianismo ao romantismo, a mulher passou a ser representada de flor a fruta, ou seja, de algo para ser visto a algo a ser comido, do jardim ao pomar. Depois as metáforas passaram a comparar a mulher a animais que o homem deveria caçar se quisesse comer. Essa ligação da culinária e do amor é um traço evidente do canibalismo amoroso.

Sim, faz parte desse canibalismo masculino, como existe um canibalismo feminino. Em alguns animais, alguns insetos, a fêmea é a devoradora; assim como existe um grande mito no imaginário masculino, sobre o qual eu falo no Canibalismo: o mito da Vagina Dentada, o grande medo da grande mãe castradora, como os folclores todos trabalham isso, e como é que até a ficção moderna trabalha isso. O José Rubem Fonseca, por exemplo.

Freud disse assim: “A grande questão para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: o que elas querem enfim?” Você, marido da Marina Colasanti, já tentou esboçar alguma resposta para esses enigmas? Por que tememos tanto as mulheres? O que elsas querem afinal?

Primeiro porque elas são seres superiores. São adoráveis, mais inteligentes. Em segundo lugar, existe uma resposta para essa pergunta do Freud, eu até fiz uma crônica sobre isso, que é uma parábola sensacional que não vai dar pra você contar, porque é muito grande, que remete à lenda do Rei Arthur.

Ah, pode contar!

Ela começa quando o Rei Arthur, ainda jovem, invadiu o terreno de um rei e como punição foi condenado à morte. E o rei falou que ele só poderia escapar da morte se conseguisse resolver a seguinte questão: o que querem as mulheres? Há todo um desenvolvimento disso e a solução que se encontra é uma coisa maravilhosa. O Arthur contou isso para um colega, um dos cavaleiros, que disse: — Eu vou resolver esse problema pra você. Eu soube que tem uma bruxa na montanha que tem a resposta. Esse cavaleiro era belíssimo, inteligente, e então foi lá no lugar do Arthur e falou com a bruxa. — Escuta aqui, tenho um problema e preciso saber: o que querem as mulheres? A bruxa falou assim: — Olha, eu posso te contar, mas tem o seguinte: você tem que casar comigo. Só se você casar comigo eu respondo. E para salvar o amigo, casou com a bruxa. — Vou te contar na noite de núpcias. No banquete a bruxa estava comendo, toda desgrenhada, sem dente, vesga, jogando comida no chão e o pessoal se perguntando: pô ele vai casar com essa mulher? Aí quando ele entrou no quarto nupcial, perguntou: Bom, então me diz agora, finalmente! Estamos casados! A bruxa disse o seguinte: — Eu vou te fazer uma revelação. Eu sou bruxa de dia, mas de noite eu sou outra pessoa. E se transformou numa mulher deslumbrante, a mulher mais deslumbrante que qualquer homem pode imaginar, nem precisa descrever, cada um descreve a sua. E apareceu aquela mulher! Na alcova do cavaleiro! E aí a bruxa transformada na bela mulher disse: — Mas você vai ter que decidir com qual de nós duas você quer ficar, a bruxa ou essa deusa. Aí o cavaleiro, como era um cavaleiro mítico, um herói, de caráter sem jaça, um sábio, disse para ela: — Você decide. Você é que decide quem você quer ser. Então o resultado dessa melódia é: o que querem as mulheres? As mulheres querem ser o que elas querem ser, e não o que os homens querem que elas sejam.

Fale um pouco sobre as estratégias compensatórias pelas quais driblamos nossas frustrações, um assunto que explora bem em sua obra.

O imaginário humano é muito rico, ele desliza muito. Há um princípio básico da psicanálise que continua válido até hoje porque na verdade corresponde até a uma lei da Física e da Química: assim como Lavoisier disse que tudo se transforma, em termos de psicanálise e inconsciente Freud mostrou, entre outras coisas, que nós não suportamos nenhuma frustração. Nós não abrimos mão das coisas; nós substituímos. Então o nosso imaginário vive fazendo substituições. Se você não pode ter uma coisa, troca por outra, consciente ou inconscientemente, dentro de um jogo que a psicologia chama de redução da dissonância cognitiva. Você quer casar com uma mulher, ela não gosta de você, mas você casa com outra, em outras circunstâncias. Mas você tem que “justificar” aquele casamento. Então você diz: casei mas ela é rica né? Ela me dá tudo, e tal, eu não preciso trabalhar… Tem que ter alguma vantagem! Eu trabalho naquela empresa ali, eu não gosto muito não, mas me pagam muito bem. E assim por diante. Então isso existe em relação a tudo. A parte erótica, a parte amorosa, social, econômica…

Proust dizia que muitas vezes o escritor só encontra a sua verdadeira personalidade no texto. Será que isso explica o fato, por exemplo, de uma pessoa escrever coisas maravilhosas, humanistas, mas na vida real ser um crápula, um monstro?

Nós temos várias pessoas dentro de nós. Fernando Pessoa não inventou nada de extraordinário. Ele apenas contextualizou uma esquizofrenia que todos nós temos. Balzac criou tantos personagens que diziam que ele estava fazendo concorrência com os cartórios, de tanta gente que ele tinha criado. Ele era todas aquelas pessoas e também não era. Então o escritor é isso. Aliás isso é até terapêutico. Inclusive no teatro eu acho que isso é mais terapêutico ainda. Quando você faz psicanálise, às vezes você pode entrar para a terapia de grupo. Você vê nos seus colegas uma série de reflexos seus que te ajudam. Então você pode tratar-se através do psicodrama, cada um representa uma série de obsessões, de fobias, de fantasias e põe aquilo para fora em termos de catarses que exorcizam. Um ator um dia representa um amante, um dia um assassino, um dia um pai, um dia um filho, empregado, patrão, ele está exercendo um universo dentro dele terapêutico incrível. E o leitor é isso também. O leitor vai encarnando. O espectador de celebridades é a mesma coisa. A pessoa que está vendo Darlene queria ser também célebre, condena a Darlene por uma série de ações, mas também fica meio siderada com a fama. Há uma transferência.

Você que é um pensador do amor, responda aí essa última pergunta, inspirada em Saint-Exupery: somos responsáveis por aqueles que nós cativamos?

De alguma maneira sim. Mas a sua relação com alguém nessa troca de emoções, de afetos, de conhecimento, deve também fazer com que o outro cresça, que o outro não seja um dependente, de tal maneira que haja uma relação de maturidade, uma relação adulta. O outro não deve ser tratado nunca como uma criança, mas com respeito. E vice-versa.

Affonso Romano de Sant‘Anna, muito obrigado pela entrevista. Foi um grande diálogo e certamente vai inspirar muitas idéias nos leitores.

Fontes:
Portfólio André Azevedo da Fonseca
Matéria publicada no Revelação (jornal-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Uberaba) n. 284, em 4 de maio de 2004
Fotomontagem – José Feldman

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Arquivado em O Escritor em Xeque

Affonso Romano de Sant’Anna (A Mulher Madura)

O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

Fonte:
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A Mulher Madura. RJ: Rocco, 1986.

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208 Anos da Morte de Novalis

Fotomontagem: José Feldman

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Novalis (1772 – 1801)

Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (Oberwiederstedt, Harz, 2 de Maio de 1772 — Weißenfels, 25 de Março de 1801), Freiherr (Barão) von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, foi um dos mais importantes representantes do romantismo alemão de finais do século XVIII e o criador da flor azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico.

Seu pseudônimo, Novalis, vêm de um nome que a sua família teria usado. Por vezes chamado do profeta do Romantismo, tem como central imagem das suas visões uma flor azul, que mais tarde se transformou como símbolo de saudade entre os Românticos. A “Flor Azul” era inatingível e assim o continuará.

Nasceu em Oberwiederstedt, na Saxônia Prussiana, numa família nobre de protestantes. Quando tinha 10 anos foi enviado para uma escola religiosa mas teve dificuldades em se ajustar. Foi entretanto viver com o seu tio que lhe abriu portas para o Racionalismo e cultura francesa. Mudou-se com os seu pai para Weissenfels e entre 1790 e 1791 estudou Direito, tal como Goethe, na Universidade de Jena onde conheceu Friedrich von Schiller e Friedrich Schlegel. Completou os estudos em Wittenberg em 1793. As idéias da recente Revolução Francesa rapidamente se espalharam por toda a Alemanha e Novalis sonhava com o tempo das “Muralhas de Jericó” derrubadas. Um romântico místico, inclinava-se por uma restauração da república cristã, desaparecida desde a reforma protestante, enquanto Kant, um homem do Iluminismo, antevia como solução para a Europa uma liga das nações, uma república secular, humana, constituída por uma federação mundial a ser acertada no devir.

O livro de Goethe “Wilhelm Meisters Lehrjahre” (Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meiste) influenciou-o profundamente, de tal modo que ele o considerou a bíblia da “Nova Era”. Por volta de 1796 estudou as obras de Johann Gottlieb Fichte.

Com 21 anos, muda-se para Tennstädt, perto de Langensalza, para trabalhar como Administrador Civil, depois de o pai ter rejeitado o convite do ministro prussiano para um outro cargo governamental em Berlim, com receio das influências liberais. No ano seguinte foi nomeado Auditor da Direção das minas de sal de Weißenfels, onde o pai trabalhava como Diretor.

A conselho de amigos, que pretendiam impedi-lo de sucumbir à forte e inexperimentada tentação da vida militar que sentira, havia-se mudado, no final de 1794, para Arnstadt, na Thuringia, para continuar no ramo de trabalho do pai. No entanto, um acontecimento na vizinha Grueningen, haveria de transformar toda a sua vida, como relata o seu futuro amigo e editor Ludwig Tieck:

Não terá sido muito depois da sua chegada a Arnstadt, quando numa mansão senhorial nas redondezas, ele travou conhecimento com Sophie von K____. O primeiro vislumbre desta justa, maravilhosa e amável forma foi decisivo para toda a sua vida; não, podemos dizer que este sentimento, que agora o penetrou e inspirou, foi a substância e essência de toda a sua vida. Algumas vezes, no olhar e figura de uma criança, estampar-se-á uma expressão que é tão etérea e angelicamente bela, que somos forçados a chamar de não-terrestre ou celestial; e é voz comum, que, na visão de tais faces puras e quase transparentes, chega a nós um medo de que elas sejam excessivamente ternas e delicadas para serem moldadas para esta vida terrena; isso é a Morte, ou a Imortalidade, que nos olha de frente tão expressivamente com esses olhos deslumbrantes para a Certeza. Ainda são mais intensas estas figuras quando o primeiro período é alegremente ultrapassado, e elas florescem na véspera de feminilidade. Todas as pessoas que conheceram esta maravilha amorosa do nosso Amigo, concordam em testemunhar que nenhuma descrição pode exprimir que graça e celeste harmonia a moviam, que beleza irradiava, que macio e majestoso era o halo que a rodeava. Novalis tornava-se um poeta sempre que tinha a possibilidade de falar sobre isso. Ela tinha concluído o seu décimo terceiro ano quando ele a viu; a Primavera e Verão de 1795 foram o desabrochar da sua vida. Cada hora que ele podia liberar-se do seu negócio, ele a passava em Gruningen: e no Outono desse mesmo ano ele obteve dos pais de Sophie, o tão aguardado consentimento para o noivado.”

Infelizmente, no entanto, estes dias de alegre tranquilidade foram de curta duração. Pouco depois, Sophie von Kühn ficou perigosamente doente, com febre. Pouco a pouco a sua febre foi diminuindo mas as dores ainda a atormentavam violentamente. Dito que eram sem importância pelo Físico, Novalis retornou para Weissenfels, para os seus pais. Na Primavera seguinte ele visitou a família e encontrou Sophie bem de aparência. Mas, de súbito, no Verão, as suas esperanças e ocupações foram interrompidas por avisos de que ela estava em Jena, e fora submetida a uma operação cirúrgica. A pequena donzela suportou tudo isto com inflexível coragem e alegre resignação. Em dezembro, por sua vontade retornou para casa, onde era evidente a sua fraqueza crescente. Ia e vinha entre Gruningen e Weissenfels, que também se tinha tornado uma casa de mágoa, pois o seu irmão padecia de uma longa doença e aparentava morte certa. De novo, Tieck reconta:

No dia 17 de Março era o décimo-quinto aniversário da sua Sophie; e no dia 19, por volta do meio-dia, ela partiu. Ninguém se atreveu a contar a Novalis estas tristes notícias; por fim, o seu irmão Carl tomou a iniciativa. O pobre jovem não se calava, e depois de três dias e três noites de choro e lamentos, partiu para Arnstadt, onde, com o seu verdadeiro amigo, poderia estar mais perto do lugar em que agora permaneciam os restos do que havia sido o de mais querido para ele. No dia 14 de Abril, morria o seu irmão Erasmus. Informa a seu irmão Carl.

Sê bom de coragem’, escrevia ele, ‘Erasmus prevalece; as flores do nosso justo ramalhete estão a cair aqui, uma por uma, para que possam ser unidas além, amavelmente e para sempre.’”

Em 1798, publica uma série de fragmentos filosóficos, “Fragmente.” No seu lamento, começou um diário contemplando suicídio e a escrever poemas.

Começa a estudar Mineração na Academia de Feiberg. Ali ele torna-se amigo de Ludwig Tieck e outros Românticos. Em 1798, fica noivo de Julie von Charpentier, à qual nunca se juntará. Ele pensava que Julie tornava a presença de Sophie ainda mais aparente.

Em 1800, a sua única coleção acabada de poemas, ”Hymnen an die Nacht” (Hinos à Noite), é a expressão do seu desgosto pela morte do seu primeiro grande amor. O conjunto de seis prosas e versos líricos foi publicado na Athenäum, uma revista literária editada por August Wilhelm Schlegel e por seu irmão Friedrich Schlegel.

Na sua viagem a Weimar, conhece Goethe, Herder, e Jean Paul, e em Jena, os irmãos Schlegel. Começa a trabalhar na sua escrita com um novo entusiasmo, mas já nessa altura estava seriamente doente.

Antes de poder casar-se com Julie, Novalis morre de tuberculose, em 1801 em Weissenfels.

Os seus dois romances filosóficos, “Heinrich von Ofterdingen” e “Die Lehrlinge zu Sais”(Os Noviços em Sais) foram deixados incompletos.

Em “Heinrich von Ofterdingen” um jovem poeta medieval procura uma misteriosa Flor Azul.

Em “Die Lehrlinge zu Sais”, um noviço adolescente argumenta que: “Só os poetas deviam ocupar-se do líquido e ter o direito de falar dele à juventude ardente”.

Entre setembro de 1798 e março de 1799, ele escreveu fragmentos chamados de “Das Allgemeine Brouillon” que faziam parte da sua planejada enciclopédia, em que examinava a polaridade na Natureza.

A vida de Novalis inspirou Penelope Fitzgerald para o seu romance “The Blue Flower” (1995).

Fontes:
http://pt.wikipedia.org

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Novalis (Hinos à Noite)

I.

Diante do espetáculo maravilhoso do espaço aberto à sua volta, que existência viva, sensível, não ama a deliciosa luz, com suas cores, raios e ondulações, sua onipresença gentil na forma do alvorecer? O mundo gigantesco das constelações despertas inala o dia como a mais profunda alma da vida, e flutua dançando em sua torrente azulada; a pedra tranqüilamente faiscante, a pesarosa planta, o mundo selvagem, ardente e multiforme dos animais o inala; porém, mais que elas, o nobre estrangeiro com olhos brilhantes, andar altivo, lábios melodiosos e cerrados. Como um rei que comanda a natureza mundana, ele invoca os poderes para transformações incontáveis, ata e desata inúmeras alianças, sustenta sob forma celestial cada substância terrena. Sua presença por si só revela o esplendor maravilhoso dos reinos do mundo.

E eu me volto para a Noite misteriosa, sagrada e indescritível. Ao longe repousa o mundo, em sepulcro profundo; um lugar solitário e arruinado. Nas cordas do peito golpeia uma tristeza profunda. Estou pronto para mergulhar nas gotas do orvalho, e misturar-me às cinzas. – A distância da memória, os desejos da juventude, os sonhos da infância, as breves alegrias e aspirações vãs de uma vida longa, surgem com uma veste acinzentada, como o vapor da tarde antes do pôr do sol. Em outras plagas a luz assentou suas tendas felizes: e se eu nunca mais retornar para suas crianças, que me esperam com a fé da inocência?

O que renova todos os pressentimentos de meu coração, e acalma o ar suave da tristeza? Negra Noite, não terás uma afinidade conosco? O que seguras sob teu manto, cujos poderes ocultos afetam minh’alma? O bálsamo precioso goteja do ramo de papoulas, em tuas mãos. Tu retiras os cravos de aço da alma. De modo obscuro e indescritível, somos tocados: estarrecido de prazer contemplo a face grave que, suavemente e em prece, inclina-se sobre mim, e, em meio a olhares confusos, revela o amor jovial da Mãe. Como a luz parece agora algo pobre e infantil! como é agradável e bem-vinda a partida do dia! –

Não é apenas porque a noite arrebata de ti seus servos, e lança aos abismos do espaço teus globos faiscantes, que proclamas, nos momentos de ausência, sua onipotência, e desejas seu retorno?

Temos olhos que a noite abriu em nosso interior, mais divinos que aquelas estrelas brilhantes. Sua visão alcança além dos incontáveis hóspedes mais pálidos da noite. Sem auxílio da luz eles penetram as profundezas que abrangem as regiões elevadas com inefável delícia. Glória à rainha do mundo, à grande profetisa dos mundos mais sagrados, à mãe cuidadosa do delicioso amor! ela mandou-te a mim, tu a mais suavemente amada, sol gracioso da Noite. Agora desperto, pois sou teu e meu. Fizeste-me conhecer a Noite, entregaste-a a mim para que se tornasse minha vida; tu fizestes de mim um homem. Consumas meu corpo com o ardor de minh’alma, de modo que eu, tornado ar purificado, possa misturar-me completamente contigo, e assim, nossa noite de núpcias durará eternamente.

II.
Por que a manhã deve sempre retornar? O despotismo do dia nunca terá fim? A atividade profana consome a visita angélica da noite. Nunca chegará o dia em que o sacrifício oculto do Amor arderá eternamente? Veio o tempo da Luz; porém, o domínio da Noite é eterno e ilimitado. A duração do sono é eterna. Sono Sagrado, servo dedicado da Noite, não se preencha de júbilo no trabalho mundano do dia. Os tolos julgam-te mal, nada conhecendo do sono exceto a sombra que lanças piedosamente sobre nós no crepúsculo da noite real. Eles não te sentem no fluxo dourado das videiras, no óleo mágico da árvore das amêndoas, e no suco marrom do pomo da papoula. Eles não sabem que és tu quem assombra o seio da bela dama, e transforma em Céu a sua nobreza; jamais suspeitam que és tu, guardiã do Céu, quem envia a eles as antigas histórias, mensageira silenciosa dos segredos infinitos, portadora da chave para a morada dos abençoados.

III.
Certa vez, quando derramava lágrimas amargas, que minha esperança, dissolvida na dor, se esvaía, e eu permanecia só sobre uma colina estéril que em seu contorno escuro, baixo, ocultava a desvanecida forma de minha Vida; só como ninguém jamais havia sido, tocado por uma angústia indescritível, privado de forças, e nada mais restava exceto a consciência da miséria; – enquanto olhava ao meu redor em busca de socorro; não podia avançar nem retroceder, e enfraquecido com a perda, extinguí minha vida com uma saudade sem fim; então surgiu das distâncias azuis, das profundezas de meu júbilo passado, uma chuva brilhante, crepuscular; e num só momento romperam-se as amarras do nascimento, os grilhões da Luz. Ao longe fugiu a glória da Terra, e com ela meus lamentos. A tristeza fluiu num mundo novo e inescrutável. Tu, ó inspiração da Noite, Sono celestial, viestes sobre mim. O local elevou-se suavemente, e acima pairou meu espírito recém-nascido, ilimitado. A colina tornou-se uma nuvem de poeira e envolveu-me, e na nuvem vislumbrei a glorificada face de minha Amada. Em seus olhos jazia a eternidade. Apertei suas mãos e minhas lágrimas tornaram-se um laço ardente e indestrutível. Milhares de anos fluíram ao longe nas distâncias do relâmpago e da tempestade. Em seu dorso eu saudei a nova vida com lágrimas e êxtase. Jamais tive tal sonho novamente; desde então e para sempre eu mantenho uma fé eterna e inabalável no Céu da Noite; e em seu sol, a Amada.
~ ~ ~

IV.
Agora sei quando chegará o derradeiro amanhecer: quando a luz não afugentar mais a Noite e o Amor, quando o sono persistir sem o despertar, existindo apenas um sonho contínuo. Sinto em mim uma exaustão celestial. Minha peregrinação para o túmulo sagrado foi longa e cansativa, e a cruz esvaia-se. Aquele que experimentou a onda de cristal que, imperceptivelmente ao sentido comum, brota do seio obscuro da colina batida pelo fluxo do mundo, aquele que esteve na montanha fronteiriça do mundo, e vislumbrou o interior das novas terras nos domínios da noite, certamente não retornará ao tumulto do mundo, às terras nas quais reina a Luz em inquietude perpétua.

Naquelas alturas ele constrói para si tabernáculos – tabernáculos de paz; lá recorda, ama e contempla, até que a mais querida das horas lança-o nas águas da fonte. Tudo o que é mundano flutua sobre ele, revolvendo-se em tempestades; mas o que se tornou sagrado pelo toque do Amor flui livremente através dos caminhos ocultos, das regiões mais além, onde, junto aos aromas, mistura-se ao amor adormecido. Doce Luz, tu ainda acordas o homem cansado para o trabalho, e em mim deitas a alegria da vida; mas tu não me afastarás do monumento coberto de musgo da memória. Oferecer-te-ei a mão laboriosa sempre que necessitares de mim; louve a rica pompa de teu esplendor; persiga incansável as harmonias amáveis de teu habilidoso artesão; contemple feliz a pesarosa paz de teu poderoso, radiante relógio; explore o equilíbrio das forças dos maravilhosos e incontáveis mundos e suas estações; mas meu coração secreto permanece da Noite, e do seu filho, Amor o criador.

Poderias tu me revelar um coração eternamente verdadeiro? Possui teu sol olhos amigos que me conhecem? Seguram tuas estrelas minha mão quando ela se oferece? Retribuem elas a pressão suave da minha palavra carinhosa? Tu não as adornaste com cores e com trêmulo contorno? Ou terá sido ela quem concedeu às tuas jóias um significado mais elevado, e querido? Que delícias, que prazeres, a tua vida me oferece, para aliviar o fardo dos transportes da Morte? Não será tudo aquilo que nos inspira investido da vivacidade da Noite? Tua mãe, é ela que te gera, e a ela deves toda tua glória. Tu poderias desvanecer em si, poderias dissipar-se no espaço infinito, se ela não te amparasse, não te enfaixasse para que permanecesses quente e flamejante, concebendo o universo. É certo que eu já existia antes de ti; a mãe enviou-me com minhas irmãs para habitar o mundo, para santificá-lo com amor de modo que ele se tornasse um memorial eternamente presente, para semeá-lo com flores que jamais fenecerão.

Mas assim como elas não germinaram, e nem estes pensamentos divinos; não há sinal algum do apocalipse que está próximo. Mas um dia teu relógio apontará para o fim do Tempo, e então deverás ser apenas um conosco, e deverás, pleno de ardente saudade, extinguir-se e morrer. Eu sinto em mim o término de tua atividade, experimento a liberdade celestial, e a restauração feliz. Com dores selvagens reconheço como estás distante de nosso lar, teu feudo junto ao antiquíssimo domínio, o Céu. Tua ira e teus delírios são em vão. Inconsumível paira a cruz, bandeira de vitória em nossa senda.

Peregrinei
Onde toda dor
Certo dia,
Só terá sabor de prazer.
Mais alguns momentos
E estarei livre,
Intoxicado
Na mentira envolvente do amor.
A vida eterna
Surge qual onda diante de mim:
Observo do cume,
Observo a ti.
Ó Sol, deves desvanecer
Sob a colina;
Uma sombra irá trazer-te
Irada frieza.
Ó, atire em meu coração amor,
Atire até que eu me vá;
Até que adormecido,
Ainda ame!
Eu sinto o fluxo da
Correnteza da jovem e generosa morte;
Que transforma meu sangue
Em bálsamo e éter!
Com fé e vontade
Eu vivo os dias:
Com um êxtase sagrado,
Morro a cada anoitecer.

V.
Em tempos antigos um Destino de ferro surgiu a reinar, com força implacável, sobre as dispersas famílias humanas. Uma opressão sombria envolveu suas almas ansiosas: a Terra não tinha fronteiras, ainda era um lar para os homens e morada de deuses. Sua estrutura misteriosa jazia desde eras eternas. Além das colinas rubras do amanhecer, no seio sagrado do mar, reinava o sol, aquele que tudo inflama, luminária viva. Era como um velho gigante abraçando este mundo feliz. Aprisionados nas profundezas jaziam os primogênitos da mãe Terra, sem esperanças em sua fúria destruidora contra a nova raça de deuses e seus parentes benévolos, os homens. O abismo esverdeado e obscuro do oceano abrigava uma deusa. Nas grutas de cristal as pessoas brincavam.

Os rios, as árvores, as flores e animais tinham a espiritualidade esperta do ser humano. O vinho era doce, servido por jovens personificadas; havia um deus nos vinhedos; uma deusa maternal, amável, cresceu entre as folhagens douradas; a sagrada embriaguez do amor era doce prece para a mais bela das deusas. A vida vagava através dos séculos numa contínua primavera, uma festa sem fim dos filhos do Céu, habitantes da terra. Todas as raças, como crianças, adoravam a chama etérea, multiforme, como a mais sublime entre as coisas do mundo.

Nada mais que uma ilusão, um sonho horrível –
Algo temível avançou sobre o banquete feliz,
E deixou os espíritos numa consternação selvagem.
Os próprios deuses não conheciam respostas ou conselhos,
Para infundir consolo nos corações sufocados.
A senda do monstro era misteriosa e sem rumo,
Cuja fúria não se aplacava com preces e sacrifícios;
Era a morte que invadiu o banquete com medos,
Com angústia, dores cruéis e lágrimas amargas.
Agora separados eternamente de tudo
Que inclina o coração à felicidade fluente do prazer,
Separados dos que amam, os corações partidos,
Em vão saudosos e em desespero sem fim –
Lutam em sonho tristonho,
Parecia que tudo era posse da morte profunda!
Que rompeu a vaga próspera da glória do homem
No rochedo inevitável da Morte.
Em vôo ousado, vão ao alto as asas do Pensamento;
Os homens cobrem a coisa horrível com o manto da beleza:
Uma bela jovem apaga a vela, para dormir;
O fim aproxima-se suavemente, como o lamento do alaúde do amante.
Uma sombra fria rasteja sobre a memória:
Assim dizia a canção, pois Miséria a movia.
Ainda indecifrável jaz a Noite interminável –
O símbolo solene de um Desejo distante.

O velho mundo entrou em declínio. O jardim de delícias da raça jovem definhou; mais acima, em regiões amplas e desoladas, agora combatiam os homens maduros tendo abandonando a infância. Os deuses desvaneceram-se junto a seu séquito. A natureza jazia solitária e sem vida. O Número seco e a Medida rígida aprisionaram-na com correntes de ferro. Envoltas no ar e na poeira as inestimáveis florações da vida fugiram para mundos obscuros. Fora-se a Fé, criadora de maravilhas, e aquele anjo que tudo une e transforma, seu companheiro, Imaginação. Os ventos do norte sopraram sobre aquela plaga tórrida, e a terra maravilhosa primeiro gelou-se, e então evaporou-se no éter. As profundezas distantes do Céu tornaram-se plenas em mundos relampejantes. A alma do mundo, junto a todos seus poderes, ocultou-se no santuário profundo, nas regiões mais puras da mente, até que um dia desperte o alvorecer da glória universal.

A Luz não era mais a morada dos deuses, nem o presságio celeste de sua presença: fora lançado sobre eles o manto da Noite. A Noite tornou-se o grande berço das revelações; nela retornaram os deuses, e adormeceram, persistindo em formas novas e gloriosas no interior do mundo transfigurado. Entre o povo, antes perfeito e bondoso, que havia se tornado zombeteiro e insolentemente hostil diante da abençoada inocência da juventude, apareceu o Novo Mundo, sob o disfarce nunca visto antes, de uma canção abençoada de pobreza, filho de uma dama, uma mãe, fruto eterno de enlace misterioso. A sabedoria oriental, profética, florescente, de pronto reconheceu o surgimento de uma nova era; uma estrela mostrou-lhes o caminho para o pobre berço do rei. Em nome de um futuro distante, homenagearam-lhe com respeito e perfumes, as mais elevadas maravilhas da natureza. Na solidão, o coração celeste revelou-se para o cálice em flor do amor grandioso, voltou-se para a face suprema do pai, e repousou sobre o seio da mãe solene e doce. Com fervor divino o olhar profético do filho contemplou os anos futuros, previu, imperturbável sob o fardo terreno de seus dias, a prole amada a surgir de sua árvore divina. As almas infantis reúnem-se ao seu redor, e anseiam pelo amor verdadeiro, maravilhosamente obtido. Como flores, elas desabrocham uma nova vida em sua presença. Mundos que jamais se esgotam e boas novas saem como faíscas de um espírito divino por seus lábios benévolos. De uma costa distante veio um bardo, nascido sob o céu claro de Hellas, para a Palestina, e cedeu seu coração inteiro para a criança maravilhosa: –

Tu és o jovem cujas eras mantiveram por tanto tempo
Pairando sobre nossos túmulos, perdido entre as névoas da imaginação;
Sinal na escuridão da boa-nova de Deus,
Quando madura a humanidade a colherá;
E é o que desejamos, e cultivamos com amor
E toda a desgraça perde o viço, o sentido;
A morte encontrou sua razão de ser na vida eterna,
Pois tu és Morte, e fizeste-nos totalmente unos.

Cheio de alegria, o bardo foi para o Indostão, o coração intoxicado com a doçura do amor, que expressou em canções compostas sob aquele céu suave, de modo que milhares de corações ajoelharam-se diante dele, e a boa nova frutificou em uma infinidade de ramos. Logo depois da partida do cantor, aquela vida preciosa foi entregue em sacrifício pela profunda queda do homem. Ele morreu jovem, arrebatado do mundo que tanto amava, de sua mãe chorosa, e seus amigos temerosos. Seus doces lábios sorveram a taça amarga de erros inexprimíveis. Em angústia horrível aproximou-se o nascimento de um novo mundo. Ele combateu bravamente os terrores da antiga Morte; grande foi o peso da antiga palavra sobre ele. Porém, ele olhou suavemente para a mãe; surgiu a mão libertadora do Amor eterno, e ele adormeceu.

Por alguns dias pairou um véu profundo sobre o mar revolto, sobre a terra que tremia; lágrimas sem fim brotaram de seus amados; o mistério desvendou-se: espíritos celestes arrastaram a grande rocha da tumba obscura. Anjos observaram-no, adormecido, desencorporado docemente em sonhos; ele despertou em nova glória, Divinificado galgou ao cume do novo mundo recém-nascido, enterrou com as próprias mãos o antigo cadáver na cavidade abandonada, e com mão suprema deitou sobre ela uma rocha que poder algum seria capaz de remover novamente.

Seus olhos amados lacrimejam sobre a tumba lágrimas graves de júbilo, lágrimas emocionadas, lágrimas de graça eterna, sempre renovadas; com felicidade observam-no a erguer-se novamente, e contemplaram seu lamento fervoroso e suave sobre o seio abençoado da mãe, a andar em comunhão pensativa com seus amigos, murmurando palavras como que arrebatadas da árvore da vida; vêem a ti, partindo saudoso para os braços do pai, levando consigo a jovem Humanidade, e a inexaurível taça de um futuro dourado. Logo a mãe juntou-se a ti em triunfo celeste, e era a primeira pessoa contigo na nova morada. Desde então, eras fluíram, e num esplendor sempre maior tens se dedicado à nova criação, e milhares seguiram a ti, em meio a dores e torturas, plenos de fé e desejosos pela verdade, andam contigo e a virgem celestial no reino do Amor, e serão para sempre teus, ministro do templo da Morte celestial.

A pedra é elevada,
E toda a humanidade ergue-se;
Todos nós residimos em ti,
Desaparecemos em nossa prisão.
Todos os tormentos se foram
Diante da taça dourada;
Pois nem a vida nem o mundo podem estar
Na mesa em que ceamos com o Senhor.
Ao casamento a Morte convida;
E nenhuma virgem tarda;
As lamparinas queimam vistosas;
Sem necessitarem de óleo algum.
Teus pés ao longe despertam
Ecos em nossas sendas!
E as estrelas criam símbolos
E doces vozes!
Dez mil corações aspiram
A ti, ó nobre mãe;
Nesta vida, carregados de tristezas,
Desejam apenas a ti;
Em ti esperam a cura;
Em ti esperam repouso seguro,
Quando, selando sua segurança,
Os abraçará contra teu peito.
Os que repousam no inferno
Queimam desapontados,
Pois por fim, ao te verem
Fogem deste mundo:
E tu apareces em auxílio,
A nós, em meio às dores:
Agora estamos mais próximos de tua morada,
E nunca mais iremos embora!
Agora não existem mais lágrimas
Que amor e preces junto aos túmulos;
O dom que o Amor concede
Não será mais roubado de ninguém.
Para apaziguar e aquietar a saudade
Vem a noite, e acalma os sábios;
A multidão de filhos do Céu nos envolve
Zela por nós e guarda nosso coração.
Coragem! pois esta vida ruma
Para uma vida sem fim adiante;
O sentido, amoroso, aguardando,
Torna-se claro e forte.
Um dia as estrelas, caindo,
Devem fluir como vinho dourado:
E nós, sorvendo tal néctar,
Brilharemos como estrelas vivas!
Livre, o amor emerge da tumba,
Para não morrer nunca mais;
Em plenitude, a vida eleva-se e ondeia
Qual mar sem limites!
Toda noite há uma deliciosa tarefa!
Uma ode de júbilo!
E o sol de todos nossos prazeres
É a face de Deus!

VI.
DESEJANDO A MORTE

No seio da terra!
Fora dos domínios da Luz!
As dores da Morte nada mais são
Que a partida, romper-se de grilhões!
Rapidamente, num barco esguio,
Rapidamente navegamos para a costa do Céu!
Bendita seja a Noite eterna,
E bendito o Sono sem fim!
Somos abrasados pelo dia luminoso,
E ressecados pelo tédio!
Estamos cansados da vida que dura:
Venha, agora iremos para casa, para Deus!
Para que permanecer neste mundo sublunar?
Para que nutrir o amor e a verdade aqui?
Se o que é antigo está muito além –
Para nós o novo deve perecer!
Aquele que ama o passado com piedade ardente
Está sozinho, amargurado, em exílio.
Porém, como o espírito humano, o passado
Elevou-se em chamas sublimes;
Onde os homens herdaram do Pai,
O dom de reconhecer sua face;
E, em simplicidade perfeita
Muitos tornaram-se seu arquétipo.
O Passado em rica florescência, no qual
Antigos troncos geraram o fruto glorioso;
E as crianças em busca do mundo futuro,
Buscaram a vitória sobre a dor e a morte;
E, apesar da vida e do prazer fenecerem,
Muitos corações partiram-se de amor.
O Passado no qual o próprio Deus possuiu
O vigor da juventude;
E enfrentou a morte prematura, por amor à verdade
Que os jovens contemplaram, e ousaram –
Enfrentar com paciência a angústia e a tortura
Para provar que o amavam.
Agora vemos com inquietação ansiosa
Aquele passado envolto em trevas;
Com a água deste mundo
Nunca poderemos matar nossa sede:
Precisamos retornar à nossa antiga morada
E conhecer aquele tempo abençoado de novo.
E o que impediria nosso retorno?
Já que repousam aqueles que amamos!
Sua sepultura é o limite de nossas vidas;
Nós recusamos com repugnância esta época odiosa!
Não somos enganados por nenhuma esperança:
O coração está pleno; o mundo vácuo!
Infinito e misterioso,
Vibra em mim um doce tremor,
Como se na distância ecoasse
Um sinal, semelhante ao nosso lamento:
Os amados esperam, assim como eu,
Enviam seu suspiro de saudade.
Abaixo, para a noite amorosa, e mais além
Para o amado Jesus!
Coragem! as sombras do entardecer tornam-se em cinzas,
Assim como nossos planos, e nos acalmam!
Um sonho romperá nossos grilhões,
E nos abrigará no coração do Pai.

(tradução de Orlando Ferreira)

Fontes:
http://canaldepoesia.blogspot.com/
http://www.redutoliterario.hpg.ig.com.br/
Capa do Livro –
http://www.assirio.com

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Vera Lins (Novalis, Negatividade e Utopia)

Leanne Greb (O Eu Fragmentado)
Poetar é gerar

OS FRAGMENTOS DE NOVALIS, reunidos em Pólen, podem ser considerados o manifesto do primeiro romantismo alemão. Publicados pela primeira vez, em 1798, na revista Athenaeum, neles se condensam as propostas do grupo de Iena de revolução pela poesia, i.e, transformação do mundo pela imaginação produtora: “Estamos numa missão. Para a formação da Terra fomos chamados”, diz Novalis.

A Revolução Francesa inflamava esses românticos, críticos da Aufklärung, que, no entanto, viviam sob o estado prussiano. Mas sua revolução se baseava numa mudança epistemológica. Para Schlegel “A Revolução francesa, a filosofia de Fichte, e o Meister de Goethe são as grandes tendências da época […]”.

Insatisfeitos com os novos tempos eram críticos do projeto moderno: “Outrora era tudo aparição de espíritos. Agora não vemos nada, senão morta repetição, que não entendemos. A significação do hieróglifo falta. Vivemos ainda do fruto de tempos melhores.” Convencidos do progresso humano como seus predecessores iluministas, acreditavam que o modo de pensar transcendental ou romântico, tornado possível por Fichte e Kant, era central, historicamente, como a revolução mesma. Novalis diz em Pólen:

O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é senão uma pontenciação qualitativa. O si mesmo inferior é identificado com um si mesmo melhor nessa operação. Assim como nós mesmos somos uma tal série potencial qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida, na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo.

Romantizar seria uma outra forma de pensar, com a razão auto-reflexiva que inclui a imaginação, e assim se emancipa da argumentação lógica, própria da razão instrumental capitalista. Romantizar é pensar poeticamente, e os fragmentos são experiências de pensamento.

Os primeiros românticos viam a subjetividade, condição para uma razão auto-reflexiva, problemática, no processo social de modernização através da dominação da sociedade pelo valor de troca. Não consideravam mais legítima a relação sujeito contraposto ao objeto como no modelo da epistemologia positivista. Do entendimento do outro faz parte o auto-entendimento. Em Pólen: “Como pode um ser humano ter sentido para algo, se não tem o germe dele dentro de si. O que devo entender tem de desenvolver- se em mim organicamente – e aquilo que pareço aprender é apenas alimento do organismo”.

Perguntavam pela liberdade de constituição da subjetividade. A vida está para ser criada assim como o sujeito, que vai ser para eles pura atividade da imaginação. O eu é tanto atividade como produto dessa atividade: “Eu é escolha e realização da esfera de liberdade individual, ou auto-atividade. Fichte se pôs em obra, como Brown – só que ainda mais universal e absolutamente.” Mas a auto-representação do eu, embora imperativa, é impossível, o que leva o eu à atividade constante. Novalis nos define como projeto: “Para o mundo procuramos o projeto – esse projeto somos nós mesmos. O que somos? Pontos onipotentes personificados. A execução, enquanto imagem do projeto, tem, porém de lhe ser igual na livre-atividade e auto-referência – e inversamente.

Apenas o eu prático pode ser apreendido: “A compreender-nos totalmente, nós não chegaremos nunca, mas podemo-nos, e iremos, muito mais que compreender”. Na verdade, o termo imaginação é um outro nome para o eu que é pura atividade, produtividade: “Tornar-se humano é uma arte.” E ainda: “cada ser humano é uma pequena sociedade.”

Para Seyhan, Novalis não vê a identidade como um princípio primordial que engendra uma divisão sujeito-objeto:

Ela é agora a atividade conjunta de companheiros num empreendimento comunicativo. Ainda mais, nos escritos de Novalis o eu fichteano é transformado num corpo social. Os espaços entre o sujeito e o mundo, eu e tu e objetos e representações passam do domínio teórico ao prático, informado por uma realidade textual e dialógica. Não há mais como escapar da linguagem; estamos dentro de uma teia de palavras que definem nosso ser.

O objetivo do projeto romântico era destruir o poder de uma razão “petrificadora e petrificada” – de forma que uma subjetividade livre pudessse se constituir. Aqui entra a imaginação, para Kant, faculdade produtiva de cognição.

Com ela, libertavam-se da lógica. Para os românticos, atos desconstrutivos e anárquicos da imaginação na relação do poeta com a linguagem eram a condição básica para a recuperação da subjetividade, levavam a uma emancipação fundamental da instrumentalidade: “O poeta conclui assim que começa o traço. Se o filósofo apenas ordena tudo, coloca tudo, o poeta dissolveria todos os elos. Suas palavras não são signos universais – são sons – palavras mágicas que movem belos grupos em torno de si.” A imaginação tem papel central no pensamento de Novalis, para quem a razão prática é pura imaginação.

Afirmavam liberdade quanto à representação, através da consciência de que é impossível representar o absoluto. Seu conceito de representação aponta para a ausência do que é representado, e a palavra Darstellung se distingue como apresentação. A poesia manifesta no mundo sensível o que está fora dele, a flor ausente de todos os buquês de Mallarmé. Essa apresentação é uma livre atividade criadora, que não se situa nem no sujeito nem no objeto. Acontece na linguagem:
Mas, e se eu fosse obrigado a falar? E esse impulso a falar fosse o sinal da instigação da linguagem, da eficácia da linguagem em mim? E minha vontade só quisesse também tudo a que eu fosse obrigado, então isto, no fim, sem meu querer e crer, poderia sim ser poesia e tornar inteligível um mistério da linguagem? E então seria eu um escritor por vocação, pois um escritor é bem, somente, um arrebatado da linguagem?

Liberdade e infinito são conceitos necessários para o jogo livre da apresentação pela imaginação produtora. O fragmento nega o postulado de uma representação contínua e introduz quebras no fundamento da idéia. Na poesia o resultado do livre jogo da imaginação é o arabesco, o verso que Hugo Friedrich encontra em Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. A crítica é um diálogo com o original, poesia e crítica têm que partilhar a mesma linguagem. Com isso rompem barreiras entre diferentes formas de conhecimento, filosofia, crítica, ciência e religião: “O melhor nas ciências é seu ingrediente filosófico – como a vida no corpo orgânico. Desfilosofem-se as ciências – o que resta – terra, ar e água.” Transformam o mundo num livro a ser decifrado, lido e escrito.

Novalis tinha o projeto de uma enciclopédia, cujo rascunho foi seu Das allgemeine Brouillon. Uma enciclopédia é um livro infinito. Há um livro de Werner Vortriede que mostra a relação dos simbolistas franceses com Novalis e o primeiro romantismo alemão. No Brasil, o crítico simbolista Nestor Vítor escreve sobre Os discípulos de Saïs e os Fragmentos, em 1889, e descobre no poeta alemão a genealogia de Mallarmé. Mas se o perigo da estetização ronda alguns simbolistas, nos primeiros românticos dominaria a criticidade de sua produção.

Poesia vai ser para eles reconhecer um objeto como referente não somente a si mesmo, mas ao solo de referência do eu, reconhecendo-o não somente como objeto mas como um objeto para a consciência. A realidade do mundo como se apresenta a nós é assim uma realidade significativa. O mundo é real, mas sua realidade fala a linguagem prescrita pela consciência. Por isso falam de uma poetização da natureza. Tudo está a ser produzido: “A vida não é um romance dado a nós, mas um romance feito por nós.”

Para Novalis, o momento objetivo da consciência não acontece sem um momento subjetivo. No fragmento 26 de Pólen, afirma:

[…]O primeiro passo vem a ser olhar para dentro – contemplação isolante de nosso eu – Quem se detém aqui só logra metade. O segundo passo tem de ser eficaz olhar para fora – observação auto-ativa, contida, do mundo exterior.

Para Molnár, cujo livro sobre Novalis ajuda a compreender a singularidade de seu pensamento, essa primazia da autoconsciência não implica que tudo foi levado para o interior do indivíduo e houve uma retirada para o solipsismo. A filosofia transcendental permite uma perspectiva que dá conta do que é conscientemente real e da realidade referida. O eu está continuamente afetado pela experiência, assim em constante mudança – aquilo a que a afetação é atribuída constitui o mundo em que se vive –, o mundo é o que afeta o sujeito, assim consciência do mundo é consciência do eu, que, por sua vez, é produtividade, um centro produtivo, atividade. Tudo é essencialmente um produto da atividade do eu.

Apenas o pré-requisito de se dirigir para dentro tem sido geralmente reconhecido como a direção típica do idealismo alemão. No entanto o oposto é o verdadeiro. O indivíduo precisa olhar para fora e ter experiências no mundo para realizar o potencial inato do eu em toda a sua extensão. Esse processo pode ser visto como uma viagem, de um começo indefinido a um objetivo também indefinido e esse é o desenvolvimento e a formação dos quais o Wilhelm Meister de Goethe é o paradigma. O caminho místico na direção de uma reunião com a realidade se transforma num processo de auto-realização em que ser humano significa ser um indivíduo com a obriga ção de transformar a existência casual em uma vida por escolha e desígnio. Diz o fragmento de Pólen:

Todos os acasos de nossa vida são materiais, a partir dos quais podemos fazer o que quisermos. Quem tem muito espírito faz muito de sua vida – todo encontro, toda ocorrência seria, para quem é inteiramente espiritual – primeiro termo de uma série infinita – começo de um romance infinito.

Espírito para os primeiros românticos significa imaginação. E liberdade significa determinar sua esfera própria, sair de si. No estado não-livre a esfera objetiva é experimentada como determinando o eu, que funciona apenas como um ponto de impacto para uma sucessão de eventos incompreensíveis. Para ser livre o eu precisa ser ativo e quando se age moralmente, se age livremente. E o caminho moral é uma via negativa, como o caminho místico, pois nega tudo o que possa exercer poder sobre o eu. Mas, ao contrário do místico, essa negação não é conseguida por meio de uma retirada ascética, mas através de um contínuo engajamento ativo no mundo. No entanto, a ação moral consiste em um duplo movimento: por um lado é um desengajamento do mundo até que o eu esteja sozinho, livre para decidir, e, por outro lado, um reengajamento, no qual o mundo não pode servir como fim, mas apenas como meio que leva da pura subjetividade de um agente livre para a sua validade geral. No modelo de Novalis, a ética é complementada por amor e atividade. Desse movimento fala o fragmento 51 de Pólen:

O interessante é aquilo que me põe em movimento, não em vista de Mim Mesmo, mas apenas como meio, como membro. O clássico não me perturba – afeta-me apenas indiretamente, através de mim mesmo – Não está aí para mim como clássico, se eu não o ponho como um tal, que não me afetaria se eu não me determinasse – me tocasse – eu mesmo à produção dele para mim, se eu não destacasse um pedaço de mim mesmo e deixasse desenvolver- se esse germe de um modo peculiar perante meus olhos – um desenvolvimento que freqüentemente só precisa de um momento – e coincide com a percepção sensorial do objeto – de modo que vejo perante a mim um objeto, no qual o objeto comum e o ideal, mutuamente interpenetrados, formam um único prodigioso indivíduo.

Molnár vê Novalis expandindo a visão de Fichte, avançando além da doutrina da ciência, ao armar um “esquema básico” em que o eu é igual ao mundo e o mundo, igual ao eu. Esse esquema sustenta seus trabalhos poéticos.

Além da filosofia de Fichte, com que trabalha nos Fichte-Studien, Platão e Hemsterhuis são suas referências filosóficas. A relação com Sofia, a mulher amada, enquanto viva e depois de sua perda, é um processo formativo que muda a relação de Novalis com o mundo e permite uma visão poética, uma visão em que objetos e acontecimentos atingem um sentido que não pode ser reduzido a preocupações pragmáticas.

Para Novalis, o poeta tem que passar por um processo formativo, através do qual atinge um nível de humanidade superior, em que encontra a visão poética – uma autoformação do eu. O artista é transcendental no sentido do que diz o fragmento:

A suprema tarefa da formação é – apoderar-se de seu si-mesmo transcendental – ser ao mesmo tempo o eu de seu eu. Tanto menos estranhável é a falta de sentido e entendimento completos para outros. Sem auto entendimento perfeito e acabado nunca se aprenderá a entender verdadeiramente a outros.

É esse processo formativo o que acontece em Heinrich von Ofterdingen, um romance sobre a poesia, que conta a formação de um poeta. Como diz Novalis num outro fragmento:

Anos de aprendizado são para o novato poético – anos acadêmicos para o filosófico. […] Anos de aprendizado no sentido eminente são os anos de aprendizado de viver. Através de ensaios planejadamente ordenados aprende-se a conhecer os princípios dessa arte e adquire-se a destreza de proceder segundo esses princípios ao bel-prazer.

A poesia é tanto uma questão de linguagem quanto de autonomia moral do poeta. Compreender isso, segundo Molnár, pode impedir que a leitura contemporânea de Novalis caia no que chama de “a prisão da linguagem”. O trabalho poético é o caminho de um desenvolvimento pelo qual o eu ganha consciência de uma liberdade inerente. Quando essa consciência cresce, os antagonismos entre eu e mundo, e entre espírito e natureza, diminuem, e sua identidade fundamental começa a se tornar aparente, o que constitui a visão poética. A poesia de Novalis é caracterizada por essas visões de identidade eu/mundo: em Os Discípulos de Saís, a natureza deixa cair o véu frente aos que seguem o verdadeiro caminho, nos Hinos à noite, o não do mundo, i.e., a certeza da morte, perde seu poder sobre os que são guiados pelo amor e em Ofterdingen a progressão ao encontro do mundo é também progressão ao encontro de si mesmo.

Molnár vai ver isto se dando no romance inacabado, escrito por Novalis aos 27 anos, dois anos antes de morrer em 1801, e cujo tema é a transformação interna pela qual o indivíduo precisa passar para pôr o mundo e o eu numa relação que não é congelada num estado de oposição permanente. Pode-se compará-lo ao Meister de Goethe, o Bildungsroman, que os primeiro românticos consideravam fundamental, mas também criticado por Novalis.

Novalis trabalha numa via negativa, próxima de uma teologia negativa vinda dos místicos alemães como Eckart e Böehme, que marcaram o idealismo alemão. Negação significa usar o que já se sabe para formular uma questão, o que é equivalente a nos fazer receptivos para uma eventual resposta. Sem essa atitude questionadora, essa prontidão para receber, poderíamos ser expostos a todos os tipos de experiência, mas seríamos incapazes de absorvê-las.

Como a trama do romance é a do desenvolvimento interno, ele não descreve os ambientes com detalhes realistas e seus personagens são descarnados, embora Ofterdingen e Klingsohr tenham existido como trovadores medievais. Novalis queria expor suas idéias, com isso o romance é uma interpolação de narrativa, “contos simbólicos”, diálogos e poemas, atualizando o que Klingsohr afirma da poesia, “em toda poesia é preciso que o caos transpareça sob o véu regular da ordem”. O romance contém sua própria teoria.

O percurso de Heinrich vai mostrar uma mudança de perspectiva: um mundo transformado a partir de uma relação transformada com ele. No início, vive com os pais e o mundo pragmático não lhe é suficiente. O pai diz que sonho é mentira e em vez de se tornar um artista como prometia na juventude (ele também sonhara com a flor azul), torna-se um artesão. No final da narrativa, Heinrich encontra o médico Silvestre, que tinha aparecido como mineiro e este lhe conta sobre seu pai:

Eu discernia nele os signos anunciadores do grande artista plástico. Seu olho estava todo animado do desejo de se tornar um olho verdadeiro, um instrumento de criação. Seu rosto exprimia a firmeza interior e a aplicação. Mas o mundo presente tinha já criado raízes profundas demais em sua alma. Ele não queria escutar o chamado de sua natureza mais íntima […]. Ele se tornou um artesão hábil e o entusiasmo não era mais do que loucura a seus olhos.

Tudo começa para Heinrich com o sonho em que vê a flor azul. A partir dele e do encontro com comerciantes narradores decide partir de sua cidade. Assim, com a conscientização do desejo pela flor, muda sua relação com o mundo. Quando alcança o máximo de consciência, apenas vai ser possível comunicar sua situação singular tornando-se poeta. E a chegada a Augsburg vai ser decisiva nessa descoberta da poesia. Encontra Matilde, a filha do poeta Klingsohr, que vai amar e depois perder. Quando mais tarde, melancólico, abandonado e infeliz, tem uma visão em que ela lhe fala, então toma a lira e compõe.

O sonho tem um papel preponderante na história, no sentido de revelação de uma realidade mais verdadeira. Nele, as imagens, fruto de uma imagi nação livre, podem revelar o eu, sua natureza verdadeira, atualizando a revolução copernicana de Kant. Segundo Molnár:

O sonhador executa de novo a revolução copernicana de Kant, mostrando que não há objetos como coisas em si, às quais a realidade experimental se refere. Coisas não são em si, mas fenômenos, o que significa que a imediaticidade das imagens do sonho se referem à criatividade do eu em formá-las e não a uma imagem externa do dado; expressam a ação livre do eu dando forma ao mundo.

No final o sonhador se vê como uma força ativa, construindo o mundo, dentro do qual esse eu objetificado toma seu lugar como um objeto entre outros.

Enquanto o eu procura a realização da lei moral, o mundo pode manifestar a mesma lei, lhe apresentando uma face humana. Quando Heinrich encontra a flor azul, suas pétalas se mudam numa face que ele mais tarde vai reconhecer como a de sua amada. Eros forja o laço que une o eu ao mundo e o mundo ao eu. A lenda que conta o personagem Klingsohr, o mestre, é um comentário do poder liberador do espírito da poesia. Eros, ajudado por Fábula, o espírito da poesia, tem a tarefa de dispersar o gelo sobre o mundo estranho e revelar a identidade escondida do eu com o mundo. Quando Heinrich encontra Silvestre, no final, diz algo que lembra a declaração do poeta Paul Celan, na Carta a Hans Bender , de que poesia pode ser um aperto de mão, ligando assim poesia à experiência e ao gesto moralmente livre:

Pois o verdadeiro espírito da fábula é um amável disfarce do espírito da virtude, e o objeto verdadeiro da poesia que lhe é subordinado, é a atividade de nosso eu a mais alta e mais pessoal! Há uma espantosa identidade entre um canto sincero e uma nobre ação.

Heinrich segue um caminho exterior que tem sua contrapartida interior e cada avanço numa direção registra um progresso na outra. São vários encontros: com alguns comerciantes, com um eremita, com um mineiro, com uma mulher oriental, todos simbólicos de atitudes no mundo. E todos são narradores, contam histórias reveladoras para Heinrich. Assim, uma vez que o eu se conhece de um modo não baseado na oposição ao mundo, o mundo cessa de se opor a ele. A dicotomia entre eu e mundo entra em colapso quando o eu assume a perspectiva da liberdade que ocupa em todos os processos de conscientização. O mundo não é mais um fator de oposição, mas “o mundo se torna sonho e o sonho se torna mundo”. O mundo sensível é uma ilusão, o mundo real, uma feérie do espírito. Nesse sentido pode-se entender o fragmento de Pólen que diz depender de nossos órgãos não vermos o mundo feérico. Em cada ato moralmente livre, o princípio de oposição eu/mundo é suspenso. O poeta dá sentido ao mundo, ou descobre seu sentido. Na lenda que Klingsohr conta, a Atlântida permanece escondida sob a superfície do mundo, o véu do estranhamento nos impede de reconhecê-la no outro e no texto da natureza. A utopia de uma revolução por um novo modo de pensar aparece, sempre em diálogo, também nas palavras do personagem Silvestre:

– Quando, diz Heinrich, não haverá mais necessidade de terror, de sofrimentos, de angústia e de mal no universo?
– Quando não houver mais que uma só força, a força da consciência; quando a natureza for disciplinada e moralizada. Há apenas uma única causa do mal: a mediocridade universal e esta fraqueza não é outra coisa senão uma insuficiência de sensibilidade moral e a ausência do poder estimulante da liberdade.

Contra o perigo do esteticismo e de atribuição de valor aos objetos, ao desejo e ao orgulho, o desapego do eu torna possível uma relação poética com o mundo, i.e, uma relação produtora. O poeta fala a linguagem que ouve, a língua original da humanidade. O que lembra Vico. Essa consciência da língua original faz o poeta. O poeta não fala o mundo, mas ouve o mundo falar, fala a linguagem que ouve, essa língua original, uma dimensão não dita que está em toda linguagem. Molnár diz que o uso poético da linguagem para Novalis abre uma nova dimensão que supera a realidade da existência humana, mas é inclusiva dessa realidade. Aqui está a crítica ao esteticismo. No romance o personagem de uma das histórias contadas, o rei tende a ver a dimensão poética como uma dimensão exclusiva. No entanto

A linguagem poética faz o familiar parecer estranho para tornar o estranho familiar, não para absolutizar o momento esotérico e constituir uma esfera autônoma na qual a arte substitui o mundo, mas para revelar o fundamento comum de nossa identidade como seres humanos com referência ao qual o mundo assume realidade para nós e nós assumimos realidade nele.

Conhecimento, arte e princípio de valor moral se inter-relacionam. O cientista não é um cientista a não ser que também aprecie as artes poéticas e o amante da poesia ama apenas a si próprio no objeto de arte se não for capaz de identificar seu ser com todos os seres humanos. Em um momento Klingsohr, já na chegada a Augsburg, parte decisiva na descoberta da poesia, diz, identificando poesia a ficção, no sentido que Rancière a vê, como procedimento próprio do espírito humano:

É uma pena que a poesia tenha um nome particular e que os poetas formem uma corporação à parte. A poesia não é coisa à parte. Ela é o modo de atividade próprio ao espírito humano. Todo homem não está a cada minuto de sua vida a fabular e a inventar?

O personagem do mineiro, trazendo o ouro que está escondido no uso prosaico da linguagem, dá uma demonstração de como qualquer ofício deve ser conduzido. Todo empreendimento pragmático é prosaico, mas tem dimensões sociais comunitárias, que equivalem à liberdade moral e sua manifestação comunitária é poesia. Não só o verdadeiro cientista se torna poeta, mas o verdadeiro historiador também, ao ler e falar a linguagem original. A história pressupõe um contexto humano de interpretação. O historiador tem que ter o sentido poético da adivinhação. Diz o eremita:

Quando examino tudo isso atentamente me parece necessário que um historiador seja também poeta, pois só os poetas se entendem nessa arte de encadear os acontecimentos de modo satisfatório. Nas suas narrativas e fábulas observei com um prazer secreto o sentimento delicado que têm do misterioso princípio da vida. Há mais verdade nos seus contos do que nas crônicas eruditas.

Na caverna do eremita, Heinrich encontra o livro de sua vida escrito em provençal, a linguagem dos trovadores. Quando aprender a linguagem dos poetas, Heinrich vai ser capaz de ler o texto e se descobrir como seu autor.

O movimento que tentamos mostrar em Novalis de uma revolução no pensamento, é mostrado num ensaio de Karl Heinz Bohrer “Metáfora e heresia, a desfiguração romântica do espírito”, que discute o poema de Novalis, Os hinos à noite e a relação entre religião e estética, mostrando como os primeiros românticos estranham, desfiguram o mito cristão e o transformam. O poema enfatiza o não-profano, mas estranhando as categorias teológicas centrais. Novalis seria herético enquanto a heresia é irmã da imaginação. Bohrer procura entender o que diz Schlegel quando fala de criar uma nova mitologia, em Conversa sobre a poesia, como uma desestabilização heréticosubversiva da tradição.

Os Hinos à noite são – diferentemente dos Night thoughts de Edward Young (1742/ 43), como um todo, uma homenagem ao lado noturno e inconsciente dos homens e seus meios: erotismo, sono e morte. Essa homenagem vale como uma noite, que no modo do sono é caracterizada como “mensagem silente de segredos infinitos”.

Bohrer mostra como uma semântica subjetiva da imaginação dissolve os dados objetivos de um discurso teológico histórico-filosófico previamente dado na sua temática: a tentativa de ler os Hinos à noite como uma mística autobiográfica, inspirada pela morte de Sofia e seguidora da mística de Boehme, ou seja, como uma religião privada conduzida de forma pietista, oculta o que aqui acontece em cadeias de imagens metafóricas. Também o texto de Novalis está marcado pela filosofia, especialmente pela discussão concentrada sobre a doutrina da ciência de Fichte. A proeminência do ato transcendental, como o caracterizam os aforismos teórico-especulativos de Novalis, atravessa os Hinos à noite: com isso evita-se que surja um mito no sentido tradicional, o que seria possível por meio da idéia básica da dicotomia entre noite e dia, num sentido quase arcaico.
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*VERA LINS, Doutora em Letras pela UFRJ em 1995, é Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É autora de Gonzaga Duque, a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991) e Novos Pierrôs, velhos saltimbancos (Secretaria de Cultura do Paraná, 1998).

Fontes:
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/

Pintura = http://www.portais.org

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Dicionário de Folclore (Letra G)

GAGAU. Nome dado a um antigo jogo de dados no qual o dois e o ás eram os pontos maiores. Tomar gagau era como se dizia quando um rapaz ou uma moça estavam perdidamente apaixonados. Gagau também é o mingau das crianças.
GAGUEIRA. É a maneira sincopada de falar, própria de pessoas que têm essa deficiência, isto é, que são gagas. Para a pessoa ficar curada da gagueira, nada como se bater três vezes, na cabeça do gago, com uma colher de pau.
GAITA. 1. Sanfona, gaita-de-fole, realejo, fole, acordeon; 2. Gaita também é dinheiro, porque quem tem dinheiro anda sempre alegre, bem humorado, como quem toca gaita.
GALINHA. 1. É a fêmea do galo; 2. Mulher muito volúvel que se entrega aos homens com facilidade; 3. Pessoa covarde, medrosa; 4. Na linguagem popular a galinha também se faz presente: 1. Dormir-com-as-galinhas é dormir cedo, como as galinhas; 2. Quando-as-galinhas-criarem-dentes, nunca, jamais, porque as galinhas nunca criarão dentes; 3. Galinha-choca é a pessoa irrequieta, que não pára um instante; 4. Galinha-d’água é o descendente de holandês com brasileiro, aloirado, de olhos azuis.
GALINHA-GORDA. É uma brincadeira de meninos durante o banho de mar, de açude, de rio. Um dos meninos pega uma pedra, diz: “Galinha gorda! Gorda é ela! Vamos comê-la? Vamos a ela!” Em seguida atira a pedra dentro d’água e todos vão procurá-la.
GALINHA-MORTA. 1. Diz-se quando uma mercadoria é barata, é uma pechincha; 2. Coisa fácil de aprender, de ser feita; 3. Certa cantiga executada à viola ou ao violão (RS), e a dança que acompanha essa cantiga.
GALINHEIRO. 1. É o lugar onde dormem as galinhas; 2. É também, nos teatros, o poleiro, as torrinhas, onde a pessoa paga ingresso mais barato.
GALO-DA-MADRUGADA. O bloco carnavalesco Galo-da-Madrugada foi fundado por foliões residentes no bairro de São José, da cidade do Recife, em 1978. Todos os anos, acompanhado por uma multidão de milhares de pessoas, o bloco desfila no centro da cidade pela manhã do Sábado Gordo. Este bloco entrou para o livro dos recordes mundiais.
GANZÁ. O ganzá, ou canzá, caracaxá, é um cilindro feito de flandres, fechado, com um cabo. No seu interior são colocados grãos ou pequenos seixos que soam quando o ganzá é agitado, sacudido, movimentado.
GARAPA. 1. É o nome que se dá às diversas bebidas servidas geladas, feitas com água, açúcar e o suco de frutas geralmente como o tamarindo, o limão (limonada), o caju (cajuada); 2. No Sertão, garapa é o caldo de cana tirado das moendas; 3. Garapa é tudo que é fácil de ser adquirido, coisa de pouca importância. Também é uma coisa boa, supimpa; 4. É, também, água misturada com açúcar, que se dá para beber quando uma pessoa está nervosa ou quando leva um susto.
GATO. O gato, o bichano, é o animal doméstico encontrado em quase todas as casas, usado para pegar ratos e baratas. Sobre o gato existem muitas crendices e curiosidades: 1. Gato-preto: para algumas pessoas o gato preto dá sorte e para outras traz infelicidade; 2. Quem pisa no rabo de um gato não casa no ano, só nos anos seguintes; 3. Dizem que o gato não gosta de seus donos e sim da casa onde ele vive. Assim, quando uma pessoa muda de residência, deve levar o gato dentro de um saco e passar azeite no focinho dele para que ele perca o faro e não volte à antiga casa; 4. O melhor couro para se fazer uma tamborim é o couro do gato, segundo os entendidos no assunto; 5. Dizem que o gato é o animal mais difícil de morrer, porque tem sete fôlegos; 6. Quem mata um gato tem sete anos de azar. Os gatos estão nas estórias de Trancoso, como no Gato de botas, e no desenho animado, como no Gato Félix. Os homens aprenderam com os gatos a fazer fossas, vendo-os cavar um pequeno buraco, para fazerem cocô e cobri-lo com terra.
GEMADA. A gemada é uma bebida feita com gema de ovo, açúcar e leite quente, tudo misturado e bem batido, muito boa como fortificante capaz de restaurar as forças perdidas. Algumas pessoas costumam substituir o leite por conhaque ou vinho do Porto.
GÊMEOS. Para que a mulher não tenha filho gêmeos deve evitar comer frutas gêmeas. As crianças gêmeas são dotadas de qualidades singulares e tudo o que fazem têm mais poder, mais valor, até mesmo quando rezam. No Brasil, o gêmeo que atirar farinha para o ar em dia de nevoeiro acabará com a neblina. Dizem que menino gêmeo nunca morre afogado, nem se perde nos caminhos desconhecidos. Na Igreja Católica vamos encontrar alguns santos gêmeos: São Cosme e Damião, São Crispim e São Crispiniano, São Gervásio e São Protásio. O povo diz que quando um dos gêmeos sente uma dor, o outro também sente; quando um adoece, o outro fica triste, quase doente. Os gêmeos são sempre muito unidos.
GILBERTO FREYRE nasceu no dia 15 de março de 1900, na cidade do Recife, PE. Seus estudos iniciais foram feitos com professores particulares, entre os quais o inglês Mr. William, a francesa Madame Meunier, seu próprio pai, que lhe ensinou latim e português, e Telles Júnior que foi seu professor de desenho. Fez o curso secundário no Colégio Americano Gilreath, do Recife, seguindo para os Estados Unidos, onde se bacharelou em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Baylor, fazendo, em seguida, o mestrado e doutorado de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais na Universidade de Colúmbia onde teve como mestres o antropólogo Franz Boas, o sociólogo Giddings, o economista Selingman, o jurista John Bassett Moore e outros. Em sua tese universitária – Social life in Brasil in the middle of the nineteenth century – publicada em inglês, sustenta que a situação do escravo no Brasil patriarcal fora superior à do operário europeu no começo do século XIX. Teve os graus de Bacharel, Mestre, Doutor em Letras, Doutor e Professor. No governo de Estácio Coimbra, Gilberto Freyre foi Chefe de Gabinete, merecendo daquele Chefe de Estado, extraordinária confiança. Foi fundador da cadeira de Sociologia Educacional na antiga Escola Normal de Pernambuco, inaugurando, pioneiramente, com a colaboração de suas alunas, não só no Brasil como na América Latina, trabalhos de campo cujos resultados de sentido social foram aproveitados pelo então Prefeito do Recife, criando playgrounds com o propósito de afastar as crianças dos perigos da rua. Em 1933 publicou Casa-Grande & Senzala, obra básica da história social brasileira, para, em seguida, publicar Sobrados e Mucambos (1936), Nordeste (1937), Açúcar (1939), Aventura e Rotina (1953), Assombrações do Recife Velho (1955), Sociologia da Medicina (1967) e dezenas de outros trabalhos que honram a cultura brasileira. Preso, por seu profundo amor, ao Recife, daqui nunca se ausentou, a não ser temporariamente, a ponto de recusar ministérios, cátedras em Universidades brasileiras, americanas e européias. Foi uma lei de sua autoria, quando deputado federal – eleito pelos estudantes pernambucanos – que criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, nunca deixando de presidir seu Conselho Diretor. Gilberto Freyre colaborou em revistas especializadas em jornais nacionais e internacionais, participou, como membro efetivo, do Conselho Estadual e do Conselho Federal de Cultura. Faleceu, no dia 18 de julho de 1987, na cidade do Recife, PE.
GIRASSOL. O girassol é uma flor de bom tamanho, de cor amarela, que acompanha sempre a direção do sol, razão pela qual tem este nome. Serve para a alimentação dos pássaros e seu óleo está sendo usado na culinária brasileira.
GOGÓ-DE-SOLA. Trata-se de um pequeno animal que vive no Acre e que tem o pescoço da cor de ferrugem. Apesar de seu pequeno tamanho, é muito agressivo.
GONÇALVES FERNANDES nasceu em 1909,na cidade do Recife, PE. Diplomado em Medicina (1937) pela Universidade de Pernambuco, sempre foi conhecido como psiquiatra, antropólogo e folclorista especializado na faixa das superstições e da religiosidade popular. Foi professor da Faculdade de Ciências Médicas do Recife, da Faculdade de Direito do Recife e da Universidade do Brasil. Dedicado ao estudo e à pesquisa dos problemas humanos e sociais, encarados, de modo particular em seus aspectos religiosos e psiquiátricos sob critério e métodos da Antropologia e Folclore, fez vários cursos de especialização antropológica, neuropsiquiátrica e sociológica, estagiando, também, nos principais centros culturais da Bélgica, Holanda, Suíça, Itália, França, Portugal, Espanha e Argentina, especialmente convidado, pronunciando conferências sobre assuntos de interesse luso-brasileiro em diversos institutos científicos. Esteve no exercício de diversos cargos ligados à Medicina, de modo especial à Psiquiatria, à Psicanálise e à Antropologia Cultural. Assumiu, durante algum tempo, a direção do Departamento de Psicologia Social do então Instituto Joaquim Nabuco de Ciências Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, onde coordenou várias pesquisas. É autor de diversos livros na especialidade a que se dedicou, entre os quais Xangôs no Nordeste (1937), O folclore mágico do Nordeste (1938), As religiões no Brasil (1939), Seitas afro-brasileiras (1940) e O sincretismo religioso no Brasil (1941). Faleceu em 1986, na cidade do Recife, PE.
GONGUÊ. Também conhecido como chama, porque chama os dançarinos. O gonguê é um pequeno tambor usado no zambê, no bambelô. Seu som é surdo e seco (RN).
GOTEIRA. É o nome que os maçons dão aos que não são maçons. Na linguagem da cantoria, goteira é o cantador que não canta bem.
GRILO. Quando a pessoa está com o problema de retenção de urina, nada como tomar um chá de grilo, que é feito da seguinte maneira: pega-se um grilo e cozinha-se uma terça parte. É um remédio de efeito indiscutível. Pode-se, também, fazer o chá com 1/3 do grilo torrado na chapa do fogão.
GRITADOR. O gritador, também chamado de Zé-Capiongo, é da região do Vale do São Francisco. Tem este nome porque passa a noite gritando. Dizem que o gritador é alma de um vaqueiro que, desrespeitando a Sexta-Feira da Paixão, saiu para trabalhar e ninguém mais deu notícia dele. Ele grita tanto de noite como até mesmo durante o dia. Na Sexta-Feira da Paixão ouve-se até o barulho dos cascos de seu cavalo.
GRUDE. 1. É uma cola feita com goma e água; 2. É um bolo feito com goma ou massa de mandioca, embrulhado em folha de bananeira e, depois, assado, muito conhecido no Nordeste. Diz-se dos namorados que ficam agarrados o tempo todo, como um grude. Grude também é a sujeira dos que não tomam banho.
GUAIAMUM. É um caranguejo terrestre, de cor azulada, também conhecido por outros nomes: guaiamu, goiamum, fumbaba, gaiamum. O guaiamum vive em buracos nos mangues, e deixa sua casa no tempo de trovoada. Quando o povo quer pegar guaiamum fora do tempo de trovoada, aproxima uma lata qualquer da boca do buraco e bate nela com uma pedrinha. O guaiamum pensa que é trovoada e sai da sua toca. Na medicina popular, comer guaiamum é bom para quem tem coqueluche.
GUASCA ou GAÚCHO. Como é conhecida toda pessoa que nasce no Rio Grande do Sul. Gaúcho é a denominação mais conhecida.
GUDE. É um jogo infantil, com bolinhas de vidro, de massa ou com rolimãs de automóveis e que consiste em fazê-las entrar em três buracos, ganhando o jogador que acertar mais vezes. Há várias modalidades de se jogar o gude, entre as quais a barca.
GUERREIROS. Pertencendo ao ciclo do reisado, guerreiros é uma manifestação folclórica muito conhecida em Alagoas. Os guerreiros têm, como figurantes, o rei, a rainha dos guerreiros e rainha das moças, mestre e contramestre, primeiro e segundo embaixadores, o índio Peri, a lira, o general, a sereia, dois palhaços, dois Mateus, num total de 30 a 45 figurantes, incluindo as damas, os guerreiros, etc. Usando chapéus imitando catedrais, coroas, tiaras, mitras, espelhos, aljôfares, miçangas, fitas prateadas, os guerreiros têm uma coreografia (dança) pobre, animada apenas por sanfonas e pandeiros.
GURIATÃ. É uma ave da orla marítima e da zona da mata, de canto imitando outros pássaros. Também é conhecida como gurinhatã, guriatã-de-coqueiro.

Fontes:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco
Imagem = http://www.terracapixaba.com.br/

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Graciliano Ramos (Auto-Retrato)

Retrato de Graciliano, por
Cândido Portinari

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia.
Escreveu “Caetés” com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.
É ateu. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados.
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros “Selma” (três maços por dia).
É inspetor de ensino, trabalha no “Correio do Manhã”.
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-Ihe indiferente estar preso ou solto.
Escreve à mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.
Espera morrer com 57 anos.

Fonte:
http://www.graciliano.com.br/

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Graciliano Ramos (1892 – 1953)

Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, sertão de Alagoas, filho primogênito dos dezesseis que teriam seus pais, Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Viveu sua infância nas cidades de Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE), sob o regime das secas e das suas que lhe eram aplicadas por seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo, a idéia de que todas as relações humanas são regidas pela violência. Em seu livro autobiográfico “Infância”, assim se referia a seus pais: “Um homem sério, de testa larga (…), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (…), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura“.

Em 1894, a família muda-se para Buíque (PE), onde o escritor tem contacto com as primeiras letras.

Em 1904, retornam ao Estado de Alagoas, indo morara em Viçosa. Lá, Graciliano cria um jornalzinho dedicado às crianças, o “Dilúculo”. Posteriormente, redige o jornal “Echo Viçosense”, que tinha entre seus redatores seu mentor intelectual, Mário Venâncio.

Em 1905 vai para Maceió, onde frequenta, por pouco tempo, o Colégio Quinze de Março, dirigido pelo professor Agnelo Marques Barbosa.

Com o suicídio de Mário Venâncio, em fevereiro de 1906, o “Echo” deixa de circular. Graciliano publica na revista carioca “O Malho” sonetos sob o pseudônimo de Feliciano de Olivença.

Em 1909, passa a colaborar com o “Jornal de Alagoas”, de Maceió, publicando o soneto “Céptico” sob o pseudônimo de Almeida Cunha. Até 1913, nesse jornal, usa outros pseudônimos: S. de Almeida Cunha, Soares de Almeida Cunha e Lambda, este usado em trabalhos de prosa. Até 1915 colabora com “O Malho”, usando alguns dos pseudônimos citados e o de Soeiro Lobato.

Em 1910, responde a inquérito literário movido pelo Jornal de Alagoas, de Maceió. Em outubro, muda-se para Palmeira dos Índios, onde passa a residir.

Passa a colaborar com o “Correio de Maceió”, em 1911, sob o pseudônimo de Soares Lobato.

Em 1914, embarca para o Rio de Janeiro (RJ) no vapor Itassuoê. Nesse ano e parte do ano seguinte, trabalha como revisor de provas tipográficas nos jornais cariocas “Correio da Manhã”, “A Tarde” e “O Século”. Colaborando com o “Jornal de Alagoas” e com o fluminense “Paraíba do Sul”, sob as iniciais R.O. (Ramos de Oliveira). Volta a Palmeira dos Índios, em meados de 1915, onde trabalha como jornalista e comerciante. Casa-se com Maria Augusta Ramos.

Sua esposa falece em 1920, deixando quatro filhos menores.

Em 1927, é eleito prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, cargo no qual é empossado em 1928. Ao escrever o seu primeiro relatório ao governador Álvaro Paes, “um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928”, publicado pela Imprensa Oficial de Alagoas em 1929, a verve do escritor se revela ao abordar assuntos rotineiros de uma administração municipal. No ano seguinte, 1930, volta o então prefeito Graciliano Ramos com um novo relatório ao governador que, ainda em nossos dias, não se pode ler sem um sorriso nos lábios, tal a forma sui generis em que é apresentado. Dois anos depois, renuncia ao cargo de prefeito e se muda para a cidade de Maceió, onde é nomeado diretor da Imprensa Oficial. Casa-se com Heloisa Medeiros. Colabora com jornais usando o pseudônimo de Lúcio Guedes.

Demite-se do cargo de diretor da Imprensa Oficial e volta a Palmeira dos Índios, onde funda urna escola no interior da sacristia da igreja Matriz e inicia os primeiros capítulos do romance São Bernardo.

O ano de 1933 marca o lançamento de seu primeiro livro, “Caetés”, que já trazia consigo o pessimismo que marcou sua obra. Esse romance Graciliano vinha escrevendo desde 1925.

No ano seguinte, publica “São Bernardo”. Falece seu pai, em Palmeira dos Índios.

Em março de 1936, acusado — sem que a acusação fosse formalizada — de ter conspirado no mal-sucedido levante comunista de novembro de 1935, é demitido, preso em Maceió e enviado a Recife, onde é embarcado com destino ao Rio de Janeiro no navio “Manaus”. com outros 115 presos. O país estava sob a ditadura de Vargas e do poderoso coronel Filinto Müller. No período em que esteve preso no Rio, até janeiro de 1937, passou pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção, pela Colônia Correcional de Dois Rios (na Ilha Grande), voltou à Casa de Detenção e, por fim, pela Sala da Capela de Correção. Seu livro “Angústia” é lançado no mês de agosto daquele ano. Esse romance é agraciado, nesse mesmo ano, com o prêmio “Lima Barreto”, concedido pela “Revista Acadêmica”.

Foi libertado e passou a trabalhar como copidesque em jornais do Rio de Janeiro, em 1937. Em maio, a “Revista Acadêmica” dedica-lhe uma edição especial, de número 27 – ano III, com treze artigos sobre o autor. Recebe o prêmio “Literatura Infantil”, do Ministério da Educação”, com “A terra dos meninos pelados.”

Em 1938, publica seu famoso romance “Vidas secas”. No ano seguinte é nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário no Rio de Janeiro.

Em 1940, frequenta assiduamente a sede da revista “Diretrizes”, junto de Álvaro Moreira, Joel Silveira, José Lins do Rego e outros “conhecidos comunistas e elementos de esquerda”, como consta de sua ficha na polícia política. Traduz “Memórias de um negro”, do americano Booker T. Washington, publicado pela Editora Nacional, S. Paulo.

Publica uma série de crônicas sob o título “Quadros e Costumes do Nordeste” na revista “Política”, do Rio de Janeiro.

Em 1942, recebe o prêmio “Felipe de Oliveira” pelo conjunto de sua obra, por ocasião do jantar comemorativo a seus 50 anos. O romance “Brandão entre o mar e o amor”, escrito em parceria com Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz é publicado pela Livraria Martins, S. Paulo.

Em 1943, falece sua mãe em Palmeira dos Índios.

Lança, em 1944, o livro de literatura infantil “Histórias de Alexandre”. Seu livro “Angústia” é publicado no Uruguai.

Filia-se ao Partido Comunista, em 1945, ano em que são lançados “Dois dedos” e o livro de memórias “Infância”.

O escritor Antônio Cândido publica, nessa época, uma série de cinco artigos sobre a obra de Graciliano no jornal “Diário de São Paulo”, que o autor responde por carta. Esse material transformou-se no livro “Ficção e Confissão”.

Em 1946, publica “Histórias incompletas”, que reúne os contos de “Dois dedos”, o conto inédito “Luciana”, três capítulos de “Vidas secas” e quatro capítulos de “Infância”.

Os contos de “Insônia” são publicados em 1947.

O livro “Infância” é publicado no Uruguai, em 1948.

Traduz, em 1950, o famoso romance “A Peste”, de Albert Camus, cujo lançamento se dá nesse mesmo ano pela José Olympio.

Em 1951, elege-se presidente da Associação Brasileira de Escritores, tendo sido reeleito em 1962. O livro “Sete histórias verdadeiras”, extraídas do livro “Histórias de Alexandre”, é publicado.

Em abril de 1952, viaja em companhia de sua segunda esposa, Heloísa Medeiros Ramos, à Tcheco-Eslováquia e Rússia, onde teve alguns de seus romances traduzidos. Visita, também, a França e Portugal. Ao retornar, em 16 de junho, já enfermo, decide ir a Buenos Aires, Argentina, onde se submete a tratamento de pulmão, em setembro daquele ano. É operado, mas os médicos não lhe dão muito tempo de vida. A passagem de seus sessenta anos é lembrada em sessão solene no salão nobre da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sessão presidida por Peregrino Júnior, da Academia Brasileira de Letras. Sobre sua obra e sua personalidade falaram Jorge Amado, Peregrino Júnior, Miécio Tati, Heraldo Bruno, José Lins do Rego e outros. Em seu nome, falou sua filha Clara Ramos.

No janeiro ano seguinte, 1953, é internado na Casa de Saúde e Maternidade S. Vitor, onde vem a falecer, vitimado pelo câncer, no dia 20 de março, às 5:35 horas de uma sexta-feira. É publicado o livro “Memórias do cárcere”, que Graciliano não chegou a concluir, tendo ficado sem o capítulo final.

Postumamente, são publicados os seguintes livros: “Viagem”, 1954, “Linhas tortas”, “Viventes das Alagoas” e “Alexandre e outros heróis”, em 1962, e “Cartas”, 1980, uma reunião de sua correspondência.

Seus livros “São Bernardo” e “Insônia” são publicados em Portugal, em 1957 e 1962, respectivamente. O livro “Vidas secas” recebe o prêmio “Fundação William Faulkner”, na Virginia, USA.

Em 1963, o 10º aniversário da morte de Mestre Graça, como era chamado pelos amigos, é lembrado com as exposições “Retrospectiva das Obras de Graciliano Ramos”, em Curitiba (PR), e “Exposição Graciliano Ramos”, realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Em 1965, seu romance “Caetés” é publicado em Portugal.

Seus livros “Vidas secas” e “Memórias do cárcere” são adaptados para o cinema por Nelson Pereira dos Santos, em 1963 e 1983, respectivamente. O filme “Vidas secas” obtem os prêmios “Catholique International du Cinema” e “Ciudad de Valladolid” (Espanha). Leon Hirszman dirige “São Bernardo”, em 1980.

Em 1970, “Memórias do cárcere” é publicado em Portugal.

Bibliografia:
– Caetés – romance
– São Bernardo – romance
– Angústia – romance
– Vidas secas – romance
– Infância – memórias
– Dois dedos – contos
– Insônia – contos
– Memórias do cárcere – memórias
– Viagem – impressões sobre a Tcheco-Eslováquia e a URSS.
– Linhas tortas – crônicas
– Viventes das Alagoas – crônicas
– Alexandre e outros irmãos (Histórias de Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena história da República).
– Cartas – correspondência pessoal.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
http://www.releituras.com.br/

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Hélio Pólvora (Retrato em Preto e Branco de Graciliano Ramos)

Retrato Sem Pose Tirado de Longe

Esse Graciliano Ramos, ou Velho Graça, ou Major Graça, ou Mestre Graça, como o chamavam afetuosamente, é um fingidor. Por sentimentalismo ou vergonha, finge-se mais áspero do que é, mais espinhoso que um mandacaru. Sertanejo magro, de ombros curvos, um cigarro ardendo entre os dedos ou na boca, de roupas simples mas asseadas, mãos limpas (em todos os sentidos). Cria fama de grosseiro por causa de diálogos como estes:

— Bom dia, mestre Graça.

— Você acha, meu filho?

Ou então:

— Mestre Graça, se a situação continuar desse jeito, vamos comer merda — diz-lhe o romancista José Lins do Rego, nos tempos da ditadura de Getúlio Vargas.

— Se sobrar p’ra nós, Zé Lins. Se sobrar…

Seu romance de estréia, Caetés, ele o considera “um desastre” ou “uma encrenca”. Angústia, o terceiro, é “este desastre que preparo e que terá, se aparecer um editor maluco, cinqüenta leitores do Amazonas ao Prata, talvez nem tanto“. Vidas Secas tem uma “história mesquinha —um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos.” Sua correspondência traz frases em italiano e francês. Traduz do francês e recita Le Cid, de Corneille, no original. Admira Eça de Queiroz, lê muito Machado de Assis. Conhece gramática portuguesa a fundo. Mas diz ter “uma cultura de almanaque”. De vez em quando exalta-se: “Vai sair uma obra-prima, em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados” (acerca de S. Bernardo, segundo romance). E reitera: “Foi palavreado difícil de personagens sabidos demais que arrasou a antiga literatura brasileira. Literatura brasileira uma ova, que o Brasil nunca teve literatura. Vai ter de hoje em diante” (idem).

Assim vê a atividade de escritor: “Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que vejamos neles um irmão e lhes mostremos as nossas chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica” (carta à mulher Heloísa, abril de 1935).

Alfabetizou-se em casa dos pais, na fazenda, “agüentando pancada”.

— Um aparte, por obséquio.

— Com que finalidade? Por quem o senhor se toma?

— Por um curioso, apenas curioso. No volume Infância o senhor se atém às memórias relevantes. Parece pensar, como Sherwood Anderson, que não existem histórias seriadas, seqüenciais. Se existem, é que houve intervenção do autor, o que pressupõe artifício. A vida é feita de raros instantes felizes e muitos transes amargos ou desgraçados.

Em Infância predomina o ácido e, em certos trechos, o travo azedo. O memorialista não está ali para emperequetar-se. A análise, tanto da família quanto das ambiências, de si próprio e dos outros, é de uma rudeza total. O senhor tinha o seu orgulho, claro, mas não nutria vaidades bestas. Imprecava principalmente contra si próprio. Era, como disse Oswald de Andrade, um mandacaru escrevendo.

Em um compêndio de achegas biobibliográficas, Moacir Medeiros de Sant’Ana refere-se aos “vários e contundentes julgamentos dos seus pais, feitos por Graciliano Ramos nas suas memórias da infância”. O pai “não economizava pancadas e repreensões” e na mãe o que espantava mais “era a falta de sorriso”. Por isso, Olívio Montenegro considera o livro “obra diabólica”. E no seu Jornal de Crítica, Álvaro Lins afirma, constrangido: “Quando se decidiu a escrever um livro de memórias, a sensibilidade reagiu em toda a sua exacerbação: e exprimiu-se pela exteriorização daquilo que nela se gravara mais profundamente (…) Um mundo intolerável de castigos, privações e vergonhas“. Sim, a memória não grava com igual nitidez as felicidades e infelicidades; o lado podre tem primazia.

A secura exata, as frases que dizem muito com grande economia de meios. É o prosador anti-ornamental numa terra em que os prosadores continuam bacharelescos, relutam em aposentar os ornatos.

Do mesmo modo que, em romances anteriores, o senhor desce ao limo das personagens, em Infância vai à borra do coração. Predominância do monólogo (até mesmo por se tratar de depoimento), palavras pesadas e mortais, que ecoam como badaladas, arrancadas que foram da carne viva dos significados, e que traduzem verdades literais.

Na formação do menino Graciliano entram muitos instrumentos de suplício: o áspero meio sertanejo no final do século passado e início do século 20; o pai comerciante e fazendeiro, tipo rude da média burguesia urbana e rural, com um perfil de patriarca que cobra obediência pronta; a mãe de poucas letras e minguado afeto. Repressão política do coronelismo tipo cabresto, enxada e voto. Repressão sexual. Repressão, sobretudo, à inteligência. A sensibilidade do menino ferida a todo instante, no relacionamento penoso com os pais, na escola, nas ruas, sofrendo o impacto da miséria ambiental. O menino cresce solitário e desconfiado, agarra-se a “migalhas de sons, farrapos de imagens”— dolorosos, todos eles. E apesar da violência do meio, plasma por dentro a sensibilidade, procura um espaço, uma expressão, enquanto por fora tece a couraça protetora.

Mesmo os que, indiferentes à beleza da arte literária, abrem Infância em busca de um documento social, decerto encontram achegas sobre a arte de martirizar crianças. Antes, arte apurada no regime patriarcal; hoje, arte nacional, de ponta a ponta, fio a pavio.
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Graciliano, Dalcídio e a Dama

Nos fundos da Livraria José Olympio Editora, na Rua do Ouvidor 110, quase esquina com Avenida Rio Branco, há um marquesão no qual poucos ousam sentar-se. É o refúgio de Graciliano Ramos, que tem o hábito de acomodar-se a um canto e cruzar as pernas magras.

Num certo fim de tarde, quando ele, lá do seu canto, dá trela ao poeta estreante Jorge Medauar, sentado no outro canto, o romancista Dalcídio Jurandir vai se aproximando. É do Pará, pertence ao Pecebão (o PC ortodoxo) e tem um jeito de camelo, com ligeira corcova. Sem cerimônia, ocupa o espaço vago no centro.

— Mestre Graça, tem um mineiro badalando muito. Um tal de Guimarães Rosa. Já leu?

— Ainda não.

— Imitador de Joyce. Em vez de Saga, pôs Sagarana no título. Quer ser o alquimista da língua.

— Ah, é?

— Li umas páginas. Não é de todo mau — condescende Dalcídio.

Pausa. O romancista paraense volta à carga:

— Mestre Graça, já leu Cyro dos Anjos?

— Não. Quem é?

— Outro mineiro. Escreve parecido com Machado de Assis.

— Nesse caso — pondera Graciliano, descruzando as pernas — eu prefiro o original.

— Apareceu também um tal de Breno Accioly. É contista lá da sua terra, das Alagoas — informa Dalcídio. —Já leu?

— Como se chama o livro?

— João Urso. Tem prefácio de Zé Lins.

— Não sou de prefácios, não gosto de arrodeios — confessa Graciliano. — Pego o cabra e leio sem intermediações.

— Mas já leu o João Urso?

— Só uns dois ou três contos.

— Pois eu não passei do primeiro — diz Dalcídio. — Uma prosa maluca, retórica. Coisa de doido.

Silêncio. Graciliano pigarreia e prepara-se para acender outro cigarro. Como ninguém toma a iniciativa da palavra, Dalcídio Jurandir ergue-se, dobrando os joelhos como fazem os camelos, e despede-se. Tem assuntos a tratar na ABI.

— Medauar — pede o velho Graça quando o vulto desaparece na porta —, vá atrás daquele safado e descubra se está falando mal de mim.

Mais ou menos nessa época, o velho regressa de uma viagem à URSS. Em Moscou, obrigaram-no a catar no chão do metrô a ponta de cigarro que ele havia atirado fora. O metrô moscovita era um espelho, brilhava. “Nós não o fizemos e limpamos para que os senhores do mundo capitalista venham sujá-lo com baganas“, dissera-lhe, em tom acrimonioso, o guia.

A ida à URSS resulta num livro de impressões intitulado Viagem e que começa com uma demonstração de aborrecimento do velho Graça: ele não se sente bem na “encrenca voadora”. É como chama o avião. Fumando seu cigarro no marquesão da José Olympio, vê uma senhora tremelicante de banhas e de jóias aproximar-se, toda sorridente, com um exemplar do livro para o indefectível autógrafo.

— Mestre Graciliano, assine aqui. O senhor voltou assumido da União Soviética?

— Assumido como, minha senhora?

— Ora, assumido. Assim como o André Gide.

É demais. O romancista estoura:

— Como, minha senhora? Veado?
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Pesadelo que não Acaba

Um crime, uma ação boa dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos“, pensa Luís da Silva, narrador de Angústia, modesto funcionário público. Se vivesse hoje, mais de 60 anos depois, sua situação seria a mesma ou pior. De lá para cá, alguns indicadores sociais melhoraram, mas outros vícios, como a corrupção e a falência dos costumes, agravaram-se.

A classe média que o romance descreve, incerta e insegura, e sobrevivendo à custa de renúncias, estaria agora proletarizada. Luís luta para subir socialmente. Nordestino de origens rurais, vem de uma família outrora poderosa. São freqüentes, no fluxo memorialístico do narrador, suas lembranças do avô Trajano. Alcançou-o velho, caduco, a dormitar numa rede. Antes senhor de baraço e cutelo, assaltava a cadeia da vila para libertar cangaceiros; no final da vida, com umas reses magras na pastagem, embriagava-se e vomitava na sobrecasaca de um antigo escravo, mestre Domingos, que, por respeito, lhe suportava os destemperos.

A Graciliano Ramos não interessa o romance da decadência da aristocracia rural nordestina. É tarefa para seu contemporâneo José Lins do Rego, que enfocou principalmente os senhores de engenho. Contenta-se, em rápidas imagens repetidas pelo desespero do narrador, em transmitir do passado apenas o necessário com que exibir o desenraizamento de Luís da Silva, cujo pai vivia numa rede, a ler histórias românticas. O passado cruel condiciona a vida atual de Luís. Sente-se que o narrador é mais um Prometeu acorrentado. Ele próprio reconhece que, tivesse nascido em outro berço e recebido outra educação, seu destino seria melhor, ele pertenceria à classe dominante — a dos banqueiros, comerciantes, donos de jornais e diretores de repartição que o dominam de longe. Mas aquele passado rural de agricultores empobrecidos, vivendo dos antigos fastos, é uma marca escarlate, a marca da danação. A sensibilidade de Luís está aberta e sangra. Não há como conter o sangramento. As imagens patéticas ou trágicas assaltam-no nos sonhos e devaneios diários. Sua vida é um pesadelo econômico, um exílio social. Ele está a recordar constantemente o avô com uma cascavel enrolada ao pescoço e suplicando que a tirem; a avó que, sem conhecer o prazer sexual, paria numa cama de varas; o pai preguiçoso e violento que o atirou vezes seguidas ao rio, para ensiná-lo a nadar; um homem que se enforcou, de vergonha, porque tivera de esmolar um pão fresco que lhe foi negado; os pés disformes do pai morto sobre o marquesão sobrevoado por moscas. Cenas e imagens de pesadelo; de uma vida injusta, pobre, violenta, resultante da frágil economia do sertão habitado com o que o narrador chama “a minha raça vagabunda e queimada pela seca“.

O narrador busca longe da vida sertaneja melhores condições de vida. Elas estariam no Sul — para onde emigram em geral os “descamisados”, os de “pés no chão”, os “sem-terra”. Mas no Rio o retirante Luís da Silva, apesar dos pendores literários, sabendo escrever (aqui, no sentido da composição jornalística ou literária), com muitas leituras, conhece a solidão, o anonimato. O estabelecimento social rejeita-o. Ele está preso às engrenagens de uma sociedade então pré-capitalista (mal começara a fase de industrialização do Governo Vargas), hoje de economia globalizada, em que o dinheiro é valor supremo. Aos que nasceram bem aquinhoados, a estrada desdobra-se reta e chã; aos carentes, a dura tarefa de sobreviver. Esta é a sociedade brasileira dos anos ’30 subliminarmente descrita em Angústia, e que subsiste, em muitos aspectos piorada — daí a permanência temática do romance.

Romance “proletário”, tal como o praticou Máximo Gorki, e romance de introspecção dostoievskiana. A exemplo dos humilhados e ofendidos de Dostoiévski, o destino de Luís da Silva é trágico — não somente por suas origens humildes, mas também porque há em volta dele, manietando-o, uma rede de circunstâncias restritivas. Em plena ditadura, com a renda e bem-estar concentrados na minoria privilegiada, resta aos despossuídos o sonho da revolução popular.
Um sonho bem vigiado pela polícia e sonho que, a essa altura, esvaziou boa parte de sua substância ideológica… Luís quer participar dele. Quer contribuir para a luta nas sombras por uma ordem igualitária. Ao mesmo tempo, tem de sobreviver: há o aluguel, os alimentos e remédios, ele é fustigado pelo impulso de verticalização social. Por isso se submete. No jornal, como revisor ou articulista, faz o que lhe mandam: “Escreva assim, seu Luís. Seu Luís obedecia. — Escreva assado, seu Luís. Seu Luís arrumava no papel as idéias e os interesses dos outros“. Suas verdadeiras opiniões ficam para as conversas com Pimentel e Moisés, em casa, porque o café é perigoso, tipos suspeitos rondam os cafés. O intelectual Luís, um revoltado, escreve para o governo, elogia o governo. Em Vidas Secas, o vaqueiro Fabiano, depois de tomar facãozadas no lombo por ordem de um soldado amarelo, encontra-se com este na caatinga e, de facão em punho, recua e deixa-o passar: “Governo é governo”.

A mesma atitude de subserviência ao poder. A diferença é que Fabiano, um bruto, sofre menos, enquanto o intelectualizado Luís recebe todas as agressões da desesperança e do repúdio social nos nervos tensos.

Nas primeiras páginas de Angústia o narrador declara-se “um molambo que a cidade puiu demais e sujou“. Seu cotidiano triste divide-se entre a repartição, a banca de revisão, o café que freqüenta ocasionalmente e a casa velha, cheia de ratos, com uma criada meio surda, Vitória, que enterra no quintal as moedas do salário e conversa com um papagaio. Luís tem consciência da sua condição; nela, a tragédia, mais do que inspirada pelo passado familiar sertanejo, é um desdobramento. Sua visão de mundo é trágica porque está na sua formação, e as ações, ainda que limitadas pelo meio acanhado e opressivo, sinalizam a tragicidade. Romance naturalista, dir-se-á. Mas um naturalismo que, como o de Thomas Hardy, não se restringe ao jogo cego das forças do destino que Hardy, em Tess of the d’Urbervilles, atribui ao “President of the Immortals”, citando Ésquilo. As personagens serão trágicas, no brasileiro, por herança e por uma necessidade inconsciente, intensa, de buscarem a tragicidade como forma até de explicação, justificação, sentido para a vida.

É o caso do narrador de Angústia. Cruel consigo mesmo, em comentários que chegam às raias do masoquismo, Luís da Silva atormenta-se. A princípio, diz: “Não sou um rato, não quero ser um rato“. Mas não tardará a se considerar “um níquel social”. Recebeu “muito coice da vida”. É “uma criatura insignificante, um percevejo social…” Um rato rói-lhe as entranhas. O amor para ele é “uma coisa dolorosa, complicada e incompleta”. Admite que rolou “faminto, esmolambado e cheio de sonhos” por esse mundo.

Robert H. Heilman observa, a propósito da Tess de Hardy: “Nossos egos estão ligados às nossas idéias; querem que os fatos se ajustem às idéias, do contrário nos ofendemos e tendemos, se tivermos poder para tanto, a nos tornar punitivos“. Pois bem: a punição, em primeira etapa, vai para Luís da Silva, e este se humilha mais para sofrer mais, para purgar. Depois, com o aparecimento de Marina, os fados oferecem-lhe breve trégua. No seu romance de fundo de quintal com Marina — quintais cheios de lixo e plantações mesquinhas, onde um homem carrancudo e uma mulher triste trabalham com pipas e dornas —, Luís tem a impressão de descobrir o amor, quando está atraído pelo erotismo e Marina anseia apenas em sair da pobreza absoluta. De qualquer modo, é a felicidade: ele está relativamente tranqüilo, tem uns três contos de réis de economias, deseja casar-se. A idéia de casamento precipita a tragédia pessoal banhada pela tragédia social. Moça estouvada, de cabeça vazia, pensando em ostentações, Marina consome num ápice as suadas economias de Luís no enxoval e, em pleno “noivado”, aceita a corte de um estranho, Julião Tavares, um parasita de discurso empolado e arrogância pavonácea. Tavares é o resumo de tudo quanto oprime Luís: dinheiro fácil, berço de ouro, prestígio social, mediocridade intelectual, poder de corromper e safar-se ileso. Gordo, cínico e esperto, Julião Tavares invade a casa de Luís, seduz Marina e distancia-se quando ela ostenta sinais de gravidez. A família submete-se: nenhuma queixa, apenas resmungos. Os humildes aprendem a vergar a espinha sob o peso dos opressores. O sedutor lança-se à conquista fácil de outras meninas pobres.

Mas o narrador de Angústia, espezinhado, traumatizado, esbulhado pela vida — este reage. É que o sofrimento atinge o ponto da exasperação, ele tem as comportas cheias de água estagnada. A fúria que antes o devastava se dirige ao opressor. Ele não tem, como Moisés, coragem de pichar muros, de distribuir “folhetos incendiários”. Mas o Presidente dos Imortais lhe põe nas mãos o instrumento da vingança — uma corda. A essa altura o monólogo de Luís da Silva — o fluxo “objetivo” do inconsciente, ou seja, a linguagem da ação — se transforma em delírio. Imagens se atropelam: o cano de água é uma corda, a gravata enrola-se como corda, a cobra em volta do pescoço de Trajano é corda viva. O narrador vê-se compelido a matar Julião Tavares após a verificação de que Marina, grávida, procura parteira clandestina. No capítulo final as referências ao passado se aglomeram. É um entrechoque de lembranças. As imagens trágicas do meio rural e da vida urbana de Luís se juntam para entoar o coro da tragédia. Início e fim do romance se fecham quais pontas de um leque. Angústia é um pesadelo contínuo. O narrador pergunta: “Haverá dentro de 20 anos criaturas assim que, tendo corrido mundo, se resignam a viver num fundo de quintal, olhando canteiros murchos, respirando podridões, desejando um pedaço de carne viciada?” Sim, e em condições ainda piores.

Fonte:
http://www.vidaslusofonas.pt/graciliano_ramos.htm

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Graciliano Ramos (Primeira Aventura de Alexandre)

Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores… principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— “Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?” E eu respondi: — “Não achei, nhor não.” — “Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua.” — “Nhor sim.” Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim”. Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant’lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant’lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — “Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite.” Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então… Eu então pensava, na tropelia desembestada: — “A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada.” Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — “Vocês não viram por aí o Xandu?” — “Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora” — “Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!” — “Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?” —”Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?” — “Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno.” Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Fonte:
RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 44.ed. RJ: Record, 2003.

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Graciliano Ramos (Um amigo em talas)

O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes.

Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.

Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinqüenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.

Mudamo-nos, separamo-nos, perdemo-nos de vista. Creio que os artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num semanário: “Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho”.

O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois, nos declara Amadeu Amaral Júnior: “Minha situação continua preta. Reitero o apelo às almas bem formadas: dêem de comer a quem tem fome, uma fome atávica, milenária. Dêem-me trabalho.” E, catalogando as suas habilidades: “Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Dêem-me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo.”

De literato brasileiro não conheço página mais sincera e razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele, admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem.

É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo: discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que vive sem ocupação por não haver falado antes nisso.

O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insônia encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos. Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor, afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente.

A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo, revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu é jornalista.

Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas com decência, deve calar-se e roer chifres?

Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem. Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente como quem vende pomada para calos.

Fonte:
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21. ed. RJ: Record, 2005.

Capa do livro = Sebo do Messias

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Lino Vitti (Castelo de Poesias)

VELEIRO DO AMOR

Coração – débil barco aventureiro –
pelo oceano do amor, toma cautela.
Pode surgir um vendaval traiçoeiro
que te arrebate e te estrçalhe a vela.

Perscruta o rumo. Sobre o mar inteiro
se prepare talvez árdua procela.
Busca horizontes claros, meu veleiro,
onde o sol brilha e o mar não se encapela.

Não te faças ao largo em demasia
que vem a noite horrenda e a treva zas
queira roubar-te a luz que te alumia.

E então sem rumo, sem farol, sem paz
quiçá não possas mais voltar um dia
à mensa praia que deixaste atrás.

FLORINDO CORAÇÕES

Veja o belo jardim como anda florescido
tanta roseira em flor sonhando com perfumes!
Um verdadeiro céu de estelíferos lumes
estilhaçado em chão de vidro derretido.

Em flores transformou-se a montanha de estrumes
dado vida ao odor tristonho e ressequido.
Convidados da noite a um banquete subido
são insetos que vêm e luzem vagalumes.

Veja as rosas que estão clamando por olhares,
por sorrisos de quem bem perto delas passa,
por beijos de manhãs e céus crepusculares.

Deixemos repousar a vista generosa
nesse encanto floral da roseira que é graça
fundindo em coração cada botão de rosa.

SER MONTANHA

Anseio do infinito, oh! cósmica montanha,
que buscas nesse afã silente, e pétreo, e vão?
Queres talves deter, numa invasão estranha,
esse pálio estelar luzindo em profusão?

Vais abraçar o sol? Impossível façanha!
Beijar, quem sabe,a lua em toques de emoção?
E quando o temporal em chuva e vento banha
o mundo, não te faz bater o coração?

Quando vejo surgir, no horizonte , o teu porte
qual vontade do pó de se elevar à altura
fugindo desta terra onde comanda a morte,

um profundo desejo a erguer-se me acompanha:
quero ser como tu, fugir desta clausura
e não ser nada mais que uma simples montanha.

MINHA ESCOLA

Eu não sou o poeta dos salões
de ondeante, basta e negra cabeleira.
Não me hás de ver, nos olhos, alusões
de vigílias, de dor e de canseiras.

Não trago o pensamento em convulsões,
de candentes imagens, a fogueira.
Não sou o gênio que talvez supões
e nem levo acadêmica bandeira.

Distribuo os meus versos quais moedas
que pouco a pouco na tua alma hospedas,
raras, como as esmolas de quem passa.

Vou porém me sentir feliz um dia
se acaso alguém vier render-me a graça
de o ter feito ricaço de poesia.

TAPERA

Torce o caminho manso e entre pedras percorre
agarrando-se, ansioso, à encosta da colina.
sobe-se um pouco e olhar curioso descortina
a paisagem feral da tapera que morre.

Reina a desolação e a tristeza domina
tudo, restos mortais. A luz do sol socorre
piedosmente, a flux,como um bálsamo, e escorre
sobre a ferida em flor dessa bela ruína.

Tetos a desabar, muros em derrocada,
ascercas pelo chão, porteiras vacilantes,
pompeando os ervaçais na casa abandonada.

Cadáveres, e só, da rica habitação
onde floriu, feliz, o grande senhor d´antes,
dos tempos memoriais da negra escravidão.

AO PASSAR DO VENTO

Quando tremula a fronde ao passar de uma brisa
é um sorriso floral dos galhos verdejantes;
quando às águas do lago um leve sopro alisa,
como a sorrir também, felizes e arquejantes;

quando às flores, sem nome, uma aura que desliza
beija e afaga a sonhar doces sonhos distantes;
quando às nuves no céu azul canta e suaviza
numa glória de sol e brilhos coruscantes;

eu cismo e vejo bem que os harpejos que passam
unidos pelo amor, pelo amor se entrelaçam,
e, alegres, todos vão com modos galhofeiros,

mostrando a nosso olhar, talvez muito cansado,
toda a beleza que há no vento tresloucado,
no sublime correr dos ventos passageiros.

FLOR SEM NOME

É uma flor, nada mais que uma flor que se abre
da carícia solar à glória luminosa.
Rubra, sangrando em luz, balouçando radiosa
– coraçãozinho triste espetado num sabre .

À noite, na penumbra, em suste se entreabre
para do orvalho ter lágrima silenciosa.
E quando o dia vem, vestido de cinabre,
entrega-lhe, a sorrir, a essência vaporosa.

Flor humilde do campo, orfãozinha ajoelhada,
de mãos postas em prece , à beira dos caminhos,
vestidinho vermelho a esmolar, a esmolar…

Ela pede somente, escondida e enjeitada,
o afago de quem passa, um pouco de carinho,
o beijo imaculado e longo do luar.

POETA À ANTIGA

Quando o enxergam passar – passos pequenos,
a face magra, quieto, entristecido –
lançando às vezes , no ar, mudos acenos
em gestos de abraçar o indefinido;

Quando o enxergam passar(e o seu ouvido
não atende aos insultos dos terrenos)
todos, num quase acento comovido,
dizem:”deve ser louco, mais ou menos…”

Um dia (nem eu sei como se deu)
conversamos…Contou-me todo o seu
viver, cheio de angústias e revezes…

É poeta!…Arrependo-me dizê-lo
pois eu sei que dirão, agora, ao vê-lo:
-“Poeta?… Então é louco duas vezes!”

NOITE CAMPESTRE

Noite de estio. Na fazenda.Espicho,
cansadíssimo, o corpo langue ao longo
do leito,e, levemente, sem capricho,
por qualquer devaneio a mente alongo.

Insônia.Beliscões de carrapicho,
businadas sutís de pernilongo…
Trissam grilose inquieto camundongo
rói aqui, fuça ali, rasgando lixo.

O quarto, uma fornalha. Estalam vigas;
pelo telhado rufla uma asa tonta.
descem guinchos diabólicos de briga…

Fora, no pez da noite,andam fantasmas;
súa estrelas o céu, de ponta a ponta,
piam corujas nas distâncias pasmas!

VELHO CASARÃO

Casarão – mausoléu glorificado-
a entesourar recordações mediúnicas.
Rotas paredes – testemunhas únicas –
da história milenar do seu passado.

Solitário solar de horror povoado,
de duendes e fantasmas de alvas túnicas.
O chão ressuma ainda ondas budúnicas
e há um cavo estalar de ossos no assoalhado.

No silêncio da noite o casarão
revive pelos velhos aposentos
os dramalhões brutais da escravidão.

E quando entre os desvãos do amplo telhado
ganem soturnamente, os longos ventos
são gemidos de um negro chicoteado.
————–

Fotomontagem por José Feldman, em cima de imagem (Castelo) de http://www.pititi.com

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Entrevista com o Príncipe dos Poetas de Piracicaba, Lino Vitti

A Academia Piracicabana de Letras outorgou a este nobre escritor da terra o título honorífico de “Príncipe dos Poetas de Piracicaba“. Sua obra contempla mais de quatro décadas dedicadas à poesia, especialmente os sonetos. Bafejado pelos ensinamentos de sábios sacerdotes em colégio de formação religiosa, recebeu extraordinária formação literária que lhe propiciou enveredar pelo caminho da poesia, da crônica, dos contos, do jornalismo, havendo editado de 1959 até 2001 sete livros de poesia.

Aos 86 anos, Lino Vitti tem orgulho do título. Saudosista assumido, vive num amplo sobrado com Doratirtes, companheira de 57 anos que lhe deu sete filhos. Mas não despreza as novas tecnologias e usa o computador. Nessa entrevista, ele abre o coração e conta o que o emociona e o que o choca no mundo de hoje.

A PROVINCIA – Vale a pena ser poeta?

Lino Vitti – Penso que vale a pena, e muito. A prova são os sete livros de minha lavra. O prim eiro, “Abre-te Sésamo”, publiquei quando ainda era moço. Depois vieram “Alma Desnuda”, “Sinfonia Poética”, “Piracicaba, minha terra”, “Sonetos mais amados”, “Plantando contos e colhendo rimas” e “Antes que as estrelas brilhem”, esse último de 2001.

O que representa o título “Príncipe dos poetas piracicabanos”?

Ah, isso é uma coisa que me dá o maior orgulho! Recebi da Academia Piracicabana de Letras, em 1978, e para mim representa uma compensação aos meus longos anos dedicados à poesia.

Quando o senhor começou com a poesia?

Aos 15 anos, quando era seminarista, no Seminário Santa Cruz, em Rio Claro. Lá era proibido praticar poesia, redigir ou pensar tudo o que estivesse relacionado a ela. Mas em certa ocasião apareceu um clérigo de outra congregação, chamado Antonio dos Santos, e que era poeta. Ficou para mim essa divisão entre teologia e poesia. Escondido de outros padres, aprendi todas as técnicas da poesia.

Por isso o senhor desistiu do seminário?

Na verdade eles me mandaram embora. No pátio havia uma fiquiera e uma folha despencou do alto. Comentei com meu colega que estava me sentindo assim. Mas na hora passou um padre que tomava conta da gente e foi o que bastou para chamar meu pai. Ele pediu para que eu saísse pois não tinha certeza da minha vocação.

O senhor se arrepende de ter desistido ou de ter passado um tempo lá?

Nem uma coisa nem outra. Eu realmente não tinha vocação para sacerdote, mas devo aos padres tudo o que aprendi, tudo relacionado à cultura. Eles formam homens.

Como era a formação de um jovem naquele tempo?

Era a mais ampla possível. Eu aprendi latim, francês, italiano, e tive noções de grego.

E a disciplina, como era?

Era rígida a ponto de um seminarista não pode tocar outro colega com as mãos.

Tanta rigidez tem um lado positivo e um negativo?

De forma nenhuma. A rigidez só tem lado positivo, você tem de ser rígido em tudo.

Essa rigidez estaria em falta na educação de hoje?

Penso que sim. Acho que a educação está muito liberada, acho que no fundo os jovens sentem falta de mais rigidez.

O que o senhor acha da Igreja Católica atual?

Ela acompanhou muita coisa, mas em algumas se manteve, o que tem de ser. As pessoas que se dizem mais liberais não querem aceitar que existem certas coisas que são imutáveis na alma humana. A Igreja não pode aceitar o pecado, o divórcio, o homossexualismo.

Mas a Igreja não precisa se modernizar?

Pra que? Ela não tem obrigação de fazer isso. Sua obrigação é com a crença, com o sagrado. Quem tem de se adaaptar a ela é o fiel, ele é quem tem de seguir o que a Igreja determina.

Mas a Igreja não está perdendo fiéis por ser imutável?

A Igreja não visa coisas materiais, ela visa o lado espiritual. Ela não tem de aceitar o divórcio, ela tem de manter o casamento.

Há quantos anos o senhor mantém seu casamento?

Estou casado com Dorairtes, que é professora aposentada, há 57 anos. Temos sete filhos, seis moças e um rapaz, 15 netos e uma bisneta. Realmente é um vínculo indissolúvel.

O que é preciso para ser um bom poeta?

Em princípio, a poesia é um dom natural. Mas eu penso que escrever poesia não é só fazer quadrinhas ou estrofes que tenham métrica, rimadas ou em versos livres. A poesia é uma maneira de transmitir o que está dentro da pessoa de uma maneira elevada, de uma forma incomum. O bom poeta deve ser, acima de tudo, um observador profundo da natureza humana.

O que a modernidade trouxe de bom para o homem?

Trouxe coisas ótimas como as inovações científicas, as novas manifestações culturais. Esse é seu lado bom. Por outro lado, tem seu lado negativo quando se entrega ao abuso do sexo, do crime, da moral, da justiça, e até do abuso do amor.

O que choca o senhor hoje em dia?

Essas coisas que acabei de falar me entristecem. O que me choca é a política. Porque, em vez de cumprir aquilo para o qual foram eleitos, os ilustres representantes da política nacional aproveitam-se de seu mandato para abusar do povo.

O que Piracicaba representa para o senhor?

É meu berço e berço a gente não discute, a gente ama. sei que hoje a cidade tem muitos problemas como violência e falta de policiamento, mas isso existe em todo o lugar.

Santana deve ter um lugar reservado nesse ano, não é?

Claro. Nasci em Santana em 16 de janeiro de 1920 e lá aprendi tudo o que sei. Vivi uma vida campestre, no meio da mata virgem, no meio das lavouras de milho e dos cafezais. Aramva arapuca para passarinho, pegava peixe na beira do rio, colhia maracujá na capoeira. Tudo isso desapareceu e em seu lugar colocaram canaviais que acabaram com a mata, os pássaros, os bichos, as frutas, os peixes. É triste para mim, que sou poeta, ver como santana perdeu a poesia!

Fonte:
A Província.

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Carlos Moraes Junior (Caldeirão Poético de Piracicaba)

VIOLÕES

Como são tristes os acordes
dos violões em serenata,
que atravessam as madrugadas,
na tentativa de responder
os enigmas da tristeza,
que a simples vivência não pode,
nem em sonho, resolver.
Como são nostálgicas
as mensagens dos violões,
que ensinam os amantes
a enfrentarem com galhardia
o desespero e o sofrimento
de um amor que já acabou…
Como são doces as cantigas
de amor dos violões,
estas que ensinam os jovens
a prudentemente esperar,
do amor estranhas mazelas,
ao invés de tolas venturas
e de sonhos de realização…

A RIMA BOA

Quero encontrar a rima boa
para poder, enfim, terminar
com chave de ouro esta loa
que um dia irá me consagrar…
Quero a rima que o povo entoa,
no dia a dia do seu falar,
para compor um versinho a toa,
que um dia irá me consagrar…
Quero ver como é que soa
esta rima que encontrar,
para que ela seja a coroa
que um dia irá me consagrar…
Quero a rima que apregoa
a mercadoria a se liquidar,
ou então, aquela que povoa
o sonho que irá me consagrar…

A SORTE NAS CARTAS

A sorte nas cartas,
a sorte lançada,
o futuro,
o passado
a vida e o nada…
A verdade das cartas,
a mistificação do poder,
a vidência,
a eficiência,
os estertores da Ciência!
Combinações nas cartas,
naipes e números,
figuras, segredos,
o impossível de ocorrer!
A morte nas cartas,
a morte marcada,
o destino, o carma,
a volta à vida passada,
correndo contra o relógio
para dizer coisas escondidas
e ditar regras, direções,
leis e idiossincrasias,
impossíveis de aceitar…

AOS ABRAÇOS COM A VIDA

Na tela amarela
está quem por mim vela,
aos abraços com a vida insurgida.
E a cela, a trela
em mim esculpidas,
não eram belas
nem sinceras como ela.
Aos abraços com a vida
a bela é dela,
e é também dela
a vela amarela construída
de macela e tela,
de cor pálida e singela.
Aos abraços com a vida
ela é a tela
onde se pintam
as histórias de amor,
que abraçadas
com a vida se entretecem…
E dela a vida zomba,
como aquela vela,
pois não é feliz
quem sofre
por causa das tramas
da vida que acontecem.

CANSAÇO

Sentir o tempo passar
sem ter nada para fazer,
é o mesmo que tomar veneno
e deitar-se para morrer…
Ver a vida sem alegria,
sentir o cansaço de vivê-la,
é o mesmo que querer felicidade
sem nunca ser capaz de tê-la.
Sentir o cansaço de ser
na vida apenas uma imagem,
é o mesmo que estar no retrato,
é o mesmo que mandar mensagem
algures para as estrelas,
na esperança de encontrar alguém
onde, há milênios se sabe,
não pode existir ninguém!

CRIANÇAS

Fecha os olhos!
Deixa que te beije,
deixa que te olhe bem…

Talvez a noite
que te impede de ver
seja a mesma noite
que trago dentro de mim.

Querida…
Talvez sejamos jovens para amar,
mas o nosso amor,
esse amor não é criança!

Fechemos os olhos…
Somos crianças
sonhando com um amor
que talvez termine
quando voltares a ver…

FLOR DO CLÃ

Ai! Quão vão és, má dor que não faz bem
E não me dás só vez de sol e paz.
Ai! Quão chã és, tal dor que só me vem
Pra ser tão rés, e ser a que me faz

O fã do fim, do fel dum só que tem
Na cruz o mal, o sal, o pó, o gás,
Da luz sem par, sem lar, que é o zen
Da flor do clã, que só a dor me traz.

Ai! Flor do clã, que a fé não quer me dar,
Nem quer ser gen do dom que é a foz
Da mãe da luz sem fim, que é um lar.

Ai! Flor do clã, que a rir vem ter a nós
Bem cá na mão, pra ter a lei de par
E ser o fim da luz, que não tem voz…
——-

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Carlos Moraes Junior (1948)

Carlos Moraes Júnior, nascido em Tatui/SP em 16/12/48, aposentado da Prefeitura Municipal, onde exerceu, de forma efetiva, o cargo de Agente Fiscal de Rendas, jornalista e contabilista, Presidente do Clube dos Escritores Piracicaba, entidade sem fins lucrativos. declarada de Utilidade Pública, pela Lei 4265/97.

Casado com a empresária Maria Clarice Alves da Silva Moraes, proprietária da firma Coopia Datilografia e Serviços Editoriais, que mantém a revista Clube dos Escritores , publicação mensal por assinatura.

Manteve no ar durante cinco anos o programa radiofônico Clube dos Escritores pela Rádio FM Municipal, e durante um ano, no jornal O Diário , a página literária Clube dos Escritores .

Ministra cursos de Redação, de Técnicas de Redação, de Poética Contemporânea e de Criatividade em Prosa e Verso, desde 1992, em convênio com a Delegacia de Ensino de Piracicaba e com a Prefeitura Municipal.

Realizou oficinas de literatura alternativa, e uma Exposição de Literatura Alternativa na Casa do Povoador, sendo o pioneiro neste tipo de literatura na cidade.

Durante mais de 30 anos dedicou-se à crítica literária, sendo que assinou nos jornais locais e de algumas cidades do interior colunas literárias como Literatura e Livros .

Como jornalista profissional assinou durante mais de cinco anos a coluna diária Temática e a coluna semanal Mobral em Revista no Jornal de Piracicaba.

Foi ainda repórter, colunista e revisor de todos os jornais da cidade.

Como gerente de promoção da Eletroradiobraz S/A, criou a mensagem de encerramento do expediente de todas as lojas da rede.

Como Relações Públicas da Comissão Municipal do Mobral, criou a frase-tema da Campanha de Alfabetização do Mobral de 1975.

Escreve para o Jornal de Piracicaba na página 2 e assina, junto com o filho, desde 1989, diariamente, as Palavras Cruzadas daquele matutino.

Participou da Bienal Internacional do Livro de 1988

Nos últimos dez anos é responsável e editor do Informativo do Clube dos Escritores. Atualmente é Editor Chefe do jornal “Gazeta Regional”, que circula em Piracicaba e região, e articulista de vários sites na Internet e nos jornais “Jornal de Piracicaba” e “Tribuna Piracicabana”.

Prêmios:
– I Festival de Poesias do JUBA [1969], “Poesia em p minúsculo”,
– Semana Cultural da Sociedade Prudente de Morais, “A Nova Vida”, poesia e “Impressionismo”, conto, [1969],
– II Festival de Poesias do Interact Clube de Piracicaba, “Tema Caótico”, poesia, [1970],
– I Happening de Literatura da Escola de Música de Piracicaba, 1º. Prêmio, contos “A estória da praça estranha”, [1975],
– II Happening de Literatura da Escola de Música de Piracicaba, lº. Prêmio, contos “A saga do beco dos seis outeiros”, [1976],
– II Concurso de Poesias da Ação Cultural da Prefeitura Municipal de Piracicaba, poesia, “Vietnã”, [1979]
– III Happening de Literatura da Escola de Música de Piracicaba, 2º. Prêmio, contos “Irmã Helga vai à guerra”, [1982],
– Medalha de Mérito Cultural ‘José Bonifácio de Andrada e Silva’,

Participação:
Membro fundador da Academia Piracicabana de Letras,
Membro da Ordem Nacional dos Escritores,
Membro da Ordem Nacional dos Bandeirantes,
Membro da Academia Paulistana da História,
Membro da União Brasileira de Trovadores,
Membro da União Brasileira de Escritores,
Membro da Academia Brasileira de Ciências Mentais e
Membro do Sindicato dos Escritores Profissionais do Estado de São Paulo.

Publicações:
Temática , crônicas (1974/1976/1978),
Nem tambores, nem clarins , crônicas e poesias (1975/1976).

De literatura alternativa
Coleção Jubileu (1986), Série Ouro e Série Prata (1987), Série Vermelha (1988), Série Branca (1989), Série Amarela (1990/91), Série Verde (1992), Série Azul (1993), e Serie Marrom (1994),
Coletâneas
Coletânea Clube dos Escritores (1992), organizador,
Coletânea Força Motriz (1993), organizador e
Poetas Piracicabanos 1900-1970 , pesquisa histórica.

Fontes:
http://www.geocities.com/SoHo/Lofts/1418/carlosmjr.htm
http://www.poetasdelmundo.com/

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Concursos de Poesias com Inscrições Abertas

V CONCURSO DE POESIAS DE GUARATINGUETÁ

Estão abertas até 30/03/09 as inscrições para o V Concurso de Poesias de Guaratinguetá.

Participe com até duas poesias, inéditas ou não, de no máximo 30 linhas, em português, tema livre, datilografadas ou digitadas em papel A4, espaço simples, fonte time new roman, corpo 12, em três vias identificadas por pseudônimo, enviadas para a
Rua Pe. Geraldo Pires de Souza, 91,
CEP 12511-150, Guaratinguetá/SP,

pelo sistema de envelopes, tendo no envelope menor dos não sócios do Clube: currículo de 7 linhas, identificação completa, obrigatoriamente, o nome do concurso, pseudônimo, nome dos trabalhos, taxa de R$ 5,00 (cinco reais), em dinheiro ou cheque pré-datado, cruzado e nominal à Maria Gertrudes Horta Greco, (não será aceito depósito bancário), e uma foto 5×7, tipo passaporte.

No dos sócios, obrigatoriamente, o nome do concurso, a taxa de R$ 5,00, pseudônimo, nome dos trabalhos e um telefone ou e-mail para contato.

É vedada a participação de membros do júri de seleção.

Serão escolhidos 3 menções honrosas, 3 trabalhos vencedores e mais um destaque do júri, que receberão Diplomas de premiação.

Informações pelo Fone: (012) 3122-2140.

IV CONCURSO DA COSTA DA MATA ATLÂNTICA

Estão abertas até 30/10/09 as inscrições para o IV Concurso de Poesias da Costa da Mata Atlântica.

Cada poeta pode participar com apenas uma poesia, inédita ou não, devendo conter, no máximo, 30 linhas, escrita em língua portuguesa, tema livre e sem qualquer restrição.

Somente serão aceitos trabalhos datilografados ou digitados, num só lado da folha, em papel A4, espaço simples, Fonte Times New Roman, corpo 12 em tres vias identificadas por pseudônimo,

enviadas pelo sistema de envelopes para o Curador do Concurso
José Ubaldo Santos,
Rua Dr. Guedes Coelho, 85/52,
CEP 11050-231, Santos, SP.

Todo poeta participante mesmo sócio do Clube, deverá enviar no envelope menor: nome do Concurso, mini-currículo (até 7 linhas), identificação completa, obrigatoriamente o pseudônimo, taxa de R$ 5,00 (cinco reais), em dinheiro ou vale postal em nome do Clube (não será aceito depósito bancário).

É vedada a participação de membros do júri de seleção e integrantes da Diretoria di Clube dos Escritores.

Serão escolhidos três menções honrosas, tres premiações e mais um destaque do júri, que receberão Diplomas de premiação, em Solenidade a ser realizada em Piracicaba.

Informações pelo Fone: (0xx13)32351-608, ou pelo mail: jose.ubaldo2@terra.com.br

XI CONCURSO NACIONAL DE POESIAS DO CLUBE DOS ESCRITORES

Estão abertas até 30/06/09 as inscrições para o XI Concurso Nacional de Poesias do Clube dos Escritores Piracicaba, nas Categorias Especial (somente para os ganhadores do Troféu Coruja), Profissional e Amador.

Cada poeta pode participar duma só Categoria, com até duas poesias, inéditas ou não, devendo conter, no máximo, 30 linhas, escritas em língua portuguesa, tema livre e sem qualquer restrição.

Somente serão aceitos trabalhos datilografados ou digitados em papel A4, espaço simples, Fonte Times New Roman, corpo 12 em tres vias identificadas apenas por pseudônimo, enviados pelo sistema de envelopes para a
Rua Jacob Diehl, 77 – Bairro Morumbi,
CEP 13420-410, Piracicaba/SP.

O envelope menor deverá conter mini-currículo, identificação completa, obrigatoriamente, o nome do concurso e da categoria em que participa, pseudônimo, taxa de R$ 10,00 (dez reais), em dinheiro ou cheque pré-datado, cruzado e nominal ao Clube dos Escritores Piracicaba (não será aceito depósito bancário).

Os sócios do Clube dos Escritores devem pagar a taxa estipulada.

É vedada a participação de membros do júri de seleção e integrantes da Diretoria do Clube dos Escritores.

Serão escolhidos 8 trabalhos em cada Categoria, que receberão Diplomas de Honra ao Mérito, e destes, serão escolhidos tres vencedores de cada Categoria e mais o destaque do Júri, que receberão “Troféu Coruja”, pelo sedex a cobrar.

Informações pelo Fone: (0xx19)3426-8568 ou pelo mail: clube.escritores@uol.com.br

Fonte:
http://confrariadacoruja.zip.net/

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XXVI Jogos Florais de Bandeirantes (PR)

TEMAS:

Âmbito Nacional /Internacional (para trovadores do Brasil e exterior, exceto para o estado do Paraná)

DEVANEIO (lírica/filosófica)
CHILIQUE (humorística)

Endereçar para:
Lucília Alzira Trindade Decarli
Caixa Postal 186
CEP 86360-000 – Bandeirantes – PR

Âmbito Estadual(somente para o estado do Paraná)

AUSÊNCIA(lírica/filosófica)
ARRUAÇA(humorística)

Endereçar para:
Therezinha Dieguez Brisolla
Rua Costa Carvalho, 351 A – apt.54
CEP 05429-130 – São Paulo – SP

Âmbito Municipal (exclusivo para estudantes residentes em Bandeirantes)

SORRISO (lírica/filosófica)
CASTIGO(humorística)

Endereçar para:
Secretaria Municipal de Educação e Cultura
Rua Dino Veiga, 29
CEP. 86360-000 – Bandeirantes – PR

Para cada tema, máximo de 03 trovas.

É obrigatório o uso do tema na trova lírica ou filosófica.

Nas trovas humorísticas pode-se empregar a palavra-tema ou cognatas.

As trovas devem ser remetidas pelo sistema de envelopes.

Devem ser inéditas e de autoria do remetente.

PRAZO:

Nacional e Estadual 31/07/2009
Municipal 31/08/2009

CONCURSO PARALELO:
Nos três âmbitos, cada concorrente poderá enviar uma trova-homenagem, alusiva aos “75(setenta e cinco) anos de Bandeirantes “ou “Jubileu de Diamante de Bandeirantes”.

Fonte:
A. A. de Assis

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Maria Antônia Canavezi Scarpa (Um lugar comum)

Há um tempo ainda, antes do sol se por
e fico diante do mar, vigiando o rumo das ondas,
o lado escuro da tarde,o fogo brando que queima
por uma pequena distância..
onde os olhos podem encontrar, o seu lugar comum

Tenho a impressão, que a suavidade da brisa,
provoca em mim uma sonolência,
dissipando a angústia, do meu coração
deixando-a partir para o alto mar
lúcida e transparente
ao sabor do sopro constante, dos ventos eólios

Guardo meu riso de alegria tensa,
numa garrafa dourada e jogo-a ao mar…
desejando, que ela se vá até os próximos rochedos
que desmaiam nas ilhas solitárias
e se aloje ali, entre os arrecifes

De vez em quando, sento na areia morna
acompanhando as estrelas que chegam,
para brilhar no meu pequeno mundo
rastreando cada segundo,
cada minuto do meu sonhar

Quando anoitecer e os pássaros marinhos
se esconderem junto as pedras, vou ter com eles
isolada… meio trêmula de medo, pelas tempestades
que hoje não irão acontecer.
Solitária aqui ou ali, percebo que sou pouco inteligente,
às alternativas que busco,de ir até você

São sempre as mesmas…o pensamento…os sonhos…
já que estamos, tão longe um do outro…
só me resta, deitar o meu cansaço teimoso,
fechar os olhos e chegar no seu lugar comum,
sem encontrar o que estava procurando
===

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Gesson Álvares de Magalhães (Caldeirão Literário: Rondônia)

“FIM…É A VIDA?”

Andando a passos trôpegos, moroso,
cambaleando até, olhar sem brilho.
Figura venerável de um idoso
cansado de seguir um longo trilho.

Foi menino, foi jovem vitorioso,
as forças consumiu sem empecilho
E agora espera receber ditoso
o amor e o carinho de seu filho.

Quando, porém, os louros da vitória
Deseja desfrutar entre crianças
que agora poderiam diverti-lo
Nem mesmo vai contar-lhe uma histótia,
pois anda triste, só, sem esperanças
nos frios corredores de um asilo.”
PORTO VELHO ONTEM E HOJE

1.
Se Amizael cantou-te como infante,
Se o Bolívar cantou teu tempo antigo,
Se Cândido cantou-te como amante,
Deixa que eu fale apenas como amigo.

2.
És, Porto Velho, muito diferente
Daqueles dias que já vão distantes,
Quando morava aqui bem pouca gente
E não tinhas em ti, tantos migrantes.

6.
É muita gente e carros circulando
Numa loucura insana e infernal.
O progresso chegou, modificando
Tua estrutura e teu potencial.

7.
As tuas ruas não são mais aquelas !
E se a alma do Cândido, animada,
Tentar, à noite, passear por elas,
Corre o perigo de ser assaltada.

9.
Hoje, teus bairros somam-se às dezenas,
E com eles, os grandes desafios
De controlar, lutando a duras penas,
A poluição de igarapés e rios.

10.
Até o velho Madeira está em perigo!
O Candeias, o Garça, o Jamari,
Que te viram nascer e que contigo,
Viveram o progresso até aqui.

13.
Queremos, Porto Velho, que tu cresças,
Que sejas linda, que tenhas futuro,
Mas tememos que logo te pareças
Com um montão de lixo ou um monturo.

14.
Que teus filhos e aqueles que aqui vêm,
Pensem menos no ouro e mais em ti.
Que te tratem melhor do que ninguém
E façam sempre o melhor aqui.

16.
Que voltes logo a ser bonita e humana.
Que o Bolívar, o Cândido e o Misa
Possam de novo, após a luta insana,
Dormir tranquilos sob atua brisa.

17.
E eu, que também por ti fui adotado,
Possa ver-te crescer com galhardia,
E meus filhos e netos, sem cuidado,
Vivam em ti, na paz e na harmonia.
===============================

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia. http://acler.josevaldir.com/

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Gesson Álvares de Magalhães (1934)

Cadeira n.2 da Academia de Letras de Rondônia, cujo patrono é Ary Macedo.

Gesson nasceu na cidade baiana de Santana dos Brejos, no dia 12 de outubro de 1934, o último dos nove filhos do casal Propércio Álvares Pereira e Francisca Flora de Magalhães. Aprendeu a ler aos quatro anos de idade, com sua cunhada, que era professora.

Sempre curtiu verdadeira paixão pelas letras, tendo feito seu primeiro poema aos onze anos de idade, quando estava na quarta série, em Goiânia, estado de Goiás, para onde a família se mudou no ano de 1946.

Iniciou o curso primário na Bahia, tendo ainda de esperar alguns anos, pois era muito novo quando chegou o momento de ir para a escola oficial, tendo concluído em 1946, em Goiânia, na Escola Adventista, cuja professora chamava-se Edy Souza.

Depois de concluir o primário, parou por alguns anos, tendo voltado a estudar no Ginásio Adventista Campineiro, (hoje Unasp III), localizado em Hortolândia, Estado de São Paulo. Fez ali, o curso de Admissão ao Ginásio, iniciando a primeira série ginasial no ano de 1950. Em 1953, concluiu o curso ginasial, ocasião em que foi orador da turma de formandos.

É Adventista do Sétimo Dia de berço, tendo sido batizado no dia 3 de dezembro de 1949, no Ginásio Adventista Campineiro, aos 15 anos de idade.

Em 8 de dezembro de 1955, casou-se com a senhorita Ivete Gomes, natural de Arapongas, Estado do Paraná, depois de um namoro que se iniciou no Ginásio Adventista Campineiro. Desse consórcio, nasceram três filhos: Íverson, que vive hoje em Porto Velho, Sonete, que é cantora gospel e mora em Washington, nos Estados Unidos e Soníver, que também reside nesta capital. Tem oito netos, três bisnetos e uma filha adotiva, Joice.

Iniciou o Curso Médio em Goiânia, no Instituto de Educação de Goiás, tendo sido, naquele ano, o único aluno do sexo masculino. Isso o fez desistir de fazer o curso Normal, (hoje Magistério).

Residiu em 1956 em Araguari, Minas Gerais, onde nasceu seu primogênito, Íverson.

Em 1957, reiniciou o Curso Médio de Contabilidade no Colégio Adventista Brasileiro, (hoje Unasp I), localizado na capital paulista, tendo concluído no Colégio Doze de Outubro, em Santo Amaro, também na capital paulista.

Residiu e trabalhou em São José dos Campos e em Registro, no Estado de São Paulo e na Capital, São Paulo, onde nasceram sua filha e seu filho caçula.

Em 1967, mudou-se para o Paraná, tendo residido na cidade de Goioerê por um ano e depois na cidade de Mariluz, onde residiu por treze anos.

Nesse ínterim, fez faculdade de Letras em Jandaia do Sul, no Estado do Paraná, tendo concluído no ano de 1972.

Em 1980, exatamente no dia 31 de julho, chegou a Porto Velho, onde vive até hoje.

Aqui, iniciou sua vida profissional como Vice-Diretor do Colégio Estudo e Trabalho, tendo sido depois nomeado como diretor da Escola Carmela Dutra, que foi transformada em Instituto de Educação no ano de sua gestão. Foi Chefe de Gabinete da Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo, quando era secretário o Dr. Vitor Ugo. Quando se iniciaram os trabalhos da Assembléia Legislativa, foi assessor do Deputado Amizael Silva, que foi relator da Constituição do Estado, tendo sido presidente da Comissão de Sistematização da Constituinte, tanto da primeira como da segunda.

Foi também presidente da comissão que revisou as duas versões da Constituição do Estado, (1982 e 1989). Atuou como assessor na elaboração da lei orgânica dos seguintes municípios: Guajará-Mirim, Cerejeiras, Pimenta Bueno e Nova Brasilândia do Oeste, tendo participado da revisão da lei orgânica de Porto Velho. Em 1991, saiu da Assembléia Legislativa e retornou à Secretaria de Estado da Educação, onde exerceu os cargos de Revisor, Assessor e Chefe de Gabinete.

Membro do Conselho Estadual de Educação, tendo exercido os cargos de Vice-Presidente e Presidente daquele órgão. Professor de Língua Portuguesa na Escola Estudo e Trabalho, na Unir e na Faculdade de Tecnologia e Ciências – Fatec, onde ministrou a aula inaugural, em 1995. Enquanto lecionava na Unir, fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica em Belo Horizonte – MG. e em Metodologia do Ensino Superior, na própria UNIR, em Porto Velho.

Membro da União Brasileira de Escritores, seção de Rondônia, da Academia Rondoniense de Educação e fundador da Academia de Letras de Rondônia, onde exerceu o cargo de Secretário-Geral.

Eleito como Conselheiro do Conselho Fiscal da Academia de Letras de Rondônia, cujo mandato expirou em janeiro de 2009.

Obras publicadas:
– Adejos de minh’alma – livro de poesias, publicado em Rondônia.
– Alguma Cousa – ganhador do Concurso realizado por ocasião do centenário de nascimento de Vespasiano Ramos, 1º lugar dentre 49 obras concorrentes.

Publicou ainda diversos artigos e crônicas em jornais e revistas e colaborou em antologias, tais como: Porto Velho em Prosa e Verso e outras.

Títulos

Membro Efetivo da Casa do Poeta – São Paulo
Membro da União Brasileira de Escritores-Seção de Rondônia
Membro da Academia Rondoniense de Educação
Cidadão Constituinte de Guajará-Mirim
Amigo da Educação, concedido pelo Conselho Estadual de Educação de Rondônia.
Constituinte Emérito, concedido pela Assembléia Constituinte de Rondônia.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia. http://acler.josevaldir.com/

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Sylvia Plath (Teia de Poesias)

OVELHAS NO NEVOEIRO

As colinas descem sobre a brancura.
Pessoas ou estrelas
Olham-me tristemente, desaponto-as.

O comboio deixa o traço da sua respiração.
Oh lento
Cavalo cor da ferrugem,

Cascos, guizos de dor —
Toda a manhã a
Manhã tem vindo a escurecer,

Uma flor posta de lado.
Os meus ossos ganham imobilidade. Campos
Distantes suavizam o meu coração.

Ameaçam
Deixar-me entrar para um paraíso
Onde não há estrelas, não há pais, secreta água.
In “Ariel”
Tradução de Fernanda Borges

EU QUERO, EU QUERO

De boca aberta, o deus recém-nascido
imenso, calvo, embora com cabeça de criança,
gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos estalaram e cuspiram,

a areia esfolou o lábio sem leite.
Gritou então pelo sangue paterno
que agitou a vespa, o tubarão e o lobo
e veio engendrar o bico do ganso.

De olhos secos, o inveterado patriarca
ergueu seus homens de pele e osso:
farpas sobre a coroa de fio dourado,
espinhos nas hastes sangrentas da rosa.

(In “Pela Água” – Assírio & Alvim)
(Tradução de Maria de Lourdes Guimarães)

PELA ÁGUA

Um lago negro, um barco negro, duas pessoas negras em papel recortado.
Para onde vão as árvores negras que bebem aqui?
As suas sombras devem cobrir o Canadá.

Das flores aquáticas sai filtrada uma luz tênue.
As suas folhas não querem que nos apressemos:
São circulares e sem relevo, cheias de conselhos obscuros.

Mundos frios agitam se com os remos.
O espírito da escuridão está em nós, está nos peixes.
Um ramo submerso ergue uma mão pálida em despedida;

as estrelas abrem se entre os lírios.
Não ficas cego com a mudez de tais sereias?
Este é o silêncio das almas já perturbadas.

CONTUSÃO

A cor aflui ao local, púrpura e baça.
O resto do corpo está sem cor,
a cor da pérola.

Numa cavidade da rocha
o mar sorve obsessivamente,
uma concavidade, o centro de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca,
a marca do destino
rasteja pela parede.

O coração fecha se,
o mar retira se,
os espelhos estão velados.

PAPOULAS EM JULHO

Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês não fazem mal?

E tremeluzem. Não posso tocar vos.
Ponho as minhas mãos entre as chamas. Nada queima.

E fico exausta ao olhar vos
A tremeluzir assim, pregueadas e de um vermelho vivo, como a pele de uma
boca

Uma boca que acabou de sangrar.
Pequenas bainhas ensaguentadas!

Há fumos que não posso tocar.
Onde está o vosso ópio, essas cápsulas que dão náuseas?

Se eu pudesse esvair me em sangue, ou dormir –
Se a minha boca pudesse casar com uma ferida assim!

Ou se os vossos venenos pudessem penetrar em mim, nesta cápsula de vidro,
Para me entorpecerem e aquietarem.

Mas sem cor. Sem cor nenhuma.

NÓDOA NEGRA

A cor converge para esse sítio, de um arroxeado mortiço.
O resto do corpo fica todo descolorido,
De cor pérola.

Numa gruta cavada na rocha
O mar suga obsessivamente
Uma cavidade, o ponto central de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca
A marca do destino
Arrasta se pela parede abaixo.

O coração fecha se,
O mar recua,
Os espelhos são tapados.

PALAVRAS

Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
–––––––––––––––-

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Alfred Lichtenstein (Poeta do Expressionismo Alemão)

Crepúsculo

Um rapaz gordo brinca com um lago.
O vento ficou preso em arvoredo.
O céu, de ar tresnoitado e de tom vago,
Parece que tirou pintura, a medo.

Dois coxos tortos, dobrados, de muleta,
Arrastam se pelo campo em cavaqueio.
Enlouquece talvez louro poeta.
Um cavalinho tropeça num seio.

O gordo está colado ao guarda vento.
Um jovem vai ao bordel em visita.
Calça as botas um palhaço cinzento.
Cães praguejam, carro de bebé grita.

(1911)

O PASSEIO

Tu, não aguento mais
esses quartos imóveis e as áridas ruas,
e o rubro sol das casas,
a infame repugnância de todos
os livros há muito folheados.

Vem, precisamos sair da cidade
para bem longe.
Vamos deitar-nos na
grama suave.
Vamos, ameaçados e sem ajuda,
contra o absurdamente grande,
mortalmente azul, brilhante céu,
levantar olhos encovados e apáticos,
desencantadas e desgastadas mãos.”
(1913)

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Sobre o Autor
Alfred Lichtenstein, um dos vultos do expressionismo alemão, nasceu em 1889 em Berlim. Fez o curso de Direito em Berlim e se doutorou em 1913 com um trabalho sobre legislação teatral. No mesmo ano, foi enviado como miliciano, por um ano, para Munique e pouco tempo depois partiu para a frente da guerra. Morreu em combate em Vermandevillers, perto de Reims, em 25 de Setembro de 1914, com apenas 25 anos.

Os poemas póstumos de Lichtenstein, confiados a Kurt Lubasch em Berlim, foram destruídos durante a segunda guerra mundial, à exceção de 4 cadernos manuscritos, de oleado, que foram doados à Universidade de Berlim pela mulher de Lubasch, depois da morte deste e por desejo do mesmo.

Lichtenstein gritava na sua poesia a desproporção do mundo em tempo de guerra. No meio de um mundo de quotidiano cinzento e amarelado, de cenas de família e tardes de domingo, entravam as perversões, os manicômios, as anatomias. E mostrava a sua raiva entrechocando esses dois mundos nos seus poemas.
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Fontes:
Luís Gaspar. http://www.truca.pt/ouro.html
http://www.expressionismo.pro.br/cita.html
Foto = http://www.ebooks-library.com/
Imagem = http://www.baixaki.com.br/

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Expressionismo

Kirchner (Natureza Morta)
Até onde se sabe, a palavra “expressionismo” foi empregada, pela primeira vez, em 1850, pelo jornal inglês Tait’s Edinburgh Magazine evocando, em artigo anônimo, uma “escola expressionista” de pintura moderna.

Em 1880, Charles Rowley pronunciou em Manchester uma conferência sobre a pintura contemporânea, identificando uma corrente “expressionista” de artistas que procuravam exprimir suas paixões.

Em 1878, no romance The Bohemian, de Charles de Kay, um grupo de artistas referiam-se a si próprios como “expressionistas”. Mais tarde, em 1901, o pintor Julien-Auguste Hervé expôs no Salão dos Independentes em Paris oito quadros seus, nada expressionistas, sob o título Expressionnismes. Em 1910, o marchand Paul Cassirer declarou, diante de um quadro de Max Pechstein, que aquilo não era mais impressionismo, mas “expressionismo”.

Em 1911, durante a 22ª sessão da Berliner Sezession (“Secessão de Berlim”), Wilhelm Worringer chamou de “expressionista” a vanguarda estrangeira ali exposta – Braque, Dérain, Dufy e Picasso, entre outros -, e o termo “expressionismo” passou a ser associado à nova pintura belgo-francesa. Logo os teóricos e críticos Herwarth Walden, Walter Heymann, Louis de Vauxcelles, Paul Fechter e Paul Ferdinand Schmidt, assim como o poeta Kurt Hiller, passaram a chamar de “expressionista” toda arte moderna oposta ao impressionismo.

Com a verificação de que o verdadeiro expressionismo disseminava-se na Alemanha, na Áustria, na Hungria e na Tchecoslováquia, o termo tornou-se uma referência para a arte cujas formas não nasciam diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade. Atualmente, é considerada “expressionista” qualquer arte onde as convenções do realismo sejam destruídas pela emoção do artista, com distorções de forma e cor. De fato, a deliberada deformação das formas, o sacrifício do discurso ao essencial, a captação de um mundo em frangalhos, a preocupação com a doença e a morte, a sublimação da loucura em contrastes e dissonâncias, o gosto pelo insólito e a visão de um absurdo que tira para sempre a alegria de viver são comuns a todos os escritores modernos que atingiram os limites da expressão, desde Georg Büchner, August Strindberg, Franz Kafka, Arthur Schnitzler e Frank Wedekind, até Elias Canetti, Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Fernando Arrabal e Dario Fo.

Na pintura, já os chamados românticos idealistas, como o suíço Arnold Böcklin e o alemão Franz von Stuck, criavam naturezas carregadas de mistério, pathos e simbolismo; nos quadros de Caspar David Friedrich, a paisagem parece esmagar o homem, fixado como uma figurinha perdida na vastidão da natureza – campo, mar, geleiras, montanhas.

Precursor direto do expressionismo, Vincent Van Gogh criou plantas que expressavam seu atormentado mundo interior. Antes de tornar-se pintor, via-se como o figueiro estéril da parábola bíblica. Mais tarde, para dar forma à sua luta contra “as pequenas misérias da vida“, projetou-se na imagem de uma planta cujas raízes agarram-se ao solo, enquanto o vento as vai arrancando. No máximo de sua arte, quando descobriu o sol “em toda sua glória”, identificava-se com um girassol, fixando velas acesas no chapéu, para pintar à noite, desenhando girassóis murchos quando caía em depressão.

Por fim, depois de romper com Gauguin, seu melhor amigo, pintou ciprestes contorcidos como tochas vivas. Outro anunciador do movimento foi o norueguês Edvard Munch, com uma visão de horror: “Eu caminhava com dois amigos – o sol se pôs, o céu tornou-se vermelho-sangue – eu ressenti como que um sopro de melancolia. Parei, apoiei-me no muro, mortalmente fatigado; sobre a cidade e do fiorde, de um azul quase negro, planavam nuvens de sangue e línguas de fogo: meus amigos continuaram seu caminho – eu fiquei no lugar, tremendo de angústia. Parecia-me escutar o grito imenso, infinito, da natureza“. Reconhece-se, nessa visão, a origem de O Grito (“Der Schrei”, 1893), onde um homem, deformado pelo próprio espasmo, expressa em seu corpo uma angústia que envolve a paisagem, enquanto ao fundo dois homens de fraque e cartola afastam-se, indiferentes, como se nada estivesse acontecendo. E não apenas nessa imagem, como em toda a obra de Munch, que estropiou dois dedos da mão esquerda com um tiro, depois de romper com a noiva, a angústia da morte que percorre toda sua obra antecipa os horrores que destruiriam, para sempre, a belle époque instalada sobre o vulcão dos nacionalismos que se acirravam.

O grito de Munch ecoou na Alemanha, onde o expressionismo floresceu por uma série de condições propícias. Como o país industrializava-se rapidamente dentro de estruturas sociais conservadoras, os jovens artistas reagiam pelo exagero e a deformação contra códigos morais anacrônicos e repressivos. A ordem do mundo afigurava-se diabólica aos intelectuais e artistas mais sensíveis, que se reuniam, em Berlim, no Café des Westens (“do Ocidente”) ou no Grössenwahn (“Megalomania”), “locais de debates, leituras e desavenças que poderiam durar minutos ou anos”. O grito também ecoou em Dresden e Munique, e em Viena, Praga e Budapeste: nessas cidades onde a velha cultura se dissolvia rapidamente junto com as estruturas imperiais, literatos, pintores e gravuristas fundaram um sem-número de revistas, cabarés e grupos de nomes bombásticos.

Uma das primeiras associações foi a Die Neue Gemeinschaft (“A Nova Comunidade”), da qual participavam os filósofos Gustav Landauer e Martin Buber, adeptos da filosofia romântica do retorno à natureza como condição para o nascimento do Novo Homem, exercendo forte influência nos poetas Else Lasker-Schüler e Ludwig Rubiner. Em 1904, Herwarth Walden criou o grupo Verein für die Kunst (“Sociedade pela Arte”), que organizava animados saraus, dos quais participava o escritor Alfred Döblin.

Em 1905, em Dresden, um grupo de artistas – Ernst Ludwig Kirchner, Fritz Bleyl, Erich Heckel e Karl Schmidt-Rottluff, entre outros – fundaram Die Brücke (“A Ponte”), partilhando o interesse pela arte primitiva – ligada à vida coletiva e ao trabalho anônimo – exposta no Museu Etnográfico daquela cidade: até 1913, quando o grupo se dissolveu, os artistas da Brücke não assinavam suas obras, repartindo estúdio e material de trabalho, vivendo a guilda anônima sonhada por Van Gogh. Suas obras chocavam pelas formas contrastantes, contornos simplificados, dissonância tonal e textura dinâmica. O manifesto do grupo conclamava a jovem geração a criar e viver com liberdade. Procurando perder-se numa força exterior transcendente, opunham às potências dominantes entidades abstratas com as quais se identificavam: a natureza, o infinito, o além. A procura do imaterial, do outro mundo que se escondia por trás das aparências, era sustentada por um sentimento religioso levado às raias do misticismo.

Desde 1906 morando num pequeno castelo que havia adquirido, Alfred Kubin criava composições a partir de faíscas luminosas, fragmentos de cristais e conchas, pedaços de carne e pele, folhas e outros objetos, em pinturas abstratas que materializavam suas lembranças e seus pesadelos. Repercutiam entre os jovens artistas as idéias bergsonianas que Wilhelm Worringer defendeu em Abstraktion und Einfühlung (1907), de que a subjetividade é a base da arte e a intuição o elemento fundamental da criação; seguindo esse caminho, eles suprimiam as formas instituídas para atingir “as coisas que estão por trás das coisas”, em efusões selvagens, demoníacas.

Em 1909, inaugurando o teatro expressionista, o pintor Oskar Kokoschka montou sua peça Mörder, Hoffnung der Frauen (“Assassino, Esperança das Mulheres”) no Wiener Kunstschau, provocando violento tumulto; era o primeiro texto teatral a distorcer radicalmente a linguagem tal como os artistas plásticos distorciam as formas e reinventavam as cores, com omissão de trechos de sentenças e embaralhamento arbitrário da ordem das palavras. Logo os novos poetas passaram a evocar imagens sinistras, entre gemidos lancinantes e exclamações sincopadas.

Ainda em 1909, Wassily Kandisnky, Franz Marc e Gabrielle Münter, dissidentes da Sezession, fundaram a Neue Künstlervereinigung.

Em 1910, o escritor Herwarth Walden lançou o periódico Der Sturm (“A Tempestade”), pretendendo “destruir a estrutura lógica da língua, que encobre a verdade das coisas para exprimir em gritos profundos a substância do Universo”. Em Berlim, Kurt Hiller fundou o Neopathetisches Kabarett (“Cabaré Neopatético”).

Em 1911, formou-se a Neue Sezession; contra a onda revolucionária, Carl Vinnen publicou o manifesto chauvista Protesto dos artistas alemães, assinado por 120 artistas, todos medíocres. Não se podia mais deter a expressão da nova sensibilidade: em Munique, a Neue Künstlervereinigung promoveu a primeira exposição do grupo Der Blaue Reiter (“O Cavaleiro Azul”), fundado por Kandinsky, Marc e Paul Klee, que com cores luminosas, planos dinâmicos e contornos suaves, tentavam recriar os pontos de vista da criança, do primitivo, do paranóico, do camponês, do animal. O escritor Kurt Hiller fundou Der Neue Club (“O Novo Clube”), e pela primeira vez aplicou o termo “expressionismo” associado à literatura; decretando a inferioridade dos estetas tradicionais, afirmou: “Nós somos expressionistas”.

Em 1912, Ludwig Rubiner, evocando o poder subversivo do poeta e sua capacidade de fazer explodir as estruturas, atacou a política em nome da Santa Ralé: “Não. Eu não estou sozinho. Embora isto não seja uma prova. Quem somos nós? Quem são os camaradas? Prostitutas, poetas, gigolôs, colecionadores de objetos perdidos, ladrões de ocasião, mandriões, amantes em meio a um abraço, loucos de Deus, bêbados, fumantes inveterados, desempregados, comilões, vagabundos, assaltantes, chantagistas, críticos, dorminhocos. Biltres. E, por instantes, todas as mulheres do mundo. Somos os rejeitados, os restolhos, os desprezados. Somos aqueles que são sem trabalho, inaptos ao trabalho, aqueles que recusam o trabalho. Não queremos trabalhar, porque é devagar demais. Somos imunes à doutrina do progresso; para nós, ele não existe. Acreditamos no milagre… acreditamos que nossos corpos, de repente, sejam devorados em chamas pelo espírito ardente… Procuramos raios de fogo na nossa memória, a vida toda… atropelamo-nos atrás de toda cor, queremos invadir espaços alheios, queremos penetrar em corpos estranhos… O que importa, agora, é o movimento. A intensidade e a vontade de catástrofe“.

Werner Haftmann aconselhou os artistas a se tornarem homens psiquicamente desequilibrados. Por toda parte testemunhavam-se arrebatamentos, derramamentos; em toda parte ressoavam “incontroláveis gritos de dor“.

Em 1913, formou-se a Freie Sezession como alternativa à agonia dos conservadores e as manifestações expressionistas começaram a multiplicar-se na Alemanha.

No inverno de 1916, Conrad Felixmüller organiza expressionistischen Soiréen (“saraus expressionistas”) em seu ateliê. O mundo das artes debate as novas tendências: futurismo, cubismo, abstracionismo e expressionismo, este já difamado como um “negroidismo primitivo”. O pacifismo é sua principal bandeira política. As idéias humanistas de Tolstói, reverberadas nos romances de Berta Lask e Leonhard Frank, artigos anti-guerra de Franz Pfemfert e Franz Mehering e panfletos do Spartakus lidos por Alfred Kurella causavam sensação. As idéias deviam ser transformadas em ações. Exigia-se que as idéias se transformassem em ações, que a poesia e a pintura se engajassem. Hermann Bahr populariza o movimento com seu livro Expressionismus. E já desencantados com o mundo, os expressionistas radicalizam sua busca de sentimentos universais, o sentido internacionalista, o sonho de uma Europa unida e fraterna e as idéias de vida comunitária, optando pela revolução socialista.

Em abril de 1917, um grupo da tendência revolucionária Liga Espartaquista do SPD, entre cujos líderes encontravam-se Haasse e Kautsky, fundaram o USPD (Unabhängige Sozialdemokrätische Partei Deutschlands – Partido Social Democrata Independente da Alemanha), criando organismos culturais, à maneira dos comitês de operários e soldados, agindo através de conferências, manifestos, panfletos e exposições. A rebelião dos filhos contra os pais eclodiu no drama expressionista Der Sohn (“O Filho”, 1914), de Walter Hasenclever, onde o Filho, por ter apenas preocupações metafísicas, fracassava nos exames que lhe prometiam um futuro; em punição, o Pai cortava-lhe a mesada, prendendo-o em casa até os 21 anos. A peça, contudo, não ia muito longe: a revolta do Filho impotente contra o Pai que detinha o poder conservava um fundo edipiano; levado pelo Amigo a um baile onde a juventude protestava contra o mundo dos adultos e ameaçava levar os pais aos tribunais, o Filho descobria o sexo com uma mulher, sentindo-se potente a ponto de ameaçar o Pai com um revólver. O drama só tirava sua força da apresentação do conflito.

Mas o expressionismo radicalizou-se rapidamente, e logo os artistas voltaram-se contra os mestres, o exército, o imperador, todas as autoridades estabelecidas, prestando solidariedade a todos os oprimidos. Lutavam para restaurar a plenitude do ser humano, propondo uma transformação substancial de valores. Muito desse impulso libertário e apocalíptico do expressionismo devia-se à ascendência judaica de boa parte de seus artistas e escritores. A vivência de uma condição minoritária levava-os a questionar os próprios fundamentos da sociedade. Segundo Heinrich Berl, “para o judaísmo, o expressionismo foi a hora de seu renascimento espiritual”.

O humanismo subversivo do expressionismo assustava os liberais, que não conseguiam desfazer-se de seu nacionalismo atávico: depois de encontrar-se com o expressionista Carl Sternheim, Romain Rolland registrou em seu Journal (“Diário”, 1915): “É ouvindo falar de tais pessoas que se dá conta de que os judeus são bem um perigo nacional: tanto os piores quanto os melhores; os piores, destruindo a pátria, os melhores querendo nela reconstruir uma cidade mais ampla”.

Se essa reação íntima vinha de um escritor que publicamente combatia o anti-semitismo, pode-se imaginar a virulência das reações às reivindicações do expressionismo por parte dos nacionalistas mais ferrenhos.

Em 1912, o filósofo francês Alain cantava a guerra como uma mística, uma epopéia, uma juventude e uma embriaguez, afirmando que são os justos, os sábios e os poetas que melhor a fazem. Decretada a Primeira Guerra Mundial, ele se alistou como voluntário, escolhendo o posto da artilharia pesada. Mesmo depois da guerra, Alain preservou um alto conceito da carnificina, declarando: “A guerra é a missa do homem… a celebração do humano no homem, já que os animais mais ferozes só atacam para preservar suas vidas“, razão pela qual “todos os homens dignos deste nome correm para a guerra ao primeiro chamado“.

Também em 1914, Thomas Mann afirmou ser a guerra “uma purificação da cultura”; recordando a posição de seu criador à época, Hans Castorp partia alegre e saltitante para o campo de batalha no final de A Montanha Mágica (“Der Zauberberg”, 1924), a conflagração assumindo os ares de uma libertação do círculo vicioso das partidas e retornos dos tuberculosos ao sanatório.

Também na Itália de 1915, o futurista Marinetti proclamava: “A guerra é a única higiene do mundo”, incitando o povo a participar da matança. Celebração do humano, purificação da cultura ou higiene do mundo, a guerra era saudada com entusiasmo pelos jovens nacionalistas, cantada em verso e prosa por poetas, intelectuais e artistas, vista pelos filósofos como uma necessária queima de energia masculina acumulada, energia cuja verdadeira natureza permanecia obscura, produzindo em alguns visionários expressionistas, como Else Lasker-Schüler, Albert Ehrenstein, Georg Trakl, Jakob von Hoddis, Alfred Lichtenstein ou Franz Werfel, visões transpassadas de horror.

O pacifismo não encontrava qualquer respaldo popular: apenas uma minoria de políticos – como Heinrich Lammasch, que se voltou contra a política guerreira do Partido Católico – posicionava-se contra a guerra. Com sua eclosão, a maioria dos alemães engajou-se voluntariamente. Também para muitos judeus essa foi a ocasião de provar sua fidelidade à pátria: cerca de 12.000 soldados judeus caíram pela Alemanha na Primeira Guerra. Mas será em vão que, mais tarde, combatendo o anti-semitismo dos partidos políticos, a Reichsbund jüdischer Frontsoldaten (“Liga dos Soldados Judeus do Front do Império”) lembrará essa estatística, a mais dramática prova de sua assimilação. Tal era a força do mito nacionalista do sangue que mesmo alguns intelectuais judeus deixaram-se impregnar pelo biologismo: nos encontros sionistas da Alemanha de 1910, Hugo Salus recitava uma Lied des Blutes (“Canção do Sangue”), e logo Martin Buber proporia aos sionistas buscar no sangue seu radicalismo, defendendo Jean-Richard Bloch igualmente o princípio biológico: “O sangue é a duração na comunidade dos vivos, dos mortos e dos não-nascidos. Ele forma a substância de nosso ser, a razão de nosso eu, cada inconcebível histórica (ou melhor biológica) memória, que nos ligou a toda cadeia de nossos antepassados, com seus caracteres e seus destinos, com suas ações e sofrimentos, com suas vivências, grandezas e misérias“.

Marcado pelos conceitos social-darwinistas da época, o discurso sionista reproduzia-o em pequena escala, substituindo a história pela biologia, a liberdade pelo destino, a educação pelo sangue, a razão pelo mito, o movimento da consciência pelos fluxos do inconsciente. O discurso libertário, pacifista e universalista da vanguarda engajada era considerado tanto pelos nacionalistas anti-semitas quanto, em menor escala, pelos sionistas radicais, uma provocação insuportável. E a provocação era mesmo tremenda. Quando o socialista Friedrich Adler assassinou o Ministro-presidente Stürgkh, em protesto contra a guerra, Karl Kraus, autor do drama expressionista Os Últimos Dias da Humanidade, festejou-o como herói e conseguiu impedir sua execução através de uma campanha desencadeada por sua revista, Die Fackel (“A Tocha”, 1899-1936, da qual ele foi, a partir de 1912, o único redator, escrevendo 922 números). O povo só perdeu o gosto pela guerra quando as notícias de derrota no front começaram a chegar e, com elas, a fome.

Em 1917, numa tentativa revisionista, Conrad Felixmüller e Felix Striemer criaram o grupo Der Neue Kreis (“O Novo Círculo”), renegando o pathos do movimento: “Descartemos os passos falsos das expressões psicológicas incompreensíveis”. Propunham, em seu lugar, um Synthetischen Kubismus (“cubismo sintético”): “As formas dos objetos permanecem fiéis no sentido material – quer dizer, sem sintomas de transformação, como sol, luz, ar; nunca são portadores de disposições da alma ou de sentimentos. Incessante significação, expressão do ser. A matéria madeira permanece madeira, pedra permanece pedra, cal – cal, cabelo – cabelo, etc. O sentimento somente quando ele for constante. Quando não permanecer apenas como recheio. Quando for existência“.

Outra ala do expressionismo abraçou o socialismo como proposta política definida. Considerando-se adolescentes apocalípticos em rebelião contra todos os absurdos, especialmente o da guerra, muitos expressionistas engajaram-se na militância política, distanciando-se dos futuristas, que idolatravam a a civilização técnica. Walter Gropius escreveu que o expressionismo era “uma revolta contra a máquina e tudo o que ela representa de repressivo”.

Como observou Luiz Carlos Daher, os expressionistas viam a metrópole como um inferno, a máquina como um Moloch e o robô como um sinistro Golem moderno; se para os futuristas o progresso técnico prometia uma vida liberta dos sentimentalismos passadistas, para os expressionistas o homem encontrava-se alienado num universo estranho e diabólico; a alegria e o vitalismo futuristas chocavam-se com a visão do caos percebida pelos expressionistas; e se para os futuristas a guerra era fonte de exaltação e prazer, os expressionistas legaram seu pacifismo aos sobreviventes da conflagração, depois de sofrê-la na carne: como tantos outros, os pintores Franz Marc, August Macke e Egon Schiele, os poetas Alfred Lichtenstein, Ernst Stadler e August Stramm morreram no front; ao dele retornar, o escritor Ernst Toller organizou com Kurt Eisner o movimento pacifista, e em seu drama Masse Mensch (“Homem-Massa”), a heroína preferia morrer antes que aceitar ser libertada da prisão através do assassínio de um dos guardas.

Com total desprezo pela política, Franz Werfel clamou por um levante mundial da amizade contra a devastação do mundo. Em seus poemas, René Schickele condenava a violência, quer viesse dos contra-revolucionários ou dos próprios revolucionários, que sempre acabavam traindo a verdadeira revolução humana.

Espírito prático, Wilhelm Michael propôs a formação de um Congresso Internacional de Intelectuais: cada país elegeria seus poetas, escritores, artistas, sábios e pacifistas e os encarregaria de representá-los. Estes formariam o primeiro Parlamento da Comunidade Universal, reunindo-se a cada ano num país diferente para conferenciar sobre as possibilidades de educar os povos no sentido da amizade e do combate ao ódio, destruindo, sob o fogo do espírito e do amor, o bloco de violência e injustiça que o mundo civilizado representava.

Kurt Hiller foi mais longe e sugeriu a formação de um Partido dos Intelectuais, com o objetivo de conquistar o Paraíso na Terra; seu programa incluía a supressão da guerra; reformas econômicas para garantir o mínimo vital a todo cidadão; ajuda aos desempregados e aos criadores; liberação sexual com o reconhecimento da homossexualidade; racionalização da procriação; abolição da pena de morte; proteção do indivíduo diante do crescente poderio da psiquiatria; transformação das escolas de ensino em escolas de pensar; combate contra as Igrejas e os Parlamentos; estabelecimento de uma aristocracia do espírito; liberdade total de expressão.

Os expressionistas organizaram-se para a revolução fundando, em novembro de 1918, o Novembergruppe (“Grupo de Novembro”), do qual participavam Walter Gropius, Bruno Taut, Heinrich Campendonk e Rudolf Belling, instituindo um Conselho de Trabalho para a Arte. Em dezembro, os espartaquistas e outros grupos revolucionários fudaram o Partido Comunista Alemão, reivindicando todo o poder para os comitês de operários e soldados; mas, após violenta repressão e assassinato dos líderes Karl Liebkenecht e Rosa Luxemburgo por oficiais de direita, uma Assembléia Constituinte, instalada em 19 de janeiro de 1919, elegeu uma maioria conservadora de social-democratas para governar a República de Weimar.

Reagindo à contra-revolução, Hugo Zehder fundou o grupo Dresdner Sezession 1919 e a revista Neue Blätter für Kunst und Dichtung (“Novas Folhas para a Arte e a Poesia”), denunciando a tentativa de apropriação burguesa das formas expressionistas em inócuas “preciosidades engraçadinhas”, propondo a retomada do caráter revolucionário e profético do movimento: “Inicialmente cantaremos algumas curtas e claras ‘canções para sacudir’. Pois queremos sempre ser muito engraçados e expulsar com o riso aqueles que nos cercam com suas sombrias astúcias: mesmo andando na ponta dos pés, não nos alcançarão“.

E protestando contra o esmagamento da revolução, o encenador Leopold Jessner criou uma encenação tão subversiva de Wilhelm-Tell (“Guilherme Tell”, 1919) que os atores quase não conseguiram levá-la até o fim. Na noite de estréia, o tumulto reinava na sala, o público dividido entre os esquerdistas que aplaudiam e os direitistas que gritavam “Judeus vigaristas!”. Kortner entrava no meio da peça, no papel do sádico Geßler. Mas antes disso, Jessner aproximou-se dele e indicou que, diante daquele tumulto, nem precisava entrar. Mas seu assistente, Albert Florath, aproximou-se, bêbado, e disse: “Vista-se, continuamos a representar. Sob qualquer condição.” Os protestos abafaram suas palavras. Alguns atores abandonaram o palco, querendo desistir. Florath os caçava e os obrigava a voltar. Quando a gritaria cresceu, Jessner pediu cortina, a qual desceu até a metade. Florath insistiu: “Deixe pelo menos Kortner enfrentá-los!”

O crítico de teatro Siegfried Jacobson debatia-se furiosamente com a galeria. Espectadores exaltavam-se. Julius Bab pulava da poltrona e gritava. Em meio ao caos, Florath fez subitamente a cortina erguer-se. O golpe produziu um inesperado silêncio. A representação continuou. Mas quando Kortner, vestido e maquiado de vermelho, subiu ao palco, o barulho recomeçou. Arrasado, Jessner previu o fim. Mas o ator Albert Bassermann fez uma cena tão comovente que levou o público às lágrimas. Atrás do palco, Florath dançava de alegria. Logo a tormenta retornou, para atingir o clímax. Esgotado, Bassermann abandonou o palco. Mas teve que voltar para contracenar com Kortner. Com suas vozes possantes, os dois monstros sagrados conseguiram aplacar a gritaria. Só a intervenção da polícia permitiu o prosseguimento da peça. A horda anti-semita foi evacuada e Kortner e Bassermann puderam ser aclamados.

A revolta expressionista não se limitava, contudo, às agitações sociais, atingindo dimensões metafísicas, e até cósmicas. O manifesto de 1919 de Lothar Schreyer sintetizou a radicalização final: “Uma mulher compreendeu que para nada lhe serve usar seus encantos e a isso renuncia. Um outro sabe que a Igreja não faz de ninguém um cristão e recusa batizar seu filho. Um outro vê os malefícios da imprensa a soldo da sociedade e se abstém de lê-la. Tais são os primeiros passos do homem que se afasta do mundo antigo. Vêm em seguida os atos decisivos pelos quais ele o rejeita, o aniquila e o esquece em sua pessoa. Afastar-se radicalmente, interiormente e exteriormente, do mundo antigo e de suas instituições – sociedade, família, Estado, Igreja, arte, ciência, moral e cultura – é a condição da liberdade no mundo novo. A hora das decisões chegou para todos. Todos aqueles que compreenderam que o mundo antigo é um Calvário devem tomar suas responsabilidades. Somos de novo responsáveis pelo destino do mundo: da morte do antigo e do nascimento do novo. É agora que tudo se decide. É agora que nasce o Homem Novo“.

Depois de passar das artes plásticas e da arquitetura para a literatura e o teatro, o expressionismo agora estava maduro para chegar ao cinema, e sua primeira realização foi O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Dr. Caligari”, 1919), de Robert Wiene, que marcou época, seguido de Da Aurora à Meia-noite (“Von Morgens bis Mitternacht, 1920), de Karl Heinz Martin, que nem chegou a ser lançado. Toda uma nova linguagem cinematográfica será desenvolvida a partir das premissas perturbadoras do caligarismo. A nova indústria de entretenimento, que empresários e artistas em boa parte de origem judaica edificaram na Alemanha, iria agora transformar-se com a infusão de novas formas e valores, transformando o cinema numa verdadeira tribuna de propaganda da arte moderna, e sobretudo do recente legado das artes plásticas e da arquitetura, da literatura e do teatro expressionistas. Aqui o expressionismo encontrou um terreno fértil, ainda aberto a todo tipo de experimentação. Aí os expressionistas puderam criar um mundo tridimensional sustentado apenas por sua própria fantasia, realizando, ainda que dentro dos limites estreitos daquela arte de massa, a maior de todas as suas revoluções estéticas.

De fato, a produção da imagem expressionista em movimento constituirá a idade de ouro do cinema mudo alemão: o triunfo da fantasia em plena crise econômica, quando as massas arruinadas pela desvalorização da moeda não pensavam senão em consumo e diversão. Com a implantação do Plano Dawes, que estabilizou momentaneamente a economia corroída, diminuindo o desemprego e aumentando a produção e os salários, o que favoreceu os partidos de centro e de direita, a indústria do cinema retornou à velha estética do realismo.

Gustav Hartlaub, diretor do Museu de Manheim, criou, em 1924, o termo “Nova Objetividade”, para designar essa nova tendência da arte alemã. Logo o realismo triunfará no cinema com a introdução do som e a adoção oficial de estéticas realistas pelos regimes totalitários, que irrompem na década de 30 desterrando as vanguardas modernas na União Soviética e na Alemanha, difamadas como “protofascistas” pelos comunistas e como “degeneradas” pelos nazistas. Sob a influência de Georg Lukàcs, os primeiros historiadores da arte moderna tenderão a ignorar o expressionismo, a despeito de sua grande produção literária e artística: Paul Raabe registrará 2.300 títulos de livros expressionistas de 347 autores, em todos os gêneros, além de 37.000 colaborações literárias e gráficas em 110 periódicos.

Milhares de obras plásticas e projetos arquitetônicos e dezenas de filmes completam esse legado imenso e ainda pouco conhecido: o continente expressionista ainda espera ser redescoberto e devidamente valorizado.

Fontes:
Texto extraído de: Luiz Nazário, A Revolta Expressionista, in As Sombras Móveis. Belo Horizonte: Editora da UFMG/midia@rte, 1999. Revisto e ampliado especialmente para http://www.expressionismo.pro.br/express02.html . Belo Horizonte, 2001.
Pintura = http:// http://www.colegiosaofrancisco.com.br/

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XXII Jogos Florais de Ribeirão Preto e X Jogos Florais Estudantis de Ribeirão Preto

Promoção:
Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto
Secretaria Municipal da Cultura
Instituto do Livro de Ribeirão Preto
Secretaria Municipal da Educação
União Brasileira de Trovadores – UBT – seção de Ribeirão Preto

REGULAMENTO:

Os XXII Jogos Florais de Ribeirão Preto e os X Jogos Florais Estudantis de Ribeirão Preto, promovidos pelas entidades acima, integram as festividades da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto.

São temas nos concursos de trovas:

Nacional/ internacional;
CIGANO (Lírico)
EREMITA (Humorístico
)

Municipal (somente aos trovadores de Ribeirão Preto)
LINHA -( Lirico ou filosófico)
CRAVO – (Humorístico)

Estudantil para alunos de 5a a 8a e ensino médio de todas as redes de ensino
LÁPIS – (Lírico ou filosófico)
BORRACHA ( Humorístico)

Lembrete:

Considera-se Trova literária para concurso “a composição poética de quatro versos, setissilabicos, com rimas ABAB e tendo sentido completo”, conforme o exemplo:
E a trova em seu natural
mordaz, alegre ou dolente,
Iindo trecho musical
de quatro notas somente.”
Lilinha Fernandes

Os trovadores (autores de trovas) podem remeter ate três (3) trovas, inéditas, escritas na face de envelopes 8/11, contendo no interior a identificação completa. Os estudantes devem colocar 0 nome e e-mail de sua unidade escolar.

As trovas dos concursos nacional/internacional deverão ser remetidas para:
Trovador Nilton Manoel
Caixa Postal 448 -centro
Ribeirão Preto/SP CEP 14001-970

As trovas do concurso municipal ( somente poderão concorrer trovadores ribeirao-pretanos) deverão ser enviadas para:
Trovadora Carmen Pio
Rua Uruguai, 91 – conjunto 523 – Centro
Porto Alegre – RS CEP 90010-140

As trovas dos IX Jogos Florais Estudantis de Ribeirão Preto deverão ser enviadas para:
Gislaine Canales
Rua 2700- N° 71 – Ap. 302-Edifício Acácias-Bloco B-Centro
Balneário Camboriú- SC CEP: 88.330-374

A recepção das trovas encerrar-se-a em 3 de maio (Dia Municipal da Poesia) e a Comissão divulgará a Iistagem de vencedores ate 22 de maio de 2009. As festividades acontecerão durante a programação própria dentro das atividades da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, em 19,20 E 21. junho.

A premiação será:

» 5 vencedores (troféu e diploma)
» 5 menções honrosas (medalha e diploma)
» 5 menções especiais (medalha e diploma)

Será editado folder ou livro com todas as trovas premiadas.

Os concorrentes não premiados poderão acompanhar a finalização literária no portal http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/ que deixará 0 livro em formato de leitura e impressão. O mesmo material será editado na coluna trovador no portal http://www.movimentodasartes.com.br/

Os primeiros cinco vencedores em cada tema do concurso nacional terão direito a estada paga (pernoite e refeições) em hotel, como convidados dos organizadores nos três dias de festividades. Todos os concorrentes estão convidados a participar das festividades. A união é a vida do Movimento Brasileiro de Trovadores.

As trovas já publicadas, plagiadas, etc. serão excluídas, reservando-se a banca julgadora o direito de não completar as premiações previstas se as trovas não estiverem de acordo com 0 previsto. A decisão da comissão literária será irrecorrível.

Os casas omissos serão resolvidos pela Comissão Organizadora e Realizadora e as trovas não premiadas, não serão devolvidas, serão queimadas.

Ribeirão Preto, fevereiro de 2.009
Portaria 274 (10-2-2008) DIARI0 OFICIAL DE RIBEIRÃO PRETO -13-2-p. 3

Fonte:
E-mail de A. A. De Assis
Fotomontagem = José Feldman

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Carlos Drummond de Andrade (Certas Palavras)

Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.
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Oswaldo Montenegro (Metade)

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio…
Que a música que eu ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade…
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo…
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão…
Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei…
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço…
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para faze-la florescer;
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção…
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade… também.
———–

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Graciliano Ramos (Baleia)

A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de roscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o sacatrapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

– Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Fia também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

– Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isso era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:

– Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.

Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão.

Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto, e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

Fontes:
MORICONI, Ítalo (seleção). Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Objetiva, 2000.
Imagem = http://embuscadeumdononobrasil.blogspot.com

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Murilo Rubião (Teleco, o coelhinho)

“Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade.”
(Provérbios, XXX, 18 e 19)

– Moço, me dá um cigarro?

A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.

O importuno pedinte insistia:

– Moço, oh! Moço! Moço me dá um cigarro?

Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:

Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.

– Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor; saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.

Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:

– Você não dá é porque não tem, não é, moço?

O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato somente o coelhinho falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.

Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho acrescentei.

A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções:

Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho? Não esperou pela resposta:

– Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.

Dizendo isto, transformou-se numa girafa.

– A noite – prosseguiu – serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?

Respondi-lhe que não e fomos morar juntos.

Chamava-se Teleco.

Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou inválidos às suas casas.

Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos e ameaçavam prendê-los.

Apenas uma vez tive medo de que as travessuras do meu irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações. Estava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado, quando Teleco, movido por imprudente malícia, transformou-se repentinamente em porco-do-mato. A mudança e o retorno ao primitivo estado foram bastante rápidos para que o homem tivesse tempo de gritar. Mal abrira a boca, horrorizado, novamente tinha diante de si um pacifico coelho:

O senhor viu o que eu vi?

Respondi, forçando uma cara inocente, que nada vira de anormal.

O homem olhou-me desconfiado, alisou a barba e, sem se despedir, ganhou a porta da rua.

A mim também me pregava peças. Encontrava-se vazia a casa, já sabia que ele andava escondido em algum canto, dissimulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo sob a forma de pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas minhas costas. Quando começava a me impacientar e pedia-lhe que parasse com a brincadeira, não raro levava tremendo susto. Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em disparada, me transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prometia-lhe uma boa surra. Simulando arrependimento, Teleco dirigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos as pazes.

No mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave de todas as espécies inteiramente desconhecidas ou de raça já extinta.

Não existe pássaro assim!

Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos.

O primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu um ano após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha cunhada Emi, com quem discutira asperamente sobre negócios de família. Vinha mal-humorado e a cena que deparei ao abrir a porta da entrada, agravou minha irritação. De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.

O que deseja a senhora com esse horrendo animal? – perguntei, aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.

– Eu sou o Teleco – antecipou-se, dando uma risadinha.

Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho.

Neguei-me a aceitar como verdadeira a afirmação, pois Teleco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se vestido teria o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.

Ante a minha incredulidade, transformou-se numa perereca. Saltou por cima dos móveis, pulou no meu colo. Lancei-a longe, cheio de asco.

Retomando a forma de canguru, inquiriu-me, com um ar extremamente grave:

– Basta esta prova?

– Basta. E daí? O que você quer?

-De hoje em diante serei apenas homem.

-Homem? – indaguei atônito. Não resisti ao ridículo da situação e dei uma gargalhada:

– E isso? Apontei para a mulher. É uma lagartixa ou um filhote de salamandra?

Ela me olhou com raiva. Quis retrucar, porém ele atalhou:

– É Tereza. Veio morar conosco. Não é linda?

Sem dúvida, linda. Durante a noite, na qual me faltou o sono, meus pensamentos giravam em torno dela e da cretinice de Teleco em afirmar-se homem.

Levantei-me de madrugada e me dirigi à sala, na expectativa de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um dos gracejos do meu companheiro.

Enganava-me. Deitado ao lado da moça, no tapete do assoalho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos braços:

– Vamos, Teleco, chega de trapaça.

Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, sorriu:

-Teleco?! Meu nome é Barbosa, Antônio Barbosa, não é, Tereza?

Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo a cabeça. Explodi, encolerizado:

– Se é Barbosa, rua! E não me ponha mais os pés aqui, filho de um rato!

Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e, ajoelhado, na minha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego.

Embora encarasse com ceticismo a possibilidade de empregar-se um canguru, seu pranto me demoveu da decisão anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo olhar súplice de Tereza que, apreensiva, acompanhava o nosso diálogo.

Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho. Utilizava-se do meu aparelho de barbear, da minha escova de dente e pouco serviu comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava do abuso, desculpava-se, alegando distração.

Também a sua figura tosca me repugnava. A pele era gordurosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não media esforços para me agradar, contando-me anedotas sem graça, exagerando nos elogios à minha pessoa.

Por outro lado, custava tolerar suas mentiras e, às refeições, a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca de comida com auxílio das mãos.

Talvez por ter-me abandonado aos encantos de Tereza, ou para não desagradá-la, o certo é que aceitava, sem protesto, a presença incômoda de Barbosa.

Se afirmava ser tolice de Teleco querer nos impor sua falsa condição humana, ela me respondia com uma convicção desconcertante:

– Ele se chama Barbosa e é um homem.

O canguru percebeu o meu interesse pela sua companheira e, confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tornou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por vestir minhas roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair dinheiro do meu bolso.

Em diversas ocasiões, apelei para a sua frouxa sensibilidade, pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.

Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala.

– Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros animais.

Nesse meio tempo, meu amor por Tereza oscilava por entre pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser correspondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.

Fria, sem rodeios, ela encerrou o assunto:

– A sua proposta é menos generosa do que você imagina. Ele vale muito mais.

As palavras usadas para recusar-me convenceram-me de que ela pensava explorar de modo suspeito às habilidades de Teleco.

Frustrada a tentativa do noivado, não podia vê-los juntos e íntimos, sem assumir uma atitude agressiva.

O canguru notou a mudança no meu comportamento e evitava os lugares onde me pudesse encontrar.

Uma tarde, voltando do trabalho, minha atenção foi alertada pelo som ensurdecedor da eletrola, ligada com todo o volume. Logo ao abrir a porta, senti o sangue afluir-me à cabeça: Tereza e Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.

Indignado, separei-os. Agarrei o canguru pela gola e, sacudindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:

-É tu, não é um animal?

-Não, sou um homem! – E soluçava, esperneando, morto de medo pela fúria que via nos meus olhos.

A Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia:

– Não sou um homem, querida? Fala com ele:

-Sim, amor, você é um homem.

Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei Barbosa ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os.

Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu:

– Farei de Barbosa um homem importante, seu porcaria!

Foi a última vez que os vi. Tive, mais tarde, vagas notícias de um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade. A falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidência de nomes.

A minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e voltara o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as ocupava com a coleção.

Estava, uma noite, precisamente colando exemplares raros, recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um cachorro. Refeito do susto, fiz menção de correr o animal. Todavia não cheguei a enxotá-lo.

– Sou o Teleco, seu amigo, afirmou, com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.

-E ela? Perguntei com simulada displicência.

-Tereza… sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um pavão.

Havia muitas cores… O circo… Ela estava linda… Foi horrível… Prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel.

Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar:

-O uniforme… muito branco… cinco cordas… amanhã serei homem… – as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais.

Por um momento, ficou a tossir Uma tosse nervosa. Fraca, a princípio, ela avultava com as mutações dele em bichos maiores, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele não conseguia controlar-se.

Debalde tentava exprimir-se. Os períodos saltavam curtos e confusos.

– Pare com isso e fale mais calmo – insistia eu, impaciente com as suas contínuas transformações.

-Não posso, tartamudeava, sob a pele de um lagarto.

Alguns dias transcorridos perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo.

Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.

Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, triscava.

Por fim, já menos intranqüilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava.

Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.

****

No conto “Teleco, o Coelhinho”, a busca de humanidade esconde o desejo de superar a indiferença e o desprezo dos homens. A narrativa em primeira pessoa nos apresenta o ponto de vista do homem que recebe o coelhinho em sua casa. Encantado pela meiguice de Teleco, o narrador descobre que “a mania de transformar-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar o próximo.” (p. 22).
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Fonte

RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias e outros contos. Editora Companhia dos Livros, 1993.

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