– Sandro: – Está bem, eu prometo tudo ao “papá”…
– Fernando: – Se não me obedeceres, esfolo-te vivo. Sabes ou imaginas o que é ser esfolado vivo?
– Sandro: – Se sei, é a lei dos “Lobos Maus”!
– Fernando: – Pois, se te moveres desse maple até eu chegar, será aplicada a lei daqui, ou seja a lei do Oeste!
Novamente, em casa da sua amiga Isabel, Margarida, preparava-se, pela terceira vez para se deitar.
Toda a casa se encontrava em desalinho, pois, com a precipitação de levar o Sandrito a São Pedro de Moel, Teresa não fizera nenhuma arrumação à casa.
Já se encontrava na cama, quando a campainha da porta tocou repetidamente. Levantou-se e…
– Margarida: – Quem é?… Quem está a bater a estas horas à porta?…
– Fernando: – Sou eu, o Fernando ou o Josué; já nem sei quem sou. Abra por favor…
– Margarida: – Mas então não acompanhou o avô a Trás-os-Montes?
– Fernando: – Pois não. No regresso a São Pedro de Moel, tive um furo num pneu, o que me atrasou um pouco. Quando cheguei ao hotel, já o avô tinha-se ido embora…
– Margarida: – Ai que pena, fico bastante preocupada…
– Fernando: – Mas o pior, foi o avô ter levado aquele “terrorista”do Sandrito (ou Paulo…) ou lá o que é…
– Margarida: – Aquele miúdo só nos tem dado problemas. E agora, ele é bem capaz de contar tudo ao avô Guido…
– Fernando: – Por esse motivo vim cá pedir-lhe que me acompanhe a Trás-os-Montes, a casa do avô Guido…
– Margarida: – Mas…eu não o posso acompanhar. Estou aqui em Leiria, em missão profissional, por isso não posso ausentar-me… o telefone está a tocar, pode ser o Augusto. O senhor Josué não se importar, atenda; o telefone que está aí no corredor…
– Fernando: – Com todo o prazer… …Sim, estou…É sim, é esse número… a Margarida?…Está, está, mas está a descansar … Digo-lhe, sim… Estou a compreender…O casal de turistas americanos, anularam a viagem…muito bem, muito bem…dar-lhe-ei o recado. Boa noite…
– Fernando: – O telefonema era para mim?
– Fernando: – Era sim. Até que enfim que consegui saber o seu nome: Margarida! É um nome bonito, como aliás a dona…
– Margarida: – E de quem era o telefonema?
– Fernando: – Era da agência “Turismo ao Alcance de Todos”, para a avisar que o casal de turistas americanos, anulou a viagem à última hora.
– Margarida: – Sendo assim, tenho de regressar imediatamente a Lisboa…
– Fernando: – Impossível!… Tem de me acompanhar a casa do avô Guido… Sabe, estou muito preocupado com o que lhe teria dito aquele endiabrado miúdo. Por favor, não me deixe sozinho nesta altura!
– Margarida: – Mas tem de compreender, se o acompanhar, fico em risco de perder o meu emprego…
– Fernando: – Há muito tempo que preciso de uma secretária e, a Margarida vem mesmo a propósito!
– Margarida: – Eu, sua secretária?
– Fernando: – A Margarida sabe escrever música?
– Margarida: – Infelizmente não sei…
– Fernando: – Que pena! mas…mas sabe escrever no computador?…
– Margarida: – Não percebo mesmo nada…
– Fernando: – Línguas?…
– Margarida: – Só sei dizer em francês, Bonjour …E em inglês, Yes…
– Fernando: – Nada mais?!
– Margarida: – Nada…mesmo nada!
– Fernando: – Pelo menos, terá boa letra?
– Margarida: – É detestável! Até a minha assinatura é ilegível!
– Fernando: – Estupendo! Você tem todas as condições desejáveis. É justamente aquilo que necessito, uma secretária que não saiba fazer nada. Enfastiam-me as secretárias eficientes! Não acha que são insuportáveis?
– Margarida: – Sim, concordo… Bem tentei que não me contrata-se como sua secretária, mas não tive êxito!
– Fernando: – Enquanto a Margarida acaba de se arranjar, vou meter gasolina no carro e, ver a pressão dos pneus e o óleo. Durante a viagem, continuaremos a falar.
– Margarida: – Então até já. Não se esqueça de fechar a porta…
– Fernando: – Margarida, somos amigos, não é verdade?…
– Margarida: – Claro que sim!
Já amanhecia, quando iniciaram a viagem rumo a Trás-os-Montes e, quando chegaram a casa do avô Guido, o Sol já tinha nascido.
Josué Teixeira, parou o carro diante do grande portão e, fez ressoar por duas vezes a volumosa aldraba de bronze, a qual produziu um atroador ruído, ali naquele vetusto casarão, a que não faltava certa beleza.
– Augusto: – Ah, é o menino Josué, estava à sua espera. O senhor Guido, ainda está deitado e, parece que está calmo.
– Fernando: – Augusto, quem vos meteu na cabeça, trazerem o Sandro?
– Augusto: – O senhor Guido não quis esperar. Apenas os senhores saíram dos seus aposentos, teimou em partir, dizendo que não queria incomodá-lo, obrigando a acompanhá-lo. Quando descemos para o hall, encontra-mos o rapaz que se aproximou de nós. O senhor Guido convidou-o a vir com ele, e ele aceitou logo o convite. Resultado, tivemos mesmo que trazer o garoto.
– Fernando: – Mas esta embrulhada nunca mais acaba?…
– Augusto: – Receio bem que não, senhor Josué. Quer subir?… estão os dois no quarto do avô, a tomar o pequeno almoço.
Subiu os degraus em dois pulos, acariciando, ao passar, as faces da velha Elisa, a mulher do Augusto, que lhe dava as boas-vindas.
Ao entrar no quarto do ancião, acalmou momentaneamente o seu nervosismo. Ele estava sentado na sua esplêndida e tão chorada cama de colunas, de mogno escuro. Com a cabeça recostada nas suas almofadas de penas, o Avôzinho tomava café com leite e torradas. Numa mesita instalada junto do leito, Sandrito fazia o mesmo.
O rapazito ostentava no lábio superior uns magníficos bigodes de café com leite, que lhe davam um aspecto cómico.
– Fernando: – Bom dia e bom apetite!
– Sandro: – Olá,”papazinho“!… Bom dia, não quer café com leite?
– Avô Guido: – Vocês são muito teimosos, mas confesso que estava à vossa espera, pois, com certeza que não iam abandonar o vosso querido filhinho, estou certo?
– Sandro: – “Mamãzinha“, dá-me mais café com leite e mais torradas, está bem?
– Margarida: – Não comas muito, olha que ficas com dores de barriga…
– Sandro: – Já não tenho dores de barriga!
– Augusto: – Com a precipitação da partida, o senhor Guido deixou os medicamentos, no Hotel, em São Pedro de Moel.
– Avô Guido: – Vocês têm de me darem razão, confio eu num velho tonto como o Augusto, e depois acontece-me destas. Ele, quer ver se eu morro primeiro do que ele, mas não vai ter esse prazer!
– Fernando: – Não diga isso avô, pois, o Augusto é um verdadeiro amigo que tu tens. Não é um criado, é um amigo!
– Avô Guido: – Lérias, lérias…Ele quer é que eu morra primeiro do que ele.
– Fernando: – Não se preocupe com os medicamentos, pois, tenho que ir hoje a Bragança assinar um contrato e trago-lhe os medicamentos.
– Augusto: – Parece-me que esses medicamentos, só se encontram em Lisboa ou no Porto…
– Fernando: – Talvez não seja assim como dizes, Augusto. Avô não se preocupe, pois, hoje à noite, terá cá os medicamentos.
– Avô Guido: – Podes ir Fernando, mas vais sozinho, pois, a tua esposa e o teu filho, ficam aqui ao pé de mim.
– Fernando: – Mas…mas avô, a Márcia…
– Margarida: – Podes ir, querido “maridinho“, pois, eu ficarei com o nosso querido “filhinho“. Depois, regressaremos ambos a Leiria. Como sabes, o Sandrito, anda na escola e não quer perder o ano…
– Sandro: – O que tem, se eu perder mais um ano?… O meu pai diz que eu sou estúpido por feitio e natureza!
– Avô Guido: – Oh Fernando, tu dizes isso ao teu filho?…
– Fernando: – Sim… Sim, eu digo-lhe isso… mas é só às vezes e por brincadeira. Todos nós sabemos que o Sandrito é muito inteligente, e muito aplicado na escola.
– Margarida: – É um dos melhores alunos da escola onde anda.
– Avô Guido: – Tu, Fernando, tens que ter muito cuidado com essas considerações que dizes ao garoto, pois, não podes nem deves desmoralizar o teu filho. O vosso filho, não é, querida Márcia.
– Margarida: – Sim, sim avô, eu, até já tenho chamado a atenção do Fernando, para certos termos que ele usa para com o menino.
– Avô Guido: – E, não se esqueçam que ele é o único filho que vos resta, pois, os outros morreram todos…
– Margarida: – Morreram todos?!
– Fernando: – Pois… os outros morreram todos. Até parece que não te lembras dessas tragédias, Márcia?
– Margarida: – Eu lembrar-me?… Ah, pois…Pois morreram todos…
– Fernando: – Coitadinhos, ficamos sempre muito constrangidos quando pensamos neles. Não chores Márcia, senão também eu começarei a chorar…
– Avô Guido: – E, por cada funeral, paguei cerca de mil euros, fora as flores e os arranjos das campas.
– Margarida: – Pois…pois foi assim mesmo. Mas não quero recordar esses momentos dramáticos.
– Fernando: – Nós temos sofrido muito, Avôzinho… foram desgostos em cima de desgostos…
– Sandro: – Mas eu já tive irmãos?! Não me lembro.
– Margarida: – É que nós, eu e o Fernando, procurámos sempre esconder estes tristes factos do Sandrito…
– Fernando: – Bem, como se costuma dizer “barco parado, não segue viagem…”, e eu ainda tenho que ir a Bragança e, depois possivelmente ao Porto.
– Sandro: – Posso ir contigo,”papá”?
– Margarida: – Não,”filhinho“, tu ficas aqui ao pé da “mamã”, pois, o “papá” tem muitas voltas a dar e muito trabalho a fazer.
– Sandro: – Os “papás“são todos a mesma coisa!
– Avô Guido: – Sandrito, vai brincar para o pátio, mas com muito juízo…
– Fernando: – E eu, vou indo. Adeus minha querida “mulherzinha”!
– Fernando: – Adeus,”amor” e boa viagem. Encontrar-nos-emos em Leiria. Um beijo!
Já era noite quando Josué Teixeira regressou a casa do avô, naquela pequena aldeia transmontana. Tocou a albarda de bronze da porta e, o velho criado Augusto, veio abrir-lhe. Ao entrar no grande salão do vetusto casarão, teve uma grande surpresa…
– Avô Guido: – Olha Márcia, o teu querido esposo já chegou!
– Fernando: – Mas, Márcia, ainda não regressou a Leiria?!
– Avô Gildo: – Desculpa, filho, mas eu é que tive a culpa, pois, consegui convencer a tua esposa a ficar. Não te zangues comigo. Também seria inútil regressar, pois, a Márcia está aqui muito a seu gosto, não é verdade, filhinha?
– Margarida: – Assim é, avô…
– Avô Guido: – E até mais, prometeu-me que ficará alguns dias aqui, junto de mim…
– Margarida: – Fizeste boa viagem,”querido”Fernando? Espero que não estejas muito zangado comigo, por me encontrar ainda aqui…
– Fernando: – Como sabes, ou deves de calcular, até estou muito contente por te encontrar aqui, junto ao avô.
– Margarida: – Sabes,”amor”, necessitava de um pouco de repouso para os nervos e, esta tranquilidade aldeã, far-me-á bem. Amanhã, mando vir roupas, pois, não posso andar muito tempo com esta. Embora este trajo azul, me fique bem, não é verdade, querido “maridinho”?
– Fernando: – Qualquer coisa, te fica maravilhosamente bem, meu “amor”!
– Margarida: – No outro dia, disseste-me que te enlouqueço, quando visto este azul. Claro que dizes sempre coisas parecidas, qual for o vestido e a cor que envergue… olha, “querido”, queres um cafezinho?…faz tanto frio lá fora na estrada, que o café, decerto, saber-te-á bem…
– Avô Guido: – Estou a gostar muito de os ouvir. Fico muito contente que sejas carinhoso com a tua mulher, não posso com os matrimônios que se tratam friamente sem calor e sem amor.
– Margarida – O Fernando sempre foi muito carinhoso. Está sempre a chamar-me diminutivos ternos, como: queridinha, amorzinho, fofinha, etc.…
– Fernando: – Bem!… Creio que o avô deve descansar. Os seus medicamentos estão aqui. Agora, é conveniente ir para a cama descansar.
– Avô Guido: – Eu vou já, vou já. O Sandro dormirá aqui ao lado, e a Elisa já preparou o quarto lá de baixo, para vocês e espero que fiquem lá muito bem. A cama é muito boa.
– Fernando: – Muito bem, avô, ficaremos lá, perfeitamente e quentinhos…
– Avô Guido: – Escuta lá, Fernando, prometes que ficarão cá uns dias?…
– Fernando: – Não sei… Não sei se os meus afazeres profissionais o permitirão…
– Avô Guido: – Se te for impossível pelo menos, deixa-me a Márcia e o Sandrito. Tu podes vir de vez em quando, ver-nos…
– Fernando: – Oh avô, amanhã decidiremos…Agora, dorme tranquilo, pois, bem precisas de descansar.
– Margarida: – Mas. Aonde está o Sandrito?… Já há um bom par de horas que não lhe ponho os olhos em cima…
– Avô Guido: – Não te preocupes, minha filha, pois vamos já saber… Augusto…oh Augusto, onde estás?
– Augusto: – Estou aqui, senhor Guido… Quer os seus medicamentos?
– Avô Guido: – Não, não quero ainda os medicamentos, mas sim saber, onde se encontra o pequeno Sandrito?
– Augusto: – Deve de estar… deve de estar…ou está…
– Avô Guido: – Que mistério é esse? Onde está o rapaz?
-Augusto: – O rapaz estava a brincar no pátio, e depois…o senhor Guido sabe daquela gaiola… a gaiola dos pássaros…
– Avô Guido: – Claro que sei, a gaiola que tem dezenas de pássaros…
– Augusto: -Pois…que tinha dezena de pássaros, mas, o Sandrito abriu-lhes a porta da gaiola e eles fugiram…
– Fernando: – Ai, aquele diabo de rapaz!…
– Avô Guido: – E Augusto, onde está agora o Sandrito?
– Augusto: – Bem, como os pássaros fugiram todos, como já lhe disse…fugiram todos… eu, meti o Sandrito dentro da gaiola!
– Avô Guido: – Como assim, tu fizeste isso?!
– Augusto: – Se abrir aquela janela, ouvirá decerto, o berreiro que ele está lá a fazer dentro da gaiola.
– Avô Guido: – Olha lá, mas porque é que tu meteste o rapaz dentro da gaiola?… Não me digas que estás à espera que ele cante. Traz-mo já cá imediatamente.
– Fernando: – Mas o Avôzinho, precisa de se deitar, para descansar…
– Avô Guido: – Não tentem disfarçar e aliviar a vossa culpa, pois, vocês os dois é que deviam de estar dentro daquela gaiola. Imaginem bem a qualidade de educação que têm dado ao vosso filho! Vão, vão-se deitar, que eu próprio falarei com o miúdo. Vão indo, vão indo…
– Margarida: – Então, até amanhã, avô. Com sua licença vou me vou retirar para o meu quarto…
– Fernando: – Margarida, agora que estamos sós, posso saber porque motivo ainda continua nesta casa, e não regressou a Leiria?
– Margarida: – Se me fala nesse tom, não lhe responderei. Procure ser um pouco mais simpático, o que nem lhe deve ser muito difícil…
– Fernando: – Perdoe-me, Margarida, mas confesso que estou um pouco desorientado. Ocorreram tantas coisas ao mesmo tempo, e este miúdo dá-me cabo dos nervos. Sinto-me responsável por tal escolha, melhor, por toda esta situação.
– Margarida: – Eu só fiquei cá, para não deixar o Sandrito sozinho, pois, o avô fez questão que ele ficasse e, assim, talvez acabasse por comprometer, irremediavelmente esta estranha situação, ao contar ao avô, certas coisas…
– Fernando: – Já estou a compreender tudo, mil agradecimentos e mil perdões, pela minha conduta de há pouco. Estou a ficar refém daquilo que projectei na tentativa em dar ao avô Guido, um fim tranquilo…
– Margarida: – Por favor, não se esforce para se mostrar agradecido. Eu também tenho uma certa quota do que aconteceu e ainda está a acontecer. Sejamos sensatos.
– Fernando: – Não pretendo mostrar-me grato, pois, estou-o na realidade. Mas, sobretudo, sinto-me confuso, porque tenho a impressão de que, no fundo, você está aborrecida comigo, por a ter arrastado para esta situação tão bizarra.
– Margarida: – Não estou, não contra sua. Não vê que me sinto contentíssima, por ter podido ser útil neste processo, sobretudo, ao avô Guido?
– Fernando: – Quer dizer que só entrou nesta estória em atenção à situação do avô? É de agradecer a sua nobre actuação.
– Margarida: – Parece-me que estou a ler certas dúvidas no seu olhar…
– Fernando: – A Margarida, não pode ler nada no meu olhar!
– Margarida: – Engana-se Josué…
– Fernando: – Então, como é tão boa em ler nos meus olhos, deve ler também outras coisas, não é assim?
– Margarida: – Talvez….deixe-me rir!
– Fernando: – Como, por exemplo, que a achei encantadora, desde o primeiro momento em que a vi…
– Margarida: – Talvez…. Não sou feia de todo (segundo dizem) e, já percebi que o seu coração estremece com facilidade, perante os encantos femininos. E o avô confirmou, digamos, essa sua faculdade.
– Fernando: – Você se diverte enraivecendo-me, mas não consegue, pois, não conto zangar-me consigo de maneira nenhuma. Sabe, não há um só “teimoso”… E eu não quero ser teimoso. Adivinha que…
– Margarida: – Desculpe pois, tenho a imaginação muito fatigada pelos últimos acontecimentos, por isso, não posso dedicar-me às suas adivinhas. Vou para o meu quarto, pois, estou a cair de sono…
Margarida despediu-se do Josué com um seco “boa noite”, e penetrou no amplo quarto, mobilado à antiga, mas tão acolhedor e confortável, que parecia dar-lhe as boas-vindas.
Ao centro, viam-se duas camas iguais, cobertas com grossas colchas de seda, já um pouco desbotadas. Riu-se e pensou alto: “Gosto desta casa, pois, é um verdadeiro lar. Ao entrar, recordei logo a minha. Não é que se assemelhem em nada, mas por causa do ambiente, qualquer coisa de “indefinível“, que flutua e constitui o espírito das habitações. A cama é macia, mas, mesmo que fosse dura, não daria por isso.
Alguém bate à porta do quarto…
– Elisa: – Dão-me licença, posso entrar?
– Margarita : – Entre, entre Elisa …
– Elisa: – Tomei a liberdade de lhe trazer uma das minhas camisas de dormir. As noites aqui em Trás-os-Montes, são muito frias, e , embora a flanela seja muito grossa, talvez a senhora não veja inconveniente em…
– Margarida: – Pois claro que a vestirei, e vou ficar até muito quentinha. Muito obrigado Elisa!
– Elisa: – Trouxe também, uma bata e umas chinelas e, também coloquei uma botija de água quente na cama. Terá cobertores suficientes?
– Margarida: – Creio que sim. Dormirei formidavelmente, como uma princesa!
– Elisa: – Não tenha pressa de se levantar cedo, pois, trazer-lhe-ei o pequeno-almoço aqui à cama.
– Margarida: – Que luxo! Muito obrigado, Elisa!
Depois de bater à porta, Fernando (Josué) entrou no quarto para lhe desejar uma boa noite…
– Fernando: Eu vou também fazer soninho. Procure sonhar comigo, Margarida, está bem?…
– Margarida: – Procurarei sonhar consigo e com esta situação. Espero que não se transforme em pesadelo…
– Fernando: – Então, boa noite…querida!
– Margarida: – Que disse… Querida?!
– Fernando: – Como ouviu muito bem. Eu disse “querida”, e não retiro uma só letra sequer! Até amanhã e boa noite!
Passados breves minutos, novamente bateram à porta…
– Fernando: – Márcia, Márcia!…
– Fernando: – Quem está a bater à porta?…
– Fernando: – Sou eu… o Fernando… abra a porta por favor!
– Margarida: – O Fernando?! Mas o que é que você quer?!
– Fernando: – Ora…o que hei-de querer, querida “esposa”?… entrar no nosso quarto para me deitar…
Ela saltou da cama, compreendendo logo que ocorria, qualquer coisa fora do vulgar. Embrulhou-se na enorme bata que a Elisa lhe tinha emprestado e abriu a porta. No limiar, apareceram à sua frente, o Fernando, terrivelmente confuso, igualmente vestido com um roupão e um pijama e, atrás dele, o avô Guido, com a sua inseparável bengala e um olhar trocista…
– Avô Guido: – Queria convencer-me de que vocês estão bem instalados, e assim, desci em pessoa, para verificar com os meus olhos… Só não compreendo que faz este maroto, que ainda não se deitou, ao lado da sua bela esposa?…
– Fernando: – Ia, deitar-me…agora mesmo, avô…
– Avô Guido: – Anda, deita-te e fica caladinho. Mete-te já na cama, pois, quero aconchegar-te a roupa, como fazia quando eras pequeno…
– Fernando: – Mas, avô… Eu ainda tenho que fazer ginástica junto à lareira…
– Avô Guido: – Ginástica, a estas horas e junto à lareira?…
– Fernando: – Sim, sim…é um hábito já muito antigo, sabe?… Faço-o sempre antes de deitar-me…
– Avô Guido: – Palhaçadas!… Deixa-te de tolices e, vai já para a cama, vá que já é muito tarde e está muito frio…
– Fernando : – Mas…Avô, tente me compreender…
– Avô Guido: – Não estou a compreender mesmo nada. Tira o roupão…Assim… gora mete-te debaixo da roupa. Gosto muito que ainda sejas obediente. Agora, aconchegar-te-ei e ficarei mais tranquilo, e depois, mando o Augusto retirar a cama que não vai ficar ocupada. … Augusto e Elisa, retirem esta cama para a arrecadação!
– Fernando: – Pronto, pronto avozinho, já estou na caminha junto à minha querida esposa…já se pode ir embora descansado…
– Avô Guido: – Estou a ver, estou a ver… boas noites, meus filhos. Levo a chave, para os deixar fechados, caso contrário, estou certo de que amanhã, quando eu me levantasse, a “gaiola”estaria vazia. Bons sonhos, meu filhos queridos filhos!…
– Fernando: – Avô!…não feche a porta…Avô…Avô…Avô!…
– Margarida: – Augusto!…Elisa!… por favor, abram esta porta!
– Fernando: – Augusto!…demónio de homem parece que é surdo!… Augusto!…Vou dar um pontapé nesta porta…ai..ai..ai…que magoei o meu pé…
– Margarida: – Isto é completamente absurdo! É ridículo! Como eu fui capaz de me meter numa trapalhada destas!
– Avô Guido: – Não gritem, nem batam mais na porta. Que grandes idiotas que vocês são! Pensavam assim poder enganar o avô, sem vergonha nenhuma! Vou abrir a porta para podermos falar…
– Fernando – Avô, engana-lo como?… Sinto-me envergonhado…
– Avô Guido: – Naturalmente ser velho, não quer dizer que seja idiota. Vejo muito mal, estou muito surdo, mas nunca confundiria o meu neto verdadeiro com o seu meio-irmão. Que farsa vocês urdiram, pensado em enganar-me…
– Fernando: – Então quer dizer que?…
– Avô Guido: – Que, se te confundi por momentos…isso foi de curta duração, e apenas enquanto a minha cabeça não regulava bem, logo a seguir ao ataque do coração…depois comecei a compreender tudo o que me estavam a fazer, ou seja, a armarem-me em parvo. Comecei a averiguar a grandeza da minha desgraça. Logo que regressei a casa o meu advogado avisou-me o meu neto tinha morrido.
– Fernando: – Avô, tente compreender, eu queria evitar-te um grande desgosto…
– Avô Guido: – Bem sei, Josué, nunca deixaste de me querer muito. Desde muito pequeno, que foste sempre o meu verdadeiro neto. Fui a Leiria, impulsionado pela curiosidade e, também para te criar dificuldades e divertir-me um pouco, assim, como também ao idiota do Augusto. Perdoa esta travessura de velho, mas vocês são uns cretinos… querem enganar-me, a mim, a mim, o Guido Ribeiro, transmontano dos quatro costado!
– Augusto: – Senhor Guido, não se excite assim, deve ir deitar-se e procurar descansar….
– Avô Guido: – Cala-te, mentecapto. Tu és o pior de todos! Julgavas-te mais esperto do que eu?! Pois, saíram-te as coisas ao contrário, cabeça de pardal! Julgavas tu que eu não reconhecia o menino Josué?… Como vês, de nada serviu armarem esta comédia grotesca. Isto também é contigo, pequena linda…
– Margarida: – Perdoe-me, senhor Gildo. Encontrei-me metida neste caso sem ainda compreender como e porquê.
– Avô Guido – Cala-te, cala-te, pois não preciso de explicações. Não me enternecerás com a tua cara bonita e a tua voz de rolinha mansa. Ora, não te armes em “mosca morta”, pois nem merece a pena.
– Fernando: – Escuta, avô a Margarida é…
– Avô Guido – Ah, se chama Margarida e não Márcia! E esse tão “bonitinho” rapaz (como é o nome dele?) onde é que o arranjaste?…
– Fernando: – É filho da…
– Avô Guido: – Compreendo. E aquela engraçada “cunhadita” que dançava tão desajeitadamente?…
– Fernando: – É, a…
– Avô Guido: – Muito me ri…ri de vocês! Sobretudo de ti e da tua linda noiva, Josué. Suponho que seja tua noiva… não o podem negar, pois, até parecem mesmo uns pombinhos… comem-se um ao outro, com os olhos…
– Margarida: – Nada disso, senhor Guido, nada disso!
– Fernando: – Ainda…não é minha noiva.
– Avô Guido: – Ainda não é?… Então do que estás tu à espera? Não me digas que ainda não te declaras a ela. Porquê, meu filho, estás com medo de seres recusado ou com vergonha?
– Fernando: – É que não me atrevo a…
– Avô Guido: – Pois, atreve-te grande tolo me saíste…Não vês que ela não deseja outra coisa. Que te ama?…
– Fernando: – Avô, compreende… A Margarida é a melhor pequena que eu conheci… prontificou-se a ajudar-me, simplesmente por bondade. Nunca conheci outra como ela. Mas o caso é que…Margarida é… seria… enfim, a definitiva!
– Margarida: – Josué, por favor, não faca mais confusão na minha cabeça.
– Avô Guido: – Ai…o meu remédio, Augusto… Sofri muito, estes dias. Mas, agradeço-te, filho, pois embora não sejas o Fernando, quero-te como se o fosses.
– Margarida : – Sente-se mal, avô?
– Avô Guido: – Não pequena, só estou um pouco cansado…
– Augusto: – Vou chamar o já médico!
– Avô Guido: – Não…não é preciso…já está a passar. Sofri muito com a morte do meu neto, mas, foi Deus que assim o quis. Não te assustes, pequena, pois, em breve estarei melhor… Margarida, é um nome bonito e, tu és muito bonita… olha lá porque estás a choras? Olha filha, limpa esses belos olhos. Mereces ser feliz, porque tens bom corarão, e o Josué também, aliás, sempre o teve desde criança. Hão-de ser muitos felizes e terão filhos bonitos. Mais bonitos do que esse “demónio”, que está para aí; como é que se chama esse “ranhoso”?… Quero saber o nome verdadeiro.
– Margarida: – Chama-se Paulo…
– Avô Guido: Ele é muito esperto (embora não seja inteligente) pelo caminho, contou-me histórias muito divertidas. Gostaria que ele ficasse aqui mais uns dias… faz-me rir…Eu… Eu…
– Fernando: – Olhe, o avô adormeceu. É o melhor que nos podia ter acontecido. Está esgotado, coitado do avô Guido, vou pôr-lhe uma manta por cima…
– Margarida: – Vou aproveitar o fato do avô estar a dormir, para me ir embora. Embora me custe bastante, não me despedir dele. É tão bondoso!
– Fernando: – Se é esse o teu desejo, Margarida…
– Avô Guido: – Mas qual desejo… Mas qual desejo, qual carapuça. Estou mesmo a ver que já não se pode descansar um pouco… Seus finórios… Augusto, Augusto…Dá-me a minha bengala…
– Margarida: – A bengala, avô?…
– Avô Guido: – Sim, a bengala. Era o que vocês precisavam, apanhar ambos com ela. Não têm vergonha de gozarem e fazerem pouco de um pobre velho?
– Fernando: – Mas, avô compreenda por favor…
. Avô Guido: – Cala-te!…Augusto, ajuda-me a levantar…Agora, dá-me aquelas chaves do quarto…
– Margarida: – Mas o avô vai-nos fechar novamente, aqui dentro do quarto?… Nem quero acreditar.
– Fernando: – Mas, avô escute-me por favor!
– Avô Guido: – Calem-se, calem-se por favor. Olha que apanham mesmo com a bengala. Ficam aqui fechados até se declararem um ao outro, e não demorem muito. Deitem-se, deitem-se já, pois, a noite é, e têm muito tempo de falarem do que me tramaram. Boa noite e acordem muito bem dispostos e com as consciências limpas. Não preciso de mais desculpas de vossa parte.
Ao sair do quarto depois de fechar a porta à chave, encontrou o Sandro no corredor…
– Sandro: – Olá avozinho, andava mesmo à sua procura, pois a cozinha está fechada à chave…
– Avô Guido: – Olha “netinho”…Vai mas é chamar avô a outro!…
FIM
Fonte:
Colaboração do autor.