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Carlos Leite Ribeiro (O Avô Guido – Parte Final) Novela em 4 partes

– Fernando: – O melhor é esperares aqui, sossegadinho, enquanto eu vou pôr a “mamã”a casa. Depois, eu próprio, te levarei a tua casa. Mas toma atenção, não te mexas deste sítio, nem um metro sequer.
Sandro: – Está bem, eu prometo tudo ao “papá”…
– Fernando: – Se não me obedeceres, esfolo-te vivo. Sabes ou imaginas o que é ser esfolado vivo?
Sandro: – Se sei, é a lei dos “Lobos Maus”!
– Fernando: – Pois, se te moveres desse maple até eu chegar, será aplicada a lei daqui, ou seja a lei do Oeste!

Novamente, em casa da sua amiga Isabel, Margarida, preparava-se, pela terceira vez para se deitar.

Toda a casa se encontrava em desalinho, pois, com a precipitação de levar o Sandrito a São Pedro de Moel, Teresa não fizera nenhuma arrumação à casa.

Já se encontrava na cama, quando a campainha da porta tocou repetidamente. Levantou-se e…

– Margarida: – Quem é?… Quem está a bater a estas horas à porta?…
– Fernando: – Sou eu, o Fernando ou o Josué; já nem sei quem sou. Abra por favor…
– Margarida: – Mas então não acompanhou o avô a Trás-os-Montes?
– Fernando: – Pois não. No regresso a São Pedro de Moel, tive um furo num pneu, o que me atrasou um pouco. Quando cheguei ao hotel, já o avô tinha-se ido embora…
– Margarida: – Ai que pena, fico bastante preocupada…
– Fernando: – Mas o pior, foi o avô ter levado aquele “terrorista”do Sandrito (ou Paulo…) ou lá o que é…
– Margarida: – Aquele miúdo só nos tem dado problemas. E agora, ele é bem capaz de contar tudo ao avô Guido
– Fernando: – Por esse motivo vim cá pedir-lhe que me acompanhe a Trás-os-Montes, a casa do avô Guido
– Margarida: – Mas…eu não o posso acompanhar. Estou aqui em Leiria, em missão profissional, por isso não posso ausentar-me… o telefone está a tocar, pode ser o Augusto. O senhor Josué não se importar, atenda; o telefone que está aí no corredor…
– Fernando: – Com todo o prazer… …Sim, estou…É sim, é esse número… a Margarida?…Está, está, mas está a descansar … Digo-lhe, sim… Estou a compreender…O casal de turistas americanos, anularam a viagem…muito bem, muito bem…dar-lhe-ei o recado. Boa noite…
– Fernando: – O telefonema era para mim?
– Fernando: – Era sim. Até que enfim que consegui saber o seu nome: Margarida! É um nome bonito, como aliás a dona…
– Margarida: – E de quem era o telefonema?
– Fernando: – Era da agência “Turismo ao Alcance de Todos”, para a avisar que o casal de turistas americanos, anulou a viagem à última hora.
– Margarida: – Sendo assim, tenho de regressar imediatamente a Lisboa…
– Fernando: – Impossível!… Tem de me acompanhar a casa do avô Guido… Sabe, estou muito preocupado com o que lhe teria dito aquele endiabrado miúdo. Por favor, não me deixe sozinho nesta altura!
– Margarida: – Mas tem de compreender, se o acompanhar, fico em risco de perder o meu emprego…
– Fernando: – Há muito tempo que preciso de uma secretária e, a Margarida vem mesmo a propósito!
– Margarida: – Eu, sua secretária?
– Fernando: – A Margarida sabe escrever música?
– Margarida: – Infelizmente não sei…
– Fernando: – Que pena! mas…mas sabe escrever no computador?…
– Margarida: – Não percebo mesmo nada…
– Fernando: – Línguas?…
– Margarida: – Só sei dizer em francês, Bonjour …E em inglês, Yes
– Fernando: – Nada mais?!
– Margarida: – Nada…mesmo nada!
– Fernando: – Pelo menos, terá boa letra?
– Margarida: – É detestável! Até a minha assinatura é ilegível!
– Fernando: – Estupendo! Você tem todas as condições desejáveis. É justamente aquilo que necessito, uma secretária que não saiba fazer nada. Enfastiam-me as secretárias eficientes! Não acha que são insuportáveis?
– Margarida: – Sim, concordo… Bem tentei que não me contrata-se como sua secretária, mas não tive êxito!
– Fernando: – Enquanto a Margarida acaba de se arranjar, vou meter gasolina no carro e, ver a pressão dos pneus e o óleo. Durante a viagem, continuaremos a falar.
– Margarida: – Então até já. Não se esqueça de fechar a porta…
– Fernando: – Margarida, somos amigos, não é verdade?…
– Margarida: – Claro que sim!

Já amanhecia, quando iniciaram a viagem rumo a Trás-os-Montes e, quando chegaram a casa do avô Guido, o Sol já tinha nascido.

Josué Teixeira, parou o carro diante do grande portão e, fez ressoar por duas vezes a volumosa aldraba de bronze, a qual produziu um atroador ruído, ali naquele vetusto casarão, a que não faltava certa beleza.

– Augusto: – Ah, é o menino Josué, estava à sua espera. O senhor Guido, ainda está deitado e, parece que está calmo.
– Fernando: – Augusto, quem vos meteu na cabeça, trazerem o Sandro?
– Augusto: – O senhor Guido não quis esperar. Apenas os senhores saíram dos seus aposentos, teimou em partir, dizendo que não queria incomodá-lo, obrigando a acompanhá-lo. Quando descemos para o hall, encontra-mos o rapaz que se aproximou de nós. O senhor Guido convidou-o a vir com ele, e ele aceitou logo o convite. Resultado, tivemos mesmo que trazer o garoto.
– Fernando: – Mas esta embrulhada nunca mais acaba?…
– Augusto: – Receio bem que não, senhor Josué. Quer subir?… estão os dois no quarto do avô, a tomar o pequeno almoço.

Subiu os degraus em dois pulos, acariciando, ao passar, as faces da velha Elisa, a mulher do Augusto, que lhe dava as boas-vindas.

Ao entrar no quarto do ancião, acalmou momentaneamente o seu nervosismo. Ele estava sentado na sua esplêndida e tão chorada cama de colunas, de mogno escuro. Com a cabeça recostada nas suas almofadas de penas, o Avôzinho tomava café com leite e torradas. Numa mesita instalada junto do leito, Sandrito fazia o mesmo.

O rapazito ostentava no lábio superior uns magníficos bigodes de café com leite, que lhe davam um aspecto cómico.

– Fernando: – Bom dia e bom apetite!
Sandro: – Olá,”papazinho“!… Bom dia, não quer café com leite?
– Avô Guido: – Vocês são muito teimosos, mas confesso que estava à vossa espera, pois, com certeza que não iam abandonar o vosso querido filhinho, estou certo?
Sandro: – “Mamãzinha“, dá-me mais café com leite e mais torradas, está bem?
– Margarida: – Não comas muito, olha que ficas com dores de barriga…
Sandro: – Já não tenho dores de barriga!
– Augusto: – Com a precipitação da partida, o senhor Guido deixou os medicamentos, no Hotel, em São Pedro de Moel.
– Avô Guido: – Vocês têm de me darem razão, confio eu num velho tonto como o Augusto, e depois acontece-me destas. Ele, quer ver se eu morro primeiro do que ele, mas não vai ter esse prazer!
– Fernando: – Não diga isso avô, pois, o Augusto é um verdadeiro amigo que tu tens. Não é um criado, é um amigo!
– Avô Guido: – Lérias, lérias…Ele quer é que eu morra primeiro do que ele.
– Fernando: – Não se preocupe com os medicamentos, pois, tenho que ir hoje a Bragança assinar um contrato e trago-lhe os medicamentos.
– Augusto: – Parece-me que esses medicamentos, só se encontram em Lisboa ou no Porto…
– Fernando: – Talvez não seja assim como dizes, Augusto. Avô não se preocupe, pois, hoje à noite, terá cá os medicamentos.
– Avô Guido: – Podes ir Fernando, mas vais sozinho, pois, a tua esposa e o teu filho, ficam aqui ao pé de mim.
– Fernando: – Mas…mas avô, a Márcia
– Margarida: – Podes ir, querido “maridinho“, pois, eu ficarei com o nosso querido “filhinho“. Depois, regressaremos ambos a Leiria. Como sabes, o Sandrito, anda na escola e não quer perder o ano…
Sandro: – O que tem, se eu perder mais um ano?… O meu pai diz que eu sou estúpido por feitio e natureza!
– Avô Guido: – Oh Fernando, tu dizes isso ao teu filho?…
– Fernando: – Sim… Sim, eu digo-lhe isso… mas é só às vezes e por brincadeira. Todos nós sabemos que o Sandrito é muito inteligente, e muito aplicado na escola.
– Margarida: – É um dos melhores alunos da escola onde anda.
– Avô Guido: – Tu, Fernando, tens que ter muito cuidado com essas considerações que dizes ao garoto, pois, não podes nem deves desmoralizar o teu filho. O vosso filho, não é, querida Márcia.
– Margarida: – Sim, sim avô, eu, até já tenho chamado a atenção do Fernando, para certos termos que ele usa para com o menino.
– Avô Guido: – E, não se esqueçam que ele é o único filho que vos resta, pois, os outros morreram todos…
– Margarida: – Morreram todos?!
– Fernando: – Pois… os outros morreram todos. Até parece que não te lembras dessas tragédias, Márcia?
– Margarida: – Eu lembrar-me?… Ah, pois…Pois morreram todos…
– Fernando: – Coitadinhos, ficamos sempre muito constrangidos quando pensamos neles. Não chores Márcia, senão também eu começarei a chorar…
– Avô Guido: – E, por cada funeral, paguei cerca de mil euros, fora as flores e os arranjos das campas.
– Margarida: – Pois…pois foi assim mesmo. Mas não quero recordar esses momentos dramáticos.
– Fernando: – Nós temos sofrido muito, Avôzinho… foram desgostos em cima de desgostos…
Sandro: – Mas eu já tive irmãos?! Não me lembro.
– Margarida: – É que nós, eu e o Fernando, procurámos sempre esconder estes tristes factos do Sandrito
– Fernando: – Bem, como se costuma dizer “barco parado, não segue viagem…”, e eu ainda tenho que ir a Bragança e, depois possivelmente ao Porto.
Sandro: – Posso ir contigo,”papá”?
– Margarida: – Não,”filhinho“, tu ficas aqui ao pé da “mamã”, pois, o “papá” tem muitas voltas a dar e muito trabalho a fazer.
Sandro: – Os “papás“são todos a mesma coisa!
– Avô Guido: – Sandrito, vai brincar para o pátio, mas com muito juízo…
– Fernando: – E eu, vou indo. Adeus minha querida “mulherzinha”!
– Fernando: – Adeus,”amor” e boa viagem. Encontrar-nos-emos em Leiria. Um beijo!

Já era noite quando Josué Teixeira regressou a casa do avô, naquela pequena aldeia transmontana. Tocou a albarda de bronze da porta e, o velho criado Augusto, veio abrir-lhe. Ao entrar no grande salão do vetusto casarão, teve uma grande surpresa…

– Avô Guido: – Olha Márcia, o teu querido esposo já chegou!
– Fernando: – Mas, Márcia, ainda não regressou a Leiria?!
– Avô Gildo: – Desculpa, filho, mas eu é que tive a culpa, pois, consegui convencer a tua esposa a ficar. Não te zangues comigo. Também seria inútil regressar, pois, a Márcia está aqui muito a seu gosto, não é verdade, filhinha?
– Margarida: – Assim é, avô…
– Avô Guido: – E até mais, prometeu-me que ficará alguns dias aqui, junto de mim…
– Margarida: – Fizeste boa viagem,”querido”Fernando? Espero que não estejas muito zangado comigo, por me encontrar ainda aqui…
– Fernando: – Como sabes, ou deves de calcular, até estou muito contente por te encontrar aqui, junto ao avô.
– Margarida: – Sabes,”amor”, necessitava de um pouco de repouso para os nervos e, esta tranquilidade aldeã, far-me-á bem. Amanhã, mando vir roupas, pois, não posso andar muito tempo com esta. Embora este trajo azul, me fique bem, não é verdade, querido “maridinho”?
– Fernando: – Qualquer coisa, te fica maravilhosamente bem, meu “amor”!
– Margarida: – No outro dia, disseste-me que te enlouqueço, quando visto este azul. Claro que dizes sempre coisas parecidas, qual for o vestido e a cor que envergue… olha, “querido”, queres um cafezinho?…faz tanto frio lá fora na estrada, que o café, decerto, saber-te-á bem…
– Avô Guido: – Estou a gostar muito de os ouvir. Fico muito contente que sejas carinhoso com a tua mulher, não posso com os matrimônios que se tratam friamente sem calor e sem amor.
– Margarida – O Fernando sempre foi muito carinhoso. Está sempre a chamar-me diminutivos ternos, como: queridinha, amorzinho, fofinha, etc.…
– Fernando: – Bem!… Creio que o avô deve descansar. Os seus medicamentos estão aqui. Agora, é conveniente ir para a cama descansar.
– Avô Guido: – Eu vou já, vou já. O Sandro dormirá aqui ao lado, e a Elisa já preparou o quarto lá de baixo, para vocês e espero que fiquem lá muito bem. A cama é muito boa.
– Fernando: – Muito bem, avô, ficaremos lá, perfeitamente e quentinhos…
– Avô Guido: – Escuta lá, Fernando, prometes que ficarão cá uns dias?…
– Fernando: – Não sei… Não sei se os meus afazeres profissionais o permitirão…
– Avô Guido: – Se te for impossível pelo menos, deixa-me a Márcia e o Sandrito. Tu podes vir de vez em quando, ver-nos…
– Fernando: – Oh avô, amanhã decidiremos…Agora, dorme tranquilo, pois, bem precisas de descansar.
– Margarida: – Mas. Aonde está o Sandrito?… Já há um bom par de horas que não lhe ponho os olhos em cima…
– Avô Guido: – Não te preocupes, minha filha, pois vamos já saber… Augusto…oh Augusto, onde estás?
– Augusto: – Estou aqui, senhor Guido… Quer os seus medicamentos?
– Avô Guido: – Não, não quero ainda os medicamentos, mas sim saber, onde se encontra o pequeno Sandrito?
– Augusto: – Deve de estar… deve de estar…ou está…
– Avô Guido: – Que mistério é esse? Onde está o rapaz?
-Augusto: – O rapaz estava a brincar no pátio, e depois…o senhor Guido sabe daquela gaiola… a gaiola dos pássaros…
– Avô Guido: – Claro que sei, a gaiola que tem dezenas de pássaros…
– Augusto: -Pois…que tinha dezena de pássaros, mas, o Sandrito abriu-lhes a porta da gaiola e eles fugiram…
– Fernando: – Ai, aquele diabo de rapaz!…
– Avô Guido: – E Augusto, onde está agora o Sandrito?
– Augusto: – Bem, como os pássaros fugiram todos, como já lhe disse…fugiram todos… eu, meti o Sandrito dentro da gaiola!
– Avô Guido: – Como assim, tu fizeste isso?!
– Augusto: – Se abrir aquela janela, ouvirá decerto, o berreiro que ele está lá a fazer dentro da gaiola.
– Avô Guido: – Olha lá, mas porque é que tu meteste o rapaz dentro da gaiola?… Não me digas que estás à espera que ele cante. Traz-mo já cá imediatamente.
– Fernando: – Mas o Avôzinho, precisa de se deitar, para descansar…
– Avô Guido: – Não tentem disfarçar e aliviar a vossa culpa, pois, vocês os dois é que deviam de estar dentro daquela gaiola. Imaginem bem a qualidade de educação que têm dado ao vosso filho! Vão, vão-se deitar, que eu próprio falarei com o miúdo. Vão indo, vão indo…
– Margarida: – Então, até amanhã, avô. Com sua licença vou me vou retirar para o meu quarto…
– Fernando: – Margarida, agora que estamos sós, posso saber porque motivo ainda continua nesta casa, e não regressou a Leiria?
– Margarida: – Se me fala nesse tom, não lhe responderei. Procure ser um pouco mais simpático, o que nem lhe deve ser muito difícil…
– Fernando: – Perdoe-me, Margarida, mas confesso que estou um pouco desorientado. Ocorreram tantas coisas ao mesmo tempo, e este miúdo dá-me cabo dos nervos. Sinto-me responsável por tal escolha, melhor, por toda esta situação.
– Margarida: – Eu só fiquei cá, para não deixar o Sandrito sozinho, pois, o avô fez questão que ele ficasse e, assim, talvez acabasse por comprometer, irremediavelmente esta estranha situação, ao contar ao avô, certas coisas…
– Fernando: – Já estou a compreender tudo, mil agradecimentos e mil perdões, pela minha conduta de há pouco. Estou a ficar refém daquilo que projectei na tentativa em dar ao avô Guido, um fim tranquilo…
– Margarida: – Por favor, não se esforce para se mostrar agradecido. Eu também tenho uma certa quota do que aconteceu e ainda está a acontecer. Sejamos sensatos.
– Fernando: – Não pretendo mostrar-me grato, pois, estou-o na realidade. Mas, sobretudo, sinto-me confuso, porque tenho a impressão de que, no fundo, você está aborrecida comigo, por a ter arrastado para esta situação tão bizarra.
– Margarida: – Não estou, não contra sua. Não vê que me sinto contentíssima, por ter podido ser útil neste processo, sobretudo, ao avô Guido?
– Fernando: – Quer dizer que só entrou nesta estória em atenção à situação do avô? É de agradecer a sua nobre actuação.
– Margarida: – Parece-me que estou a ler certas dúvidas no seu olhar…
– Fernando: – A Margarida, não pode ler nada no meu olhar!
– Margarida: – Engana-se Josué…
– Fernando: – Então, como é tão boa em ler nos meus olhos, deve ler também outras coisas, não é assim?
– Margarida: – Talvez….deixe-me rir!
– Fernando: – Como, por exemplo, que a achei encantadora, desde o primeiro momento em que a vi…
– Margarida: – Talvez…. Não sou feia de todo (segundo dizem) e, já percebi que o seu coração estremece com facilidade, perante os encantos femininos. E o avô confirmou, digamos, essa sua faculdade.
– Fernando: – Você se diverte enraivecendo-me, mas não consegue, pois, não conto zangar-me consigo de maneira nenhuma. Sabe, não há um só “teimoso”… E eu não quero ser teimoso. Adivinha que…
– Margarida: – Desculpe pois, tenho a imaginação muito fatigada pelos últimos acontecimentos, por isso, não posso dedicar-me às suas adivinhas. Vou para o meu quarto, pois, estou a cair de sono…

Margarida despediu-se do Josué com um seco “boa noite”, e penetrou no amplo quarto, mobilado à antiga, mas tão acolhedor e confortável, que parecia dar-lhe as boas-vindas.

Ao centro, viam-se duas camas iguais, cobertas com grossas colchas de seda, já um pouco desbotadas. Riu-se e pensou alto: “Gosto desta casa, pois, é um verdadeiro lar. Ao entrar, recordei logo a minha. Não é que se assemelhem em nada, mas por causa do ambiente, qualquer coisa de “indefinível“, que flutua e constitui o espírito das habitações. A cama é macia, mas, mesmo que fosse dura, não daria por isso.

Alguém bate à porta do quarto…

– Elisa: – Dão-me licença, posso entrar?
– Margarita : – Entre, entre Elisa …
– Elisa: – Tomei a liberdade de lhe trazer uma das minhas camisas de dormir. As noites aqui em Trás-os-Montes, são muito frias, e , embora a flanela seja muito grossa, talvez a senhora não veja inconveniente em…
– Margarida: – Pois claro que a vestirei, e vou ficar até muito quentinha. Muito obrigado Elisa!
– Elisa: – Trouxe também, uma bata e umas chinelas e, também coloquei uma botija de água quente na cama. Terá cobertores suficientes?
– Margarida: – Creio que sim. Dormirei formidavelmente, como uma princesa!
– Elisa: – Não tenha pressa de se levantar cedo, pois, trazer-lhe-ei o pequeno-almoço aqui à cama.
– Margarida: – Que luxo! Muito obrigado, Elisa!

Depois de bater à porta, Fernando (Josué) entrou no quarto para lhe desejar uma boa noite…

– Fernando: Eu vou também fazer soninho. Procure sonhar comigo, Margarida, está bem?…
– Margarida: – Procurarei sonhar consigo e com esta situação. Espero que não se transforme em pesadelo…
– Fernando: – Então, boa noite…querida!
– Margarida: – Que disse… Querida?!
– Fernando: – Como ouviu muito bem. Eu disse “querida”, e não retiro uma só letra sequer! Até amanhã e boa noite!

Passados breves minutos, novamente bateram à porta…

– Fernando: – Márcia, Márcia!…
– Fernando: – Quem está a bater à porta?…
– Fernando: – Sou eu… o Fernando… abra a porta por favor!
– Margarida: – O Fernando?! Mas o que é que você quer?!
– Fernando: – Ora…o que hei-de querer, querida “esposa”?… entrar no nosso quarto para me deitar…

Ela saltou da cama, compreendendo logo que ocorria, qualquer coisa fora do vulgar. Embrulhou-se na enorme bata que a Elisa lhe tinha emprestado e abriu a porta. No limiar, apareceram à sua frente, o Fernando, terrivelmente confuso, igualmente vestido com um roupão e um pijama e, atrás dele, o avô Guido, com a sua inseparável bengala e um olhar trocista…

– Avô Guido: – Queria convencer-me de que vocês estão bem instalados, e assim, desci em pessoa, para verificar com os meus olhos… Só não compreendo que faz este maroto, que ainda não se deitou, ao lado da sua bela esposa?…
– Fernando: – Ia, deitar-me…agora mesmo, avô…
– Avô Guido: – Anda, deita-te e fica caladinho. Mete-te já na cama, pois, quero aconchegar-te a roupa, como fazia quando eras pequeno…
– Fernando: – Mas, avô… Eu ainda tenho que fazer ginástica junto à lareira…
– Avô Guido: – Ginástica, a estas horas e junto à lareira?…
– Fernando: – Sim, sim…é um hábito já muito antigo, sabe?… Faço-o sempre antes de deitar-me…
– Avô Guido: – Palhaçadas!… Deixa-te de tolices e, vai já para a cama, vá que já é muito tarde e está muito frio…
– Fernando : – Mas…Avô, tente me compreender…
– Avô Guido: – Não estou a compreender mesmo nada. Tira o roupão…Assim… gora mete-te debaixo da roupa. Gosto muito que ainda sejas obediente. Agora, aconchegar-te-ei e ficarei mais tranquilo, e depois, mando o Augusto retirar a cama que não vai ficar ocupada. … Augusto e Elisa, retirem esta cama para a arrecadação!
– Fernando: – Pronto, pronto avozinho, já estou na caminha junto à minha querida esposa…já se pode ir embora descansado…
– Avô Guido: – Estou a ver, estou a ver… boas noites, meus filhos. Levo a chave, para os deixar fechados, caso contrário, estou certo de que amanhã, quando eu me levantasse, a “gaiola”estaria vazia. Bons sonhos, meu filhos queridos filhos!…
– Fernando: – Avô!…não feche a porta…Avô…Avô…Avô!…
– Margarida: – Augusto!…Elisa!… por favor, abram esta porta!
– Fernando: – Augusto!…demónio de homem parece que é surdo!… Augusto!…Vou dar um pontapé nesta porta…ai..ai..ai…que magoei o meu pé…
– Margarida: – Isto é completamente absurdo! É ridículo! Como eu fui capaz de me meter numa trapalhada destas!
– Avô Guido: – Não gritem, nem batam mais na porta. Que grandes idiotas que vocês são! Pensavam assim poder enganar o avô, sem vergonha nenhuma! Vou abrir a porta para podermos falar…
– Fernando – Avô, engana-lo como?… Sinto-me envergonhado…
– Avô Guido: – Naturalmente ser velho, não quer dizer que seja idiota. Vejo muito mal, estou muito surdo, mas nunca confundiria o meu neto verdadeiro com o seu meio-irmão. Que farsa vocês urdiram, pensado em enganar-me…
– Fernando: – Então quer dizer que?…
– Avô Guido: – Que, se te confundi por momentos…isso foi de curta duração, e apenas enquanto a minha cabeça não regulava bem, logo a seguir ao ataque do coração…depois comecei a compreender tudo o que me estavam a fazer, ou seja, a armarem-me em parvo. Comecei a averiguar a grandeza da minha desgraça. Logo que regressei a casa o meu advogado avisou-me o meu neto tinha morrido.
– Fernando: – Avô, tente compreender, eu queria evitar-te um grande desgosto…
– Avô Guido: – Bem sei, Josué, nunca deixaste de me querer muito. Desde muito pequeno, que foste sempre o meu verdadeiro neto. Fui a Leiria, impulsionado pela curiosidade e, também para te criar dificuldades e divertir-me um pouco, assim, como também ao idiota do Augusto. Perdoa esta travessura de velho, mas vocês são uns cretinos… querem enganar-me, a mim, a mim, o Guido Ribeiro, transmontano dos quatro costado!
– Augusto: – Senhor Guido, não se excite assim, deve ir deitar-se e procurar descansar….
– Avô Guido: – Cala-te, mentecapto. Tu és o pior de todos! Julgavas-te mais esperto do que eu?! Pois, saíram-te as coisas ao contrário, cabeça de pardal! Julgavas tu que eu não reconhecia o menino Josué?… Como vês, de nada serviu armarem esta comédia grotesca. Isto também é contigo, pequena linda…
– Margarida: – Perdoe-me, senhor Gildo. Encontrei-me metida neste caso sem ainda compreender como e porquê.
– Avô Guido – Cala-te, cala-te, pois não preciso de explicações. Não me enternecerás com a tua cara bonita e a tua voz de rolinha mansa. Ora, não te armes em “mosca morta”, pois nem merece a pena.
– Fernando: – Escuta, avô a Margarida é…
– Avô Guido – Ah, se chama Margarida e não Márcia! E esse tão “bonitinho” rapaz (como é o nome dele?) onde é que o arranjaste?…
– Fernando: – É filho da…
– Avô Guido: – Compreendo. E aquela engraçada “cunhadita” que dançava tão desajeitadamente?…
– Fernando: – É, a…
– Avô Guido: – Muito me ri…ri de vocês! Sobretudo de ti e da tua linda noiva, Josué. Suponho que seja tua noiva… não o podem negar, pois, até parecem mesmo uns pombinhos… comem-se um ao outro, com os olhos…
– Margarida: – Nada disso, senhor Guido, nada disso!
– Fernando: – Ainda…não é minha noiva.
– Avô Guido: – Ainda não é?… Então do que estás tu à espera? Não me digas que ainda não te declaras a ela. Porquê, meu filho, estás com medo de seres recusado ou com vergonha?
– Fernando: – É que não me atrevo a…
– Avô Guido: – Pois, atreve-te grande tolo me saíste…Não vês que ela não deseja outra coisa. Que te ama?…
– Fernando: – Avô, compreende… A Margarida é a melhor pequena que eu conheci… prontificou-se a ajudar-me, simplesmente por bondade. Nunca conheci outra como ela. Mas o caso é que…Margarida é… seria… enfim, a definitiva!
– Margarida: – Josué, por favor, não faca mais confusão na minha cabeça.
– Avô Guido: – Ai…o meu remédio, Augusto… Sofri muito, estes dias. Mas, agradeço-te, filho, pois embora não sejas o Fernando, quero-te como se o fosses.
– Margarida : – Sente-se mal, avô?
– Avô Guido: – Não pequena, só estou um pouco cansado…
– Augusto: – Vou chamar o já médico!
– Avô Guido: – Não…não é preciso…já está a passar. Sofri muito com a morte do meu neto, mas, foi Deus que assim o quis. Não te assustes, pequena, pois, em breve estarei melhor… Margarida, é um nome bonito e, tu és muito bonita… olha lá porque estás a choras? Olha filha, limpa esses belos olhos. Mereces ser feliz, porque tens bom corarão, e o Josué também, aliás, sempre o teve desde criança. Hão-de ser muitos felizes e terão filhos bonitos. Mais bonitos do que esse “demónio”, que está para aí; como é que se chama esse “ranhoso”?… Quero saber o nome verdadeiro.
– Margarida: – Chama-se Paulo…
– Avô Guido: Ele é muito esperto (embora não seja inteligente) pelo caminho, contou-me histórias muito divertidas. Gostaria que ele ficasse aqui mais uns dias… faz-me rir…Eu… Eu…
– Fernando: – Olhe, o avô adormeceu. É o melhor que nos podia ter acontecido. Está esgotado, coitado do avô Guido, vou pôr-lhe uma manta por cima…
– Margarida: – Vou aproveitar o fato do avô estar a dormir, para me ir embora. Embora me custe bastante, não me despedir dele. É tão bondoso!
– Fernando: – Se é esse o teu desejo, Margarida…
– Avô Guido: – Mas qual desejo… Mas qual desejo, qual carapuça. Estou mesmo a ver que já não se pode descansar um pouco… Seus finórios… Augusto, Augusto…Dá-me a minha bengala…
– Margarida: – A bengala, avô?…
– Avô Guido: – Sim, a bengala. Era o que vocês precisavam, apanhar ambos com ela. Não têm vergonha de gozarem e fazerem pouco de um pobre velho?
– Fernando: – Mas, avô compreenda por favor…
. Avô Guido: – Cala-te!…Augusto, ajuda-me a levantar…Agora, dá-me aquelas chaves do quarto…
– Margarida: – Mas o avô vai-nos fechar novamente, aqui dentro do quarto?… Nem quero acreditar.
– Fernando: – Mas, avô escute-me por favor!
– Avô Guido: – Calem-se, calem-se por favor. Olha que apanham mesmo com a bengala. Ficam aqui fechados até se declararem um ao outro, e não demorem muito. Deitem-se, deitem-se já, pois, a noite é, e têm muito tempo de falarem do que me tramaram. Boa noite e acordem muito bem dispostos e com as consciências limpas. Não preciso de mais desculpas de vossa parte.

Ao sair do quarto depois de fechar a porta à chave, encontrou o Sandro no corredor…

– Sandro: – Olá avozinho, andava mesmo à sua procura, pois a cozinha está fechada à chave…
– Avô Guido: – Olha “netinho”…Vai mas é chamar avô a outro!…

FIM

Fonte:
Colaboração do autor.

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Carlos Leite Ribeiro (O Avô Guido – Parte 2) Novela em 4 partes

– Fernando: – O Augusto, telefonou-me ontem, muito alarmado, a avisar-me que o avô viria consultar um especialista a Leiria e, aproveitava para nos visitar. Contei tudo à Georgina, que foi quem me sugeriu esta farsa, decerto pelo seu hábito de interpretar comédias. O projeto parecia muito simples. Para mais, o avô partirá amanhã, e, não é provável que volte. O médico deu-me esta tarde, poucas esperanças. Os seus dias estão contados…
– Margarida: – Pobre velho… E o senhor estima muito esse avô, que não é verdadeiramente, seu avô?
– Fernando: – Devo-lhe eterna gratidão. Quando a nossa mãe morreu, o avô recolheu o Fernando, que era seu neto, e também a mim, que estava sozinho no mundo, e, que nada lhe era familiarmente. Custeou a minha educação, deu-me uma carreira, e, graças à sua ajuda, consegui caminhar na vida. Agora, tenho o ensejo de fazer alguma coisa por ele, mas a fatalidade, quase o não consente. Sim, é lamentável, mas deve compreender que não tenho culpa.
– Margarida: – Compreendo e avalio o seu assombro, ao defrontar-se com uma família caída do céu. Sobretudo esse terrível garoto. Onde é que o senhor o foi buscar?
– Fernando: – É filho da minha empregada doméstica. Não consegui encontrar outro melhor. É muito descarado, mas representa muito bem, não é verdade?
– Margarida: – Deu-me uns beijos tão ferozes, que ainda estou aturdida. Podia tê-lo escolhido mais engraçado e mais meigo!
– Fernando: – É bem verdade que não me posso orgulhar muito do meu “rebento”. Que desastre… E eu a pensar que tudo parecia continuar a correr bem … Ainda a senhora não sabe o pior do caso…
– Margarida: – Ah… ainda mais complicações?
– Fernando: – Muito mais. Não sei se lhe disse o meu nome?…
– Margarida: – Ainda não disse, não…
– Fernando: – Desculpe-me, mas a confusão tem sido tanta. Chamo-me Josué Teixeira.
– Margarida: – Josué Teixeira?!… Então o senhor é o célebre compositor?
– Fernando: – Célebre, ainda não. Agradeço-lhe o adjetivo. Por enquanto, só compus músicas modernas, que, felizmente tiveram muita aceitação.
– Margarida: – Pelo menos, tornaram-no popular.
– Fernando: – Talvez. Olhe, hoje vou dirigir a orquestra na Marinha Grande.

Não se recordava, precisamente, se fora Josué Teixeira (o Fernando) quem lhe pedira que continuasse a farsa, ou se fora ela própria que se resolvera, espontaneamente, a persegui-la, reencarnando a suposta esposa do desvairado e verdadeiro Fernando, já falecido. Bom maroto fora esse rapaz! Mas não devemos falar mal dos mortos…

Pintou os lábios, e pintou os olhos. Queria parecer bonita, pelo inato desejo feminino do agradar, e para o palco!

Ao abrir a porta do quarto, sentiu a comoção da atriz que vê erguer-se o pano da noite da sua estreia. Não desejava aventuras?… Pois aí estava a mais original que teria podido sonhar. Só por umas horas, e tudo isto pouco tempo depois de ter descido do “Expresso”que a trouxera de Lisboa.

O avô Guido dormitava na salita, encolhido na mesma cadeira. Margarida atravessou nas pontas dos pés, e entrou na sala de jantar atraída pelo ruído de loucas e de vidros. A mesa apresentava um soberbo aspecto, coberta com uma toalha bordada, sobre a qual, se destacava um centro de mesa, cheio de rosas. O próprio Josué dispunha tudo, ajudado pelo Augusto…

– Margarida: – Observo que o senhor é um bom dono de casa…
– Fernando: – Acha?!… Olhe, quer um Porto? Dar-lhe-á ânimo…
– Margarida: – Aceito, pelo nosso “feliz lar”…
– Fernando: -Em honra da minha desconhecida “esposa”! Augusto, está tudo pronto e em ordem?
– Augusto: – Tudo pronto, senhor Josué. Creio que podemos começar a comer imediatamente, pois o senhor seu avô, deve recolher cedo ao hotel.
– Sandro: – Olhem lá, então, nesta casa nunca mais se come? Tenho cá uma fome…
-Augusto: – Cale-se menino, não seja mal-educado. Vamos já começar a jantar.
– Sandro: – Olhem lá, dão-me todas essas coisas boas que estão na cozinha?
– Fernando: – Se tiveres juízo, damos de tudo.
– Sandro: – Ai que bom, que bom!!!
– Margarida: – Anda, vem ao quarto de banho lavar as mãos, pois, vamos já sentar-nos à mesa.
-Fernando: – Avô Guido, avô Guido, acorde, venha jantar!
– Avô Guido: – Já vou indo, já vou indo… bonitas flores, pequena…tens que ir à minha quinta, lá em Trás-os-Montes, para veres as flores bonitas que eu tenho lá na estufa. Dantes, eu próprio cuidava delas, mas agora, estão ao cuidado do Augusto. Fernando, meu filho, porque não deixas a Margarida e o pequeno irem amanhã comigo, lá para o Norte?
– Fernando: – Impossível, avô!
– Avô Guido: – Impossível, porquê?
– Fernando: – Por… por…
– Margarida: – Por causa do colégio do Sandrito. Sabe, ele é muito aplicado e não quer perder as aulas… Até está a preparar-se para passar de classe…
– Avô Guido: – Era só uns diazitos…
– Fernando: – Iremos todos nas próximas férias. Agora, não posso deixar os meus negócios, avô…e além disso, não quero separar-me da minha mulherzinha!
– Avô Guido: – Isso agrada-me, isso agrada-me. Sinto-me feliz ao sabe-los amigos um do outro. Tu, minha filha, conseguiste torná-lo ajuizado. Houve tempo que receei que… Mas tudo isso passou. Agora, és um chefe de família exemplar, um marido modelo. A tua mulherzinha é encantadora, e o Sandrito…
– Fernando: – O Sandrito é um anjo…
– Sandro – Socorro!!! Socorro!!! Ai, que me afogo, que me afogo!!! Quem me acode?!

Ao ouvir este apelo do pequeno, logo Margarida e Josué se dirigiram ao quarto de banho. O quadro que se deparou, encheu-os de consternação: Sandrito, amigo de mexer em tudo, manobrara as torneiras do duche, e, ficara literalmente encharcado. Até pelos ouvidos deitava água.

-Avô Guido: – Que aconteceu ao meu netinho?…
– Fernando: – Nada avô, nada de importância. O Sandrito molhou-se um “pouco”.
-Avô Guido: – Então, mudem-lhe a roupa rapidamente, não vá ele engripar-se.
– Fernando: – Que pena ele engripar-se. Maldito rapaz, que fizeste para ficares neste deplorável estado?
– Sandro: – Foi sem querer…
– Fernando: – Sem quer? És um estúpido, isso é que és!
– Sandro: – Eu quero ir para minha casa, eu quero a minha mãe!
– Fernando: – Querias… Querias a tua mãe, mas não vais, nem por sombras.
-Sandro: – Ai, isso é que vou! vou… vou…
– Fernando: – Não grites, senão afogo-te…
– Margarida: – Calma, calma, por favor, eu tratarei do Sandrito…
– Sandrito: – O meu nome é Paulo. Não quero chamar-me Sandrito. Nunca mais. Vocês são maus e malucos. Eu quero a minha mãe!
– Margarida: – Paulo, não grites tanto, porque assim o avô assusta-se, se te ouve….
– Sandro: – Esse velho não é meu avô, nem você é minha mãe, nem aquele é meu pai. Estou farto de vocês, que são uns malucos. Não quero jogar mais este jogo, quero ir para casa de minha mãe!
– Margarida: – Deixe para mim as questões diplomáticas, Josué. Ouve, Sandrito querido, não te ponhas assim zangado, pois, ainda nos havemos de nos divertir muito. Aconselho-te a não ires embora, sem comeres aquelas coisas boas que estão na mesa…
– Sandro: – Já comi um pudim, e, ninguém viu…
– Margarida: – Ah sim? e, olha lá, o pudim era bom?
– Sandro: – Se era bom, até lambi o prato!
– Margarida: — E o pudim era de…baunilha, não era?
– Sandro: – Não. Era de chocolate…
– Margarida: – Que pena! os de morango, são os melhores . Pelo menos, eu gosto mais deles…
– Sandro: – E eu também…
– Margarida: – Pois não percas a ocasião, palerma. Podes comer todos quantos quiseres…
– Sandro: – Quantos? Pode ser quinze pudins?
– Margarida: – Tantos, não. Até podiam fazer-te mal.
– Sandro: – Não, não…se não me dás quinze, vou-me embora, e, já…
– Margarida: – Quinze pudins?… Isso é pudins a mais… Podias até rebentar…
– Sandro: – E se eu rebentar, a vocês não aconteceria o mesmo?
– Margarida: – Bem. Terás os quinze pudins, mas tens de prometeres que continuarás a representar o teu papel de Sandrito, até o avô se ir embora. De acordo?
– Sandro: – Está bem. Mas eu quero os quinze pudins…
– Margarida: – À mesa, procura falar o menos possível. Sabes, assim poderás comer mais coisas boas.
– Sandro: – Isso tudo, estou de acordo. Mas agora diga-me, que roupa é que a “mamã”me vai vestir?
– Margarida: – Sei lá, olha, enquanto a roupa seca, vais vestir uma bata minha. Olha lá, mas que é isto que tens aqui no braço?
– Sandro: – É a tatuagem das “Lobos Maus”, e eu sou o chefe!
– Margarida: – Sim?!… Deves ser muito valente, e, por isso te nomearam chefe!
– Sandro: – Lá no bairro, ninguém me bate, e estão todos às minhas ordens.
– Margarida: – Estás a ver que és um homem importante. Fica aí quietinho que já te trago a roupa… E depois despacha-te para ir-mos para a mesa.
– Avô Guido: – Diz-me, Márcia, adaptas-te bem à tua nova vida, não tiveste pena de deixar a América?
– Margarida: – Em toda a parte se pode estar bem, desde que o “nosso querido marido” nos acompanhe…
– Avô Guido: – E tu, Sandrito? Não passas aqui melhor do que na América?
– Fernando: – O Sandrito gosta muito de cá estar…
– Sandro: – Eu gostava mais de lá estar …
– Avô Guido: – Ah, sim, então porquê?
– Sandro: – Divertia-me mais. Andava com o meu bando “Lobos Maus”,e ia para outras galáxias. Assim…
– Margarida: – Come Sandrito. Não brinques. Queres mais um pedacinho de fiambre?
– Sandro: – Sim,”mamã”, e dá-me também disso aí verde…
– Margarida: – Gelatina?
– Sandro: – Sim, mas que não se desfaça, pois gosto de comê-la com os dedos.

À roda daquela mesa, estavam sentadas pessoas tão diferentes umas das outras: o decrépito ancião, com a sua reluzente careca; o atraente Josué Teixeira; a linda jovem Margarida; e o endiabrado rapazito, que mantinha em sobressalto os falsos pais.

A essa hora, já estaria Isabel em algures na sua tournée. Quão longe estaria ela de pensar que a sua casa servia nesse momento de palco a uma peça cómica…cómica? Analisando melhor, também tinha os seus aspectos trágicos.
A ignorada morte do verdadeiro Fernando, a comovedora velhice do avô, o empenho de um rapaz agradecido, em evitar um grande desgosto ao seu benfeitor…

– Avô Guido: – Augusto, o meu remédio. Tu já te tinhas esquecido?
– Augusto: – Está aqui, senhor Guido. Olhe que eu nunca me esqueci…
– Avô Guido: – Sabes, minha filha, não posso sair de casa sem levar atrás de mim, uma farmácia. Este maldito coração… Mas espero que não dure muito…
– Margarida: – Não diga isso, avô. Olhe que está com um óptimo aspecto!
– Avô Guido: – Ora, ora. Não te aflijas, filha. Depois de vos ter visto tão felizes e contentes, nada mais me resta a fazer neste mundo. Vivi muito e a vida também cansa. Ir-me-ei tranquilamente, sabendo que o Fernando escolheu uma boa companheira. Toda esta favorável mudança do meu neto, é obra tua, Márcia, e, bendigo-te por ela.
– Margarida: – O Fernando sempre teve bom coração.
– Avô Guido: – Sim. Disso, estou certo, pois não desmente a minha raça. Todos nós, na juventude, fomos um pouco loucos, mas sem graves consequências. E agora me lembro, que é feito do teu irmão Josué?
– Fernando: – Josué?… Ah sim, Josué. Pois continua a dar muitos concertos no estrangeiro. Ele está bem…
– Avô Guido: – Costuma escrever-me pelo Natal. Há quanto tempo que não o vejo. É um bom rapaz, o Josué!
– Fernando: – Pois, concordo, não há melhor do que ele.
– Margarida: – Eu, pessoalmente, acho-o um pouco presumido. Claro, que só o conheço por carta…
– Avô Guido: – Presumido?! Talvez se tenha tornado assim agora, depois que compõe música. Ele continua com a mesma mania da música, não continua, Fernando?
– Fernando: – Creio que sim, avô. E parece que ganha bastante dinheiro.
– Avô Guido: – Ora, tolices! Eu não consigo compreender esta música moderna. Para mim, é um chinfrim que me ataca os nervos. Mas sejamos justos com Josué, o único defeito que ele tinha, era ser mais sossegado, mais obediente e mais aplicado do que tu, meu filho. Isto não podia eu perdoar-lhe, quando vocês eram pequenos. O meu amor-próprio de avô sofria, embora procurasse sempre dissimulá-lo.
– Fernando: – Ele estima-o muito, avô!
– Avô Guido: – E eu a ele. Parece que os estou a ver, quando tinham quinze anos. Vocês eram tão parecidos, que toda a gente os confundia. Mas tu eras muito alegre e brincalhão, ao passo que o Josué era mais comedido. Tomava a vida demasiadamente a sério. Punha tal veemência nos seus afectos e nos rancores, que me assustava…
– Margarida: – Muito interessante, gostava de travar mais amistosas relações com ele…
– Avô Guido: – Isso, também lhe agradaria, tenho a certeza. Vocês dar-se-iam muito bem.
– Margarida: – Talvez não, assusta-me tal veemência…
– Avô Guido: – Ele continua solteiro? Ouvi dizer que tinha grandes êxitos junto das mulheres…
– Fernando: – Ora, não acredite, avô. São só gabarolices!
– Avô Guido: – Gabarolices?! Mas tu próprio me disseste repetidas vezes que, as mulheres eram loucas por ele.
– Fernando: – Disse-o por graça, por troça…
– Avô Guido: – Nada disso. Lembro-me perfeitamente daquela artista brasileira, que esteve quase a suicidar-se por causa dele; e daquela milionária americana, que não conseguiu que o Josué casasse com ela, embora o seguisse por toda a parte. E de tantas outras…
– Fernando: – Mas isso já foi há muito tempo…
– Avô Guido: – Mas tu próprio me contaste tudo isso. Teu irmão é um conquistador como não há outro igual!
– Margarida: – Safa! Que homem tão perigoso, esse Josué!
– Sandro: – Mamã, só comi oito pudins, e, tu prometeste-me quinze!
– Avô Guido – Quinze pudins?! Mas isso é um disparate!
– Sandro: – Quero quinze pudins, já disse e bato o pé!
– Margarida: – Obedece ao avô, menino… (está calado, pois, comerás os outros na cozinha, não sejas palerma…)
– Avô Guido: – Conheci um menino que morreu de indigestão, por ter comido quinze pudins.
– Sandro: – Isso são histórias! E se eu morrer, melhor para mim, pois, o meu pai diz que eu sou “carne para canhão”.
– Avô Guido: – “Carne para canhão”, que horror! Teu pai diz isso?
– Fernando: – Digo por brincadeira, avô. Esse pequeno é um tontinho.
– Avô Guido: – Pois, é uma brincadeira de muito mau gosto, Fernando. Parece-me que vocês estão a criar muito mal este menino. Deviam mandá-lo para um colégio interno…
– Margarida: – Tem muita razão, avô…

Ia para acrescentar mais qualquer coisa mas ficou em suspenso, ao escutar o ruído de uma chave rodando na fechadura.

(continua…)

Fonte:
Colaboração do autor.

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Arquivado em Novela, O Escritor com a Palavra

Carlos Leite Ribeiro (O Avô Guido – Parte I) Novela em 4 partes

Apreciação de Tito Olívio

Carlos Leite Ribeiro é um escritor multifacetado, que se dedica à criação literária em diversos géneros, movendo-se com facilidade entre a investigação histórica e a comédia.

A obra presente, “O Avô”, é uma gostosa comédia de teor revisteiro, que vive de gagues e trocadilhos, que se vão sucedendo de uma forma tão natural, que mais parece o desenvolvimento de uma narração de factos reais. O humor é uma arte difícil, sobretudo se não utiliza no jogo peças de sucesso garantido, mas susceptíveis de ofender alguém, como a política, as instituições sociais e administrativas, a moral vigente e a religião maioritária.

O autor escolheu para este trabalho a modalidade de teatro, que já demonstrou dominar com naturalidade, e os quadros apresentados atingem o humor característico da revista à portuguesa, sobre que assentarem peças teatrais, detentoras de sucesso nos palcos de outras décadas passadas. “O Avô” é uma peça com diversas personagens, criteriosamente definidas e intervenientes entre si na comédia.
(Tito Olívio, poeta e escritor )

Francisco Margarido Ribeiro, que todos tratavam por “Guido”, depois de ter terminado a instrução primária, abandonou a sua aldeia perto da cidade de Bragança, e foi para casa de um tio que tinha uma padaria em Lisboa. Foi aí que aprendeu a arte de fazer pão.
Alguns anos depois, por sugestão de outro tio, também industrial de panificadora e que estava imigrado já há anos no Brasil, Guido partiu para terras do outro lado do Atlântico.

E um dia, embarcou no navio Lima que, depois de passar pelo Funchal e por São Vicente (Cabo Verde), chegou por fim a Salvador, onde um primo o esperava. No dia seguinte, os primos embarcaram em outro navio que os transportou até à cidade do Recife.

Nos primeiros tempos na capital do Estado de Pernambuco, trabalhou como moço de fabricação de pão; mais tarde o tio nomeou-o como distribuidor e vendedor de pão em bairros do Recife.

Numa casa de pessoas abastadas desta cidade, conheceu um dia uma jovem senhora, viúva de nome Maria Mello, com um filho de tenra idade, proprietária de uma indústria de rapadura na cidade de Triunfo.

Engraçaram um com o outro e um dia, Guido aceitou o convite de Maria Mello e ambos foram morar para Triunfo. As coisas corriam bem entre eles e o negócio de fabrico de rapadura prosperava. O problema foi a família da Maria, que nunca lhe perdoou ela ter-se juntado com um português e para mais padeiro.

Como a situação não era nada agradável, ambos foram viver para a cidade de Garanhuns, conhecida também como a “cidade das flores” onde se estabeleceram com o negócio da rapadura e da panificação.

Pouco tempo depois de se estabelecerem nesta cidade, casaram-se na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também conhecida por Igreja de Cuscuz. Foi uma festa familiar, pois só os familiares do noivo estiveram presentes.

Foi nesta festa que entre primos e tios, combinaram em estenderem os seus negócios pelas cidades do Recife, Triunfo e Garanhuns. Começaram por adquirirem postos de abastecimento de combustível e, mais tarde, supermercados nestas três cidades.

Por essa altura, nasceu um filho de ambos.

Com a idade a avançar e os filhos criado, o casal Maria e Guido visitaram várias vezes Portugal passando férias perto de Bragança, distrito de Trás-os-Montes, onde compraram um velho e grande casarão que aos poucos o foram recuperando. Com a morte de Maria Mello e depois de seus filhos, Guido regressou a Portugal em companhia de seus dois netos, um filho de seu filho natural e outro de seu enteado.
Fonte: Rogério Haruo Sakai
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NOVELA: O AVÔ GUIDO

Aventuras! Bem-vindas sejam, sempre que trouxerem à vida algum encanto, alguma novidade, qualquer coisa que saia da vulgaridade quotidiana!

Correspondendo ao seu desejo, surgiu naquele instante, com a chegada do imprevisto, a trocista resposta do Destino…

Margarida, ouviu confusamente, o ruído de uma chave na fechadura. E, no espelho em que se mirava, viu, cheia de surpresa, abrir-se a porta de entrada e dar passagem a três desconhecidos: um velho, um rapaz e uma criança.

Com a boca aberta e um bocado de creme na ponta do nariz, Margarida, voltou-se muda de surpresa.

As três figuras avançavam para ela, e a criança, um rapazito, apartou-se dos outros, correndo a pendurar-se ao pescoço.

– Sandro: – Mamã querida … mamãzinha!

O espanto impediu-a de lutar contra os seus intempestivos beijos. Quis falar, mas a sua garganta não emitiu qualquer som. Atrás da criança, avançava o velho, murmurando ternamente:

– Avô Guido: – A minha neta, a minha netinha!

E, por último, a terceira personagem adiantou-se, e, atraindo-a para si, apresentou-a:

– Fernando: – Avôzinho, aqui tem a minha mulherzinha!

Margarida, fechou os olhos. Estava certa de que sonhava. Dentro de um segundo, acordaria, encontrar-se-ia na cama, ou, talvez no autocarro. Apertou os dentes, procurando despertar. Abriu outra vez os olhos. Continuava em casa da sua amiga Isabel. Não sonhava. Na sua frente, estavam ainda o velho, o homem e a criança, que lhe sorriam ternamente.

Avô Guido: – Filhinha, não dá um beijo ao avô?… Desejava tanto conhecer-te. O Fernando falou-me muito de ti. Aproxima-te minha querida. Os meus pobres olhos quase já não vêem, mas, adivinho que és muito linda…

Era o velho mais enrugado que a jovem vira na sua vida. Não tinha um único dente, e, muito pouco cabelo. Parecia que o menor sopro de vento, poderia deitá-lo por terra. Sentia-se petrificada, e mal deu pelo beijo que o velho lhe depôs na sua fronte.

Fernando: – Passaram-te as dores de cabeça, querida?… O avô lamentou que a tua indisposição te impedisse de nos acompanhar…

O pesadelo continua. Estariam loucos os três?…deviam de estar, com certeza! A começar pela feíssima criança que lhe chamava mamã, e a acabar no jovem que lhe chamava sua “mulherzinha”. O jovem contaria uns trinta anos e era muito alto e também distinto. O cabelo castanho e muito claro, contrastava com a sua pele morena. Os olhos escuros e expressivos, pousavam nela com angustiosa insistência. Assustada, passou a mão pela fronte, retirando-a cheia de creme. A convicção de que devia ter uma aparência pouco atraente, aumentou o seu mal-estar. Com um gesto brusco, afastou o braço do jovem e retrocedeu uns passos.

– Margarida: – Faça o favor de não me tocar, ou, pedirei socorro!

– Fernando: – Que dizes, querida?

– Margarida: – Olhe que não sou sua mulher, e, nem sequer o conheço!

Seguiu-se um minuto de silêncio, interrompido por uma risada do garoto, e pela voz aflautada do velhote, que se deixara cair numa cadeira…

– Avô Guido: – Que diz a pequena, Fernando?… Dói-lhe ainda a cabeça?

– Fernando: – Já está melhorzinha. Sente-se encantada por te ver, Avôzinho. Olha lá, estás confortavelmente instalado nessa cadeira?

– Avô Guido – Eu, estou muito bem assim, filho.

O denominado Fernando, voltou-se depois para o pequeno, que mexia no televisor, produzindo toda a sorte de ruídos incómodos.

– Fernando: – Está quieto, Sandrito!

– Sandro: – Está bem,”papá”…

Em seguida, encarou Margarida, dizendo-lhe em voz baixa:

– Fernando: – Queira explicar-me a sua absurda atitude, menina. Isto não é o que ficou combinado…

– Margarida: – O que ficou combinado?… Mas eu não sei o que ficou combinado…

– Fernando: – Não vai agora faltar à sua palavra?… Comporte-se…

– Margarida: – Mas…
Alguém toca a campainha da porta de entrada…

– Fernando: – Vou abrir. Deve de ser o Augusto, o criado do avô, vou abrir a porta. entra, Augusto. Encontraste tudo o que precisávamos?… Leva estão tudo para a cozinha.
– Avô Guido: – Estou muito cansado, filhos, muito cansados mesmo. Não devia ter vindo, pois, já não estou para estas andanças. As viagens são para gente mais nova. Mas o Augusto tanto insistiu em que eu consultasse esse especialista em Leiria, e tudo para quê?… Para, no fim de contas, me dizer que não tenho remédio senão esperar a morte. Que eu morro de velhice…
– Fernando: – Não sejas pessimista, avô!…
– Avô Guido: – Mas não me importa esta situação, podes acreditar. Sabendo que és feliz, que tens finalmente juízo e que possuis um lar ditoso. Foi isso que me decidiu na verdade a deixar o meu casarão em Trás-os-Montes, e, vir até Leiria. Queria vê-los, e conhecer a Márcia e o meu bisneto… Augusto…mas onde é que está o Augusto?… São horas de tomar o remédio. Estou a ficar muito fraco…
– Fernando: – O Augusto está a preparar o teu café com leite. Depois do jantar, acompanhar-te-ei ao hotel, em São Pedro de Moel. É pena que não possas ficar aqui, mas, a casa é muito pequena…
– Avô Guido: – Não, não. Não quero incomodá-los, demais, agora que estão instalados de novo. Amanhã, voltarei para a minha casa, e, já não sairei mais de lá. Vocês irão ver-me, não é verdade, Márcia, minha filha?
– Fernando: – Márcia, não ouve o avô?…
– Margarida: – Não me chamo Márcia. Esta brincadeira começa a ser muito desagradável, muito desagradável mesmo…
– Fernando: – Claro que sim, claro que iremos, avô. Iremos e até muitas vezes. Mas, agora avô, vais dispensar-nos por cinco minutos, sim?…O Sandrito far-te-á companhia… Mas onde está ele?…há, estás aqui! … Faz companhia ao Avôzinho, mas com muito juízo!
– Sandro: – Sim,”papá”…
– Fernando: – Márcia, chega aqui à cozinha, por favor…quero-lhe dizer que o seu comportamento é revoltante. Até parece que enlouqueceu, ou se esqueceu…
– Margarida: – Os senhores são completamente loucos!… Queira me explicar o que se está a passar, pois, julgo-me vítima de um pesadelo, em que o senhor é a principal personagem!
– Fernando: – Como?… Porventura a senhora não é amiga da dona desta casa?
– Margarida: – Claro que sou. Mas não acho que isso tenha que ver com…
– Fernando: – A Georgina disse-me que chegara a acordo consigo.
– Margarida: – Georgina?! Quem é essa, Georgina?
– Fernando: – É a dona da casa…
– Margarida: – A dona desta casa chama-se Isabel, e foi ela que me emprestou a casa, por esta noite.
– Fernando: – Mas a dona da casa, chama-se Georgina…
– Margarida: – Georgina?… Agora, compreendo. A Georgina, é a amiga da Isabel.
– Fernando: – E a Isabel, quem é?…
– Margarida: – É a amiga da Georgina!
– Fernando: – Calma, calma. Esclareçamos isto. A menina diz que a Isabel é …
– Margarida: – A Isabel e a Georgina, compartilham desta casa, de que nós estamos a dispor com um certo à vontade, pelo que vejo. Eu sou amiga da Isabel…
– Fernando: – E eu, amigo da Georgina.
– Margarida: – Muito me alegro, mas isso não explica que o senhor me chame sua “mulherzinha”, e me considere mãe desse horroroso rapaz que…perdão!…esquecia-me de que é seu filho…
– Fernando: – Não pude encontrar outro melhor. Tem-me feito passar umas horas insuportáveis. Cheguei ao ponto de compreender a resolução de Herodes…
– Margarida: – Ah, o Sandrito não é seu filho?
– Fernando: – Não, não. Graças a Deus que não é!
– Margarida: – Então, não estou a compreender?…
– Margarida: – Contratei-o, tal como contratei a si…
– Margarida: – Perdão, queira repetir o que disse?….
– Fernando: – Disse o quê?…
– Margarida: – Isso do meu contrato. Quero fazê-lo calar, dando-lhe um grande bofetão e exigindo-lhe pedido de desculpas.
– Fernando: – Como?!…
– Margarida: – O senhor é um malcriado, um insolente, que está a ofender-me. Eu não fui contratada para…
– Fernando: -…para representar o papel de digníssima esposa e mãe, o qual, de resto, lhe foi paga com generosidade!
– Margarida: – Decididamente, o senhor está louco! o senhor, pagou a mim, quando e como?
– Fernando: – Acaso, a Georgina se esqueceu de dar-lhe os quinhentos euros?
– Margarida: – Não conheço a Georgina, nem nunca a vi, na minha vida!
-Fernando: – Então, a menina, não é a artista, companheira de Georgina que, devia tirar-me destas dificuldades?
– Margarida: – Não sou atriz, e, nunca soube representar sequer comédias de amadores.
– Fernando: – Mas que demônio é você? Que Diabo?… Explique-se de uma vez!
– Margarida: – Nada lhe explicarei, se me falar nesse tom. Vou sair imediatamente desta casa, para que o senhor represente a sua farsa. Ou lá o que é.
– Fernando: – Perdoe-me. Perdoe as minhas palavras, mas estou desesperado. Compreendo que deve ter-se dado um equívoco. Georgina prometeu-me que, quando eu chegasse aqui, esta noite, me esperaria uma sua amiga, que representaria o papel de minha esposa. A própria Georgina o teria interpretado, se não fosse a sua partida para essa maldita tournée. Entretanto, entregou-me a chave da casa e…compreende a minha surpresa ante a sua atitude.
– Margarida: – Mas que caso tão intrincado…
– Fernando: – Volto a pedir-lhe que me desculpe, menina, e agora, será tão amável que me queira explicar…
– Margarida: – Vou explicar-lhe com todo o prazer. Sou uma amiga da Isabel cheguei há poucas horas a Leiria. Embora natural desta cidade, vivo desde muito nova em Lisboa. Mas, voltando à questão, a Isabel permitiu-me que passasse a noite em sua casa. Nada mais lhe poderei dizer.
– Fernando: – Terrível! Terrível! E a outra, a amiga da Georgina?
– Margarida: – Quando cheguei, só cá estava a Isabel, preparando-se para seguir para a tournée.
– Fernando: – Será possível que a Georgina se tenha esquecido? é uma cabecinha de vento…
– Margarida: – Ignoro tudo quanto se refere a Georgina, a si, ao seu avô, e ao seu filho, senhor…senhor… Caro senhor, agora faca o favor de sair do quarto, para que eu mude de roupa e me vá embora.
– Fernando: – Você vai-se embora?! E que direi eu ao avô?!
– Margarida: – Como deve de calcular, não me interessam os seus problemas familiares. Tenha a bondade de sair.
– Fernando: – Você diverte-se ao ver um homem desesperado. Que coração o seu!
– Margarida: – Não lhe permito que duvide da bondade do meu coração. Se você pudesse ver a figura que faz, dando voltas e mais voltas, como esses cães que tentam morder a própria cauda!
– Fernando: – É muito impiedosa!
– Margarida: – Perdoe-me, mas quando me assalta a vontade de rir, é superior às minhas forcas. Na escola, isso granjeou-me muitos castigos. Mas adiante, Suponho que não lhe interessarão as minhas anedotas escolares. Leio nos seus olhos, que o senhor não deve de gostar muito de humor.
– Fernando: – Em troca, você deve tê-lo em demasia.
– Margarida: – O humorismo é uma arma defensiva, com que se escudam os que têm excesso de sensibilidade…Bravo!!! Que bonita me saiu esta tirada! Sinto não poder incluí-lo em algum artigo ou crônica…
– Fernando: – Ah, você é escritora?
– Margarida: Não o diga por troça. Pode ser escritora e não ter bigode, nem usar óculos e gravata. Sou jornalista. Ou, antes, fui. Agora sou secretária particular.
– Fernando: – Muito particular?
– Manuela: – Porquê?…
– Fernando: – É que não tem aspecto de secretária.
– Margarida: O que lhe pareço, então?
– Fernando: – Olhe, se quer que lhe diga a verdade, uma menina…e malcriada.
– Margarida: – É muito amável. Começo a achá-lo simpatiquíssimo…
– Fernando: – Está a rir-se de mim, sem ter em conta a minha situação. Ria-se, ria-se à vontade. Tudo isto acontece por eu ser um sentimental!
– Margarida: – Sentimental?! Que enorme surpresa!
– Fernando: – Naturalmente. No fim de contas, que lhe importa que o velho sofra um desgosto ou que morra?
– Margarida: – O velho? Refere-se ao seu avô?
– Fernando: – Não é meu avô.
– Margarida: – Engraçadíssimo!!! O senhor tem um filho que não é seu filho; uma esposa que não é sua esposa; um avô que não é seu avô…E o criado? Por acaso o criado é autêntico, ou será… algum príncipe encantado?!
– Fernando: – Meu avô, não é meu avô, embora quase o seja…
– Margarida: – Que originalidade! Ter um “quase avô”!
– Fernando: – É avô do meu meio-irmão… do Fernando…
– Margarida: – Fernando?!… Também possui um nome…que não é seu nome?…
– Fernando: – O meu nome é Josué. Fernando era meu irmão…
– Margarida: – Era?!…
– Fernando: – Pois era. Morreu há poucos meses, num brutal desastre.
– Margarida: – Cada vez o entendo menos…
– Fernando: -E, contudo, é muito fácil entender. O velho julga que eu sou o Fernando. E eu deixo-o nessa ilusão. Está meio cego, meio surdo, e com a vida segura por um fio. Tem quase noventa e cinco anos. A sua cabeça já não está tão lúcida como dantes. Nem o Augusto, nem eu, nos atrevemos a participar-lhe a morte do neto. Queria-lhe com loucura. Há pouco tempo, esteve à morte, com um ataque cardíaco. Fui a Trás-os-Montes visitá-lo. Ao abrir os olhos, tomou-me pelo Fernando, julgando que ele regressara da América.
– Margarida: – O seu irmão vivia na América?
-Fernando: – Pois…pois…na realidade, não vivia. Sinto que faça má ideia de meu irmão. Era um pouco desorientado, mas… e não, não vivia na América. Mas o avô julgava-o lá. Fui tudo por causa de um caso bastante infeliz, que o avô teve de resolver à força de dinheiro. Disse que ia para a América, a fim de regenerar-se…
– Margarida: – Mas, não foi?…
-Fernando: – Não. Dedicou-se a passear pela Europa, gastando assim a quantia que lhe deu para empreender vida nova. Todavia, por intermédio de um amigo, escrevia “da América”para o avô. Custa-me um pouco contar-lhe isto…
– Margarida: – Você, gostava do seu meio-irmão?
– Fernando: – Eu gostava do meu irmão, embora, só nos víssemos de longe em longe.
– Margarida: – Então, o Fernando nunca mais pediu dinheiro ao avô?
– Fernando: – Ah, pediu, pediu. Para obter mais dinheiro do velhote. Ocorreu-lhe dizer que se casara. Era um bom estratagema. Imagine: as despesas com as casas, os filhos, as doenças destes, etc. Era um verdadeiro achado. Assim, decorreram sete anos, e assim passaria toda a vida, se, entretanto, não tivesse morrido…
– Margarida: – Naturalmente, que isso do casamento, não era verdade?
– Fernando: – Não era não, por felicidade!
– Margarida: – Começo a compreender a situação.
– Fernando: – E assim, como o avô não via nenhum de nós há muitos anos, confundiu-nos. Fisicamente, parecíamos extraordinariamente, apesar de sermos apenas irmãos, por parte da mãe.
– Margarida: – E por isso, o senhor se converteu em Fernando?…
-Fernando: – Só para o avô, está claro. Era muito fácil. Bastava escrever-lhe e visitá-lo a miúdo. Mas surgiu uma complicação, quando melhorou dos seus achaques e recobrou parte da sua lucidez…
– Margarida: – Lembrou-se então da família, não é assim?
– Fernando: – Sim, e dos numerosos filhos do Fernando…
-Margarida: – Então, quantos eram eles?
– Fernando: – Muitos! Por felicidade, o meu irmão tinha-os “matado” um a um, afim de obter o costumado auxílio para os “funerais”. Só lhe restava o mais velhito…
-Margarida: – Adivinho o resto da história: o senhor teve de contratar uma família!

(continua…)

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Colaboração do autor

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