Arquivo da categoria: Cronicas – Contos

Lino Mendes (Baú de Memórias: A Serração da Velha)

(Lino Mendes é de Montargil/ Portugal)

Trata-se de uma tradição muito antiga, datada possivelmente do século XVII e que se festejava  na noite de quarta-feira da terceira semana da “Quaresma”.

Era, como se deduz uma festa pagã, hoje quase desaparecida no nosso país, festejava-se de maneira diferente de terra para terra, tendo como ponto comum, o “testamento”.

Mas, o que simbolizava  a “Serração da Velha”?

Dizem uns que com a mesma se pretende” celebrar o renascimento da Natureza e a expulsão dos demónios do inferno”, enquanto outros referem tratar-se de “um rito de expulsão da morte,” ou mesmo de “ um ritual de passagem mercado pelo desejo simbólico de renovação”.

Terras havia onde as “serradas” eram as velhas que acabavam de ser “avós” ou solteironas que ainda” queriam casar”. Na maioria as pessoas de idade  nem apareciam à janela e quando o faziam era para lhes dar troco, atirando-lhes com um balde água e não poucas vezes urina. Mas também havia quem lhes abrisse a porta, lhes oferecia qualquer coisa, evitando assim a “serração”. Claro que o boneco que simbolizava a velha era queimado no final.

Talvez possamos definir a “Serração da Velha”— nalguns lados também chamada de “ Serra da Velha” e “Serra das Velhas”—“como  o enterro do  Inverno e o início da Primavera”, que marca um interregno lúdico no calendário religioso.

E em Montargil, como era?

Não temos muitos elementos, diremos mesmo que temos poucos. Que me  lembre, não havia “boneca”, recordo-me vagamente, de uma “serração”, feita   há uns cinquenta /sessenta anos. A garotada fazia barulho, com matracas ou batendo em tábuas, ao mesmo tempo que diziam os seguintes versos:

Serre-se a velha “Barrinha”
lá do outro lado da ribeira,
Onde está a comer perna de burro
Pensando que é farinheira.

Mas o Freitas. Mais velho uns anitos, diz-nos que batiam em latas fingindo que iam a serrar, e lembra-se ainda de duas quadras:

Serre-se a Angélica do Zé Mestre
que ela está a roer num pau;
deixou tudo aos Bexigas
não deixou nada aos carapaus.

 Serre-se a velha Maria Luísa,
serre-se e torne-se a serrar,
porque ela tem ossos tão duros,
que nem a serra quer entrar.

Como se pode ver pela segunda quadra, a “serração” incidia algumas vezes em casos da vida real. Mas o que mais uma vez é evidente, certo que desconhecendo os costumes das terras vizinhas, é a enorme diferença em relação a outras terras.

Não há boneca que no final seria queimada, o que aqui acontecia durante a queima dos “compadres”  e das “comadres”; não havia testamento, o que por aqui se verificava no final do “Enterro do Entrudo”. E por falar em testamento, e quando não se fazia o “enterro”, o senhor “António Júlio” também aparecia no Outeiro apregoando as “ deixas” que de maneira satírica” contemplavam algumas figuras da terra.

Fonte:
O Autor

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Aparecido Raimundo de Souza (Inconfundível)

No berçário da maternidade, o molequinho assedia a garotinha. Puxa conversa.

Menininho:
— Oi, gatinha! Não me lembro de ter visto você antes de hoje!

Menininha:
— Realmente. É a minha primeira vez. Na verdade, acabei de chegar.

Menininho:
— Que legal! Eu também acabei de ser colocado aqui! E continua: — Eu sou um menino!

Menininha:

— Como sabe?

Menininho:

— Espera a enfermeira virar as costas que eu lhe mostro.

Cinco minutos depois a enfermeira deixa a sala e se afasta silenciosamente. A garotinha ataca.

Menininha:
— Pronto, ela saiu.

Menininho:
— Quietinha. Ela vai voltar. Esqueceu de acender a luz.

Menininha:
— É mesmo. Não havia percebido esse detalhe…

Realmente a enfermeira retorna e acende uma espécie de abajur especial que invade o ambiente de forma suave, deixando a sala quase em penumbra.

Menininha:
— Então, ela se foi.

Menininho:
— Calma. Você é bem apressadinha.

Menininha:
— Nem tanto. Levei nove meses para nascer.

Menininho:
— Eu também…

Menininha:
— Quem falou?

Menininho:
— Um homem alto, de branco.

Menininha:
— Ele usava uma máscara no rosto?

Menininho:
— Usava. E tinha um bigode engraçado…

Menininha:
—… E também carregava um negócio esquisito em volta do pescoço que de vez em quando colocava nos ouvidos?

Menininho:
—Sim. Aquele é o doutor pediatra. Aquilo que ele usa se chama estetoscópio. Serve para ouvir o coração.

Menininha:
— Você é bem sabido para um piá na sua idade.

Menininho:

—Gosto de observar as coisas.

Menininha:
— Está gostando deste lugar?

Menininho:
— Não, tudo muito parado. E você?

Menininha:
— Achava melhor de onde eu vim. Era mais quentinho. Lembro que ficava toda encolhidinha, às vezes dava uns chutes. Ai ouvia a voz de mamãe, depois de papai… Aqui, além de frio, é meio triste!

Menininho:
— Concordo. Pra falar a verdade estou cansado de ficar olhando para o teto.
Menininha:

— Eu idem. Olha, você está me enrolando. A enfermeira deu no pé faz um bom tempo. Não vai retornar tão cedo. Agora me conta: como sabe que é homem?

Menininho:
— “Jo lo se!…”.

Menininha:
— Quer deixar de ser exibido? Fale português claro. Além de tudo ainda pronunciou as palavras de forma errada. Não se diz “jo…

Menininho, interrompendo bruscamente:
—…Ta, foi mal!

Menininha:
— Pois então: como sabe seu sexo? Você disse que ia me mostrar. Deixa de papo furado e vamos direto ao assunto.

Menininho:
— Mocinha intransigente, você. Mas, ta ai: gostei do seu jeito… Vamos nos dar bem.

Menininha:
— Ande logo.

O pequeno levanta um pouco a coberta e cochicha.

Menininho:
— Olha aqui.

Menininha:
— Onde?

Menininho:
— Aqui.

Menininha:
— Estou olhando, mas não estou vendo nada!

Menininho:
— Como não está vendo nada? O troço está visível!

Menininha:
Ué, pode até estar, mas eu não estou vendo mesmo.

Menininho:
— Levanta um pouco a cabeça.

Menininha:
— Pronto!

Menininho:
— Viu?

Menininha:
— Não. Afinal, o que é que tem ai?

Menininho:
— Estica o pescoço, criatura. Parece que nasceu cansada! Olha o tamanho…

Menininha:
— Deixa de ser bobão. Já estiquei o pescoço e realmente não vi nem estou vendo porcaria nenhuma. Tamanho! Tamanho de quê?

Menininho:
— Não é possível. Vira um pouco de lado.

Menininha:
— Assim?

Menininho:
— É. Conseguiu?

Menininha:
— Ah, agora deu pra perceber…

Menininho:
— Legal. Diga então o que você realmente viu?

Menininha:
— Nossa! Preciso fazer isso?

Menininho:
— O que você acha? Fala logo. Acho que você está mentindo. Não viu coisíssima nenhuma. Ou se viu está com vergonha…

Menininha:
— Vi sim. E não estou com vergonha de nada. Seu moleque idiota!

Menininho:
— Você chegou onde eu imaginava. É como havia previsto: você não viu porcaria nenhuma.

Menininha:
— Vi. Eu vi. E não me chame de mentirosa.

Menininho:
— Você me xingou primeiro. Disse que sou idiota.

Menininha:
— Ta desculpe.

Menininho:
— Está desculpada. Agora para me deixar bem alegre e levantar meu astral, desembucha. Diz ai, minha linda, o que foi que você viu?

Antes de responder a mocinha se abre num sorriso encantador.

Menininha:
— Seu sapatinho. É preto!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para Cornos Avariados. SP: Ed. Sucesso, 2011

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Alexandre Dumas (O Angelus nos Mares da Sicília)

O dia se tinha escoado em meio a exaustivos cuidados para evitar o naufrágio, e a noite começava a descer. Aproximávamo-nos de Messina, e eu me lembrava da profecia do piloto, que nos havia anunciado que duas horas após a Ave-Maria teríamos chegado ao nosso destino. Isso me recordou que desde nossa partida eu não havia visto nenhum dos nossos marinheiros cumprir ostensivamente os deveres da Religião, que no entanto os filhos do mar consideram sagrados.

 Havia mais: uma pequena cruz de oliveira incrustada de nácar, semelhante àquelas que os monges do Santo Sepulcro fazem e os peregrinos trazem de Jerusalém, havia desaparecido de nossa cabine, e eu a havia reencontrado na proa da embarcação, acima de uma imagem da Madonna di Pie’ di Grotta, sob a invocação da qual nossa pequena embarcação estava colocada. Depois de me ter informado se havia um motivo particular para mudar a cruz de lugar, e ter sabido que não, eu a retomei de onde estava e a levei à cabine, na qual ficou desde então. Estava claro que a Madonna, agradecida sem dúvida, nos protegera na hora do perigo.

 Nesse momento eu me virara, e percebi o capitão próximo a nós.

 — Capitão — disse-lhe — parece-me que em todos os navios napolitanos, genoveses ou sicilianos, quando vem a hora da Ave-Maria, se faz uma prece em comum. Não é esse o seu hábito a bordo do Speronare?

 — De fato, Excelência, de fato! — respondeu vivamente o capitão — E devo esclarecer que estamos embaraçados por não o podermos fazer.

 — Mas o que o impede?

 — Desculpe-me, Excelência, mas como nós conduzimos com freqüência ingleses que são protestantes, gregos que são cismáticos e franceses que não são nada, temos sempre receio de ferir a crença ou de excitar a incredulidade de nossos passageiros pela vista de práticas religiosas que não serão as deles. Mas quando os passageiros nos autorizam a agir cristãmente, somos muito agradecidos a eles por isso. De sorte que, se o permite…

 — Como não, capitão! Eu lhes peço, e se quiserem podem começar em seguida; parece-me que já está próximo das dezoito horas…

 O capitão tirou seu relógio, e vendo que não havia tempo a perder, anunciou em voz alta:

 — A Ave-Maria!

 A estas palavras, cada um saiu das escotilhas e lançou-se no convés. Mais de um, sem dúvida, já havia começado mentalmente a Saudação Angélica, mas a interrompeu para vir tomar parte na prece geral.

 De um extremo ao outro da Itália, essa oração, que cai em uma hora solene, encerra o dia e abre a noite. Esse momento do crepúsculo, em toda parte cheio de poesia, no mar se acresce de uma santidade infinita. Essa misteriosa imensidade do ar e das ondas, esse sentimento profundo da fraqueza humana comparada ao poder onipotente de Deus, essa escuridão que avança, e durante a qual o perigo sempre presente vai ainda crescer, tudo isso predispõe o coração a uma melancolia religiosa, a uma confiança santa que soergue a alma nas asas da fé. Essa tarde sobretudo, o perigo do qual acabáramos de escapar, e que nos era lembrado de tempos em tempos por uma onda encapelada ou rugidos longínquos, tudo inspirava à tripulação e a nós um recolhimento profundo.

 No momento em que nos juntávamos no convés, a noite começava a tornar-se mais espessa no oriente. As montanhas da Calábria e a ponta do cabo de Pelora perdiam sua bela cor azul para se confundir em uma tintura acinzentada que parecia descer do céu, como se estivesse caindo uma fina chuva de cinzas. A ocidente, um pouco à direita do arquipélago de Lipari, cujas ilhas de formas extravagantes destacavam-se com vigor sobre um horizonte de fogo, o sol alargado e listrado de longas faixas violetas começava a embeber a orla de seu disco no Mar Tirreno, que, cintilante e movimentado, parecia rolar ondas de ouro fundido.

 Nesse momento o piloto levantou-se atrás da cabine e tomou em seus braços o filho do capitão, que pôs de joelhos sobre o estrado. Abandonando o leme, como se a embarcação estivesse suficientemente guiada pela oração, sustentou o menino para que o balanço não lhe fizesse perder o equilíbrio. Esse grupo singular destacou-se logo sobre um fundo dourado, semelhante a uma pintura de Giovanni Fiesole ou de Benozzo Gozzoli. Com uma voz tão fraca que apenas chegava até nós, e que entretanto subia até Deus, começou a recitar a prece virginal, que os marinheiros escutavam de joelhos, e nós inclinados.

 Eis uma dessas lembranças para as quais o pincel é inábil e a pena insuficiente; eis uma dessas cenas que nenhuma narração pode descrever, nenhum quadro pode reproduzir, porque a sua grandiosidade está inteira no sentimento íntimo dos atores que a realizam. Para um leitor de viagens ou um amador das coisas do mar, será apenas uma criança que ora, homens que respondem e um navio que flutua. Mas para qualquer um que tiver assistido a uma cena assim, será um dos mais magníficos espetáculos que ele tenha visto, uma das mais magníficas lembranças que ele tenha guardado. Será a fraqueza que reza, a imensidade que olha, e Deus que escuta.

Fonte:
Alexandre Dumas, Le Speronare. Paris: Calmann-Lévy, 1888

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Helena Parente Cunha (O Pai)

Aquele cansaço de existir, aquela gosma impregnando os ossos, os músculos, os tecidos, o sangue estagnado sob a pele desbotada, nem mesmo um gesto a se estender no ar, ela parada na porta, nem indo nem vindo, só ali, não se mexendo, há quanto tempo a última alegria? o último sorriso? cansaço, esforço inútil de respirar, gosma grudando o ar e a parca luz do quarto fechado, cada um na sua bolha fofa e fria, frágil fio por partir num sopro.

O pai parado na porta entre o quarto e agora. Por que você chegou tarde? Onde já se viu moça de família na rua a estas horas? Você sabe que horas são? Há anos são dez horas da noite, nunca mais amanheceu. Quem é aquele vagabundo que estava com você na saída da escola? A manhã inteira esfregando a saia de flanela azul pregueada no banco, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, no universo nada se perde, tudo se transforma. Tudo se transforma em quê? Quem é aquele sacana que estava com você na saída da escola? A escola, sempre a escola. Professora ou aluna, sempre a escola. Diante da turma, que vontade de mandar todos os alunos para aquele lugar, que horror, de que adianta ensinar o teorema de Pitágoras? as meninas esfregando nos bancos as calças blue jeans, o que é cateto? já pensou, o quadrado do cacete?

O pai parado na porta, entre o triângulo e a buzina do carro. Quem é aquele desgraçado que lhe deu carona? São dez horas da noite no universo inteiro e tudo se transforma em triângulos exatos. Quem é aquele… Pelo amor de Deus, pai, eu tenho quarenta anos, até quando você vai pedir satisfações de minha vida? Desculpe, pai, papaizinho, eu rasguei meu vestido brincando no quintal, desculpe.

O pai parado na porta, entre a boneca e a tarde. Quem é aquele menino que estava correndo na rua atrás de você? Você não sabe que é feio menina brincar com menino? E o muro? Você não sabe que menina não sobe em muro? Desculpe, papai, eu só queria ver o que havia do outro lado. Do outro lado do muro havia o havia. As meninas se encontravam com os meninos atrás do muro. Mas papai, eu quero tanto ir ao aniversário de Teresinha, não tem nada demais, eu já estudei, já fiz todos os deveres, estou cansada. Cansaço gosmento na cabeça, nos olhos inchados.

O pai parado na porta, entre o barulho dos ônibus e o tapa. Quem é aquele rapaz que estava conversando com você na esquina? Não tem nada de quinze anos nem nada, sua mãe nunca conversou comigo sozinha antes do casamento. Mas papai, a gente não mora na roça.

O pai parado na porta, entre o caixão que saía e o retrato da mãe vestida de noiva, o retrato pendurado na parede. De agora em diante, minha filha, você tem que tomar conta de seu pai, fazer companhia a ele, seja uma boa filha. Namorar? Quem é aquele miserável que quer desgraçar a sua vida? Você não tem pena de seu pai? Você sabe que horas são? Onde já se viu escola terminar a esta hora? Que reunião que nada. A escola, sempre a escola. Os ângulos de um triângulo somam 180°. Por quê? Nunca, mas nunca mesmo poderá mudar? Esta soma será eternamente mesma num universo onde nada se perde e tudo se transforma? Nada se perde, nem os dias nem os anos nem as horas, nada se perde, mas tudo se transforma num monturo de lembranças rançosas de tudo que não pôde ser no baile de formatura. Professora, sim, senhora, parabéns. A parentada toda despejou-se do interior, aqueles parentes tabaréus, as mulheres com o rosto todo caiado de pó de arroz, os homens com as cabeças engorduradas de brilhantina, todos atarantados junto dela, que vergonha, as tias e as primas enfiadas nos vestidos de tafetá chamalotado, cheios de franzidos, sem saberem se seguravam as bolsas ou os chapéus de palha enfeitados de flores as mais indefectíveis, ah que vergonha, os ternos desajeitados de casimira listrada dos tios e dos primos amarrados às gravatas de cores desgovernadas, sim senhora, parabéns, professora, a primeira aluna de toda a faculdade, vejam só, ela estudou na faculdade, pena que a mãe não esteja mais na terra pra ver, coitada.

Em todo o correr dos anos, tudo se transforma. Pitágoras, não, nem se perde nem se transforma, irredutível na sua exatidão geométrica, os alunos se transformam, os alunos esfregando os bancos, as calças cáqui de brim, os blue jeans, você é menino ou menina?

O pai paradíssimo na porta, entre um ano e outro ano. Quem é aquele veado que estava com você no ponto de ônibus? Ah! é uma amiga, este mundo está perdido e você ainda reclama porque eu me preocupo com você. Hoje nós vamos ao cinema juntos. Hoje nós vamos ao aniversário de sua tia. Por que você quer sair sozinha? Filha ingrata, eu faço tudo para lhe distrair e você fica aí toda emburrada. Domingo que vem nós vamos passar o dia em Itaparica na casa de seu padrinho (mas papai) você não quer ir por quê? Você tem que espairecer.

O pai parado na porta, entre um anúncio e um comprimido. Ainda bem que você chegou cedo, vamos ver a novela das oito na televisão. É boa esta novela, eu gosto muito de novela, você precisa ver novela, distrai muito. Sim papai, de agora em diante, eu vou ver todas as novelas, a das seis a das sete a das oito a das dez, tem das onze? Não, é bom que não tenha porque a gente dorme cedo, você tem que acordar cedo para ir à aula. Por que você quer fazer curso de pós-graduação? Pra quê? Bobagem, minha filha, você já estudou muito, trabalha muito, já não é criança, de noite precisa descansar. Sim, o cansaço, tanto cansaço, torpor guardando os membros e os pés no chão, não quero sair não, papai, vamos ver televisão.

O pai parado na porta, entre a bengala e o catarro. Quem é aquele velho sem-vergonha que saiu com você da escola? Será possível que você não sabe o que os outros vão pensar? Mas papai.

O pai parado na porta, atravessado entre a hora de sair e a hora de nunca mais. Papai?

Cansaço. Cansaço de existir. Ela parada na porta, entre ficar e não sair, o corpo colado numa gosma nem fria nem quente, um amarrado nos ossos, um grude se enfiando pelos poros, alguém tocou a campainha? Ninguém entra ninguém sai, o teorema de Pitágoras demonstrando para sempre até as mais densas profundezas do cansaço essencial. O quadrado do sim é igual à soma dos quadrados de todos os nãos incendiados na medula. Cansaço de viver e não viver. Nada se perde nada se ganha. O universo inteiro transformado num atoleiro bolorento de esquecimentos do que nunca aconteceu em nenhum dia, em nenhuma hora, atrás do muro da escola, onde houve um menino e uma menina.

Fonte:
CUNHA, Helena Parente. Os provisórios. RJ: Antares, 1990

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, Sopa de Letras

Paulo Lima (Americanos)

Para Karen Gadient

As casas, uma pequena fileira de cinco ou seis, eram brancas, feitas de madeira e rodeadas por cercas baixas – também de madeira. As portas e janelas tinham telas de proteção contra mosquitos, e abriam para fora.

Ficavam no alto de um conjunto de dunas a caminho da praia. A brancura das dunas ajudava a realçar a solidão daquelas casas, em vez de ocultá-las.

A gente observava de longe, como se fosse uma aparição do outro mundo. E era de fato de um outro mundo.

– São americanos! – meu pai explicava, com uma pontinha de admiração e respeito.

Os americanos. Eu tinha visto na televisão os astronautas passeando na lua pela primeira vez. Eram americanos. Aquelas manchas brancas se moviam lentamente na escuridão. Seriam mesmo astronautas? E aquilo lá era a lua? Às vezes a imagem ficava tão ruim que eu chegava a duvidar. E então as manchas brancas voltavam a se mover mais uma vez.

As pessoas se aglomeravam em frente ao único televisor da rua pra ver os americanos realizarem a conquista da lua.

Quanto a mim, abandonei a cena e subi a rua correndo pra comprar pão. Mas tomei cuidado com o cachorro da esquina. Por que diabos eles adoram perseguir crianças?

Aqueles americanos que moravam naquelas casas de madeira eram astronautas? Todos os americanos eram astronautas? Achei que talvez fossem todos cowboys. Ou Tarzans. E todos deviam ser muito altos e louros. E suas mulheres eram altas e louras e tinham os lábios com um batom de um vermelho forte e vivaz.

Eu via no cinema.

Um dia, no cinema, deram coca-cola de graça pra gente. Diziam que era invenção americana. Aquilo descia pela garganta sufocando e ardendo. A gente sentia vontade de tossir. E os olhos se enchiam de água. Mas era bom. Era muito bom.

Então os americanos bebiam aquilo?

Nos fins de semana a gente ia pra a praia. Mas não era a praia que me atraia. Era a chance de ver as tais casas de perto. Aquelas casas dos americanos, tão diferentes das nossas casas. A gente passava a uma certa distância delas. Os pés afundavam na areia das dunas. Os dedos se enroscavam na vegetação rasteira. Eu esticava o pescoço pra ver melhor as casas.

Eu ficava esperando que alguém aparecesse na porta de uma delas. Um americano. E dissesse alô pra a gente. Mas se ele surgisse de algum lugar é bem provável que eu tivesse medo e ficasse calado. Eu me esconderia atrás do meu pai e deixaria que ele respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Um dia meu pai chegou com várias caixas de leite em pó. Ele explicou que eram distribuídas pelos americanos da Aliança para o Progresso. Eu não sabia o que era Aliança, nem o que era Progresso. As caixas eram brancas com letras azuis. Tinham o desenho de uma águia. Minha intuição de criança entendeu que recebíamos ajuda porque éramos muito pobres. E eles, os americanos, eram muito ricos.

Eu tinha visto no cinema uma cidade dos americanos. A cidade era Los Angeles, com muitos viadutos, muitos carros, muitos ônibus e muitas pessoas nas ruas. Havia prédios muito altos. A minha cidade, ao contrário, era atravessada por sítios e terrenos baldios. Quando queríamos ir a algum lugar distante, íamos a pé. Às vezes a gente entrava num sítio e roubava caju. Mas a gente sentia medo, pois se o dono nos visse dava um tiro de sal. Não matava, mas dizem que doía bastante. E, além disso, havia o medo de que fôssemos chamados de ladrão, uma palavra tão feia.

Algumas vezes eu ouvia o pai ou a mãe cochichando segredos. – Você sabia que o filho de fulano é ladrão? Ou pior ainda. – Você sabia que a filha de sicrano é safada? E um silêncio grave se instalava no meio deles.

Os americanos eram muito ricos. E nós, muito pobres. Entre eles não havia filhos ladrões nem filhas safadas.

Eu ficava olhando as casas ao longe, tentando decifrar sua rotina, o movimento dos americanos dentro delas, suas conversas, suas brigas. Eu queria ter super poderes pra perscrutar melhor aquelas casas. Como o Super Homem, Fantasma, Capitão Marvel.

Eu sei, porque lia nas revistas de quadrinhos.

Mas eu não sabia que esses heróis eram americanos. Eu pensava que eles eram meus amigos, somente isso.

E se eu fosse invisível? Se eu fosse invisível eu ia entrar na casa dos americanos, sentar com eles à mesa, comer a comida deles, andar na bicicleta do filho deles e quem sabe dar um beijo na filha deles.

Eu tinha visto no cinema. As filhas dos americanos têm nomes curtos, como Mary ou Joan, têm cabelos loiros e bem lisos, tomam sorvete, mascam chiclete e vão para a colônia de férias.

Os filhos dos americanos têm nomes também curtos, como John ou Peter, têm cabelos loiros e lisos, mascam chicletes, andam de bicicleta, vão para a colônia de férias e adoram brigar entre eles. Os mais velhos pedem o carro dos pais emprestados e saem com suas namoradas.

Isso eu vi no cinema.

Os pais e as mães americanos deixam os filhos dormindo com a baby-sitter e vão ao ball dançar com os amigos. Lá eles enchem a cara, falam de negócios, fumam seus cigarros, e às vezes provocam uma briga em que podem praticar um pouco de boxe.

Depois os homens voltam pra casa pressionando um pouco de gelo contra o olho machucado, e confiam os volantes às suas mulheres, a quem chamam de honey e darling.

Um dia quis saber de meu pai:

– Como é que falam os americanos?

Hoje à noite você vai saber, ele disse. E quando a noite chegou, ele pôs seu velho rádio sobre a mesa, girou uns botões e de dentro dele saiu uma voz forte e metálica com uns ruídos estranhos, como se fritassem algo na frigideira.

This is voice of America.

Tornei-me um ouvinte cativo da Voz da América, serviço radiofônico que durante décadas funcionou como um dos emissários da política americana para a América Latina.

Não entendia uma palavra, mas pontualmente, no mesmo horário, eu aguardava meu pai girar uns botões do seu velho rádio pra sintonizar mais uma vez a Voz da América.

This is voice of America.

A gente ia pra a praia nos fins de semana, e meu interesse era bisbilhotar aquelas casas. Meus pés afundavam na areia, se enroscavam na grama rasteira, eu esticava o pescoço e olhava sobre o ombro. Dali de uma daquelas casas deveria sair algum americano e dizer alô. Eu sentiria medo, e esperaria que meu pai respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Mas, pra falar a verdade, eu nunca vi nenhum americano sair de uma daquelas casas. Soube muito tempo depois que eram missionários mórmons, mas houve quem dissesse que eram famílias de engenheiros contratados para auxiliar a Petrobras em trabalhos de prospecção de petróleo por estas bandas.

Meu pai ligava seu velho rádio sempre à mesma hora da noite, girava alguns botões e dele saía, em ondas, uma voz metálica e forte, cheia de ruídos.

This is voice of America.

Décadas depois fui ser estudante em Moscou. Só pra você ter ideia de como são as coisas.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2013/02/americanos-paulo-lima.html

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Carlos Leite Ribeiro (Este Nosso Bairro)

Minha boa amiga, como hoje está a chover e não podemos sair, podíamos coscuvilhar aqui mesmo à nossa porta…

Olhe que este nosso bairro precisa de dar uma grande volta! Olha que precisa, precisa, pois antigamente, não se viam coisas como estas que hoje se veem. 

Sabe que no outro dia, a Isaltina (que é uma verdadeira fera para a filha), implicou com ela por causa de um refrigerante que tinha guardado num dos armários da cozinha? 

– Micas, aonde está o refrigerante que estava aqui, ainda ontem?

A moça corou muito, pensou, e como pode respondeu-lhe: 

– Minha mãe, despejei-o hoje… 

Logo a mãe quis saber “aonde”. A Micas já mais confiante, replicou com ela: 

– Tu também queres saber tudo. Olha, despejei-o na sanita.

Coisas chocantes, chocantes, como vês minha boa amiga!
*****

Também a Francelina perguntou à filha: 

– O que aconteceria se tu estivesses grávida?

O que a filha logo lhe respondeu: – 

– Era um grande problema, minha mãe, pois, não sabia quem era o pai.
Isto sem comentários!
*****

Olha, a Emengárdia comentava no outro dia, em altos gritos: 

– O raio do gato comeu o bife que era para o meu marido. O que é que o pobrezinho agora vai comer?

Logo o inocente do seu filho, o Ernestinho, a aconselhou: 

– Agora, o papá terá de comer o gato…

Como vês, minha boa amiga, cá no bairro é tudo tão inocente.
*****

A calhandreira da Rita, comentou com uma vizinha: 

– O meu canário farta-se de cantar quando eu estou calada. Não sei o que lhe hei-de fazer? A vizinha ouviu, ouviu, pensou e depois aconselhou-a: 

– Olhe vizinha, fale você para ver se o canário se cala.

O certo é que o canário nunca mais cantou.
*****

Ai, antes que me esqueça: O Bertolino, aquele que anda sempre “vinicamente bêbado no outro dia entrou em casa em altos berros: – Sou um puro sangue – sou um cavalo de corrida!. 

A Venância, a companheira que está com ele, logo lhe perguntou: 

– Para tu seres um cavalo, o que serei eu? 

O descarado olhou para ela com desdém e, entre os dentes, sarcasticamente, respondeu-lhe: 

-Tu é que sabes, mas é conveniente que sejas uma égua…

Como vês, minha querida amiga, é preciso ter um grande descaramento. Isto só no nosso bairro!
*****

E a Leonilde, que no outro dia entrou no café vestida não sei de quê, e o Roberto, que tem a mania de ser esperto, perguntou-lhe: 

– Olha lá, tu estás mascarada de quê? 

A Leonilde olhou para ele com desprezo e logo lhe respondeu: 

– Estou mascarada de Lady Godiva!

Como o Roberto que não é estúpido de todo, voltou à carga: 

– Para isso tens o cabelo muito curto! 

Ela sorriu e retorquiu-lhe: – 

– É por isso que estou toda vestida.

Enfim, minha querida amiga!
*****

E a Micaela, que começou a andar em volta de um canteiro, em volta de um canteiro, e quando lhe perguntaram o que andava a fazer, respondeu: 

– Ando a ver se encontro o centro da gravidade…

Vê lá tu, minha boa amiga, como ela ainda tivesse o “centro da gravidade”!

Neste mundo ainda existem pessoas muito desavergonhadas, como por exemplo, a Felismina, que na semana passada perguntou à Márcia como estava o marido. Ela, naturalmente, respondeu-lhe que estava bem. Foi então que a desavergonhada lhe atirou com esta: 

– Minha querida amiga, o que é que acontecia, se eu aparecesse toda nua ao pé do teu marido?!

A Márcia, não ficou nada contente com a pergunta. Pensou um pouco e em tom de gozo, retorquiu-lhe:

– Com certeza que o meu marido morreria de susto ao ver uma mulher tão malfeita

A Felismina sorriu desavergonhadamente e, secamente, respondeu-lhe: 

– Mas tu ainda agora mesmo disseste que ele estava vivo…

Ho minha querida e boa amiga, isto só à bofetada, só à pancada!

*****
Mas a melhor é a daquela Isabel, que tem a mania de ser púdica. Comentava noutro dia com a mãe: 

– Não sei aonde ontem meti os collants?

A mãe, tentou lembrar a filha: 

– Olha, minha filha, talvez as tivesses perdido…Como ontem o teu patrão te deu boleia, não te lembras? 

A filha logo concordou: 

– Tens razão mãe – e logo acrescentou: 

– Mas olha que não é o que tu pensas. Eu só tirei os collants… Porque, porque a correia da ventoinha se estragou e eu enrolei-as na poli, compreendes, na poli. – A mãe encolheu o nariz, e continuou: “

– E o que é que aconteceu às calcinhas? 

A filha ficou muito atrapalhada e, como pode, respondeu-lhe: 

– Agora me recordo, tirei-as para limpar o para-brisas, pois estava a chover…

Ai… Isto de mulheres… Os homens que as aturem! 

Nota: com tudo os gostos que as aturamos (pelo menos é a minha opinião.)

Fonte:
O Autor

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, Portugal

Carlos Leite Ribeiro (Revista Recanto da Prosa e do Verso – Ano III – Fevereiro de 2010 )

Nita Ferreira
SONETO A FEVEREIRO

O ano caminhando e é já Fevereiro
Do céu cinzento gotas cristalinas
E um vento agreste, frio e desordeiro
Varre a calma das horas peregrinas

Mascarado de alegre feiticeiro
No Carnaval dos anos a passar
Filho que mata a mãe ao soalheiro
Assim na meninice ouvi contar

Mas deve ser mentira ou balela
Pois que debaixo da minha janela
Vi passar o santinho Valentim

Trazia sorrisos, flores e abraços
Tudo numa caixa embrulhada em laços
E um bilhetinho de amor p’ra mim
G G G G G G G G
Ana Maria Nascimento
EROSÃO

Cingida por imensa solitude,
Busco, afinal, ouvir a tua voz
para extinguir esta tristeza algoz
que limitou a minha plenitude.

Mas, sem sucesso, vejo a finitude
surgindo em seu propósito veloz
acompanhada da tristeza atroz
presente em toda a sua latitude.

Àquele espaço ainda chega o pânico
entrelaçado num grande vazio
dando evasão ao ímpeto vulcânico.

A despertar, em torno, um arrepio,
transformando o aspecto do amor romântico,
numa tela de sonho em desvario.
G G G G G G G G
António Barroso (Tiago)
QUADRO SEM NOME

Era a imagem da degradação,
À porta do grande supermercado,
Apático, dobrado,
Com dois cães atados a um varão
Que suportavam a chuva, encolhidos,
Com olhitos meigos de sacrifício.
Ele amealhava, tostão a tostão,
As dádivas dos passantes mais sentidos,
Para, mais tarde, lá p’ro fim do dia,
Ir, de seringa em punho, matar o vício
Debaixo da ponte da ribeira.
Olhei o quadro e sem ironia,
Não senti pena de qualquer maneira,
Apenas me afastei, angustiado,
Calando fundo os sentimentos meus
Por ver os cães, com ar tão devoto,
Olharem aquele tipo escanzelado,
Porco, barbudo, sujo e todo roto,
Como um Deus!
G G G G G G G G
Cibele Carvalho
SOLIDÃO

Que invade o meu quarto, minha cama,
quando minha alma, por ti, chama.
Que domina meu corpo e pensamento
quando, longe de ti, experimento
o gosto do vazio que ficou
no espaço aberto que você deixou.
Com a solidão converso a cada dia
– ela me faz companhia
em meus momentos de dor
e também me acaricia
nas minhas noites de amor.
Reconheço os passos dela
na ausência dos teus passos
e ela é quem se apresenta
quando busco os teus abraços.
Bem diferente de ti,
ela não sai do meu lado
e, em sua boca, deposito
o meu beijo apaixonado.
(RJ, 22/02/10 )
G G G G G G G G
Dalton Luiz Gandin
NAS FOLHAS DA VIDA

Do ponto,
partida ou morte.
Marco sul,
risco pro norte.
Desenho,
assim, seu nome.
G G G G G G G G
Eugénio de Sá
DESISTÊNCIA

Enquanto outros combatem esforçados
eu trêmulo me atenho, impreciso
afivelado ao rosto patético sorriso
num jeito que me traz desfigurado

Simulação de um homem de verdade
sou parco de vontade, de ambição
Mais me não move o gesto e a razão
que o gosto de qualquer frivolidade

Sei desta vida pouco mais levar
que o atavismo de uma alma breve
Já conformada à negação de amar

Que almo inda me pode tornar leve
a terra que me vai acobertar;
outra expressão que tudo isto releve?

Bogotá, Colombia
26.FEV.2010
G G G G G G G G
Fernando Morais

PORTO

Aqui o silvo do comboio velho
ali o prédio acocorado à tarde

ouvem-se passos no lume do poente
é a mulher de xaile que vem de balde

ouvem-se vozes junto ao rio cinza
que o nevoeiro deixa tremeluzir a luz

mais outros passos esgueiram-se no leve
rodopiar das folhas … soma e segue …

o surdo mundo, pouco a pouco fala
nos rumores do voo de andorinhas

são as minhas mãos frias que apetece
meter nas tuas para matar o tempo

mas o tempo não passa como acontece ao dia
somos nós que passamos pelo tempo

e o Porto ajeita-se e estica as pernas
enquanto o sotaque, lindo, permanece.
G G G G G G G G
Flor de Esperança (Maria Beatriz Silva)
JURO

Nunca brinquei no carnaval
Nem nos sentimentos da poesia
Tenho várias formas de expressar alegria

Do carnaval sempre tive outro conceito
Mas… Para encontrar você lindo amor
Na folia vou entrar, pois esse é o único jeito.

No meu bloco imaginário sempre criei nosso cenário
Princesa, feiticeira, cigana… Para você já desfilei
Dança do ventre, tango, salsa, lambada, valsa já dancei.

Mas hoje eu juro que vou entrar nessa folia
Batuque, frevo, samba, suor e poesia…
Sou seu par, sua magia!

Lindo amor por você eu juro
Que vou dançar até o sol raiar
Olha nos meus olhos com desejos de bailar

Pega-me com sede… Com força…
E jura que não vai mais soltar
E que nesse carnaval você veio para ficar

Permita-me uma dança sensual
Estou pronta… Me vesti de Deusa do Amor
Deixa-me ser seu vendaval

No amor fazemos um temporal
Venha com calor,
meu pássaro verde do amor
Sentir esse sabor!

Olha-me dentro do meu olhar
Agarra na minha cintura e jura
Que comigo vai dançar com ternura
Com desejo, com loucura…

Quero um banho do seu amor
Navegar no seu cheiro, no seu sabor
E no embalo dessa dança
Leva-me por onde você for

Sussurra juras de amor no meu ouvido
Beija minha boca com um beijo atrevido
Hortelã é o sabor

Lindo amor jura, por favor,
Que essa dança
vai selar para sempre o nosso amor

Laje do Muriaé – RJ Em 13/02/2010
G G G G G G G G
José Feldman
UM DIA…

Um dia você pega as suas coisas, faz as malas, se despede de quem ama e sai porta afora, para um mundo novo, buscando a liberdade e a felicidade tão sonhada.

Um dia você aluga um apartamento ou uma casa, aprende que tem que cozinhar para si próprio, se quiser comer. Que tem que limpar sua casa, se quiser um lugar organizado, aprende que independência da casa dos pais não implica em fazer o que bem entende. A sociedade tem regras, e você começa a sentir isto na pele, e deve segui-las.

Um dia você vê que só o seu dinheiro poupado durante tantos anos a fio, já não é o bastante, então tem que procurar um emprego, para poder se sustentar. Sempre achava que a liberdade era uma coisa linda e maravilhosa, e você não precisaria se preocupar com nada. Agora vê, que ela engloba responsabilidades, deveres e direitos.

Um dia você se sente deprimido, pois a vida independente não é um mar de rosas, e se arrepende de ter saído da casa de sua família, e pensa em voltar. Mas, também pensa em tudo o que aconteceu para sair, e fica dividido entre o que fazer.

Um dia você descobre que apesar de estar sendo exatamente igual a seus pais, o seu lar é o seu castelo, e você se sente feliz consigo próprio, e assim como seus pais eram os reis na casa deles, você é o rei na sua.

Um dia você descobre que ser rei de seu castelo envolve deveres, direitos e responsabilidades, e que mesmo assim não é fácil, é uma batalha constante para manter seu pedacinho de chão.

Um dia você descobre que está envelhecendo, que está ficando mais chato, mais turrão, a memória está falhando, se sente mais cansado, se sente meio frustrado, pois seus sonhos eram apenas sonhos, e as lágrimas correm tão facilmente em momentos inesperados.
Um dia você percebe que nos momentos que deveria falar, se calou e em outros, quando deveria ficar calado, falou.

Um dia você descobre que muitas coisas que fez não tinham razão de ser, e que se pudesse voltar atrás, mudaria tudo, entretanto, existem tantas outras que mesmo com algum final desastroso, deixaria como está.

Um dia você descobre que os seus verdadeiros irmãos são aqueles que um dia passaram por sua vida e deram um encontrão em você e seguiram adiante. Outros, que estiveram sempre presentes, mesmo que ausentes.

Um dia você descobre que nunca esteve sozinho, que sua família esteve sempre ligada a você em todos os momentos de sua vida, e você sempre, na verdade, seguiu os passos dela, sem nem mesmo perceber.

Um dia você percebe que aquilo pelo qual você sempre lutou só vai ser reconhecido por você mesmo, pelos que acompanharam sua caminhada e aqueles que realmente te amaram, e sempre estiveram a seu lado torcendo por você e incentivando quando você cambaleava.

Um dia você percebe que os verdadeiros inimigos de sua evolução não estão nas ruas, mas dentro da casa que você abandonou, dizendo-se irmãos, primos, sobrinhos, etc. Percebe que você é infeliz, pois ainda está ligado ao que pensam de si.

Um dia você percebe que é hora de se desvincular disso tudo e seguir os seus próprios passos, caminhar com seus pés, fazer sua própria vida e ser aquilo que você quer ser, não aquilo que os outros querem que você seja.

Um dia você percebe que a felicidade está dentro de você, e você tinha este tempo todo a chave para abrir esta porta e liberta-la.

Um dia você vai ter coragem suficiente para deixar suas coisas de lado, abandonar as malas do passado, carregar dentro de seu coração aqueles a quem ama e quem realmente estiveram a seu lado e sair porta afora, para um mundo novo, livre e feliz…

Um dia você vai perceber que finalmente realizou seu sonho e finalmente é feliz.

(Ubiratã, Paraná, 22/05/08)

G G G G G G G G

Hermoclydes S. Franco

“GUERREIRA”

Pelos sonhos de mulher,
guardados no coração,
sonhados a vida inteira…
Pela visão da existência,
pelo calor da emoção,
tu foste, sempre, a primeira…

Nos dons da emotividade,
das intenções mais sutís,
tu és frondosa roseira
que dás perfume e dás flor,
espinhos tornas ternura,
do orvalho fazes goteira…

Pela graça do sorriso,
pelo calor dos abraços
e pelo ser companheira…
Pelo brilho dos olhares
– uma lágrima a esconder –
quanta vez te vi faceira…

Pelo enfrentar dissabores
sem blasfêmias, sempre altiva,
alma quase feiticeira,
que, na fé inquebrantável,
tua força espiritual
forjou-te a Grande Guerreira!…
G G G G G G G G
Humberto Rodrigues Neto
A ÚLTIMA NAMORADA

Já vem descendo sobre mim o outono
desta existência de gentis primores,
quando fui presa e ao mesmo tempo dono
de inesquecíveis e sutis amores!

Quantas premi de encontro aos lábios loucos
num fervilhar de anseios e arrepios,
paixões que agora vão tornando, aos poucos,
meus dias de sol cinzentos e vazios!

Mas neste inverno de uma vida finda,
que me aproxima da eternal morada,
no anonimato eu sei que me ama ainda
a minha derradeira namorada!

O amor que me dedica é uma benesse,
pois nunca teve algo em comum comigo;
dela só espero o mimo de uma prece
e o ramo de uma rosa em meu jazigo!
G G G G G G G G
Regina Bertoccelli
VENTOS E TEMPESTADES

Não temo os ventos fortes,
nem as tempestades violentas
que chegam varrendo tudo,
escancarando minhas janelas,
roubando meu sossego…

Não me importa que raios e trovões
gritem em meus ouvidos,
emudeçam minha voz,
tumultuem meus pensamentos…

Sei que isso é passageiro,
que a bonança virá e me trará de volta
o sol e a revoada de pássaros
farão festa em minha janela…

Mas temo os ventos e as tempestades
de teu coração que atingem o meu
num ímpeto de raiva e fúria descomunal

Chegam de repente, escurecem o meu dia
e me aprisionam no calabouço sórdido
de tua mente perversa e insana

Ah, quanta insensatez há em ti…
Do amor nunca saberás enquanto
viver em teu ser tanta estupidez…
G G G G G G G G
Tchello d’Barros
“M” E “H” NO 609

São Paulo é uma cidade grande, muito grande. M e H conheceram-se numa dessas situações inesperadas, que talvez por comodidade convencionamos chamar de acaso. M, há tempos que estava acostumada com a rotina do metrô, meia hora para ir e outra longa meia hora para voltar. Para suportar melhor esse limbo de tempo inútil, lia revistas de fotonovelas, que adquiria numa loja de livros usados, próxima à estação da Praça da Sé. A monotonia desse trajeto só era quebrada lá de vez em quando, com alguma paquera, pelo fuzuê com algum trombadinha ou algum ator fazendo sua performance e passando o chapéu.

Aquela manhã de sábado com garoa não prometia muito. Vagão cheio, M incomodou-se um pouco por ter que ficar em pé, e cavalheirismo, como se sabe, não anda muito na moda. Incomodou-se um pouco mais quando, no frenesi das pessoas que apressadamente entravam e saíam do vagão, um sujeito passou por trás dela, encostando-se, inevitavelmente. Este momento deve ter durado apenas um segundo, mas foi o suficiente para ela sentir um hálito de hortelã, e ele percebeu a fragrância de alfazema nos cabelos dela. Quando ele se afastou, ela olhou de soslaio, para identificar o atrevido, ao tempo que H, também discretamente, observava sua silhueta bem desenhada pelo reflexo da janela. Ato seguinte, um assento que ficou vago permitiu que a vida voltasse ao normal no escapismo de mais algumas páginas da fotonovela.

Desceu na estação de sempre e depois de mais uma manhã rotineira, ao meio-dia em ponto estava livre, seu fim-de-semana começou com o fim da garoa. Logo ela estava zanzando pelas barracas da feirinha da Liberdade, onde adquiriu umas bonequinhas de origami. O almoço se resumiu à alguns camarões no palito, assim, almoçava caminhando, observando os artesanatos e antigüidades espalhados pelas banquinhas. Naquele vai-e-vem de tanta gente, julgou ter visto o sujeito do metrô, próximo à uns quadros de paisagens japonesas que um pintor apresentava no chão de uma pracinha. Tímida do tipo ousada, aproximou-se para ter certeza, mas não viu mais o vulto, certamente era outra pessoa.

Lembrou-se que precisava renovar o estoque de suas revistas antigas de fotonovelas, e lá foi ela em direção ao sebo. Ao chegar foi diretamente à sala das tais revistas, onde levou um susto, pois ninguém menos que H estava ali, escolhendo alguns exemplares de bolsi-livros de faroeste, sua única distração literária. M imaginou inicialmente que H estivesse lhe seguindo, mas logo concluiu que isso não poderia ser, pois quando ela chegou ele já se encontrava no local. Depois pensou em coincidência, em destino, essas coisas que não entendemos muito bem, e logo já estava fantasiando que fosse algum investigador contratado, um tipo de detetive. Saiu de tais devaneios quando percebeu que ele já não estava mais naquela sala, então tratou de escolher alguns exemplares de revistas para sua coleção. O segundo susto foi na hora de pagar, pois ambos chegaram juntos ao balcão, o que fez com que o balconista perguntasse o típico ‘quem está na vez?’, o que inicialmente causou um certo constrangimento para ambos, mas foi a ocasião para uma breve troca de olhares e o esboço de um sorriso. O fato de H ter permitido que M pagasse primeiro, foi a senha para continuarem conversando e o manuseio do pagamento permitiu que ambos vissem que nenhum dos dois estava usando aliança.

As recentes aquisições permitiram que a conversa se prolongasse num café próximo dali. Esgotado o assunto das preferências literárias, trataram de puxar outros temas corriqueiros, amenidades bem triviais, apenas umas desculpas para poderem continuar se olhando, um adentrando o semblante do outro, tentando desvendar camadas de personalidades e nuances dessa atração inusitada. Esse mesmo ardente encontro de olhares, sequer permitiu que falassem sobre relacionamentos, fossem anteriores ou atuais, profissões ou endereços, esses itens que definem tanta gente. Eram apenas dois intensos olhares cruzados, que em seguida receberam a cumplicidade de duas mãos que se tocavam de leve, no início, e assim não demorou para que um certo par de lábios ávidos também se encontrassem. A vida naquele momento era apenas um sabor de hortelã e um suave aroma de alfazema, naquela esquina da megalópole.

Não se conheciam, não queriam se conhecer, mas desejavam se entregar. Talvez essa substância abstrata que chamamos de natureza humana, explique o fato de que dentro de poucas horas, já no número 609 de um hotel da rua Ipiranga, o par estivesse resfolegando num faiscante entrelaçamento com fusão de corpo e alma. O caos e o céu ao mesmo tempo. Depois, quando os corações foram desacelerando, o suor foi secando e os instintos permitiram que alguma lucidez se instalasse no recinto, começaram a conversar e, conversaram demoradamente, outro prazer que descobriram assim, sem querer. Concluíram que esse enigma, que as pessoas chamam de amor, pode acontecer assim, de repente, numa nublada tarde de sábado, no labirinto da gigantesca cidade. Ao saírem do hotel, ninguém sabia nome, idade, telefone, e-mail ou o que quer que fosse sobre o outro, esses ítens que identificam muita gente, o que não impediu de combinarem se encontrar no saguão do mesmo hotel, no mesmo horário, uma semana depois.

E passados sete dias, na tarde paulistana, desta vez ensolarada, lá estavam M e H novamente, tentando ser discretos na recepção do hotel, mas mal disfarçando a gana de avançar um sobre o outro, o que aconteceu de fato, logo que fecharam a porta do mesmo quarto 609. Pura selvageria. Frisson e êxtase. Volúpia e lascívia. Concupiscência e atração. Luxúria e lúbricas intimidades. Umidade e fricção. Ou o que muitos preferem resumir como tesão. Apagado o primeiro de muitos incêndios, M percebeu então que H havia trazido champanhe com morangos, e H pode enfim também notar os detalhes da lingerie provocante que M escolheu para o novo encontro. Algumas labaredas mais tarde, fruíram daquele prazer de conversar, de poder falar das sensações, dos sentimentos e das percepções desses momentos incandescentes. E falavam da saudade, e dos desejos, e dos medos, e das vontades, e das fantasias, e de todo um outro labirinto, o das afetividades que se entrelaçavam nas relações e no relacionamento. Antes de se despedir, H notou entre os pertences de M uma pequena réplica de espada japonesa, dessas para abrir envelopes, sinal de que ela devia ter passado novamente pela feirinha oriental. Já M, percebeu que H havia adquirido mais alguns livrinhos com histórias de bang-bang. Mas ninguém quis comentar nada, nada de observações, nada de perguntas. Manter algum mistério era muito mais excitante.

E assim se despediram, e assim se reencontraram, e assim foram repetindo seus encontros semanais, pontuados pela entrega total em suas experiências, preservadas por segredos mútuos, quase como se suas vidas particulares nem existissem, como se a vida real acontecesse apenas naquele idílico quarto 609. E mais não precisava. E como é próprio dessas raras uniões onde o casal se completa, se complementa e se funde, chegaram à um nível de cumplicidade e simbiose onde era possível sentir plenamente o estado emocional do outro, apenas pelo olhar, pela voz, pelo toque. Não raro, depois do descanso, abriam os olhos ao mesmo tempo, sonhavam um com o outro, e muitas vezes um ía dizer uma coisa e o outro completava. Ao final de um ano a sintonia era tanta que de vez em quando já se conseguia até mesmo ler o pensamento.

Foi mais ou menos por essa época que M começou a pensar na possibilidade de investigá-lo, de tentar saber mais sobre esse homem misterioso, que lhe fazia tão feliz. Talvez desvendar o cotidiano desse íntimo desconhecido, saber o que ele fazia durante a semana, onde morava, se era casado, no que trabalhava, essas coisas. Mas refletiu bem e escolheu deixar de lado a curiosidade, preferiu não quebrar a magia que os unia, não queria desconfianças, não queria que ele fizesse o mesmo, que descobrisse tudo sobre ela. E assim continuaram, já que toda a felicidade do mundo cabia naquele singelo quarto. Ali era o endereço do amor, da paixão, do romance e do desejo. O resto, era apenas o mundo. E pequenas mudanças naquele quarto eram quase um acontecimento. O dia em que trocaram as cortinas. Uma pequena gravura que apareceu em uma das paredes. Os desenhos florais na estampa de um lençol. E um dia as paredes receberam uma nova tonalidade, o salmão suave passou para um rosa pálido. Isso foi uma grande novidade.

E o tempo foi passando. As fronhas dos travesseiros foram naturalmente se gastando, perdendo a cor, a textura. As conversas agora tinham diminuído um pouco, entremeadas de breves silêncios, que aos poucos foram se prolongando e muitas vezes a falta de assunto era compensada com a leitura de fotonovelas e os livrinhos de bolso. Num dos encontros sequer fizeram amor, apenas trocaram carícias. Depois, uma viagem impediu o próximo encontro, e uma desculpa aqui e outra ali fizeram rarear os sábados dos amantes. Até que numa dessas tardes de muito calor, as paredes do 609 sequer viram o casal se despir, apenas conversaram, olharam-se demoradamente, choraram, abraçaram-se e então convenceram-se de que poderiam parar de se encontrar. O rio da vida que seguisse seu fluxo. Sem culpa, ou rancor, deram-se ainda um longo e afetuoso último beijo.

Na saída para a rua, nenhuma palavra, apenas dois semblantes que se encontravam quem sabe pela última vez e cada um seguiu para um lado. H dobrou a próxima esquina, refletindo sobre isso que as pessoas chamam de amor. Se isso existe mesmo, dura pouco, uns dois anos, concluiu. De seu destino nada sabemos, apenas que deixou de freqüentar uma certa loja de livros usados daquele lado da cidade. M, que tomou o metrô mais próximo, olhava demoradamente as fotografias da revista, mas nada via, apenas pensava em como era possível conhecer alguém com tal profundidade e sintonia sem sequer saber seu nome. Dela também pouco sabemos, apenas que continua usando xampu com perfume de alfazema e adquiriu o hábito de comprar pastilhas de hortelã.

Dizem que aquele sebo fechou. Dizem também que vai reabrir em outro ponto da cidade, mas não se sabe bem onde, pois como sabemos, São Paulo é uma cidade grande, muito grande.
——–

Fonte:
Colaboração de Carlos Leite Ribeiro

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, Poesia

José de Alencar (Ao Correr da Pena I)

A primavera – Eclipse de uma estrela – Espetáculo de graça – As três graças dos gregos e as des-graças de um diletante – Importe de um espetáculo gratuito – o baile do Cassino – A valsa – Nova pomba da arca.

17 de setembro

Estamos na primavera, dizem os folhetins dos jornais, e a folhinha de Laemmert, que é autoridade nesta matéria. Não se pode por conseguinte admitir a menor dúvida a respeito. A poeira, o calor, as trovoadas, os casamentos e as moléstias, tudo anuncia que entramos na quadra feiticeira dos brincos e dos amores.

Que importa que o sol esteja de icterícia, que a Charton enrouqueça, que as noites sejam frias e úmidas, que todo o mundo ande de pigarro? Isto não quer dizer nada. Estamos na primavera. Os deputados, aves de arribação do tempo do inverno, bateram a linda plumagem; a Sibéria fechou-se por este ano, os buquês de baile vão tomando proporções gigantescas, as grinaldas das moças do tom são perfeitas jardineiras, a Casaloni recebe uma dúzia de ramalhetes por noite, e finalmente os anúncios de salsaparrilha de Sands e de Bristol começam a reproduzir-se com um crescendo animador.

Come, gentil spring! Vem, gentil quadra dos prazeres! Vem encher-nos os olhos de pó! Vem amarrotar-nos os colarinhos da camisa, e reduzir-nos à agradável condição de um vaso de filtrar água. Tu és a estação das flores, o mimo da natureza! Vem perfumar-nos com as exalações tépidas e fragrantes da Rua do Rosário, da Praia de Santa Luzia, e de todas as praias em geral!

Doce alívio dos velhos reumáticos, esperança consoladora dos médicos e dos boticários, sonho dourado dos proprietários das casinhas dos arrabaldes! Os sorveteiros, os vendedores de limonadas e ventarolas, os donos dos hotéis de Petrópolis, os banhos, os ônibus, as gôndolas e as barracas, te esperam com a ansiedade, e de suspirar por ti quase estão ficando tísicos (da bolsa).

Esta semana já começamos a sentir os salutares efeitos de tua benéfica influência! Vimos uma estrela do belo céu da Itália eclipsada por uma moeda de dois vinténs, e tivemos a agradável surpresa de ouvir o 1º ato do Trovatore e um epeech da polícia, tudo de graça.

Alguns mal intencionados pretendem que a noite não foi tão gratuita como se diz; mas deixai-os falar; eu, que lá estive, posso afiançar-vos que o espetáculo foi todo de graça, como ides ver.

A autoridade policial depois de participar que ficava suspensa a representação e que os bilhetes estavam garantidos, sendo por conseguinte aquela noite de graça, como esta notícia excitasse algum rumor, declarou formalmente, e com toda a razão, que se acomodassem, porque a polícia, quando tratava de cumprir o seu dever, não era para graças.

Os namorados que tiveram duas noites de namoro pelo custo de uma, os donos de cocheira que ganharam o aluguel por metade do serviço, o boleeiro que empolgou a sua gorjeta sem contar as estrelas até a madrugada, aqueles que lá não foram, não só riram-se de graça, como acharam nisto uma graça extraordinária.


Muito olhar suplicante vi eu nos últimos momentos, humilhando-se diante de um rostozinho orgulhoso e ofendido, clamar com toda a eloqüência do silêncio: grazia! grazia! É preciso advertir que o olhar estava no Teatro Provisório, e por isso não se deve admirar que falasse italiano; além de que, o olhar é poliglota e sabe todas as línguas melhor do que qualquer diplomata.

Finalmente, para completar a graça deste divertimento, as graças com os seus alvos vestidinhos brancos se reclinavam sobre a balaustrada dos camarotes, cheias de curiosidade, para verem o desfecho da comédia. E a este respeito lembra-me uma reflexão que fiz a tempos, e da qual não vos quero privar, porque é curiosa.

Os gregos, como gente prudente e cautelosa, inventaram unicamente três graças, e consta que viveram sempre muito bem com elas. Nós, de mal avisados que somos, queremos ter em todos os divertimentos, nos bailes, nos teatros e nos passeios uma porção delas, sem refletir que, logo que se ajuntarem muitas, podem formar necessariamente um grupo de dez graças.

Maldito calembur! Não vão já pensar que pretendo que as graças tenham sido a causa de tudo isto, nem também que todo aquele desapontamento fosse produzido por alguma graça da Charton. A primadona estava realmente doente, e, aqui para nós, suspeito muito os meus colegas folhetinistas de serem a causa daquela súbita indisposição com o formidável terceto de elogios que entoaram domingo passado. Lembrem-se que os elogios e os aplausos comovem extraordinariamente um artista. Ainda ontem vi como ficaram fora de si as tímidas coristas, unicamente porque lhe deram duas ou três palmas!

Em toda esta noite, porém, o que houve de mais interessante foi o fato que vou contar-vos. Um velho dilettante do meu conhecimento, ainda do tempo do magister dixit, e para quem a palavra da autoridade é um evangelho, teve a infeliz lembrança de justamente nesta noite encomendar um magnífico buquê para oferecer à Charton no fim da representação. Apenas se declarou o relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o que foi pior, com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, que lá deixou ficar com os ares de novo um chapéu comprado pela Páscoa.

No outro dia, o homem, que tinha seus hábitos antigos de comércio, viu-se em sérias dificuldades. Não podia deixar de acreditar, à vista da declaração da polícia, que o espetáculo da noite antecedente fora de graça; mas, ao mesmo tempo, tinha de dar saída no livro de despesas ao dinheiro que gastara com o aluguel do carro, com a gorjeta do boleeiro, com o par de luvas, com o buquê da Charton, o custo da bengala e o estrago do chapéu. Coçou a cabeça, tomou a sua pitada, e afinal escreveu o seguinte assento: Importe de um espetáculo gratuito no Teatro Provisório – 26$000!

O meu dilettanti ainda não sabia que a palavra grátis é um anacronismo no século XIX, e, quando se fala em qualquer coisa de graça, é apenas uma graça, que muitas vezes torna-se bem pesada, como lhe sucedeu. Provavelmente, depois deste dia, o velho lhe aditou ao seu testamento um codicilo proibindo terminantemente ao seu herdeiro os espetáculos gratuitos.

Assim a crônica futura desta heróica cidade consignará nas suas páginas que, pelo começo da primavera do ano de 1854, tivemos um divertimento de graça. Os nossos bisnetos, não falo dos militares de boca aberta , hão de pasmar quando lerem um acontecimento tão extraordinário, e, se nesse tempo ainda estiver em uso o latim, clamarão com toda a força dos pulmões: Miserabile dictu!

Depois de uma semelhante noite, era natural que os dias da semana corressem, como correram, monótonos e insípidos, e que o baile do Cassino estivesse tão frio e pouco animado. Entretanto aproveitei muito em ir, pois consegui perder as minhas antipatias pela valsa, a dança da moda. É
verdade que não era uma mulher que valsava, mas um anjo. Um pezinho de Cendrillon, um corpinho de fada, uma boquinha de rosa, é sempre coisa de ver-se, ainda mesmo em corrupios.

Fiz a amende honorable de minhas opiniões antigas, e, vendo nos rápidos volteios da dança voluptuosa passar-me por momentos diante dos olhos aquele rostinho iluminado por um sorriso tão ingênuo, não pude deixar de fazer uma comparação meio sentimental e meio cosmogônica, que talvez classifiqueis de original, mas que em todo o caso é verdadeira. Quando o mar, que Shakespeare disse ser a imagem da inconstância, revolveu o globo num cataclisma e cobriu a terra com as águas do dilúvio, foi uma pomba o emblema da inocência, que anunciou aos homens a bonança, trazendo no bico um raminho de oliveira. Se algum dia uma paixão de loureira vos revolver a alma, e deixar-vos o desgosto e a desilusão, há de ser um anjinho inocente como aquele quem vos anunciará a paz do coração, trazendo nos lábios o sorriso do amor o mais casto e mais puro.

Fonte:
ALENCAR, José de. Ao correr da pena. SP: Martins Fontes, 2004.

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Walcyr Carrasco (Pinga-pinga de pinguço)

Um passeio nas vans que circulam de bar em bar

Bares do Itaim, Jardins e Pinheiros andam oferecendo um serviço exclusivo para bebuns. É uma van que os leva até em casa. Trata-se, com o perdão de um trocadilho, de um pinga-pinga de pinguços. As vans circulam de bar em bar. arrebanhando os etílicos, durante a madrugada.

Desde que o novo Código de Trânsito entrou em vigor, a polícia anda rondando perto dos bares, bafômetro a postos, em busca de motoristas infratores. Com as vans, os bares garantem faturamento. Os clientes podem mergulhar nos copos, sem depois arriscar a pele no asfalto. Serviços semelhantes já existem na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. Raramente tomo umas e outras. Soube, entretanto. que o clima nas vans é animadérrimo. Imaginem seis bêbados indo para casa. A van estaciona para pegar o sétimo, em novo bar. Descem os seis primeiros.

E aí, que tal a saideira?

Dá-lhe! O inocente que saiu para tomar um ou dois uísques entra na animação. Acorda embaixo do balcão de uma padaria. Também são freqüentes os tipos belicosos e as discussões capazes de resolver o problema do futebol brasileiro.

Eu já disse que o Ronaldinho…

Ah, nego vem falar do Ronaldinho! Não vem! Nãããão veeeeem!

O Ronaldinho? O Ronaldínho?

Sóbrio por necessidade profissional. o motorista tenta aplacar os animos.

-Ô, pessoal, o Ronaldinho joga um bolão.

Os seis se unem.

– Cala a boca!

O coitado silencia. Abre a janela. É obrigado a dirigir a madrugada toda de vidro abaixado. Até o ar está impregnado. Se respirar mais fundo, fica de fogo.

Mais uma parada, entra um rapaz. Tomou só um ou dois goles.

– Eu sozinho. Lembrei da van. Que negócio é esse de ir para casa tão cedo?

Novo tropel. No veículo. fica só um, desmaiado, lá no fundo. Os outros descem, atrás de nova rodada. A van é ideal para fazer amizades. Há quem chegue até mais longe.

A senhora não está bêbada! – desconfia o motorista.

Ela afina a voz, bambeia as pernas.

– Estou bebinha, sim!

Consegue entrar. Aperta-se entre todos. Examina um por um, com o olhar esperto. Um está bêbado demais. Outro, passado da idade. O terceiro, sim, serve! Tem perfil de executivo. Ela afia as garras. Ele nem desconfia., quando descem no mesmo prédio. Sobem juntos no elevador, aterrissam no mesmo andar. Começa a ficar cabreiro quando, após várias tentativas, consegue botar a chave na porta e percebe que ela o espera. Não há tempo para perguntas. Ela entra depressa, vai até o bar e prepara dois uísques. Ele cai duro no sofá. Consegue erguer uma das pestanas meia hora depois.

Quem é você? – pergunta, trêmulo.

Você me convidou para um uísque! – ela retruca, revoltada.

O executivo vasculha o cérebro. Não consegue lembrar. Mas deve ter convidado. Senão, por que ela estaria em sua sala? Bebe mais uma dose para acordar e desmaia. Na semana seguinte, ela já está falando em casamento. Ele continua não se lembrando de nada.

Também existem alpinistas sociais. Como o sujeito que mora na periferia. Quer chegar em casa de carro. A maior parte dos bares adota limites mínimos de consumo, para dar direito a carona. Ele bebe o mínimo. Depois, exige que o levem para a casa. O motorista quase cai nas barrancas do Tietê para chegar até lá. O falso bebum desce alegremente. Os amigos, admirados.

-Tu tá por cima. hein, malandro? Chegando em casa de chofer!

Sorri, vitorioso. Sai mais barato do que táxi. O bêbado desmemoriado é uma tragédia.

O senhor não se lembra do endereço?

Eu aaaaaaaaaacho que é virando aquela rua…

Toca a vasculhar quarteirões.

Certo tipo de bebum não vai de van. É o imprevidente, que saiu de casa em seu próprio carro. O bar oferece o motorista. que dirige para o cliente. Mas bêbado detesta terminar a noite sozinho.
Soooobe aí. Veeeem tomar uma comigo.

Sinto muito. A van do bar vem me pegar em meia hora, esquiva-se o motorista.

Soooobe só meia hooora.

O chofer acaba mais bêbado do que o cliente. Quando a van chega, está cantando na sarjeta. Há quem possa se espantar com a idéia. É uma medida civilizada. Com este calor, poucos resistem a um chope, ou a dois, a três, quatro… Ficam a salvo pedestres e postes!

Fonte:
Revista VEJA. São Paulo. 11 de março 1998.

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Carlos Leite Ribeiro (Esta Juventude …)

(lamentos dos mais velhos…)

Mais velhos, não direi, talvez os mais antigos – de acordo?

No nosso tempo não se via disto – uma frase que se ouve com certa frequência aos mais antigos. Agora, vimos os jovens sempre agarradinhos e aos beijinhos por todo o lado.

No nosso tempo, não se via “esta vergonha” não; tínhamos uma enorme ingenuidade quase a roçar a santidade. Nós quase não olhávamos para as jovens pois tínhamos grande pudor e éramos demasiadamente envergonhados e tímidos. No meu tempo nem tínhamos tentação de saber se as carnes da nossa moça eram rijas ou moles; se ela sabia beijar bem; nem sequer um encosto mais apertado. Nada disso. Éramos uma perfeição. Nos bailes, dançávamos afastados das moças pelo menos um palmo; no escurinho do cinema, ficávamos sempre com as mãos em posição de oração e nunca por nunca a fazer pesquisas por sítios proibidos; para mais, tínhamos sempre a mamã sentada a nosso lado. Nenhuma parte de nosso corpo reagia à aproximação ou quando estamos junto da nossa amada. Nos dias de chuva, nunca procurávamos a entrada de um edifício ou mesmo o vão de uma escada; nunca (o pior era quando esses espaços já estavam ocupados por outro casal).

Nunca por nunca invejámos e muito menos desejámos a namorada dos outros ou mulher casada; nunca!

Rapazes como nós, já não existem.

Um certo colega, o Mário, certa vez foi apanhado por uma vizinha a fazer algo que não “devia” com uma moça. A dita (cuja) vizinha, chamou-o a sua casa para lhe dar uma grande lição de moral e, ao mesmo tempo, dar-lhe umas lições de sexologia prática; no dizer desta senhora já viúva há muitos anos, as lições seriam vinte… Mas o Mário contou a situação aos amigos e, quando a vizinha marcou nova lição, aparecemos a sua porta cerca de dez amigos. Resultado: não passou da primeira lição. O que éramos capazes para perder a nossa ingenuidade para nos integrarmos no mundo dos já muito adultos!

Volto a repetir: rapazes como nós, já não existem…

Também é preciso não esquecer que namorávamos com a moça à janela, mesmo que morasse num 5º andar enquanto o rapaz ficava na rua. Não tínhamos hipóteses nenhumas … Embora há quem diga que nós tínhamos uma “engenharia deveras criativa”; mas isso são boatos!

O caso melhorou (só um pouco) quando apareceram as “lambretas” que só tinham dois lugares e a mamã tinha que ficar de fora. O pior era quando a tal mamã marcava que de dez em dez minutos tínhamos que passar à sua porta ou num local pré-combinado.

E quando apareceram os Volkswagens de três mudanças para a frente e uma para trás? Para “conduzir” era precisa certa “habilidade” pois senão saiam dentro do carro que dolorosos torcicolos.

Rapazes como nós, já não existem…

Em 2001, escrevi este apontamento “MOMENTOS MARCAM UMA ÉPOCA …”

Há nomes que nos marcam para sempre, principalmente, quando se referem à nossa juventude. Para mim, o nome Nan, traz-me recordações da minha meninice.

Teria uns dez anos, morava num rés-do-chão de um prédio da Pascoal de Melo (Estefânia – Lisboa), e no último andar, por sinal o 4º, morava a Nan, uma moça que na altura teria uns 16 ou dezassete anos. A mãe da moça, de nome Sen, viúva de um obscuro subchefe de uma repartição da função pública, era uma figura muito castiça: Muito magra, não muito alta, sempre vestida de preto e, fosse em que estação do ano fosse, andava sempre de sombrinha. Quando aqui em Portugal passou a telenovela “Tieta do Agreste” (que eu parodiei para a radiodifusão), logo me lembrei da D. Sen, que a vi retratada na “Charifú” desta novela. A Nan era filha única e sua mãe a defendia de todos e quaisquer “Moinhos de Vento” (eram como as mamães tratavam os rapazes). Se a moça lhe ia fazer algum recado (compra) perto de casa, logo a mãe se empoleirava na varanda começando logo a berrar assim que ela saía do prédio: “Nan ! não te demores, olha que eu estou aqui à tua espera !” ; ou “Nan ! estás a demorar muito ! Que estás para aí a fazer ?…”. Se nas traseiras da casa, a moça estava a estender a roupa na varanda, lá estava sua mãe ralhando comigo:

– “Olha lá menino, estás a olhar para as pernas da Nan … etc …”.

Recordo-me uma vez minha tia dizer em voz alta para ela ouvir bem:

– “Carlitos, não olhes para cima !Podes estar a cobiçar umas pernas que não valem nada … “.

Claro que a opinião era de minha tia, porque a minha, embora não me recorde bem, talvez fosse uma “bela panorâmica” !

Mas voltando à Nan, andava num colégio de feiras, onde a mamã a ia levar e trazer. Recordo-me de um carnaval no Clube Estefânia, em que a D. Sen quando notava (?) que o par da filha a estava a agarrar “demais”, levantava-se e o ia afastar do corpo da filha. De tantas vezes que repetiu, que se tornou um escândalo hilariante. Nessa altura, um D. Juan da época, virou-se para a D. Sen, perguntando-lhe:

– “Olhe lá minha senhora, é católica ?”. A senhora olhando-o de frente, replicou-lhe:
– “Sou sim, seu desavergonhado !.

Então o “malandreco” respondeu-lhe perante a hilaridade de todos:

– “Então vá com Deus e deixe sossegada a sua filha!”.

Era assim a vida da Nan …

Meses depois, a pequena, não se sabendo muito bem porquê, apareceu grávida. É verdade !. Já na gravidez avançada, tanto a mãe como ela, juravam a pés juntos que não sabiam com “aquilo tinha acontecido”. Algumas vizinha, (daquelas mais aconselhadas), aconselharam a D. Sen a ir a uma senhora de grande virtude, que morava na Horta das Tripas (Casal de Santa Luzia – Rua D. Estefânia) para que ela expulsasse o “Mafarrico” do corpo da moça, porque tal só podia ter sido “obra do diabo”. Outras menos “cultas” diziam que tinha era sido “obra e graça do Espírito Santo”…

Fosse como fosse nasceu um bebé que teve como nome Francisco (o Chiquinho).

Muito mais tarde, já a D. Sen tinha entregado a alma a Deus e o corpo à terra fria, a Nan confessou que “talvez fosse obra de um ajudante de limpa-chaminés”. Na altura, existiam em Lisboa o “limpa-chaminés” que subiam aos telhados, ponham uma corda muito comprida dentro das chaminés e tiravam a “ferrugem”; pelo menos faziam muito lixo. Normalmente quem tinha a chave da porta que dava para o telhado era o locatário do último andar. Assim, um dia, a Nan foi abrir a porta ao ajudante de limpa-chaminés, enquanto o mestre ficava junto às chaminés das cozinhas, segurando a corda, o ajudante abanava – a no telhado.

Ainda segundo o relato da Nan “foi tudo muito rápido”. Nós podemos acrescentar: Rápido e Eficiente! Ficámos sem saber se teria sido no abrir da porta, ou, ao abanar da corda. Mas isso também não interessa.

Claro que a moça teve depois vários namorados.

Enquanto estes esperavam pela dama, havia sempre um “malandreco” a avisá-lo:

– “Não cuspas para cima que ela pode engravidar …”.
E assim, o nome de Nan, ficou sempre gravado na minha memória …
(von Trina – Março 2001)

Fonte:
Colaboração do Autor.

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Átila José Borges (Vivendo o Tarzan para a Platéia)

Ilustração de Ayrton Borges
Meus sonhos de menino eram povoados pela vida circense. Queria ser artista de circo. Qualquer papel me serviria. Queria sentir a platéia.

Um dia o Ayrton resolveu tornar esse meu sonho em realidade. A vizinhança foi convocada para o espetáculo intitulado TARZAN, O REI DAS SELVAS. O mais importante: eu seria o Tarzan.

Não sei como apareceu tanta criança. E para minha maior consagração, a menina que eu andava de olho, uma ruivinha sardenta estava presente.

Os ingressos eram pagos com a nossa moeda convencional que era constituída de caquinhos de louça, obviamente com seus valores determinados pelo “chefe” Ayrton, que também era o diretor da peça.

Nada tinha ensaiado…

As tradicionais três batidas feitas em uma lata velha, para início do espetáculo, foram dadas pela Abigail. O público aguardou alguns minutos e, nada.

O Ayrton ainda preparava o cipó que eu deveria segurar quando entrasse em cena.

Como um bom Tarzan, a contragosto eu estava relutante em entrar vestido apenas com uma calcinha de uma irmã, como uma tanga, segundo exigência da produção.

A demora impacientou ainda mais o público.

O meu “diretor” então, num arroubo de determinação deu-me a terrível ordem: Você não quer entrar de tanga? Então você vai fazer o papel do Tarzan como realmente tem que ser feito, pelado.

Quis abrir o choro, mas fui interrompido: entra! Segure o cipó que vou abrir o “pano” (um lençol dependurado). Artista é artista e pronto! Realmente, aí o diretor mexeu com os meus brios…Afinal, “to be or not to be”; tomei a decisão. Tudo pela arte.

Segurei o “cipó” e o “diretor” colocou no meu braço livre a macaca chita, representada por uma cadelinha que nós tinhamos.

Entrei de costas. O público vibrou!

Passei pelo palco voando. Coloquei a cachorra no chão e sai em célere corrida. A entrada da casa estava obstruída e enfrentar de novo peladão o público seria humilhante. Refugiei-me no quintal aguardando um bom tempo até a saída do último espectador. Mesmo assim fiz uma tanga de folhas e voltei humilhado para a minha casa. Desisti da carreira de artista…

O público não recebeu seus ingressos de volta, ou seja, seus caquinhos de porcelana!
––––––––––––––––––––––-
Nota:
Raro aquela ou aquele que quando criança, quando da passagem de um circo por sua cidade, não imaginou tornar-se artista. O circo durante muitos anos era sempre aguardado com grande expectativa nas cidades brasileiras, quer nos grandes centros quer nos pequenos, pois era praticamente o único veículo que levava arte, alegria e comunicação. Poucas cidades tinham teatros para receber companhias e assim o circo era uma atração especial arrastando numerosas platéias. Para as crianças era um verdadeiro sonho observar malabaristas, contorcionistas, trapezistas e, especialmente, os sempre animados palhaços.

O mundo encantado do circo chamava atenção de garotos e garotas, que muitas vezes passavam a imitar os artistas, alguns inclusive improvisavam circos nos quintais de suas casas. Houve até jovens que fugiram com os circenses imaginando que viveriam maravilhas e não demoraram a voltar para suas famílias, já que a vida de circense não é fácil, aliás, é muito difícil.

Fontes:
BORGES, Átila José. Memórias de um “Guri” (em tempo de guerra) 1936 a 1945. 2a. edição. Curitiba: Editora do Autor, 2007.
Nota extraída de José Domingos.

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Ignácio de Loyola Brandão (Hora de Almoço na Cidade Grande)

Na tarde sombria de segunda-feira, sentado no Viena da Alameda Santos, eu hesitava entre o à la carte e o bufê. Entre pedir a carta, escolher, esperar, decidi pela preguiça, fui ao bufê que é variado, amplo, de acordo com um tempo que exige rapidez e preços acessíveis. Levantei-me, ainda pensando que, nas dicas mineiras da semana passada, me esqueci de recomendar a Casa Cambuquira, de Três Corações, com seus queijos brancos, verdadeiras musses, e os doces de leite Nata Suíça, que batem de longe o famoso e cobiçado La Pataya uruguaio, que a gente, aqui, só consegue quase no contrabando. Lembro-me do Viena desde os tempos em que era uma lanchonete situada em frente do corredor de entrada pela Avenida Paulista. As coxinhas de creme, imensas, o sanduíche com pão italiano e queijo derretido, que valia por almoço e jantar, e as tortas de morango que, no início, eram feitas pela própria dona, provocaram ao longo dos anos um problema: encontrar lugar no balcão, na hora do rush do almoço.

Alguém já parou para observar as pessoas diante de um bufê com suas cores atraentes? Vale por uma sessão de cinema, um programa de televisão. A democracia é total: lado a lado estão executivos com ternos Armani, comerciários, secretárias, estudantes, interioranos (ainda é possível reconhecê-los), bancários, jornalistas, modelos, funcionários das livrarias, consulados, mulheres bonitas. Não, elas não foram fazer compras na Rua Augusta! Há muito a rua deixou de ser point, está se transformando em um amontoado de estacionamentos. A fila diante das comidas se forma, compacta, desorganizada, alguns entram de um lado, outros vêm na contramão, há quem reclame, há quem ceda a vez. Os primeiros devem estar com fome, os outros já passaram pelo primeiro prato e estão voltando.

A diversidade de gostos está nos pratos. Há anos freqüento restaurantes como o Viena, além de circular pelos quilos, e jamais vi dois pratos iguais.

Queria estudar as personalidades por meio do que colocam nos pratos ou na forma como arranjam a comida, separando tudo bem separadinho. Alguns amontoam tudo, outros têm o cuidado de organizar. Tenho uma amiga, diretora de arte que odeia mandioquinha, que faz um desenho, combinando as cores, o verde da alface e da rúcula, o vermelho do tomate, o roxo da beterraba, o amarelo da mandioquinha, o branco do palmito, o alaranjado da cenoura.

Gostava de comer ao lado dela, para admirar o design do prato que devia ser fotografado. A diferença entre o quilo e os bufês é que no quilo não se volta à mesa, porque se paga a cada rodada, as pessoas montam um PF, célebre prato-feito, buscam comidas mais leves.

No bufê há uma certa contenção, vergonha do “pratão”, porque as mesas ficam muito juntas e sempre existe a curiosidade de olhar o prato do outro.

Quantas vezes não ouvi a pergunta: “Essa torta, onde o senhor achou? Não estava lá quando passei!” É que, em certos momentos, a comida termina e enquanto o funcionário busca a reposição, fica um espaço vazio por minutos.

Mas comilões apressados na hora do almoço são impacientes. Os bufês democratizaram o salmão, o carpaccio e o estrogonofe, entre outras. Foram comidas “caras”, hoje estão ao alcance de qualquer um. O caro que ainda não se vê em bufê e em “quilo” é o camarão à grega, imbatível no preço alto. Os vegetarianos ficam na seção de folhas, os carnívoros recomendam ao chapeiro o ponto que gostam. Ali no Viena, na segunda-feira chuvosa, vi um sujeito colocar oito bifes no prato. Tive vontade de segui-lo, daria para a família inteira. Décadas atrás, quando as pizzas rodízio começaram em São Paulo, entrei em uma do Grupo Sérgio, na Augusta. Foi das primeiras. Estava com toda a redação da Editora Três e fomos conferir a novidade. Uma sensação, poucos imaginam o impacto que causou na gastronomia paulistana a chegada da pizza rodízio. Um dia, ficamos boquiabertos, um homem na mesa ao lado comeu 28 pedaços de diferentes sabores. A garçonete chegava, ele aceitava. Vinte e oito fatias correspondem a quatro pizzas grandes e uma média. Devíamos ter fotografado, registrado e enviado ao Guinness.

Agora, no Viena, fiz meu prato, sentei-me e percebi que o sujeito ao lado desenhava com lápis de cera. Ele estava concentrado, tentando retratar uma loira alta e bonita, que comia sozinha, um ar altivo, cheia de si. Sabia que atraía olhares e fingia que não. Desenhava mal o artista de bufê. Por mais que olhasse e se esforçasse, não conseguia um só traço semelhante. Ou ele estava apenas tentando chamar a atenção da jovem? Aí, percebi que na minha mesa tinha um copinho com dois lápis de cera, um preto e outro amarelo.

Levantei-me, dei uma volta, havia muita gente rabiscando as toalhas de mesa, que são de papel. Desenhar enquanto se come. Por que não ler? Acho que sou dos raros que levam um livro para o restaurante. Dia desses, uma senhora me abordou: “O senhor não sabe que faz mal ler e comer?” Não sabia, como e leio há 50 anos. “Que mal?”, indaguei. E ela ficou numa saia-justa, não sabia, sempre ouviu as pessoas dizerem isso. Vou continuar a ler, é uma hora sossegada, me abstraio dos barulhos do restaurante.

Agora, o jovem tentava retratar a loira que continuava indiferente, mas provavelmente com a auto-estima em alta. Será que ele desejava presenteá-la, usar o desenho como apoio para uma abordagem? E me veio à cabeça uma das imagens mais pungentes do cinema, em Os Amantes de Montparnasse (Montparnasse 19), de Jacques Becker, 1957. Modigliani (vivido por Gerard Philipe) precisando comer e vendendo por um preço de banana seus desenhos, de mesa em mesa, nos cafés de Paris, com as pessoas zombando dele. Agora, era o inverso. O jovem bem vestido, comia e queria desenhar. No entanto, estava longe, muito longe, tão distante de Modigliani quanto Marte da Terra.

Fontes:
Jornal O Estado de São Paulo. Caderno 2. Sexta-feira, 4 de junho de 2004.

Imagem descolorida de http://www.papatrilhos.com

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Carina Paccola (O Vento)

O vento soprou tanto, tão forte e tão ruidoso, que me perguntei o que ele queria tanto afastar do céu. Tenho medo de chuvas e ventos fortes. Mesmo protegida, não consigo dormir tranqüila. Acordo a todo instante, vou conferir pela janela se está tudo em ordem do lado de fora. Vejo as árvores balançando. Nenhuma alma viva pela rua.

Quando o dia clareia, parece que tive pesadelos a noite toda. Confiro novamente a janela. Vejo que o cavalinho vermelho do play-ground foi parar na quadra de esportes. Fico com dó do cavalinho. Separou-se dos irmãos e está ali, jogado, sozinho.

Na área de serviço, recolho as toalhas de banho esticadas no varal. Todas sequinhas. Apanharam do vento a noite toda. Recolho uma por uma e penso o que foi que o vento tanto gritou durante a noite. Imagino que as palavras do vento estão escondidas na trama das toalhas e nunca entenderei seu significado.

Fico pensando o que a natureza pode querer me dizer: que eu varra com a força dos ventos o que me faz mal? Seja lá o que for, a única mensagem compreensível é que está muito frio lá fora e é melhor eu me agasalhar.
____________________
Carina Paccola é jornalista em Londrina, PR.
____________________
Fontes:
Jornal Guata. Foz do Iguaçu.
Imagem = http://www.jurassicos.com.br

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Wemerson Augusto (O Pé de Goiaba)

Com um gosto na boca de bolacha, água, sal e tubaína eu ainda cochilava enquanto o ônibus seguia seu itinerário. Novos passageiros apareciam há quase todo instante. Às vezes a genealogia das pessoas que minutos antes me deixava curioso, com pouco tempo me parecia muito normal. As casas de barro, as crianças, as terras, as senhoras e os senhores na pista, o céu estrelado e o vento noturno eu já conhecia. Sinceramente não sei de onde vem nossa amizade.

Não consigo precisar datas, horas e lugares deste encontro, no entanto, tudo era muito real e próximo. A chegada que eu vislumbrava ainda num retrato mental foi idêntica a minha recepção a simpática cidade de Abacates, ao Sul das Colinas. Uma senhora de óculos e um pouco desconfiada me dá bom dia falando para dentro. Junto com o cumprimento a atendente da pensão me olha de cima a baixo, concentrando um pouco seu olhar em meus cabelos.

Vou preenchendo a ficha. Antes de terminar a senhora corre para atender uma voz do fundo da casa que diz: “a água ta ferveeeendo”. E eu continuava no cadastro. Maria Odília chega com uma chave daquelas de banheiro com apenas um pininho de relevo na horizontal. Folheia o caderno de hospedes e corre o olho nas vagas. De longe avistei os seguintes dizeres: “deve 15” e “deve 10” e mais alguns rabiscos.

Odília resmunga e parece não acreditar na precisão do livro ata da casa. Agora com um molho de chave em mãos me convida a conhecer o estabelecimento. Abre o primeiro quarto, o de número 11. Roupas em cima da cama, camisetas na janela e uma mala entre aberta no chão informam que ali ainda tem hospede. Odília coça a cabeça e tem a certeza da imprecisão do controle dos moradores da pensão.

O quarto 13 é o próximo. A senhora vira a chave na fechadura, mas a porta não abre. A parte inferior da porta está muito próxima do chão, impedindo o movimento. Acostumada a senhora da um chute de leve. A porta abre como uma grande janela. Para fúria de Odília o quarto também estava ocupado. Desta vez um casal com trajes íntimos ainda curtiam as primeiras horas da manha.

A bolsa nas minhas costas a cada instante ficava ainda mais pesada e pegajosa. Numa terceira tentativa encontro um quarto aparentemente vago. “Pode ser este senhor”. Digo que sim. A senhora se despede. Abro a janela e dou de cara com um pé de goiaba com algumas goiabas no alto. Fecho parte da janela e fico me perguntando. Por que estou tanto longe deste lugar, desta casa, que parece ser tão próximo?

Qual era a minha relação com este mundo? Qual era a relação das goiabas do alto? Do retrato mental da pousada esverdeada? Dos dias difíceis que só me foi anunciado neste espaço?

– Estou aqui rascunhando estas idéias para entender melhor um dia como tudo isso começou. Quando voltar pra casa pense melhor. Tenho a impressão que já passei por esta rua, escrevi algo parecido, vi essa pessoa ou já escutei essa história. Repito: não consigo precisar datas, horas e lugares deste encontro. Do mesmo modo, estou aqui tentando ler a fachada da pousada para refrescar a memória, mas parece ser em vão. A grande quantia de tinta, letras e riscos atrapalha a leitura.
(Abacates, Sul das Colinas, domingo, 15 de fevereiro de 2009).
–––––––––––-
Wemerson Augusto é jornalista em Foz do Iguaçu, Pr.
____________________
Fontes:
– Colaboração do Jornal Guata. Foz do Iguaçu.

– Imagem =
http://angola.linda.googlepages.com/frutasdeangola

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Millôr Fernandes (O Quociente e a Incógnita)

Às folhas tantas do livro de matemática, um quociente apaixonou-se um dia doidamente por uma incógnita.

Olhou-a com seu olhar inumerável e viu-a, do ápice à base.

Uma figura ímpar olhos rombóides, boca trapezóide, corpo ortogonal, seios esferóides. Fez da sua uma vida paralela a dela até que se encontraram no infinito.

“Quem és tu?” – indagou ele com ânsia radical.

“Eu sou a soma dos quadrados dos catetos, mas pode me chamar de hipotenusa”.

E de falarem descobriram que eram o que, em aritmética, corresponde a almas irmãs, primos entre-si.

E assim se amaram ao quadrado da velocidade da luz numa sexta potenciação traçando ao sabor do momento e da paixão retas, curvas, círculos e linhas senoidais.

Nos jardins da quarta dimensão, escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas e os exegetas do universo finito. Romperam convenções Newtonianas e Pitagóricas e, enfim, resolveram se casar, constituir um lar mais que um lar, uma perpendicular.

Convidaram os padrinhos: o poliedro e a bissetriz, e fizeram os planos, equações e diagramas para o futuro, sonhando com uma felicicdade integral e diferencial.

E se casaram e tiveram uma secante e três cones muito engraçadinhos e foram felizes até aquele dia em que tudo, afinal, vira monotonia.

Foi então que surgiu o máximo divisor comum, frequentador de círculos concêntricos viciosos,
ofereceu-lhe, a ela, uma grandeza absoluta e reduziu-a a um denominador comum.

Ele, quociente percebeu que com ela não formava mais um todo, uma unidade. Era o triângulo tanto chamado amoroso desse problema, ele era a fração mais ordinária.

Mas foi então que Einstein descobriu a relatividade e tudo que era espúrio passou a ser moralidade, como, aliás, em qualquer Sociedade …

Fonte:
http://www.somatematica.com.br/

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Laé de Souza (Coragem de Optar pela Arte)

Há quem diga que a responsabilidade maior foi do pai, que numa viagem ao nordeste o presenteou com um berimbau. Outros acham que a culpa foi da mãe que, enjoada do din-din-din-don , trocou o instrumento por um violão de plástico e cordas de náilon. Embora. muitos acreditem que ele já tenha vindo de nascença com um parafuso a menos e que essas coisas não tenham influenciado em nada. O que é certo, e concorde a todos, é que o Gertulino não tem um pingo de juízo.

Os pais, coitados, na verdade a gente sabe que fizeram de tudo para que ele se endireitasse, mas foi perda de tempo. Arrumaram uma vaga num escritório de contabilidade, mas qual nada. Na mala de boy , levava suas revistas de partituras e letras que cantarolava no ônibus e na fila do banco. No guichê, enquanto o caixa autenticava, ele tamborilava com uma bic no vidro do balcão. Não reclamava do salário, mas chiava quando tinha de catar milho na Olivetti para preencher de uma guia e também não queria nem saber de débito/crédito. O contador lhe apontava exemplos de quem entrou pequeno e agora era chefe de departamentos e ele, nem aí. Já bem crescido foi despedido por faltas. Trabalhava um, faltava dois dias. Arrumaram-lhe um emprego numa metalúrgica . Na prensa, com o pé livre batia duas vezes no chão e no do pedal batia uma, em ritmo de valsa. Puseram-no para rebitar , e o chefe o dispensou por não agüentar mais o bater compassado e a quarta batida mais forte, sempre.

Daí para a frente só fez bicos. Na maioria das vezes era encontrado em casa, fechado no quarto com seu violão , repetindo várias vezes a mesma música e descobrindo as notas de um solo. Começou tocar nuns barzinhos e até recebia acanhados aplausos. Quando perguntado pelo filho, seu Agildo, respondia que ele estava trabalhando. Mas quem ouvia os acordes vindos do quarto, dava uma risadinha e dizia que o Gertulino não tinha jeito mesmo.

Seu Agildo também achava que não era certo o proceder do filho, mas saiu a investigar se era só ele quem tinha filho doido.

O filho do padeiro era encafifado com negócio de pegar pedaços de pau e ficava horas e horas esculpindo. Às vezes até que fazia alguma coisa bonita, da qual o pai ignorava a beleza para não estimular a loucura. O filho do açougueiro era metido com coisas de teatro e vivia correndo atrás de roupas velhas. Perdia horas e horas em ensaios inúteis, fazendo cenários de papelão, perucas, narizes e, de vez em quando, junto com outros doidos dava um show na praça. O filho de um seu Geraldo ficava horas e horas como que fora do mundo, pintando um quadro. O filho da professora , era poeta e não fazia outra coisa senão rabiscar um caderno espiral de capa gasta. Assim, seu Agildo viu tantos malucos pelas noites que chegou a duvidar se era mesmo loucura.

Ele descobriu que existiam outros doidos e tentou adivinhar que espécie de doença é essa que ataca a mente, fazendo abandonar futuros planejados, por caminhos incertos. E nós, até com certa inveja, perguntamos de onde nasce essa força tão grande que faz com que alguns tenham coragem de optar pela arte.

Fonte:
SOUZA, Laé de. Acontece…

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Vicência Jaguaribe (Por onde anda minha bela estatueta de porcelana branca?)

Há alguns dias, procuro uma estatueta de porcelana branca. Ela enfeitava um dos recantos de meu apartamento, posta em sossego na parte inferior de uma coluna. Não a encontro. Já começo a perguntar-me se a possuí um dia. Mas sua imagem me é tão clara, que não quero admitir que seja ela fruto de minha imaginação.

Como já disse, é de porcelana branca. Sua silhueta, fina e delgada, e sua beleza delicada sempre me deram impressão de diafaneidade. Talvez tenha uns cinqüenta ou sessenta centímetros de altura, nunca a medi. Como o leitor deve estar observando, faço questão de falar nela no presente do indicativo, porque não admito a sua perda.

Já a procurei em todos os cantos e recantos. Nos guarda-roupas, no alto dos maleiros, dentro das gavetas, nas estantes, e nada. A Noêmia, minha caríssima secretária, diz que não se lembra dela. E olhem que a Noêmia tem memória de elefante. E parece possuir um dom especial para achar coisas perdidas. Mas, desta vez, sua destreza para localizar objetos desaparecidos parece ter-se evaporado.

E fico eu, repetindo a busca nos mesmos lugares, nos mesmos cantos e recantos. E pergunto-me: Se essa estatueta nunca existiu e é fruto de minha fantasia, de onde saiu sua imagem, que preenche minha imaginação? Vi-a em alguma loja? Na casa de alguma amiga? Mas não sou assim tão impressionável. E o mais curioso nessa história é que me lembro não só da estatueta em si, mas de sua embalagem: uma caixa branca, fina e comprida, sem nenhuma inscrição ou desenho.

Lembro-me, inclusive, de uma conversa rápida que tive com um dos meus irmãos. Ele olhou uma outra estatueta – tenho mais de dez, de variados tamanhos e formatos – e disse que, para ele, aquela era a mais bonita. Eu discordei: Para mim, a mais bonita é a branca. Diga-me você, leitor: dá para pensar que inventei toda essa situação? Quem sabe, hein? Nossa memória nos prega peças, não há dúvida. Eu até diria, parodiando Shakespeare, que nossa memória, senhores leitores, nos prega mais peças do que jamais sonhou vossa (e nossa) filosofia.

Algumas lembranças que tenho – que todos temos – da infância me intrigam. E me pergunto: Eu me lembro mesmo desse episódio, ou as lembranças que acho guardar dele são o resultado de tanto ouvir meus familiares falarem sobre o dito cujo? Tenho dúvidas, por exemplo, sobre as lembranças que penso ter de uma cena de namoro de meu tio Dedé com uma prima. Como eu gostava muito dela, ficava perto e via-os abraçarem-se e beijarem-se. Então, dizia, com minha pronúncia precária, uma expressão que, depois, ouvi muitas vezes pela boca de minhas tias, recordando o episódio: Já tomeçou, hein?

O mesmo acontece com uma viagem que fiz com minha tia Sinhazinha – a Mãe da Vovó – e minha irmã Francisca Marta – a Neném. Em uma das paradas do misto, um desconhecido, ouvindo-nos chamar nossa tia de Mãe da Vovó, saiu-se com esta pergunta: Eu pensei que estas meninas fossem suas filhas. Mas são suas netas, não são? Como ouvi minha tia contar essa história muitas vezes, hoje não sei mais se me lembro do acontecido ou se o introjetei partindo de suas palavras.

É sempre difícil admitir-se falha de memória. Como tudo que envolve o mecanismo cerebral, a memória é algo que se reveste de um caráter de intangibilidade, que facilmente atrai o preconceito. É muito mais simples admitir que se está com um sério problema cardíaco, com uma grave pneumonia, até com um tumor maligno, do que admitir que se está com falhas de memória. A falha de memória pode indicar o início da demência senil ou a visita daquele alemão de nome Alzheimer, tão na moda nestes tempos de novos males e de novos nomes para males antigos.

Bem, mas voltemos à minha bela estatueta de porcelana branca. Onde a deixei, caríssimos leitores? Onde a deixei ou a guardei no espaço físico do meu apartamento? E onde a deixei no espaço textual. Há algum dêitico, por aí, que me possa apontá-la? Há alguma pessoa de boa vontade que possa de novo abrir gavetas e guarda-roupas, revirar lençóis e toalhas, desencostar móveis e finalmente gritar bem alto, empregando o dêitico mágico – Está aqui!?

Quanto a situá-la no texto, posso dispensar esse trabalho. Seria uma busca inútil, pois coloco o ponto final desta crônica agora, neste exato momento, e aqui, neste exato lugar.

Fontes:
Colaboração da autora.
Imagem

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Lóla Prata (O Negócio é Sério)

Aquele indivíduo, funcionário eficiente, temperamento expansivo, educação fina, sem defesas, sorria para todos. O Público a quem atendiam, não o pertubava, trazia-lhe satisfação, pois aproveitava os contatos, conversava com todos, vivia em paz. O funcionário continuava na mesma toada: de bem com a vida, transmitia serenidade e angariava amigos.

Menos, a consideração do chefe, que permanecia inconformado. Não era possível! Não compreendia! Atender gente o dia todo, durante meses seguidos e continuar com o sorriso nos lábios, tratando bem a todos, até mesmo aos reconhecidamente chatos (?); devia ser pouco serviço, ajuizava ele. Então, começou a premiar o rapaz com mais atribuições. Quanto mais sorriso, mais serviço.

Agora, o rapaz só dava conta da papelada, se ficasse fora do horário de expediente. Por um tempo, não reclamou, o salário era bom, então, correspondia da melhor maneira possível.

Mas, um dia, sua jovem esposa queixou-se da ausência dele no lar, da falta de companhia, pois queria-o ao seu lado para conversas sobre a vida, para lazer e lamentava o horário de seu regresso do trabalho, o que acontecia lá pelas 21 ou 22 horas.

Ele percebeu que há muito não se distraia, só preocupado com o acúmulo de responsabilidades no escritório. Sentiu o semblante sério e carregado. O espelho da sala lhe revelou raiva, cansaço físico e mental. Cara amarrada. Insatisfação com o ordenado.

Aí, a triste resolução: pede demissão, não real, mas psicológica, do trabalho. Limitou-se ao essencial. Nunca mais sorriu nos dias da semana.

Passou a ser feliz apenas aos domingos.

Fontes:
http://www.lolaprata.com.br/
Imagem

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Carlos Leite Ribeiro (O Relógio, um conto real)

Naquele Fim de Ano, a minha sogra avisou-nos que, ao contrário do habitual, não o passaria conosco, pois tinha recebido um convite de uma amiga do Algarve.

Simpaticamente, não se esqueceu de mandar uns presentinhos ao neto (ainda era só um), à filha e ao seu “querido genro” (que era eu).

Quando minha esposa me disse que a mãe (dela) ia mandar-me um presente, confesso que tive um “toque no coração” e logo interroguei-me: “ Que se passará com aquela querida sogrinha que me vai mandar uma lembrança?”.

Quando os presentes chegaram, naturalmente as embalagens foram logo abertas. O meu presente tinha uma linda embalagem e um lindo relógio de mostrador azul lá dentro. Eu nem queria acreditar em tal sorte. Tirei o dito cujo dentro da embalagem e, como naquele tempo os relógios trabalhavam a corda, comecei a rodar a respectiva carrapeta, mas, por mais que o rodasse, o relógio não trabalhava. Resolvi telefonar para o Algarve para lhe perguntar em que ourivesaria tinha ela comprado o relógio para eu poder pedir a sua reparação ou substituição. Ai que o ela me respondeu, depois de dar sonora gargalhada:

– Meu querido genro, eu não comprei o relógio em nenhuma ourivesaria, mas sim a uns ciganos, na Praça da Figueira (Lisboa). Se quiser, vá à procura dos ciganos e faça a reclamação …

Ai o que eu tive vontade de lhe responder, mas vá lá, só pensei…

No regresso ao jornal logo no Novo Ano, prendi esse tal relógio no pulso direito (o normal é no esquerdo). Para realçar mais o tal relógio, até arregacei a manga da camisa.

– Olhem malta, o Carlos tem um relógio novo! – Chamou a atenção um colega.

Quase todos se levantaram das respectivas cadeira para virem admirar a prenda da minha sogra. Um deles reparou que a máquina não trabalhava, o que eu logo respondi:

– Meus amigos, este relógio é só para vocês o admirarem a sua beleza. Se quiserem saber as horas, tenho aqui este no pulso esquerdo!

A risada foi geral.

Ao saber do sucedido, uma colega telefonista disse-me:

– Olha Carlos, os ciganos estavam a vender esses relógios de fantasia, na Estação do Rossio (comboios – trens) a 15 escudos…

Anos depois, minha esposa chamou-me a atenção que meu filho mais velho tinha ficado triste por Papai Noel não lhe ter dado um relógio. Quando lhe entreguei, a então criança chorou, deu pulos e gritos, mas a certa altura parou com o seu contentamento e encarou-me de frente, perguntando-me:

– Papá, por acaso não compraste este relógio aos ciganos, pois não?…

– Não meu filho, comprei-o numa ourivesaria e tem garantia. Mas qual a origem dessa tua pergunta?…

– É que tenho ouvido umas histórias de um relógio que a avó tem deu …

Fonte:
Colaboração do Autor

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Sérgio Antonio Costa Gomes (O Anão)

A impossibilidade de satisfazer um desejo o torna ainda mais intenso; isso é um fato. Alguns desejos, de tão intensos que são, podem levar à loucura; essa é outra verdade.

Buscaremos a comprovação de tal tese em um ambiente e com pessoas bastante improváveis.

Melquisedeque era um anão. Por conta disso, talvez, muitos pudessem duvidar que um coração tão pequeno pudesse conter um amor tão grande. O pequenino homem tinha uma aparência engraçada: as pernas curtas e roliças lhe conferiam um andar semelhante ao de um pinguim, a cabeça exageradamente grande, a testa proeminente, lhe davam um aspecto caricato, muito embora, não obstante a aparência um tanto quanto estranha, fosse quase impossível não se contagiar com seu sorriso largo e espontâneo – todos gostavam dele – diziam os mais íntimos que um gigante se escondia sob suas proporções bizarras. Trabalhava como assistente de palhaços no Danúbio Azul, um misto de circo e parque de diversões de quinta categoria. Um mero coadjuvante, em cores espalhafatosas, vestia-se de bobo da corte em suas apresentações e sofria com as travessuras diabólicas de seus companheiros de picadeiro.

O Danúbio Azul, apesar de ser um local destinado a diversões, não tinha um ambiente agradável: a qualidade precária de suas instalações, aliada ao mau-gosto dos entretenimentos oferecidos, só poderia atrair pessoas pouco exigentes ou até mesmo mentalmente degeneradas. Operários de baixa-renda, bêbados, vadios e alguns mal-intencionados se constituíam em seu público predominante. O medonho parque era uma das poucas possibilidades de diversão oferecidas por seus mundinhos reduzidos.

O sombrio local estava a algum tempo na mira da polícia. Crimes sequenciais, com as características predominantes da ação de um serial killer, ocorriam com certa frequência nas adjacências de onde o Danúbio Azul costumava se instalar. As vítimas, sempre do sexo masculino, empaladas por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, tingiam o chão onde jaziam com o produto mais íntimo de suas carnes.

Carlos Mariano era o soturno proprietário do Danúbio Azul. Era um homem enorme e desagradável; bronco e de feições endurecidas, pouco afeito aos hábitos da higiene, tinha um aspecto seboso, salientado pelos bigodes compridos e grisalhos, amarelados pelo hábito do fumo. Ambicioso, sugava seus funcionários até o tutano dos ossos e pouco se importava com as condições precárias em que viviam. Indiferente aos crimes que ocorriam nas redondezas de seu parque de diversões, interpelado diversas vezes pela polícia, enquanto esbaforia a fumaça fedorenta de seu inseparável cachimbo nos rostos dos agentes da lei, dizia que não tinha nenhuma pista, que era trabalho deles prender o autor de tais atrocidades.

Alheios ao que se passava além do cercado que isolava seu local de trabalho dos bairros periféricos por onde passavam, Melquisedeque e seus colegas mantinham o ritmo normal de suas atividades; tentavam dar o melhor de si no intuito de trazer alguma alegria à paupérrima população que se constituía em seu público fiel.

Amigo de todos, Melquisedeque tinha uma predileção especial por Ananias, o contorcionista e por Nora, a mulher-gorda, por quem nutria uma intensa e anônima paixão, conhecida apenas por Ananias, seu melhor amigo. Sempre envoltos em uma cortina de fumaça de cigarro, juntos, tomavam umas “branquinhas” para aliviar as amarguras da vida. Nessa noite, impulsionado pela coragem etílica, Melquisedeque, que se sentia desencorajado pela incompatibilidade física que havia entre ele e Nora, disse ao contorcionista que não obstante as dificuldades pretendia declarar todo amor que sentia por ela.

Ébrio, Ananias contorcia o corpo esquálido das formas mais aberrantes possíveis, enquanto desdenhava da possibilidade do pequenino amigo realizar seus desejos amorosos:

– Heh! Você e Nora? Não sei não… Ela pesa quase duzentos quilos! È muita carne pra tu. Não dá! Não dá! Não dá!

Uma canção sertaneja embalava a dor-de-cotovelo que invadiu o coração desesperançado de Melquisedeque que esperava uma palavra de encorajamento por parte de seu melhor amigo. Tentando talvez uma posição diferente de Ananias em relação a suas pretensões amorosas, o anão conjeturou:

– Mas será que não tem alguma forma de…

Ainda mais contundente, Ananias interrompeu as considerações do amigo antes que ele pudesse concluí-las:

– Vocês são fisicamente incompatíveis! Não dá! Não dá!

Desiludido, Melquisedeque deixou Ananias bebendo sozinho e foi dormir mais cedo. Estacas de desapontamento varavam seu coração sofrido em todas as direções possíveis. A intraduzível dor do amor impossível tomava-o por completo. Com a esperança fraquejada, banhado em lágrimas, atirou-se em seu catre e mesmo morto de cansaço não conseguiu dormir. Nora não lhe saía dos pensamentos atormentados, roubando-lhe a paz.

Dada suas condições físicas grotescas, Nora não era uma mulher feliz. Trabalhava em um daqueles dispositivos sádicos onde o cliente, conseguindo acertar o alvo com a força e precisão necessárias, mergulhava seu corpanzil no aquário de águas geladas num “chuá redundante”. Frequentemente alguns abusados lhe dirigiam palavras e gestos ofensivos, em meio a gargalhadas estridentes, enquanto tentavam mandá-la para a água.

Cada palavra menos digna dirigida a Nora, penetrava o coração apaixonado de Melquisedeque feito setas envenenadas. Algumas vezes, esquecendo-se de sua estatura acanhada, ele desejou socar até a morte um e outro mais abusado que pegava pesado demais com sua amada. Mas isso significaria tirar seu amor do anonimato, algo que estava fora de cogitação, pelo menos naquele momento, para o inseguro anão.

Pensando em tais infortúnios, Melquisedeque conseguiu pegar no sono apenas quando o sol causticante do verão já se encontrava no final da tarde. Não muito tardou e logo ele acordou com o barulho das primeiras atividades do Danúbio Azul que já estava aberto ao público para mais uma noite de diversões. Sonolento, com uma expressão fisionômica carregada, arrastando-se com seu andar peculiar, caminhou até o local onde Nora divertia um grupo de homens rudes e sádicos.

Raimundo Silva, um operário da construção civil, recém-chegado do norte, exagerava no consumo de álcool e nas ofensas. Com gestos e palavreados chulos que não cabem aqui descrever, ofendia a pobre mulher que estava apenas exercendo sua profissão. Quando conseguia acertar o alvo, mandando-a para o aquário, dizia que ali era seu lugar e tantas coisas mais.

Ao observar a cena, Melquisedeque transfigurou em ódio sua face caricata e desejou atracar-se ali mesmo com Raimundo e fazê-lo retirar, a socos e pontapés, uma a uma de suas ofensas. Ananias, que também observava tudo de perto, ao perceber que o amigo preparava-se para ir às vias de fato, o segurou, desencorajando-o.

– Deixa esse idiota pra lá! Você não pode com ele.

Tomado pelo ódio, o anão vociferou com uma voz desproporcional a seu tamanho:

– Canalha! Quem ele pensa que é para tratar Nora assim?

Tentando apaziguar os ânimos, Ananias retrucou:

– Ele é um idiota! Esquece o cara.

Indignado, Melquisedeque retirou-se do local e foi preparar-se para mais uma de suas apresentações. Mesmo com a algazarra pertinente aos espetáculos dos quais fazia parte, não conseguia tirar da cabeça toda ignomínia da cena de outrora.

Finda as atividades, o Danúbio azul cerrou seus portões e funcionários e artistas, exaustos, retiraram-se para seus precários aposentos coletivos a fim de se recuperar da fadiga de mais uma movimentada noite de diversões.

Logo ao amanhecer, a polícia foi procurar Carlos Mariano em busca de pistas. Um cadáver, que posteriormente foi identificado como sendo Raimundo Silva, foi encontrado em uma rua próxima do local onde o Danúbio Azul encontrava-se instalado. O corpo, empalado por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, apresentava as mesmas características dos crimes que vinham ocorrendo, já há algum tempo, nas adjacências de onde o circo de Carlos costumava se instalar. Mais uma vez, com seu jeito bronco de ser, enquanto fumava seu cachimbo, Carlos disse que não tinha nenhuma pista, que era trabalho da polícia investigar e prender o criminoso.

Alheios ao que se passou na noite passada, além das cercas que os continham em seu sombrio local de trabalho, os funcionários do Danúbio Azul, após o descanso diurno, se preparavam para mais uma rotineira noite de entretenimentos. Porém, dessa vez, pelos para Nora, um fato inusitado estava prestes a acontecer. Melquisedeque tomara uma crucial decisão: no calor de sua paixão, resolveu deixar as inseguranças de lado e finalmente declarar todo seu amor ao objeto de sua especial predileção. Tímido, resolveu dirigir-se aos aposentos de Nora enquanto ela ainda estivesse dormindo. Aproveitaria-se do torpor de sua sonolência para pegá-la de surpresa e, enfim, lhe dizer tudo o que havia guardado por quase três anos de anonimato.

Os quartos onde descansavam os funcionários do Danúbio eram precários e mal iluminados. Sem bater na porta que não tinha trancas nem fechadura, Melquisedeque adentrou o recinto onde Nora dormia ruidosamente e lhe sacudiu o corpanzil que se esparramava sobre a cama reforçada. Pega de surpresa, tonta de sono, Nora reconheceu Melquisedeque, apesar da escuridão, por sua pequena estatura e por sua voz peculiar:

– Ah! È você? O que foi? Estou atrasada?

– Nora… Tem uma coisa que há muito tempo preciso lhe dizer…

Melquisedeque, tomado por uma inusitada coragem, confessou a obesa mulher todo amor que sentia por ela, o quanto ela era especial para ele, o quanto a desejava. Nora, espantada com aquela confissão repentina, puxou-o a si, esmagando-o contra a consistência gelatinosa de seu corpanzil, e disse:

– Oh, meu lindinho! Vem para os braços da mamãe!

Assim, ambos permaneceram abraçados e calados por alguns minutos até que Nora soltou uma gargalhada de sarcasmo, desmoronando o paraíso onírico em que, por alguns breves instantes, viveu Melquisedeque.

– Ah, ah, ah! Você é louco? Ah, ah, ah! Você e eu? Amantes? Que ridículo! Olhe para você. Não acredito nisso… Ah, ah, ah…

Ainda gargalhando, ignorando Melquisedeque e todo seu amor, Nora levantou-se e, atrasada que estava, foi preparar-se para mais uma noite de trabalho e humilhações.

Arrasado por ter seu amor sincero e ardente, assim desprezado, Melquisedeque não compareceu a suas obrigações da noite e ninguém o achou em lugar nenhum.

No dia seguinte, os funcionários encarregados da limpeza depararam-se com uma cena macabra: chorando copiosamente, Melquisedeque encontrava-se abraçado ao corpanzil ensanguentado e inerte de Nora. Empalado no abdômen, no sentido de baixo para cima, a obesa vítima apresentava as mesmas características dos crimes que ocorriam além das fronteiras de madeira compensada que separavam o Danúbio do mundo lá fora.

Ananias que já sabia do amor do anão por Nora, chamou a polícia que não tardou em chegar. Banhado em lágrimas, o anão se entregou sem oferecer resistência e sem nada dizer em sua defesa. Uma expressão de revolta estampava-se nos rostos dos funcionários e amigos de Nora que, com olhos odientos, acompanharam a viatura que levava Melquisedeque até ela sumir de vista.

Diz um ditado popular que “a voz do povo é a voz de deus”. Sentença que é profundamente questionável. Nunca gostei muito de ditados populares, embora alguns deles sejam, de fato, eficientes no sentido de enunciarem verdades simples. “Quem ama o feio, bonito lhe parece” é um deles.

Quem quer que observasse Nora e suas formas grotescamente deformadas pela obesidade mórbida, jamais imaginaria que ela fosse capaz de despertar paixões tão intensas. Ananias mantinha, já há alguns anos, uma caso secreto com ela. O contorcionista, sem coragem de assumi-la perante todos, mantinha o relacionamento no anonimato, embora isso não fosse do agrado dela.

Na noite em que Melquisedeque resolveu declarar seu amor, poucos minutos depois, Ananias resolveu ir visitá-la em seus aposentos. Ao adentrar seu quarto no momento em que ela abraçava o anão, o contorcionista, na obscuridade proporcionada pela escuridão do recinto, imaginou ter visto o que não aconteceu. Tomado pelo fel do ciúme, retirou-se antes de ouvir as gargalhadas de desprezo de Nora e planejou a forma mais cruel de se vingar de ambos.

De há muito tempo, Ananias já vinha eliminando, de forma contumaz, aqueles que escarneciam Nora de uma maneira mais contundente. Conhecedor que era do amor de Melquisedeque por sua obesa namorada, cometia os assassinatos de forma a incriminar o anão e assim se livrar de um provável rival na disputa pelas carícias de Nora. Dessa vez, ensandecido pela dor de uma traição que só aconteceu em sua cabeça, decidiu acabar com os dois, aniquilando a vida de Nora, produzindo uma espécie de morte em vida em Melquisedeque que seria culpado pela morte de sua amada.

Enquanto isso, na cadeia, inocente, jogado em um canto sujo e úmido de sua cela, Melquisedeque permanecia calado – para ele a vida havia perdido a razão de ser.

Fonte:
http://www.mesadoeditor.com.br/

1 comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Rachel de Queiroz (O Amistoso)

Os visitantes ou adversários, convidados para aquela partida amistosa do chamado esporte bretão, chegaram festivamente num caminhão ornado de arcos e guirlandas. Sim, no começo tudo são flores. Flores e palmas, discursos, garrafas de cerveja, e os cartolas, que se distinguem dos demais presentes pelos bonitos ternos domingueiros, gravatas, chapéus de seda, como convém a legítimos paredros.

Não havendo no campo instalações de vestiário, os craques descem do carro já devidamente uniformizados — camisa de azul-turquesa, meias e chuteiras, sim, chuteiras regulamentares, que isso é jogo de fato e não pelada de moleques. Deficiências, se as há, é no campo propriamente dito, que seria ótimo se não sofresse de uma depressão bem no seu centro geométrico, exatamente onde se costuma riscar aquele grande círculo de giz. E como essa praça de esportes se situa numa baixada, sempre que chove apresenta o aspecto de um prato fundo cheio de água — e quando não é água é lama.

Naquele dia, felizmente, era apenas lama, e pouca. E sob os aplausos da assistência, tanto mais animada porque gratuita (ainda é um problema a resolver, esse da assistência em campo aberto, sem possibilidades de bilheteria). Juiz, jogadores, cartolas, reúnem-se um pouco de lado, pois que os paredros estão de sapatos novos e aquela supracitada lama os assusta um pouco; faz-se o toss, os visitantes pegam o lado sul que é o melhor, o presidente dos locais dá graciosamente o primeiro chute. Começou a partida!

1.° TEMPO

Xaveco, mulato, brevilíneo de canelas arqueadas, revela imediatamente a sua classe de grande artilheiro: tem fôlego, tem velocidade, tem cada tiro direito ou canhoto — tanto faz — que arranca aplausos frenéticos da torcida. Outra grande figura em campo é o goleiro dos visitantes. E o jogo vai indo muito bem, bola para lá e para cá, passe, cabeçada, chute a gol, gol — não, gol não, passou por cima da trave. O couro vai para Bira, Bira perde para um galalau amarelo dos “estrangeiros”, o galalau perde para Zico, Zico passa para Lucas, que perde para o capitão dos visitantes, um louro de gorro de meia. Aí Xaveco interfere na raça, toma a bola, o louro tranca, Xaveco dá-lhe uma carga, o louro acha ruim, revida, o juiz apita, os dois se agarram e por trás chega Bira, que é gordo e violento, e larga um pontapé no terço inferior da coluna vertebral do louro. Fecha-se o tempo, o juiz apita, a assistência pula a cerca e invade o campo, o pau começa a comer, mormente nas costas dos forasteiros, o juiz retira-se e se encosta à cerca, aguardando aparentemente que os ânimos serenem. Quem interfere são os paredros, austeros e educados, com as suas gravatas ao vento, chamam asperamente os craques à ordem, expulsam a assistência, interpelam o juiz, que relutantemente volta ao seu posto; aos poucos os craques se acomodam, o juiz apita, os paredros recolhem-se. O jogo recomeça.

Mas parece que o incidente estimulou os visitantes, que dão para jogar milhões. São uns húngaros. O time local perde terreno, o galalau passa a marcar Xaveco, que não dá mais uma dentro. E o diabo do louro tornou-se proprietário do balão, marca um gol de saída, depois o seu “secretário”, um crioulinho ligeiro que é uma faísca, marca o segundo tento; e aí Xaveco, desesperado (talvez dentro da área penal), atira uma canelada terrível no galalau, derruba-o, avança no crioulo, larga-lhe o salto da chuteira por cima do dedão, o crioulo grita, o louro acode, Xaveco já completamente louco lhe dá um tapa na cara, o juiz apita, uns gritam foul outros gritam penalty, e um engraçado diz que foi só hands, já que Xaveco apenas meteu a mão na lata do loureba.

O juiz continua apitando, parece que vai mesmo marcar o penalty. E um torcedor local puxa o revólver, dizendo que aquele penalty só se for passando por cima de algum cadáver. O juiz nessa altura se declara cheio com a partida e larga o apito ali mesmo. Um paredro fala que ele será expulso do quadro de árbitros e o juiz dá troco, que quadro de árbitros uma ova. Mas um dos bandeirinhas voluntários logo se apossa do apito, passa a dirigir o pessoal com surpreendente autoridade e, quando se vê, o jogo começa outra vez. Vai macio, vai de valsa, é um minueto, até que consultados os cronômetros verifica-se que acabou o primeiro half time, passando-se ao recesso para em seguida dar início ao

2 ° TEMPO

que não houve, segundo passo a expor. Pois não vê que no Distrito havia uma queixa contra Bira — queixa dada por certa donzela que deixara de o ser por artes do craque. Bira escondera-se e só agora aparecia em público, atendendo a apelos da torcida, por tratar-se de amistoso importantíssimo. Mas a polícia, que não tem bandeira, aproveitara a ocasião e, antes que o réu pirasse, dava-lhe voz de “esteje preso”.

A assistência, entretanto, que de nada sabia, cuidou que a prisão se prendia à queixa dos visitantes por causa do pontapé de há pouco. E vendo Bira ser arrastado campo a fora, irrompeu num sururu dos diabos, vaiando as visitas com buus e nomes feios; as quais visitas, que tomavam Coca-Cola encostadas à cerca, vendo-se atingidas não só pelos doestos como por pedaços de pau e tijolo, revidaram com as garrafas de refrigerante. O tempo fechou outra vez. Os polícias largaram o preso e se meteram no conflito. E quando os de fora começavam a apanhar feio, o motorista deles teve uma idéia: encostou o caminhão bem perto e tocou a buzina. A turma entendeu logo (ou quem sabe já era manobra habitual em “amistosos”?) e de um em um foram deslizando da briga e subindo para o carro. O que sei é que, quando os locais deram pela coisa, os inimigos já partiam numa nuvem de poeira, abandonando na pressa um dos seus paredros, malferido, com o sangue escorrendo do nariz e o belo terno roto.

Bira, igualmente, aproveitara a confusão para ir saindo de manso; agachado numa moita, lá em cima do morro, ficou a espiar o tintureiro chegar, encostar e, de um em um, recolher os remanescentes da refrega. E só saiu do esconderijo tarde fechada, quando no campo completamente deserto uma garça vinda do Jequiá sobrevoava o alagado, bicando restos das flores do buquê ofertado pelos visitantes.
[Ilha, 1954]

Fontes:
O Melhor da Crônica Brasileira. RJ: José Olympio, 2000.
Imagem = http://ligeirinhouberaba.blogspot.com/

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Pedro Nava (Como escrevo?)

“Eu procuro seguir um sistema, que é o seguinte: de manhã, que é a hora em que eu me sinto com menor capacidade criativa, procuro escrever minhas cartas, o que é sempre mais leve do que o trabalho literário propriamente dito, ou organizar o meu arquivo, que nunca está em ordem. Sou um vagatônico, e os vagatônicos sofrem de manhã, a manhã não é agradável para eles, bom mesmo é a noite afora. À tarde eu crio, de meia dúzia de linhas, uma página, até no máximo oito, nove páginas datilografadas – que eu escrevo diretamente a máquina. A produção varia, conforme a dificuldade do assunto. A noite eu deixo pra fazer a revisão, pra corrigir. Na minha idade, o sujeito deve estar pronto pra tudo: quero deixar um texto pelo menos revisto por mim… A meia dúzia de linha que estou tentando escrever do novo livro já apresenta correções, você pode ver o número de chamadas e correções que eu faço. Se você me faz agora uma revelação que interesse às minhas memórias, ao desenvolver do meu trabalho, se me conta alguma coisa lá do Ceará, geralmente eu tomo nota, saio sempre com um papel no bolso pra tomar uma notinha ou outra, às vezes até de uma palavra só – dessas que nascem como uma flor, são bonitas em si. Há palavras assim, quem mexe com as letras sabe disso. Você conhece de repente e é uma revelação – ou a maneira como ela foi dita, como foi pronunciada. Tomo nota das coisas que me importam, numa série de cadernos. Depois eu corto aquilo como fichas – tenho o cuidado de escrever só de um lado da folha, para depois cortar”.

Fonte:
CAMINHA, Edmilson. Palavra de escritor. Brasília: Thesaurus, 1995.

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Claudia Lage (Porque é)

Andou com pressa sem hora marcada para nada. Virou as esquinas pensando em como era bom virar alguma coisa. Tropeçou num treco qualquer no meio do caminho e só depois viu não se tratar de uma pedra. Os jornais que embrulhavam a pessoa deitada anunciavam uma liquidação imperdível. Ótimo. Tinha mesmo que comprar presentes. Corra, corra, não perca! Imediatamente, correu, embora não soubesse o endereço. Passou por uma mulher linda, um homem lindo, uma criança linda. Pensou: o mundo é bom. E a cidade cintilava com as luzes extras sem nenhuma beleza nem economia.

No meio da multidão, esbarrou em alguém que conhecia. Rapidamente, não se cumprimentaram. Na esquina, desejou felicidades à mocinha que lhe vendeu um sanduíche. Depois, sentiu, de repente, uma alegria. Mal podia esperar a noite. Gostava da comilança, da família reunida. Nessa hora, cresceu um buraco em seu peito que o fez logo pensar em doenças. Em seguida, imaginou curas. É o susto do tempo. De tudo parecer a mesma coisa. E é também a dor desse susto. São as horas corridas que se adiantam tanto, e para quê? Para todos os anos caírem sempre no mesmo dia. Era o que pensava. Só esperava que, se alguma vez morresse, fosse quando estivesse muito, mas muito doente, pois achava morrer saudável um verdadeiro desperdício. Calculava, no futuro, que seria capaz de saborear cada instante. Em pequenas ambições, vislumbrava roçar a carne vida.

Olhando assim, é uma pessoa como outra qualquer. Carregando um desejo como qualquer outro. Arrastando e alimentando o desejo. Deixando ele crescer. Invadir o peito, arrepiar os pêlos, subir à cabeça, desfiar os cabelos. É um perigo querer tanto assim. Talvez seja a época do ano. Você sabe. Aquela que nos faz gastar o dobro do dinheiro que temos. Aquela que nos faz pensar neles. No homem que morreu na cruz e no que anda pelo mundo inteiro, por incrível que pareça, de trenó. Um teve, no peso de sua dor, a dor de todos. O outro, velhinho, vive até hoje num lugar muito longe e frio. Coitados. E ainda têm que aguentar os teus pedidos. Esses desejos que vocês carregam, arrastam, alimentam. Vejam só:

Carregar – Ato de levar ou conduzir uma carga. Tornar sombrio, triste. Tornar mais intenso, mais forte. Exercer pressão sobre.
Arrastar – Ato de levar à força. Mover com dificuldade. Rastejar. Falar morosamente. Atrair, trazer atrás de si.
Alimentar – Dar alimento a. Nutrir, sustentar, conservar. Incitar, incrementar. Manter, prover.

Então o homem carregou os presentes até em casa, a mulher deixou mais forte o tempero da comida, o avô moveu com dificuldade a própria perna, a avó alimentou as crianças, e a menina comeu tudo, nutrindo a expectativa de enfim, naquele dia, ganhar um presente impossível porque era Natal.

Então o avô conseguiu sustentar com o próprio corpo o peso dos anos, a mulher falou morosamente com o marido, o homem exerceu pressão sobre a esposa, trazendo-a atrás de si até o quarto, a avó rastejou a história mais comprida para as crianças, e o menino deu alimento a cada palavra, achando que naquele dia tudo em casa estava mais calmo e bonito porque era Natal.

Então a menina sustentou que Papai Noel não existia, o menino incrementou achando que aquela barba de algodão era mesmo patética e ridícula, o avô tornou-se sombrio porque perguntava e ninguém respondia, a avó incitou a filha a cuidar dos filhos e da cozinha, a mulher entristeceu, pois ela e o marido às vezes não se entendiam, o homem carregou o medo de perder tudo aquilo que nem tinha tanta certeza assim de que tinha, e todos prometeram evitar discussões naquele dia porque era Natal.

A pele brilhava. Perfeita. Se a levantasse apenas um pouquinho, encontraria a carne branca e macia. Igualmente perfeita. Nesse momento, a boca certamente já estaria transbordando de água. Água de fome e vontade. Uma faca grande e bem afiada faria o corte preciso. Com muita calma, penetraria nela o garfo de enormes dentes e a deitaria languidamente no prato. Ao seu lado, para breve companhia, um pouco de arroz, farofa e maionese. Pronto, perfeito. Agora, a boca aberta já estaria à espera, assim como todas as glândulas e todos os dentes. Se houver sorte e dinheiro, 32 inteiros ou consertados. Mas, antes, outro corte. Menor, mais delicado, mais sensível. Enfim, o garfo, o pequeno, espetaria a sua pressa na carne. E a boca ávida, como em nenhum outro dia, engoliria tudo. Ao seu lado, em silêncio, a sua mulher fazia o mesmo. Ao lado dela, fazia o mesmo a sua filha. E o filho. Na outra ponta, o seu pai, mãe, e pai e mãe dela. Na casa vizinha, dava para ouvir o mesmo. E o mesmo, o mesmo. Alguém riu, todos riram. Alguém disse Feliz Natal, todos repetiram. Alguém estendeu um presente, todos estenderam. Alguém anunciou que ia dormir, dormiram. E o céu deste mundo brilhava, sem reluzir nenhuma estrela.
======================
Sobre a Autora

Claudia Lage é carioca, se formou em Literatura e dedicou muito tempo ao teatro, como autora e atriz. Mas sua verdadeira vocação se manifestou repentinamente, num domingo, quando em apenas um dia ela escreveu o conto A hora do galo que ganhou o concurso Stanislaw Ponte Preta de contos, da Rio Arte, em 1996. Este e outros doze contos formam seu livro de estreia, que publicou em 2000, pela Editora Record – A pequena morte e outras naturezas.

Claudia também tem contos em algumas antologias:
– Recontando Machado (Editora Record)
– 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Editora Record), organizado por Luiz Ruffato
– Todos os sentidos – contos eróticos de mulheres (CL Edições Autorais), organizado por Cyana Leahy
– Ficções Fraternas (Editora Record), organizado por Livia Garcia-Roza

Em 2009, a autora se lança como romancista, trabalhando ficcionalmente a biografia de Eufrásia Teixeira Leite, com o livro Mundos de Eufrásia.

Claudia Lage mantém o blog A pequena morte e é colunista do Jornal Rascunho.

Fontes:
http://www.paralerepensar.com.br/
http://sobrecapa.wordpress.com/autores/claudia-lage/
Imagem = http://oescunchador.wordpress.com/

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras, notas biográficas

Antonio Brás Constante (Humor, Terror e Salvação em um Conto de Natal)

A cena continha vários detalhes que lembravam o Natal, ainda que não houvesse renas por ali. Havia um pinheiro enorme, pisca-piscas, quase todos os tipos de bebidas, um cheiro diferente no ar… (que não era causado pelas renas, pois elas realmente não existiam por ali)

O que mudava o contexto natalino era que o pinheiro serviu para parar o carro que tinha vindo desgovernado e em alta velocidade na sua direção. Os pisca-piscas, não passavam de sinalizações indicando que aquela estrada estava em obras. As várias bebidas estavam todas armazenadas no corpo do sujeito desmaiado e ensangüentado que jazia abraçado ao volante e, por fim, o cheiro no ar era de gasolina (eu falei que não eram as renas), que saia do tanque perfurado do veículo. O liquido inflamável escorria e deslizava pela terra, chegando cada vez mais perto de um principio de incêndio, localizado na dianteira do automóvel, iniciado devido ao impacto.

Mas havia algo mais. Algo que estava ocorrendo na mente do motorista embriagado. Era ali que estava para ocorrer à verdadeira história de Natal. Quem olhasse de longe para as ferragens retorcidas, não poderia imaginar que naquele momento, um homem estivesse encontrando seu destino de forma tão surreal.

Kaio das Pontes era seu nome, um nome que passou bem perto de ser gravado em uma lápide fria, visto que ele poderia ter morrido em decorrência da brutal batida na qual foi algoz e vítima. Se bem que sua situação ainda era delicada, pois tinha quebrado vários ossos, e perdido muito sangue. Mas, o pior é que seu carro poderia explodir a qualquer momento.

O lugar estava deserto e desolado, nenhum sinal de vida, nem sequer uma placa indicando algum Fast-food de beira de estrada. Em meio ao quase silêncio (ouvia-se apenas alguns ruídos típicos de florestas) uma luz começou a brilhar, próxima ao pára-brisa quebrado (deixando a cena do acidente mais iluminada, porém, ainda silenciosa).

A partir do aparecimento da estranha luz, tudo que estava em volta do veículo congelou. As folhas pararam de se mover, o vento parou de soprar e mesmo os ruídos florestais ao seu redor cessaram. A luminosidade tomou forma, e tal qual o conto de Natal: “Os fantasmas de Scrooge”, Kaio também passou a receber a visita de três espíritos (anjos ou demônios, dependendo da crença de cada um). Um para mostrar-lhe o passado, outro o presente e um último apresentando seu futuro.

O primeiro fantasma apareceu na figura de um cachorro vestido de garçom, e que urinou no rosto do moribundo para acordá-lo. Ao perceber o que aquela criatura peluda tinha feito, Kaio começou a praguejar, mas parou ao levar uma mordida na perna. O cão falava, não com palavras, mas com pensamentos, e fedia, como fedia, exalando um odor insuportável de cachorro molhado.

Kaio já não estava mais em seu carro, mas de volta ao seu próprio passado. Ele passou a relembrar de todas as situações que o levaram a beber, as festas, as alegrias e tristezas sempre comemoradas ou esquecidas com álcool.

Ao ver a si próprio naquele passado, começou a perceber o quanto se tornara dependente daquele vício maldito. Mas era tão bom o torpor que a bebida lhe trazia. Era como um elixir que lhe curava todos os seus males. Algo que lhe dava coragem e afugentava a dor e as lembranças amargas de sua vida.

O cão percorreu com ele a trilha tortuosa dos primeiros passos do alcoólatra, e do grande problema nesta unificação entre Homem e bebida, em que nós seres humanos somos péssimos vasilhames, e onde até mesmo os uísques importados viram urina quando estocados em nosso organismo. Pois na grande maioria das vezes que o ser humano resolve bancar o porta-álcool, acaba estragando seu convívio social e até mesmo a sua própria vida, já que de gole em gole tornamos a vida um porre.

O cachorro também lhe mostrou, enquanto abanava a cauda, que mesmo sendo um viciado nos prazeres e desprazeres da bebida, Kaio ainda havia conseguido um emprego razoável e uma família com esposa e filhos. Por fim o cão trouxe-lhe de volta ao seu carro acidentado.

O homem baixou a cabeça, mas antes que pudesse se recobrar de seu estado deprimente apareceu o segundo fantasma. Ele veio na forma de uma gigantesca lagosta com roupas de bailarina (o balé era o sonho de carreira que sua esposa largou para se dedicar ao marido e aos filhos). Lembrando da mordida do primeiro anjo, Kaio (que adorava lagostas) achou melhor não esboçar qualquer reação diante daquela figura estranha que lhe puxou para fora do carro com um beliscão no braço, levando-o diretamente aos acontecimentos que causaram seu acidente.

Ele viu seu dia recomeçar, sempre no bar. Seu corpo mole do trago chegando novamente atrasado ao serviço e desta vez sendo demitido. Ao voltar para casa, reviveu a briga com sua mulher, mais uma entre várias que já se passaram, com um agravante, desta vez houve agressão física com troca de tapas e socos. Ele ouviu novamente o choro de seus pequenos filhos, que por estarem chorando também apanharam. Tudo tão real, tão vergonhoso. Por fim acompanhou sua esposa saindo de casa, levando algumas malas e seus dois filhos, um no colo e outro pela mão.

Kaio poderia ter ido atrás dela, ter lhe pedido desculpas pelas besteiras que fez, implorando que ficasse. Ele poderia ter dito que a amava e que amava seus filhos. Mas preferiu encontrar o conforto de uma garrafa. Bebeu toda que encontrou, até ser expulso do bar. Saiu de lá cambaleando e pegou seu carro.

Veio pela estrada quase em coma alcoólico até perder a direção e bater contra aquele velho pinheiro. Agora estava ali, relembrando todos os seus erros. Estava novamente estropiado e ensangüentado dentro do carro. Seus olhos mareados de lágrimas. A dor do corpo tornara-se menor que a sofrida por sua alma destruída pela bebida e estraçalhada pelas lembranças. O que viria a seguir? Uma rena vestida de Papai Noel?

Então chegou o terceiro fantasma. Uma pomba, nua como qualquer pomba que possa existir, mesmo sendo uma pomba fantasma. Ela mostrou a ele que sua morte traria tristeza para a família, mas também traria alívio. O rosto de sua esposa já não era cheio de medo dos ataques de fúria do marido. Seus filhinhos passaram a dormir melhor, sem acordarem chorando no meio da noite, apavorados com aquele monstro cheirando a cachaça, que gritava enquanto ia quebrando tudo que encontrava pela casa.

A pomba também mostrou o que aconteceria se Kaio sobrevivesse. Ela Mostrou-lhe vários futuros, em alguns deles ele voltava para a bebida, porém, em outros conseguia superar o vício. A escolha devia ser feita. Viver ou morrer. Lutar ou se deixar vencer.

O homem estava totalmente transtornado, seu rosto molhado de lágrimas e sujo de sangue, fedendo a urina de cachorro. A vontade de viver parecia ter se apagado junto com as últimas imagens. Kaio largou o peso do corpo sobre banco e se entregou ao destino. Era tão fácil desistir, abraçar a morte, não ter que enfrentar a vergonha, ou mesmo lutar para mudar a própria vida.

Finalmente o fogo alcançou a gasolina. Naquele fatídico momento, o clamor de seu coração por uma nova chance falou mais alto. Apesar de tudo queria viver. Não podia terminar assim, não como um churrasquinho humano, não agora que tinha visto sua vida sobre uma nova ótica, e que poderia mudá-la, por mais difícil que fosse. No entanto, suas preces não pareciam ter surtido qualquer efeito, pois o mundo a sua volta explodiu. A última coisa que viu foi à imagem da pomba voando…

Tudo estava escuro e sereno. Após uma verdadeira eternidade de trevas, seus olhos emergiram para uma luz, cegante e intensa. Aos poucos começou a ouvir murmúrios e sons irreconhecíveis. A consciência foi voltando ao corpo. Estava em um hospital. Milagrosamente sobreviveu. A explosão o havia lançado para longe do carro e atraído uma viatura da polícia. Estava consciente de que recebera o melhor presente de todos: A vida, juntamente com uma nova chance de ser feliz. A partir dali só dependeria dele. PRELÚDIO: ao olhar pela janela Kaio pode perceber, ao longe, uma rena vestida de Papai Noel…

Fontes:
– Colaboração do autor.
– Imagem = http://animatoons.com.br

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Carlos Drummond de Andrade (Viúva Loura)


– “Viúva, 21 anos…”
– Tadinha. A vida é isso.
– “Loura…”
– Melhorou.
– “Fazendeira, rica…”
– Epa, muda completamente de figura.
– “Pertencente a tradicional família mineira…”
– Corta essa!
– “Recém-chegada do interior…”
– Então, não custa sondar a barra.
– “Procura companhia masculina…”
– Ainda bem que é masculina. Tou às ordens.
– “Que seja jovem…”
– Você acha que 38 anos está na pauta?
– “Bem intencionado…”
– Nunca fui outra coisa na vida.
– “De fino trato…”
– Não é por me gabar, mas…
– “Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio…”
– Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu prefiro pontos estratégicos.
– “Para passeios e …”
– Etc., lógico.
– “Futuro compromisso matrimonial…”
– Corta! Corta!
– É mesmo.
– Aliás, eu não tenho mais de 38. Tinha, semana passada.
– E rica… Rica de que? Talvez de predicados apenas.
– Poxa, até parece que você está querendo a viúva pro seu bico. Pera aí, mau- caráter.
– Eu? Vê lá se eu vou nessa onda de anúncio. Tou prevenindo pra você não se grilar. Viúva, mineira, loura… Se é mineira, não deve ser loura. Se é loura. É artificial. Se é artificial…
– Deixa a viuvinha ser loura e mineira, deixa.
– Olha, eu conheci uma loura que, além de outros negativos, era careca.
– Ora, peruca resolve.
– Sei não, mas tudo isso junto- mineira, viúva, loura, 21 anos, rica…
– Que é que tem?
– É exagero. Não precisava Ter tantas qualidades.
– Foi uma graça de Deus.
– Você não merece tanto.
– Será outra graça de Deus.
– Deus não deve ser assim tão desperdiçado com suas graças.
– Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo. Perde essa mania.
– Bom, mas você não sabe que mineiro esconde milho até de monjolo?
– Continua.
– “Cartas com sigilo absoluto…”
– Evidente.
– “Indicações pessoais…”
– Minha ficha é mais limpa do que caixa d’água de edifício quanto o síndico vai ao terraço.
– “E fotos…”
– Arrgh! Só tenho 3×4, muito fajuta. Mas tiro de calção, frente, perfil e fundos.
– “Para a portaria desse jornal, sob n° 019 834.”
– Pera aí. Tou anotando. 019?
– 834.
– Legal. 834 é o número de meu edifício, 19 é pavão, que tem a perna dourada. Lê mais.
– Já li tudo, ué.
– Lê outra vez. Repete.
– Vai decorar?
– Vou gravar melhor na nuca, vou raciocinar em bloco, vou…
– Se habilitar, né?
– Correto.
– Calma, rapaz. Sabe lá que espécie de viúva é essa?
– Vou ver pra conferir.
– Pode nem ser viúva.
– E daí?
– Diz que tem 21 anos, mas quem garante que não é modéstia? Às vezes tem três vezes 21.
– Então você admite que ela é mineira.
– E que cria galinha sem ração, na base da parapsicologia?
– Também sou mineiro, uai.
– E nunca me confessou. Eu jurava que você fosse capixaba.
– Fui. Questão de limites, minha terra passou pra banda de cá. Não espalha, sim?
– Me tapeou esse tempo todo.
– Esquece.
– Vai ser dura a parada: mineira loura versus mineiro mascarado.
– Fica em família, né?
– A tradicional?
– As duas. Eu na minha, ela na dela.
– Agora sou eu que digo: tadinha.
– Por quê? Se ela botou anúncio, quer transar. Eu transo. No figurino.
– É verdade que tem muito carioca por aí, muito paulista, muito nortista, espiando maré. Talvez você chegue tarde.
– Duvido. Você sabe que nessas coisas sou meio Fittipaldi. Comigo é Fórmula-1.
– Mineiro contando prosa? Nunca vi isso.
– Bem, mineiro é capaz de contar prosa só pra esconder que é mineiro…
– Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com fazenda e tudo, podes crer!

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Carlos Drummond de Andrade (Viagem a Paris)

Paris Antiga feita a mão em óleo sobre tela

– Ouvi dizer que vai a Paris.
– Exato.
– A negócio?
– Não.
– Turista?
– Não.
– Missão política reservada?
– Não.
– Tão secreta assim?
– Não.
– Se não sou indiscreto…transa de amor?
– Não.
– Está muito misterioso.
– Não.
– Como não? Saúde, talvez.
– Não.
– Compreendo que não queira alarmar…
– Não.
– Busca apenas repouso.
– Não
– Fugir do trabalho, então.
– Não.
– Capricho do momento.
– Não.
– Tantos não devem significar um sim.
– Não.
– Significam sim. Vou repetir as hipóteses.
– Não.
– Temos pela frente uma indústria nova, de vulto.
– Não.
– De qualquer maneira, é financiamento internacional.
– Não.
– Então a coisa está ficando preta.
– Não.
– Está preta, e há jogadas que só em Paris.
– Não.
– Percebe-se alguma coisa no ar.
– Não.
– Não dá para perceber, mas há.
– Não.
– Mas pode haver a qualquer momento.
– Não.
– Nem hipótese?
– Não.
– Nenhuma nuvem distante, muito distante mesmo?
– Não.
– No ano que vem?
– Não.
– Ouvi mal?
– Não.
– Sendo assim, é segredo pessoal?
– Não.
– O coração é quem dita a viagem… eu sei.
– Não.
– Sim, sim. Pode confessar.
– Não.
– Hoje em dia essas coisas são públicas. Dão até cartaz.
– Não.
– Sei que não precisa disso, mas…
– Não.
– Por que não? Está com medo da imprensa?
– Não.
– Receia perder a situação social?
– Não.
– A situação financeira?
– Não.
– Política?
– Não
– Pois olhe, melhor é preparar o ambiente.
– Não.
– Claro que sim. Insinuar mudança em sua vida.
– Não.
– Discretamente.
– Não.
– De leve, só uma pincelada. Deixe comigo.
– Não.
– Não abro manchete nem boto aquela foto em duas colunas, aquela bacana, lembra?
– Não.
– Só cinco linhas.
– Não.
– Duas.
– Não.
– Mas tenho de dizer alguma coisa.
– Não.
– O senhor é notícia.
– Não.
– Pode dizer que não, mas é sim.
– Não.
– Puxa vida, o senhor hoje está medonho. Resolveu responder não a tudo que é pergunta minha?
– Não.
– Ah, é? Então vamos recomeçar: o senhor vai a Paris?
– Vou.
– E que é que vai fazer em Paris?
– Ver.
– Ver o quê?
– O Último Tango em Paris.
– E por que é que não me disse isso logo, homem de Deus?
– Você não me perguntou, por que eu havia de responder?

Fonte:
– Pintura = http://www.lemarchand.com

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Silas Correa Leite (O Piá que Entregava Trouxas de Roupas Lavadas)

“As lágrimas são as palavras da alma” Joaquin Setanti

Acharam o piá quase morto de frio. Estava com uma grave pneumonia. Olhos castanhos, murchos, fundos, tristes. Chorava, copiosamente, de ressentimento, talvez. E as lágrimas em sua face com amarelão, como se estavam – por um anjo! por um anjo! – de alguma estranha forma congeladas; dando ao seu rosto pueril a sofrência de uma paleta de amargura e dor terminal. O policial Dito Lima, num fusca que mais parecia uma imagem de garrafa de crush itinerante, tinha subido a rua 24 de Outubro, ali, na altura do Clube Atlético Fronteira, perto da hora do inicio Missa do Galo, e vira o menino com um vazio saco de farinha de trigo usado na mão direita, como se segurasse uma roseira de tristices. Vira, em passant, por acaso, de vereda mesmo. Depois, precisando atender a um chamado do Vereador Chico Preto para um forfé suspeito nas imediações da malha férrea da Estação Sorocabana de Itararé, passou novamente na esquina ali pertinho, e, de través, com o rabo do olho captou de novo o guri e talvez já passasse da meia noite. Encafifou. Será o impossível? Um alarme divinal tocou em seu instinto. Só por Deus. Parou o fusca da policia e foi ver o que estava acontecendo. Sacou o desboque: o menino pobrezinho ardia em febre, murcho, trêmulo, se não fosse socorrido a tempo certamente que iria morrer. Era Natal em Itararé, Cidade Poema. Dezembro de um tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça.

O piá era filho da Dona Lena. Levava e trazia rotineiramente as trouxas de roupas que a mãe lavava pra fora, precocemente ajudando como podia em casa. Trazia as pesadas trouxas de roupas sujas dos ricos, depois levava tudo de novo, roupa limpinha, fervida em água de bica (o chafariz do Bairro Velho), sabão de cinzas e anil, passada com os vincos certinhos, e que entregava direitinho, trazendo os minguados tostões pra suprir a familia grande e pobre, da carente periferia sociedade anônima de Itararé, pois o pai estava doente, os irmãos menores padecendo, por meses, mal-e-mal e sempre uma rotineira e rala sopa de fubá com couve rasgada. Havia carestia no Brasil, anos sessenta, os clientes ricos minguando, o já parco pagamento dos afazeres da mãe dedicada, entre o tanque e o quarador, entre o fogão de lenha e os filhos com amarelão. A Dona Lena confiava naquele primogênito, era o maior, dizia até que o bendito era abençoado por Deus. Gastava um minuto de prece com os outros filh
os, nas demoradas orações, mas, com aquele seu protegido era meia hora, precisava investir no menino, tinha fé nele.

Algo doente, Dona Lena, mesmo assim batalhou até de madrugada, fervendo as roupas no latão velho de óleo de algodão, sobre uma lajota com fogo no quintal de laranjeira pesteada. Depois, passou a ferro que era de brasas, com sacrifício, mas ela contava com mais aquele serviço, tinha planejado, ternura de mãe. A despensa estava vazia fazia tempo. Sopa de fubá com couve rasgada, polenta maleixa, aqui e ali, banana frita, uns ovos que mal davam prum bolo mixuruca de banana-caturra e olhe lá. O céu por testemunha. Se o Dr Aderaldo mandasse mais uma quantia de roupa, se apressaria em entregar depressinha o serviço, pra ter mais uns cobres que melhorassem a bóia de natal, talvez desse até para comprar algumas tubainas de limão do Vilela, ou mesmo algum doce de cidra pros filhos queridos, tão precisados. Instruiu o piá Thiago que, entregando as trouxas de roupas limpas, recebesse e passasse no Seu Vitorino, fizesse algumas compras, deu uma listinha, feijão-jalo, tomate, óleo, açúcar
cristal. E também trouxesse a nova renca de roupas sujas pra ela poder adiantar bem o serviço, varando a noite preciso fosse, talvez entregando no dia seguinte, mesmo tendo que ferver as roupas de madrugada, mas, ao final do dia de natal entregaria tudo pronto e receberia a paga costumeira para melhorar a bóia em casa. Coração de mãe. Capricharia nos torresmos, cuques, tortas de lágrimas. Confiava no guri. Bem instruído, ele foi levar as pesadas trouxas, como se carregasse o mundão sem porteiras sobre os ombros miúdos.

Entregou, recebeu, viu que era pouco o que pagavam pelo trabalho, mas atenderia à solicitação da querida Mãe. Mas, quando perguntou da nova porção de roupa suja da casa do Dr Aderaldo, foi informado de que não estavam mais interessados no serviço, contratariam empregada barata a preço melhor e que ainda faria tudo, depois, estavam para entrar de férias, iriam pra Iguape, litoral. O menino ficou estacado. Mal deram um tiau seco e sem graça que fosse, fecharam a porta da casa rica na cara azeda dele, e Thiago ficou ali, encostado na enorme porta de cedro e imbuia cheirosa, chorando suas lágrimas, quase beijando a parede, quase mesmo batendo de novo e pedindo pelo amor de Deus, mais uma leva de roupa suja, mais uma porção de serviço, a casa precisava, a mãe contava com aquilo, que fizessem uma caridade. Era Natal e ele estava detravessado. Sensível. Cismou. Reinou. Não voltaria pra casa. Não voltaria nunca mais. Não com as mãos vazias. Não ele. Não daquele jeito.

Ficaria ali. Estava mesmo com tosse de cachorro, a mãe disse, o peito chiara na madrugada fria do dia anterior, um dezembro chuvoso e friorento em Itararé. Se morresse ali, não daria desgosto de dizer pra mãe que não teria mais roupa pra lavar daquela ultima casa freguesa, ou que iria apertar mais a pobreza em sua casa humilde. Sim, ficaria ali, achariam o corpo, dariam o dinheiro pra mãe, ela o abençoaria, “vá com Deus meu curumim, vá morar no céu, piá”. Ele não tinha coragem. A mãe pedira. A mãe contava com mais uma lavada pelo menos, naqueles tempos de carestia. Pelo menos morrendo, no jantar daquela noite sobraria mais da rala sopa de fubá com couve rasgada pros irmãos, para as adoradas irmãs, para a mãe adorável que andava dodói da angina, pro pai que estava de cama com úlcera varicosa e assim era impedido de trabalhar. Ali Thiago ficou entrevado, coração transido, alma aflita, mordido de dor. Só por Deus. Entardeceu, anoiteceu. Sobre a beirada da porta da frente da mansão do Dr Aderaldo Martins Mello, na Rua 24 de Outubro, um pacote de renúncias. Foi quando o policial Dito Lima o achou sem querer e salvou a sua vida, pois a morte já fora avisada que uma alma pura de Itararé estava para ser levada para muito além do vale da sombra da morte…

Na Santa Casa de Misericórdia de Itararé foi uma correria danada, um forfé sem igual, o menino coitadinho para morrer; cobraram doações de sangue, labutaram, uma enfermeira conhecia a familia, foram avisar Dona Lena, o filho achado em petição de desconsolo estava morrendo em frente a casa do doutor rico, a mãe preocupada pensava mesmo em chamar a policia, ia dar parte na cadeia, perguntaram então do porque o menino que entregava roupa não quisera mais voltar pra casa, como ele ainda em tratamento emergencial, talvez entre o pesadelo e o sonho, falara, repetira, suando, descorçoado, determinado, em febre-terçã, preferindo morrer do que não ter como ajudar a mãe prover o lar.

O Dr. Jonas de Alencar chorou muito depois que o pensou com presteza, mandou trazerem capado do sitio e que doassem pra família junto com farnel de milho verde e manta de charque, entre grãos e tulhas de frutas como laranja-pêra, abacate-manteiga, manga-sapatinho, alguns lambaris salgados também. O enfermeiro Nicanor correu no Armazém do Vereador Tico comprar fiado uma boa cesta básica pra doar como se fosse o seu abençoado presente de natal pra família. Todos no hospital, doadores, serviçais, visitantes, curiosos, gente de coração de ouro de Itararé, cavalheiros como os reis magos, foram acudir aquela família humilde em petição de miséria. Muito além de ouro, incenso e mirra, há o amor, pois o amor é a mão que balança o berço da humanidade, e a esperança é a inteligência da vida.

Nunca tiveram um mês tão farto naquela casa de tabuinhas, com todos finalmente comendo do bom e do melhor, até que a mãe arrumou freguesia nove e farta, o pai arrumou emprego de acendedor de lampiões de gás de Itararé, o menino Thiago ficou sendo respeitado pelos seus colegas do primário no Grupo Escolar Tomé Teixeira, e quando algum piá maroteiro de rua, com quem joga bola de capotão agora, de ki-chute encardido no pé, pergunta porque ele não quis voltar pra casa, ele enche os olhos de lágrimas, abaixa a cabeça, se assunta e não diz nada. Fica encruado.

Não, não se apruma numa conversa fiada que seja. Sabe só pra ele que dentro do seu coração, de alguma maneira que inventou de inventar, sentiu uma estrela amarela de Natal alumiando, e ele queria aquela bendita luz, aquele dourado celeste de esperança, para enfeitar a choupana humilde de sua morada na descalça periferia cor-de-rosa de Itararé.

Sentiu que, talvez porque fosse Natal, mesmo morrendo de frio, de alguma maneira seus familiares não morreriam de fome, pois, algum anjo de pertinho do Menino Jesus do presépio, em sua fé e defesa, operaria o que o pastor João Vera da igreja chamaria de um “Milagre”.

Conto da Série “Eram os Itarareenses Astronautas?”

Fonte: http://www.paralerepensar.com.br

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Ronaldo Correia de Brito (Eufrásia Meneses)

– Sentada estou. É aqui que me vêem todas as tardes e me imaginam a esperar a noite. O que mais esperaria além da passagem da claridade? A hora em que me trancarei no meu quarto à espreita de um visitante que rondará a casa e que nem sei se é real ou se urdido pela minha fatigada solidão? Meu marido é incerto no vir, e todos o sabem. Pressentem que anoiteço e, se passam à minha porta, me perguntam: “Esperando a noitinha, dona Eufrásia?”. Mas o que me trará a noite além de um vento frio e de um silêncio fundo? O cheiro de carne apodrecida do gado morto neste ano de seca, um bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estalar das brasas que se apagam no fogão.

Meu filho dorme ao lado, numa rede alva e cheirosa. Ouço o seu respirar leve e tenho a certeza de que está vivo. Habitamos este universo de ausências: ele dormindo, eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata ao mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, a casa lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, selas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu. Ela julga e condena os nossos atos, pela antiga moral de seus senhores, de quem meu marido é herdeiro. Assim, se penso no casual nome de outro, o estrangeiro que me olhou com mansidão, ela me escuta pensar e depois, nos meus sonhos, grita-me com todas as suas vozes. Sou escrava destas paredes, prisioneira de pessoas mortas há anos que, agora, se nutrem de mim. Abarcada pelo calçadão alto, onde me sento e olho a eterna paisagem: o curral, as lajes do riacho, a curta estrada, a capoeira, os roçados, as casas dos moradores. Envolvendo tudo, um silêncio e um céu azul sem nuvens, que o vento nem toca. E longe, onde não enxergo, a terra de onde vim.

Já é quase noite. Meu marido e seus vaqueiros tangeram o gado até o curral e voltaram a campear reses desgarradas. Trouxeram as ovelhas, com seus chocalhinhos tinindo e uma nuvem mansa de lã e poeira. Os animais estão magros e famintos. Também os homens. O sol queima e requeima as doze horas do dia e, à noite, um vento morno e cortante bebe a última gota d’água do nosso corpo. Já somos garranchos secos, quebradiços, inflamáveis. Basta que nos olhem para ardermos numa chama brilhante e fugaz, que logo é cinza.

Minhas veias guardam um resto de vida, alimento do meu marido. Ele deita sobre mim, funga, rosna, machuca-me sem me olhar no rosto. Depois cai para o lado. Contemplo o telhado e toco, com as pontas dos dedos, o sêmen morno que molha o lençol.

Não sei como escapar. São tantos os anos e há este filho doce, que repousa na rede. De tardezinha, nos debruçamos na janela e vemos o gado que chega. As vacas mugem, os touros andam lentos. O sol se avermelha, morrendo. É tudo tão triste que choramos, eu e ele. Ensino-lhe o pranto e a saudade. O pai ensina-lhe a dureza e a coragem. Quero este filho só para mim. Fazê-lo ao meu modo é a maior vingança contra meu marido, que me trouxe para cá, terras de Sulidão, onde o galo só canta uma vez a cada madrugada.

É verdade que vim com as minhas pernas, que não fui forçada. Deixei o verde Paraí da minha mãe, onde meu pai descansa morto. Se fecho os olhos agora, vejo os canaviais ondulando e sinto o cheiro da rapadura. Nem sei como os meus pés despregaram de lá. Não consigo recompor o passo, na ligeireza que foi tudo. Um tio me levou para ser professora no Cameçá, a dez léguas de onde nasci. Ficaria por uns tempos na casa dos Meneses, que antes habitavam o Sulidão. Chegados há pouco na nova propriedade, o contato de pessoas civilizadas tinha-lhes imposto a necessidade de conhecer as letras. Meus alunos seriam os filhos: cinco mulheres e nove homens. Os velhos não se dariam a tais vexames.

Uma revoada de aves de arribação me acorda das lembranças. A África acolherá esses pássaros que abandonam o sertão. Se ficam aqui, morrem de fome e de sede. Voam num comprido manto, estendido no céu. Nós ficaremos, chupando a última gota d’água das pedras, lendo no sol, todos os dias, nossa sentença.

Um vaqueiro passa. Um galho de aroeira rasgou-lhe o couro do gibão e do braço. Vão à procura de mastruço para acalmar a ferida. A fome enerva o gado e os homens não conseguiram juntar os garrotes e os touros. Ouço-o dizer que o meu marido está nervoso e ameaçou de morte um chamado João Menandro, o de outras paragens. Desentendera-se. Meu marido, afeito ao mando, quer passar por cima de quem lhe esbarra na frente. Ou terá pressentido o que nenhum gesto meu jamais revelou? Tremo e mostro ao homem um canto do quintal onde poderá achar a sua meizinha. Ele me agradece, parece querer dizer outra coisa, porém cala e me olha com pena. Todos me olham assim. Se passam na minha porta, tiram o chapéu, desejam-me boa-hora e seguem em frente. Apesar dos anos passados, vêem-me como estrangeira. É difícil o caminho que leva aos seus corações. Gostarão de mim, tão silenciosa e distante? Suspeitarão dos meus ocultos sentimentos? Procuro a resposta no vaqueiro e, quando vai embora, se despede num brusco balançar de cabeça.

No começo tentei amar esta terra e sua gente. Trazia a minha fresca alegria, banhada de novo nas fontes do Paraí. Mas aqui o sol queima forte e somos bebidos até a última gota. Seca, deixei de bater às portas e me recolhi ao labirinto da casa, onde continuo esperando. Os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite. Na casa dos Meneses, fiquei o tempo de me apaixonar por Davi, meu futuro marido, e de ensinar aos alunos as primeiras letras. Fui tratada a açúcar, enquanto os outros comiam rapadura. Tempo de corredores escuros. Conheci a força dos abraços do meu marido, o ímpeto do seu desejo, e cedi. E aqueci minha alma de mulher e nem perguntei pelo amor. Só ardia. Deixei-lhe a mão solta, o membro sem freios. Cavalgada, retornei à casa da minha mãe e esperei o dia do casamento. Dançamos os três dias de festa, viemos para este seco Sulidão. Esta casa fora abandonada por seus antigos donos, mas aguardava o peso cruel das suas presenças. Coube-nos perpetuar neste sertão uma herança de estirpe, sólida como as pedras do calçadão alto.

Meu filho, mexendo-se na rede, traz-me de volta à casa. Está tudo escuro e terei de acender os candeeiros. Numa noite como esta, passou correndo um lobo-guará. Meu marido deu tiros, mas não o acertou. Falou-se sobre o lobo por muitos dias. São os acontecimentos desta terra. Vivo de silêncio e de lembranças. Às vezes, quando não quero sonhar, penso em nomes de pássaros, retardando a hora em que terei de me trancar a ferrolhos. Procuro esquecer um tropel que ronda a minha janela, todas as noites em que me deito só. É a hora de decidir? Ouço um respirar que não é o meu. A noite é um lençol que cobre a fadiga dos homens. Dominada pelo cansaço, adio mais uma vez a minha escolha. A realidade de uma lâmina de faca, guardada sob o travesseiro, lembra-me o instante em que poderei cortar o sono e cavar a vida.

Um vaqueiro vem me avisar que meu marido não retornará esta noite. Celebram uma festa perto daqui. Vieram músicos e mulheres de longe. Na madrugada, ainda se ouvirão os gritos de prazer e as notas perdidas de uma música que não conseguirei identificar. O homem me oferece a companhia de uma filha sua e eu agradeço. Diz-me que a briga entre meu marido e o que veio de longe deixou no ar uma sentença de morte. A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo. Estou só. Não há pai, nem há mãe, nem sorriso de irmãos. Só a casa espreita, querendo me tragar.

João Menandro é um nome que se confunde com o meu sonho. Haverá mesmo, lá fora na noite, alguém que me aguarda, ou o meu desejo inventou esse ser? A noite interminável me cansa e penso em apressar o desfecho de tudo. Não há tempo para contemplar passiva o mundo morrendo em volta. A mão se endurece ao toque da lâmina que o travesseiro esconde. Meu marido retornará sonolento. O outro virá até minha janela. Eu me olharei num espelho. Chegará sim, a madrugada. Aquela que poderá ser a última, ou a primeira.

(Extraído de Faca)

Fontes: – MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: d’a Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. – Imagem = http://rossi.blog.uol.com.br

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Tércia Montenegro (O Vendedor de Judas)

A cidade era outra. Pequena, habitantes escassos. Uma igrejinha só. Duas praças, a lagoa sinuosa e o casarão dos políticos. Não havia cadeia, que o povo era manso. Briga de desonra se resolvia entre famílias; com o boato fervilhando, tudo se ajeitava de pronto. Os crimes de faca nunca aconteciam antes da Serra Branca, fronteira a mais de légua.

Ele chegou; apeou-se. Janelas abriram-se, curiosas, a ver quem surgia de onde e para quê neste fim de mundo. As informações saíam lentas, cheias de reticências, com gosto de pergunta:

– Olhe… hotel aqui… O senhor só acha a pensão da Malvina. Naquela esquina, sabe? Pode ir que tem vaga. Quase ninguém aparece visitando este canto… Sabe?

Ele saiu no rumo indicado. Admiravam-lhe o cavalo de pêlo marrom. Algumas mocinhas vieram à calçada, desfazendo tranças.

De manhã, D. Malvina a custo conseguiu atravessar a rua. A cidade inteira parecia rodeá-la, com vozes atabalhoadas de anseio. Quase gritou:

– Mas já disse que não sei de nada! O homem veio, trancou-se no quarto, jantou por lá mesmo. E acorda agorinha, se vocês não me param com esta zoeira!

Um mulato arriscou, por detrás de umas senhoras:

– E a mala? Um malão daquele tamanho! Ele disse o que tem dentro?

D. Malvina ia aborrecer-se; hesitou. A multidão eriçava com a pergunta. Mais um pouco e os ânimos subiriam à rebeldia.

– Disse que era coisa para vender. – E completou rapidamente: – Não faço idéia do que seja.

Alguns se dispersaram, satisfeitos com a dúvida. A maioria ainda quis acompanhar por uns metros a dona da pensão. O prefeito apareceu, voz grossa sob o farto bigode. Ordem geral: todos para seus afazeres e ele próprio para casa, indagar da esposa se ela adivinhava os detalhes do que já se fazia mistério.

O desconhecido continuou a provocar assunto, suscitar apostas. A hora do almoço no bar do Rufino era o momento mais esperado, tanto pelos homens, que lá iam tentar o fio da prosa com o forasteiro, como pelas jovens casadoiras, que arrastavam olhares e vestidos do lado de fora.

Ao fim de três dias, a notícia, dada pelo dito-cujo, ele mesmo, frente a várias testemunhas:

– Sou vendedor. Fabrico judas. É trabalho de ano inteiro. Antes de chegar a Páscoa, saio vendendo o estoque por esse interior. Cada boneco, uma cidade.

Decepção. Aquilo já era conhecido: a festa da queima do apóstolo traidor. Há décadas o velho Aníbal costurava uns espantalhos forrados de palha e os doava, simplesmente, para serem amarrados nas árvores. Agora teriam de comprar judas? Melhor não haver festa; Judas nunca valeu tostão furado.

O desconhecido parecia esperar aquela reação. Pediu que o acompanhassem ao hotel (assim ele chamava a pensão) para mostrar o produto de seus dons artísticos; obra-prima sempre destruída, no final das contas.

Maravilharam-se. O boneco era perfeito, de feições nítidas, esculpidas na madeira clara. Olhos e sobrancelhas eram pintados; o cabelo vinha em peruca, sem falha ou emenda. O judas se vestia com um paletozinho cáqui muito jeitoso, flor de plástico na lapela. Até sapatos tinha.

Daquele jeito, haveria de custar fortuna. O forasteiro explicou que fazia os bonecos em série – e mostrou outros dois, igualmente trabalhados –, o que barateava a compra de matéria-prima. Além disso, utilizava madeira oca e freqüentemente apodrecida, com revestimento de pano. Tudo na aparência belo, mas, em verdade, feito para acabar numa só noite.

E mais um tanto de palavreado. O quarto sufocante; uma dúzia de homens. Quando o preço foi mencionado, não causou grande espanto. Pediriam fundos à prefeitura; afinal, era uma festa popular, para todo mundo. Devia ser bem comemorada.

O Sábado de Aleluia amanheceu em alvoroço. Grupos de mulheres congestionavam a praça, examinando o judas dependurado no cajueiro. Os homens repetiam as explicações do vendedor, gesticulando muito. Apareceu o velho Aníbal, cara fechada, acompanhando o prefeito. Deu umas apalpadelas no ventre do boneco. Comentou, na estranheza:

– Não está certo.

O prefeito assentiu, nariz torcido sobre o bigode.

– Também acho. Desperdício comprar um troço desses, tão bem-feito, justo para a fogueira.

Aníbal nem escutou. Cheirava a roupa do judas, batia-lhe com os nós dos dedos no corpo de madeira clara. Sacudiu o boneco; o galho ameaçou se quebrar. Alguns protestaram:

– Ó velho, cuidado! Desse jeito estraga o serviço.

Não adiantou tentar explicações. Em pouco tempo, todos levantaram a voz ao antigo vendedor, que este ano guardara os judas, rejeitados, de palha. Praticamente o expulsaram da praça:

– Vá, seu despeitado!

Aníbal desertou, olhos baixos. Ruminava para si, para seus pés cobertos de poeira:

– Não está certo… Não.

E, após o Ite missa est, quando todos corriam de tochas acesas, o velho foi o único a ver, perto da Serra Branca, a minúscula figura do homem montado num cavalo marrom. Ia embora, à procura de outra cidade, que esta – ouvia-se pelo estrondo – explodia em nuvens de pólvora, guardadas no ventre de um boneco traidor.

Fonte:
MACIEL, Nilto. In Literatura sem fronteiras.

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Regina M. A. Machado (Contraponto de Casa com Sorriso)

— Até a morte de meus pais, nunca mudei.

Eu estava distraída.

— Não mudou …?

— De casa. Até ser posta à venda, essa foi a única casa que tive.

— Deve ser algo profundamente reconfortante morar na mesma casa que se tem dentro.

— Ah, isso quer dizer o que?

— Simplesmente que você me faz lembrar que em matéria de casa eu vivi uma dualidade — havia, sim, uma casa eterna e boa, com recantos e esconderijos mágicos e até alguns inacessíveis e misteriosos, mas era a casa de minha avó. Nós, quer dizer, meus pais e eu, sempre fomos instáveis, sempre nos mudando e nunca a casa em que morávamos era satisfatória. O pior é que isso perdura, acho… Que horror!

— Bom, mas morar nessa casa que parecia eterna — mas não era — quase transforma a gente em árvore, com raiz e copa frondosa e espaçosa. Quando isso acaba, a gente descobre que não cabe direito em lugar nenhum. Você viu meu apartamento — um bom prédio bem situado no meio de outros tantos prédios parecidos, com entradas impecáveis e pátios limpos e cimentados, nenhum pedacinho de terra aparecendo, só canteiros muradinhos e floridinhos…

Nada daquela sombra no chão batido, as gaiolas que meu pai cuidava diariamente, as paredes largas, entre as quais meus velhos móveis tinham espaço e luz, que refletiam com brilho de madeira boa. Agora eu e eles ficamos um pouco empoeirados – é tudo limpo, mas meio embaçado, a poeira do tempo parece que grudou.

Tenho quase certeza que a história de Sorriso veio logo depois dessa conversa sobre a casa, trazida nessa onda de nostalgia que veio rolando, talvez nos vapores da sopa de feijão, que veio cremosa e acompanhada de torradas e de um bom vinho – duas garrafas para três pessoas – foi um jantar perfeito e uma conversa que ficou ecoando até agora e deu para rebrotar neste começo de outono europeu. Acho que também pelo fato de termos entrado num restaurante quase vazio e que, contrariamente ao do lado, não tinha música barulhenta para atrair público em busca de animação, com as poucas pessoas que havia falando baixo ou longe, não sei, mas a conversa pôde correr solta.

Devo ter esquecido vários detalhes, o que me vem são retalhos de sons, de frases.

— …e além dessas minhas casas sem história, minha cidade também tem muito pouca, apesar de ter sido na origem um pouso de tropeiros, que dizem ser lugar de muita conversa e de bons causos pela noite afora. Deve ser daí minha nostalgia irrealista de luz de fogueira perdida no silêncio da noite estrelada e meu gosto de ouvir histórias, meio enrodilhada num canto.

— Pois esta cidade tem muita história, vivida ou inventada, dá no mesmo — o que fica é sempre uma história contada. E a casa de meus pais tem até um bom causo, que se poderia chamar “Sorriso da casa velha”.

— Ah, é? Alusões literárias, a esta hora?

— Pode até ser, mas não deu para resistir. Veja: Sorriso era o nome de um retardado mental, que ficou com esse nome porque sorria o tempo todo e a vizinhança o chamava assim. Ele apareceu lá em casa um belo dia, ou uma bela noite, pois acho que vinha sobretudo para dormir na varanda. Quando eu voltava de dar aula à noite, quase tinha que passar por cima dele. Minha mãe arrumou um papelão para servir de cama, mas Sorriso sumiu com ele. Ele fazia questão de deitar no capacho, que era bem grande. Acho que ele tinha uma casa, mas nunca soube bem aonde.

Lembrando dessa noite, em que festejamos o aniversário de Bia, agora que já passaram uns três meses de minha viagem ao Brasil, o que me impressiona é o fato de que esse homem fosse visto de maneira tão benigna, dele poder dormir nessa casa de família de classe média conservadora e discreta. Essa senhora tão estrita em matéria de costumes, que minhas amigas descreviam como uma mãe severa, orientada por uma moralidade já fora de uso na época, aparece como uma pessoa paradoxalmente aberta, com uma generosidade quase perigosa, se transportada para um prédio qualquer de uma cidade atual, ou talvez mesmo para uma residência burguesa da mesma época. Será que uma casa velha, cuja única ostentação de riqueza provém da sombra das árvores e da solidez dos muros um tanto maltratados, de bons móveis envernizados, toalhas bem passadas e moradores fiéis, tem mais espaço para a marginalidade, para a alteridade gratuita e incontrolável de um retardado mental ? É paradoxal, claro, mas pensando bem, foi também por ter se tornado marginal no crescimento da cidade, na partida dos filhos, no necessário abandono disso tudo que pesa e prende, que a casa velha teve que desaparecer. Em todo caso, me espantou essa história de uma dona de casa mineira aceitando, sem medo nem preconceitos, que um louco, como a gente os chamava no interior, entrasse pelo jardim confiante em que não seria expulso, sabendo que poderia dormir tranqüilo no lugar e da maneira que escolhera por motivos que só ele sabia e que aliás nenhuma instituição psiquiátrica foi chamada a questionar. Acho que um dia ela proibiu apenas que ele dormisse atravessado na porta — a restrição deve ter sido bem aceita, pois o pouso serviu ao Sorriso durante bastante tempo.

— E ele vinha todas as noites?

— Não, ele sumia de vez em quando, às vezes eu cruzava com ele na rua, de dia, mas talvez tivesse achado outro pouso, não sei. Quando minha mãe vinha da feira ele se oferecia para carregar as sacolas, se caía uma tabuinha dos cercados dos canteiros, ele arrumava, enfim, ele olhava em volta e enxergava coisas para fazer, que às vezes a gente nem via.

— O que aconteceu com o Sorriso? Achou alguma garagem de prédio para morar?

— Imagine… esse tipo de nicho num prédio moderno, com todos os espaços racionalizados e rentabilizados… impossível. E depois, com a cidade ficando tão feia, tão desfigurada parece que de susto com tanta via rápida, não dá para imaginar qualquer lugar que seja, capaz de acolher a loucura, o sorriso gratuito de um vagabundo improdutivo…

— Mas afinal, que fim levou o seu louco poético?

— Não sei. Não me lembro bem se foi com a morte de minha mãe que ele sumiu, mas sei que foi bem antes da venda da casa. Eu ainda morava lá e lembro que senti falta de tudo ao mesmo tempo. Mas o que mais pesava era a ausência de meus pais, e foi essa falta que determinou todo o resto. O Sorriso era um traço, um detalhe num quadro de outros tempos, sumiu como sumiram todos os outros momentos, almoços de domingo, visitas de irmãos, primos, sobrinhos, gente que passava na rua…

Houve outros episódios, diálogos mais vivos, mas que foram se apagando, deixando apenas essas vagas lembranças que não chegam para formar uma história. Talvez uma crônica, pedindo ecos nas lembranças dos outros, como costumam fazer as crônicas, retratando o que é efêmero e desimportante.

No dia seguinte tomamos o ônibus de volta para o Rio, a cidade enfeiada ficou para trás, a serra da Mantiqueira fez a transição, com seus restos de mata, algumas poucas árvores grandiosas, muita encosta desbarrancada, muito paliteiro de eucalipto. Sorrisos raros e desdentados na paisagem vista da estrada.

Chegando no Rio, comemos na casa de Thereza uma polenta frita bem crocante, que ela tinha prometido ao devolver a do restaurante na noite do jantar, que foi considerada mole e indigna da nossa fome saudosa e exigente — ficou faltando só o frio de Minas e a neblina com a sombra do Sorriso imaginada pelas esquinas.

Fonte:
Releituras

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

João Gilberto Noll (Dois Ingressos)

“DOIS INGRESSOS”, Pedi me abaixando um pouco, espiando as tristes feições que me atendiam. Sabia que eu estava absolutamente sozinho, mas não me contive, repeti: “Dois ingressos”. Na verdade não me importava com o filme em cartaz. Apenas deixei que o vento batesse no que me restava de cabelo, e fiquei ali, esperando que a moça me entregasse os bilhetes para o filme sobre o qual eu nem vagamente ouvira falar. Uma criança, claro, me puxava pela calça para que eu comprasse suas pastilhas de hortelã. Dizem que na eternidade todas as coisas vão se conectar umas às outras sem que nenhuma pese demais, ou seja, sem que nada chame muito a atenção sobre si para que tudo possa se encadear indefinidamente, um papo assim. Pois foi nisso que fui pensar no momento em que aguardava os bilhetes. A criança vendedora de pastilhas já não estava por ali.

Entrei. Dormi. Acordei com o filme pelo meio. Dois corpos se beijavam dentro de um carro. Depois uma batalha esquisita entrava. Numa época anterior à possibilidade histórica de um carro. Depois… depois uma sombra azeitonada cochichava ao meu ouvido um torvelinho de sílabas com uma fenda voraz em certo trecho de toda a confusão; cochichava o que não sou doido de reproduzir, pois venho desenhando em mim um homem com a mania férrea de se manter na mansidão do que pensa aparentar. Mas… mas em que ponto mesmo eu ia tocar?

Ah, precisava dormir um pouco mais. A música na tela era um tanto militar, como se saísse de um tranco de guerra, de algo que de sonífero tinha apenas um instrumento calado, constantemente a postos, preparado para entrar…

Aliás, o que eu queria mesmo era só uma pausa momentânea diante de tanta erupção sem a guarda dos fatos… Compreende ou prefere se afastar? Mas espera!, espera… O que eu queria era voltar a antes da sessão, eu com as mãos sobre o mármore frio da bilheteria, pedindo calmamente dois ingressos em plena vigência de uma sesta impossível, com aquela baboseira sobre o rigor da eternidade na cabeça, lembro… Duas, duas e meia da tarde… Ah, não sei por que volto ao plano inicial na calçada, em frente ao orifício por onde a mão passava com o dinheiro e voltava com as entradas; só sei, vocês verão, que não tenho aonde chegar – é isso… Então me levantei, fui ao banheiro do cinema.

Exatamente assim: me levantei, fui ao banheiro do cinema, justamente nessa ordem quase demencial ao panorama da hora, e soube pelo espelho que eu caçoava de mim. Língua, dentes, orelhas, tudo, tudo já não se continha em si, já expunha um outro mundo onde criaturas como ele… ele, ele sim, esse que se olhava no espelho de um cinema sujo e malcheiroso, esse que nunca ninguém mais viu, inclusive eu, se eu ainda fosse um pronome utilizável aqui onde já nem me encontro – mas calma!, pois eu dizia… dizia que inclusive eu de fato nunca mais vira aquele homem que se olhava no espelho do banheiro do cinema, a reparar que toda aquela massa orgânica até então coesa já caçoava irremediavelmente de sua própria pele, de seu próprio desconsolo até, uma vez que o tal desconsolo já não tinha realidade que o pudesse sustentar, sustentar para na primeira oportunidade poder eliminá-lo num afago quem sabe, num beijo de morte talvez, enfim!, deixa pra lá…

“Dois ingressos”, repeti. “Dois ingressos”, murmurei o mantra esfarrapado saindo do cinema – ali, bem ali naquela esquina onde eu já não podia estar…

Fontes:
Revista Cult. Junho de 2001. p.26 (Ficção Cult)

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Celia Musilli (Nas alturas)

Os aviões são meu sonho de Ícaro, as asas metálicas que tomo por empréstimo

Por um destes acasos que não se explicam, sempre morei em locais que são rotas dos aviões. Em dois bairros onde vivi era assim e agora ouço os jatos logo de manhã, entre 7 horas e 8h30, vindos dos lados da UEL em direção ao aeroporto.

Adoro aviões e sei que muita gente tem medo de viajar neles. Eu não, considero este risco uma experiência necessária, uma aventura necessária, como o amor. Alguém aí tem cem por cento de segurança em matéria de voo? Alguém aí tem cem por cento de segurança em matéria de amor? Em qualquer um dos casos, decolem.

Os aviões são meu sonho de Ícaro, o transporte que me leva às nuvens, as asas metálicas que tomo por empréstimo como se eu mesma voasse. Porque voar pra valer não consigo e não teria despojamento nem coragem de me meter com asas-delta, porque nelas sim me sentiria vulnerável, sem o anteparo das paredes e das janelas, dos outros passageiros logo ali ao lado, das simpáticas aeromoças que perguntam: ”Água, suco ou refrigerante?” Não tive a felicidade de beber champanhe indo a Paris. Quem me dera. Mas cruzei céus indo a Manaus e Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba, Rio, Fortaleza e São Luís do Maranhão. E, no litoral, a visão do mar dá a impressão de estarmos sobrevoando o paraíso, porque o paraíso, na minha cabeça, é líquido e azul. Se não líquido, pelo menos úmido e transparente.

Lá de cima, em vez de anjos, vemos os recortes das matas, das praias, das montanhas e isto basta para que a gente acredite em Deus. Alguém já disse que não vemos Deus, mas o sentimos. Eu sou do tipo que acredita muito mais no que sente, do que naquilo que vê, as imagens nos iludem.

Os aviões me lembram a ousadia de Santos Dumont, que não sei como teve a coragem de entrar naquele 14 Bis, tão frágil que até parecia um origami. Um origami voador, vejam só. Mas foi ele, um brasileiro, quem deslumbrou Paris quando deu a volta à Torre Eiffel para realizar o sonho de Ícaro sem queimar as asas. Construiu desta forma uma espécie de imortalidade, sendo, antes de tudo, um sonhador. Um sonhador que realizava.

Gosto das músicas que falam em avião, algumas falam também de amor: ”Foi por medo de avião, que eu segurei pela primeira vez a sua mão.” Lembram?

Mas de vez em quando, os acidentes aéreos nos assustam, colocando todo mundo em pânico, porque pra este tipo de acidente não tem saída, não tem meio termo, não tem volta. Raramente alguém sobrevive, só um em mil, então as pessoas sentem-se mais seguras nas rodovias do que no ar. Mas vou confessar uma coisa a vocês: me apavoram muito mais as estradas cheias, aqueles caminhões-tanque, os motoristas imprudentes, sobretudo nesta época do ano, quando todo mundo quer chegar ou partir, sabe-se lá pra onde e por que têm tanta pressa.

Sinto-me muito mais segura no ar, apesar dos acidentes sem volta. Porque morte por queda de avião é coisa rápida e urgente. Além disso, lá em cima as aeronaves raramente se chocam, ninguém derrapa na curva, ninguém compete em velocidade. Lá em cima, as nuvens parecem um colchão macio ou um rebanho de carneirinhos que só se insinuam e, um minuto depois, se desmancham. Então, que coisa mais lúdica e linda é estar entre as nuvens. Muito melhor do que respirar óleo diesel, sentir as freadas, revoltar-se com as imprudências, errar o caminho, não ver as placas.

Gosto de acordar ouvindo os aviões que decolam ou aterrissam, alguns passam até bem perto da minha janela, enquanto durmo ou agora, enquanto escrevo, porque assim também me sinto no ar. Estar no ar, além do sonho de Ícaro, é sonho de poeta, sonho de maluco, sonho de quem não vê Deus, mas o sente, e acredita Nele, lá nas alturas. E acho que assim o avião não cai.
=====================
CÉLIA MUSILLI é jornalista e poeta. Publicou o livro Londrina Puxa o Fio da Memória, em parceria com Maria Angélica Abramo, e o livro de poesias Sensível Desafio (AtritoArt, 2006) e edita o blog de mesmo nome.

Fonte:
Folha de Londrina. Folha 2. 6 de dezembro de 2009. p.4

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Nery de Mello (O Poste)

Você já reparou aquele poste? Já observou suas utilidades? Caso não tenha feito te convido a não só observa-lo, mas também admira-lo. Sabe porque? Poste de concreto ou madeira, fixado no solo rochoso ou arenoso, não importa, ele está ali. Na esquina, vinte ou trinta metros um após outro, em fila lá está o poste. Poste grande ou pequeno ele é o poste. Ereto; 45 ou 180 graus para a esquerda ou para a direita não importa ele é o poste. Quem diria, ele foi instalado com dois objetivos: sustentar a rede elétrica e proporcionar iluminação pública. Dois objetivos? Estamos enganados! A sua majestade o poste me faz lembrar um velho ditado popular: “Fazer o bem sem olhar a quem”. E é verdade. Raciocine comigo.

Alem de iluminar nossos passos na penumbra da noite, o poste mantém as linhas de energia esticadas para diversas direções. Os benefícios não são somente humanos, valem também para aves que aproveitam a estrutura para a construção de seus ninhos que vai de pequenos galhos e plumas até a sofisticação da casa de barro.

Imagine também que o poste tem um cheiro medicinal. Já reparou esta “qualidade”? Serve como alívio para a bexiga dos cães. Eles se aproximam…Dão uma cheirada…E fazem xixi. Recomendações não valem para os humanos. Mas se estiver apertado, fazer o que!
Faça chuva ou faça sol o poste está ali cumprindo seu ofício.

Contraria a lei da gravidade quando serve de refúgio para o desesperado felino que perseguido vê no poste o melhor amigo. Ufa!

Boêmios também reconhecem a qualidade do poste que por diversas vezes foram “socorridos” pelos tais. O benfeitor é até alvo de piada. Um desavisado caminhava pela calçada quando colidiu contra o poste e completou dizendo: “Meia noite não é hora de poste andar na rua”!

O poste é fonte de inspiração. Um jovem subiu até o topo do poste e lá colou um bilhete. Uma segunda pessoa foi tomada pela curiosidade e depois de alguns esforços chegou até lá para conferir a mensagem que dizia: “Fim de poste”!

Mas, tem mais. Recentemente testemunhei um fato envolvendo um veículo e um poste onde naquela situação inesperada o motorista engatou a marcha á ré e chocou-se com um poste. De quem é a culpa? Do poste! Disparou o condutor. Coitado do poste indefeso.

E saber que num passado bem recente ele andou ameaçado pelo apagão. Se a moda pegasse seria o fim dos dias do poste. Ou não.
======================
Sobre o Escritor
Nery de Melo (1970)
Nasceu em Francisco Beltrão, no dia 02 de outubro de 1970. É filho de Alcides Pereira de Mello e Maurília Calixto de Mello. Casado com Marilene Nesi de Mello, é pai de Luana Thereza e Heloísa Maria Nesi de Mello.Reside em Pato Branco. Iniciou sua carreira na Rádio Cristal de Marmeleiro, em 1986 e trabalhou nas seguintes emissoras de rádio: São João, em São João PR; Entre Rios, de Santo Antônio do Sudoeste; Princesa AM e FM de Francisco Beltrão; Continental FM e Educadora AM de Francisco Beltrão; Celinauta e TV Sudoeste e Rede Celinauta de Educação de Pato Branco.
Nery de Mello é apresentador do programa. Plantão Parangolé. pela TV Sudoeste, desde 09 de setembro de 1996, de segunda a sexta feira ,às 12h30 min.
É também membro da Academia Palmense de Letras e 1º Orador do Centro de Letras de Francisco Beltrão. Membro da Academia de Letras e Artes de Pato Branco (cadeira n.9). É colunista do Jornal de Beltrão; das Revistas Gente do Sul e Air Press,Revista de Paraquedismo com sede em São Paulo e circulação na América Latina .
Da 1ª a 4ª séries estudou na Escola Madre Boa Ventura, em Francisco Beltrão,concluindo o 1º e 2º graus pelo sistema supletivo, no Ceebja em Francisco Beltrão. Atualmente cursa jornalismo na Faculdade de Pato Branco . FADEP.

Fontes:
Academia de Letras e Artes de Pato Branco. http://www.alap.org.br/
Imagem = http://www.opatifundio.com/

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra, Paraná, Pato Branco

Rubem Braga (O padeiro)

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento – mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

– Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

“Então você não é ninguém?”

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”
E assobiava pelas escadas.

Fontes:
– Para gostar de ler, Vol I -Crônicas . Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. SP: Ática, 989.
– Imagem = http://rafaxomes.blogspot.com

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Andréia Donadon – Leal (O Passageiro)

Meu sonho era ser maquinista de trem. Desde criança ia para a estação de Santa Bárbara e ficava a namorar o cenário de trens, de passageiros, das malas… Acordava antes do sol raiar muitas vezes para encontrar o trem que vinha de cidades vizinhas trazendo passageiros. Mamãe quando descobriu minha obsessão por trens, incentivou-me a colar no pé de seu Amâncio. Homem mais velho, carrancudo, esquisito, trabalhou em todos os setores da estação do trem. Fora engraxate, vendedor de balas, salgados pipocas; depois trabalhou no guichê vendendo passagens, foi vigilante, trocador, maquinista e agora era o manda-chuva dos homens que trabalhavam na estação. Na parede de sua sala pendiam vários retratos espalhados de homens que trabalharam na ferrovia. Era coleção de seu Amâncio. Chamavam de galeria dos ferroviários mortos. Disse um dia para mim que logo sua foto estaria pendurada naquela parede. Olhei para ele assustado e não entendi nada, também nem queria entender, só queria uma boca na estação.

Um dia tomei coragem de homem e conversei com seu Amâncio sobre meu sonho:

– Senhor Amâncio! Sabe que quando crescer gostaria de ser como o senhor? Homem importante e sabido?!

– Zé, vê se isso lá é coisa de futuro para você, moleque! Vá estudar menino e quem sabe um dia trabalha aqui para nós. Rosnou o homem de cara e fala sistemática.

Após aquele conselho não tive mais dúvidas; entrei de cara nos estudos para valer e daí colhi total nos exercícios e provas da escola. Pensava obstinadamente em estudar para trabalhar na tão sonhada estação de trem. Meus irmãos me criticavam por que não brincava muito. Papai e mamãe queriam me internar, achavam que estava com neurose aguçada. Todos da minha rua me olhavam meio de lado. Eu estava nem aí pra língua do povo. O que importava era que um dia trabalharia na ferrovia.

O tempo passara e eu consegui com mérito o diploma de segundo grau. Estudei com esmero, e minha fama já se espalhara na cidadezinha. Enfim, chegou o dia em que me vi com a carteira de trabalho na mão, assinada por seu Amâncio. Iria começar trabalhando de trocador no trem. Falavam as más línguas que na partida para cidade de Balelema saía lotado de passageiros. Mas na volta vinha apenas um passageiro. Diziam que era assombração, passageiro vestido de terno escuro, chapéu de abas largas, barbudo e cheirando a flor de defunto. Sempre sentado na poltrona vinte e três…

Pura lenda de cidade pequena, onde ninguém tinha ocupação; levantavam mais cedo para terminar o serviço e ir para porta da rua futricar sobre a vida alheia e colocar minhocas assombrosas nas cabeças dos jovens e adultos. Eu, homem crescido, descrente e corajoso, ia de peito estufado e uniforme engomado para o primeiro dia de trabalho. Na primeira viagem noturna, o maquinista me esperava na porta para explicar o que fazer com os formulários, inspecionar crianças que entravam sozinhas, dinheiro para troco, conferir os bilhetes… Nem pisquei quando o bondoso maquinista falava. Prestava muita atenção nas instruções para não cometer erros! O coração batia acelerado no peito de contentamento e ansiedade. Faltava meia hora para a partida do trem das dezoito horas com destino à cidade de Balelema e já chegavam à porta alguns passageiros com os bilhetes para conferência. Cumprimentava todos com um sorriso largo nos lábios, desejando boa viagem. Observei todos que entravam, nenhuma figura estranha chegara até então. Tudo lorota do povo de cidadezinha do interior!

Tudo normal. Fui para perto do maquinista que conversou comigo alegremente. Chegamos à cidade por volta das vinte e três horas e quarenta e cinco minutos. Uma serração densa aguardava os passageiros na estação e um vento gelado penetrava nossos corpos. O lugar estava vazio, alguns vigilantes, mulheres e seus encontros, dois táxis, algumas pessoas aguardavam os passageiros do trem. Não consegui ver mais nada. Um friozinho passou minha espinha, quando todos os passageiros desceram apressados do trem e um homem de terno escuro entrou e sentou na poltrona vinte e três…

Logo que o trem deu a partida, caminhei rumo á poltrona vinte e três e conferi o bilhete com as mãos e pernas trêmulas. O homem exibia um olhar escuro e ao mesmo tempo fundo, enigmático… Não respondeu meu cumprimento, não queria conversa… Um cheiro de naftalina misturado com flores de defunto exalava de seu corpo. O medo começou a suar meu corpo com lembranças das histórias do passageiro da poltrona vinte e três! Como que adivinhando meus pensamentos, o homem levantou a cabeça, olhou demoradamente nos meus olhos e não balbuciou nenhuma palavra. Um clarão penetrou os olhos de tal maneira que numa fração de segundos fiquei completamente cego. Uma luz branca, meio amarelada invadiu os olhos… Não vi mais nada, acordei horas depois com o maquinista balançando meu corpo jogado na poltrona vinte e três. O uniforme estava todo babado. Tinha dormido na volta?! Pouco provável! Procurei avidamente o homem de terno escuro, não havia ninguém. Olhei para o maquinista e perguntei se o passageiro de terno escuro, alto, barbudo tinha descido do trem. O maquinista olhou para mim estranho e disse: nenhum passageiro veio neste trem. Aliás, ninguém jamais retornou de Balelema nos longos anos em que trabalho nesta rota. Perguntou se eu estava bem. Balancei a cabeça afirmativamente e fui bater ponto no relógio na sala do senhor Amâncio. Na galeria de fotos da parede da sala, pendiam vários retratos espalhados de homens que trabalharam na ferrovia. Estava lá, soberbo, primeiro retrato na galeria dos mortos, o homem vestido de terno escuro, chapéu de abas largas, barbudo, cheirando a naftalina e flor de defunto.

Fontes:
Jornal Aldrava Cultural.
http://www.jornalaldrava.com.br/

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Alex Giostri (O Ator e o Autor)

Tudo se inicia no texto. Na realidade tudo se inicia no pensamento do autor. O autor tem uma idéia, pensa sobre essa idéia, formula questões, analisa possibilidades e constrói uma trama pensando na figura do ator. Sem um texto, o ator não pode criar nada, assim como sem o ator o autor não verá sua obra representada. Ambos são criadores. Um da sua própria obra e outro da visão, do entendimento da obra alheia.

É fundamental ao ator que tenha a consciência de que ao se utilizar das palavras do autor a sua função é transformá-las em impressões. Em impressões para os espectadores. Na mesma medida em que ao ator cabe a transformação das palavras do autor em impressões, cabe-lhe também ocultar o homem por trás de si apresentando apenas a personagem, sua ação e a fala.

A relação entre esses dois ofícios é muito próxima uma vez que ambos, autor e ator, iniciam seus trabalhos através de pesquisas e ambos doam seus espaços internos às figuras desconhecidas, irreais. O primeiro interlocutor do autor é o ator enquanto o do ator é o público. E mesmo sendo obra do autor a que está sendo apresentada pelo ator, passa a ser de sua autoria também a concepção, a leitura do que apresenta. É como se dentro do universo do autor o ator criasse a sua melhor maneira de dizer aquilo que se quis dizer.

Sendo também um criador, o ator fica muito mais completo uma vez que deixa de ser mera marionete para oferecer ao universo do autor seus pontos de vista e suas experiências de vida a respeito da personagem em questão. Há sempre o que aprender; o que observar de um outro ângulo. E por isso é fundamental que as duas pontas criadoras estejam sempre em sintonia e que ambas compreendam o que a outra quer falar.

Há uma corrente que diz que o autor é uma ferramenta social e que sua função é tornar a vida das pessoas menos dolorosa, é trazer um pouco de esperança para o mundo, é fazer com que os conflitos sejam expostos de modo não tão duro como a vida expõe. É uma corrente com razão. De fato essa é a função do autor. Há no ofício da escrita essa função social. E há também a mesma função no ofício do ator. E de uma maneira muito mais visível quando se trata de obra teatral, televisiva ou cinematográfica.

Por essa razão é mais que urgente que os atores jovens tenham a compreensão de que suas bases profissionais e emocionais sejam construídas sobre alicerces concretos para que possam levar seus discursos adiante de maneira digna. Essa consciência fará do ator um ator muito mais amplo, mas profundo e com mais responsabilidade em seu ofício.

———————-
Fonte:

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Cloe de Vries (A)

Tenho antipatia pelo A. Descobri isso a pouco quando, insone, olhei a estante de livros e afrontaram-me, de tal modo, entediados, aquela infinidade de livros de títulos ostentando logo no início esse artigo definido e antipático que achei melhor deixá-los de lado e prosseguir noite a dentro sozinha.

Na verdade, às vezes, sou mordida por uma antipatia pungente por qualquer letra ou semelhante. É que me aborreço quando estas se amontoam, embaralham sem sentido algum, enquanto, eu tenho urgência como um vulcão desperto de me esvaziar em lava espessa de significados. Mas acabo por soprar uma leve fumaça que nada significa.

Pausa.

O que será de mim nessa noite em que preciso lhe falar, embora você possa estar tão distraído que eu toda te escape? Eu amontoada em letras, quase sufocada por imagens que seriam indizíveis e, no entanto, nada do que te escrevo faz sentido. Antevejo que você um pouco surpreso pensará em silêncio quase audível ‘Eu estou te lendo’.

Pausa. Dúvida.

Tenho que confessar que esse meu texto é morno e onde nada habita. Você que me lê a espera de uma revelação, perdoa-me, mas é que as palavras todas se rebelaram. Nessa noite estéril, eu preciso de companhia que não se desagrade do silêncio, porque esta noite é mais uma daquelas que não consigo manipular nem ao menos o vazio de estar existindo completamente só.

Sentimento de ser um artigo indefinido.
—————————-
Sobre a autora
Cloe de Vries é uma mulher que gosta de viajar. Nasceu no Brasil, mas não revela a data. Já viveu na Índia, Egito e agora mora em uma pequena província na Holanda. Gosta de colecionar pesos de papéis e cartas antigas.
—————–

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Douglas Lara questiona: Antologia, para que serve?

“Fui me encantando com o trabalho e percebendo que, discretamente, os ‘antologistas’ buscam uma tribuna”

No último ano, trabalhei com coletâneas de textos de aproximadamente cem escritores e poetas. Pude ler biografias e textos de muitos autores, num total de mil páginas, provenientes de quatorze países em quatro continentes.

Tentava identificar o que desejavam estes escritores que, cooperativados, colocavam suas obras-primas para divulgar o que andam dizendo e escrevendo os não muito famosos, tendo também a oportunidade de mostrar suas ideias e ideais.

Fui me encantando com o trabalho e percebendo que, discretamente, os “antologistas” buscam uma tribuna.

Isso me lembrou de uma conversa com o Blota Junior e a Baby Garroux, no primeiro programa de entrevistas Dia-a-Dia da TV Bandeirantes, quando eu era um dos entrevistados. Tinha certos conhecimentos que os produtores do programa acharam que valia a pena colocar no programa de estréia.

Antes de começar o programa, tive a oportunidade e o prazer de trocar algumas palavras com o Blota Junior, experiente entrevistador, apresentador de programas de muita audiência (ele tinha a experiência de âncora nas principais TVs da época, tinha sido deputado estadual e era mestre de cerimônias dos principais eventos no país).

Aproveitei para perguntar por que ele não se aposentava da TV, agora que sua esposa (Sônia Ribeiro, também conhecida) tinha acabado de falecer.

Com sua elegância e educação, respondeu:

– Para ter minha tribuna e poder levar minhas mensagens e pensamentos aos telespectadores. Se não tiver uma tribuna para me manifestar, acabo morrendo de agonia, por não poder botar pra fora o que penso.

E, levantando-se:

– Vamos então?

– Pra onde? Perguntei.

Gentilmente, esclareceu:

– Para nossa entrevista, esqueceu? Agora a tribuna é sua…
===================
Douglas Lara é bacharel em Ciências Contábeis com mestrado em Controladoria e Gestão de Processos Comunicacionais. Idealizador e organizador da antologia internacional Roda Mundo e da Semana Internacional do Escritor de Sorocaba.

Fonte:
O Autor

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Andreia Donadon-Leal (Seus 25 Anos)

Ainda lembro dos seus primeiros passos: indecisos, trôpegos, corpo desequilibrando, e eu com os braços estendidos estimulando-a a continuar. Um sorriso inocente nos pequenos lábios rosados, pele amorenada, olhos negros e cabelos lisos. Era uma miniatura de gente, uma boneca tentando equilibrar-se para dar os primeiros passos. Chorava pouco e quando eu retornava no final da tarde do trabalho, cansado, estressado e algumas vezes muito aborrecido, abria a porta silenciosamente para não fazer barulho e meus olhos brilhavam ao vê-la sentada no tapete com as pernas cruzadas; algumas bonecas espalhadas pelo chão, suas mãozinhas ocupadas com pequenos brinquedos, despreocupada como se nada mais existisse naquele momento. E não existia mesmo… Eu parado com a cabeça encostada no alisar da porta, deslumbrado com a cena que me acalentava. As linhas de expressão logo se suavizavam e os olhos brilhavam, dizia Maria. Perdi a conta de quantas vezes fiquei parado, estático à porta, querendo imortalizar aquela imagem. A pasta pesada, às vezes, caía sem querer de minha mão e dispersava sua concentração e estado mágico em seu mundo de criança. Logo largava todos os brinquedos e ia engatinhando ao meu encontro. Eu dava apenas dois passos curtos, pois sabia que gostava de me receber na entrada da porta. Sua mãe esperava pacientemente minha disposição e felicidade retornando. Sentava no chão com você e brincávamos com os minúsculos brinquedos até seus olhos cerrarem vencidos pelo sono.

No primeiro dia de aula não consegui conter o impulso de sair do outro lado da cidade e levá-la pessoalmente à escola. A merendeira rosa nas mãos pequeninas, a mochila pendurada nas costas, vestida de uniforme azul e branco do colégio, cabelo preso com duas marias chiquinhas cor de rosa. Estava crescendo… Não dei a honra a sua mãe de levá-la no primeiro dia. Era importante vê-la entrando com segurança na sala de aula e eu recomendando à professora que tivesse mil e um cuidados, por que era uma criança dócil, muito frágil e tímida. Devo ter repetido umas sete vezes o número do meu telefone, caso fosse necessário contactar-me.

Os outros dias me contentava em buscá-la, quando não ficava até tarde no escritório. Você adorava me ver caminhando pacientemente pelo pátio da escola. Corria euforicamente ao meu encontro e contava de um fôlego só como foram às aulas, os trabalhos e as brincadeiras. Quase tive um ataque do coração, quando saíamos tranquilamente da escola, você perguntou-me repentinamente:

– Pai? Como se faz um bebê? De onde eles vêm?

Sabia que despertaria para esses tipos de perguntas, mas não esperava que fosse prematuramente. Maria ria de meu pudor excessivo, falando que as perguntas se tornariam mais constrangedoras com o tempo. Eu fechava os olhos e passava as mãos sobre a cabeça, preocupado.

– Pai? O que é sexo?

– Pai, por que a terra é redonda e meu quarto é quadrado?

– Pai, quem inventou Deus? A professora disse que quem inventou o mundo foi Deus, então quem inventou ele?

Essas interrogativas aos cinco anos, e eu embasbacado no meio do caminho, retornando da escola para casa com você. As perguntas aumentavam, os níveis também e eu tentando dar um caráter romântico a tudo. Sua mãe me reprovava com veemência. Os anos foram passando; eu e sua mãe, mais velhos e cansados. Você já não queria que eu a buscasse na escola.

– Não precisa pai. Venho caminhando com minhas colegas.

Estava ficando independente e não precisava tanto de mim.

Os quinze anos vieram e a festa de debutante também. Foi uma belíssima noite: vestido rosa, cabelos soltos, coroa na cabeça, dançando com suas colegas no meio do salão. Estava virando uma moça. O tempo correu como um filme em projeção acelerada, e eu só queria que fosse mais devagar, um pouco mais devagar e nunca tivesse que acordar daquele sonho. Depois da valsa, um guri ensimesmado e estranho, pegou-a dos meus braços. O jeito que olhou-a me fez recordar das minhas primeiras investidas amorosas e entrei num inferno astral.

– Será que Flora já beijou alguma vez, Maria?

Sua mãe olhou-me como se eu estivesse proferindo a pergunta mais absurda e fora de moda do mundo:

– O que está acontecendo com você, José? É uma adolescente despontando para a vida. É óbvio que já beijou. Sabia que ano retrasado menstruou?

Lembro desses momentos somente nos sonhos. Foram especiais e não retornam. Um dia sem repetição, uma chance para cada etapa da vida. Compreendi? Se eu compreendi? Tive que tentar compreender para não sofrer ao extremo.

– Nossa filha é uma mulher agora, Zé! Entrou para universidade! Veio a primeira notícia que comemoramos com muito orgulho.

– Está namorando com fulano, Zé!

– Está namorando com beltrano, Zé!

– Hoje não dorme em casa, Zé!

– Compreenda sua filha, Zé! Não é mais uma criança.

– Ficará uma semana fora… Ficará um mês…

– Vai para o exterior…

E eu suportando, por que sabia que minha menina voltaria para casa, para o quarto cor de rosa, com a prateleira repleta de bonecas e muitos brinquedos intactos que comprei ao longo dos anos. Voltaria para os meus sonhos, entraria pela porta gritando:

– Pai, mãe, cheguei!

Contaria tudo de um fôlego só, depois Maria faria um jantar especial com direito a sobremesa e eu contaria uma história. Era seu pedido quando ficava muito tempo fora de casa. Estava quase se formando: medicina, e esse era o meu maior trunfo e orgulho. Estufava o peito, quando meus amigos perguntavam o que minha filha estava fazendo.

– Quase médica!

Quando vi um rapaz alto, entrando em casa e você me apresentando como seu namorado, tomei o mesmo susto quando perguntou-me como eram feitos os bebês.

– Esse não é aquele guri da festa de seus quinze anos, Flora? Perguntei de cenho cerrado.

– É pai, o mesmo!

Apertei a mão do rapaz mais do que deveria e fiquei olhando-o por um tempo, até escutar a voz de Maria:

– Zé? Solta a mão dele!

– Hã? Desculpe…

– Não foi nada…

Saí da sala e fui para o quarto emburrado e de lá gritei:

– Hoje não vou jantar! Tenham um bom apetite, estou com dores no estômago…

Maria balançou a cabeça, reprovando minha atitude infantil. Relembro do meu ciúme de pai com certa graça e humor. Sabia que esse momento chegaria, fazia parte da vida como a morte fazia parte do ciclo. Se pudesse voltaria o tempo… Se pudesse… Mas o tempo é incorruptível, não tem volta e as coisas são irreversíveis.

Ajeito a gravata no espelho, enxugo as lágrimas que teimosamente insistem em despencar dos olhos, ajeito o paletó e escuto uma batidinha com três toques familiares me despertando.

– Pai? Está na hora…

– Está linda, minha filha.

Abro a porta do carro para ela entrar. Tomo a direção e no trajeto espio no retrovisor seu semblante, feliz e deslumbrante. Foi tão rápido… Muito rápido… Pego-a pelas mãos, subo as escadas de braços dados para conduzi-la até o altar. Antes de escutar os primeiros acordes da marcha nupcial, acordo com o barulho estridente do despertador e pego seu retrato amarelado e desbotado no criado-mudo: um bebê de um ano. Maria não acordou. Estava meio surda e tomava continuamente muitos remédios, inclusive para dormir, o sono era pesado e sem sonhos. Não reprovava Maria. O rosto e os olhos estavam sem vida há mais de duas décadas. Eu não teria que trabalhar, completei sessenta e nove anos, Flora, e nem parece que o tempo passou tão depressa. Até hoje sonho como teria sido sua infância e mocidade. Sua vida… Faz vinte e cinco anos… Vinte e cinco anos que você morreu e hoje é parte dos meus sonhos. A cada dia tento compreender as coisas irreversíveis da vida. Tento compreender… Tento…

Fontes:
J.B. Donadon-Leal (Jornal Aldrava Letras e Artes)
Imagem = http://ciberjornal.wordpress.com/

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Nilto Maciel (A Arca)

De longe, avistei a aglomeração, e a curiosidade me arrastou para ela. Talvez algum mágico estivesse a encantar a pequena multidão. Podia tratar-se de comício, também. Avancei mais curioso, atento aos aplausos e modos daquela gente. Não, ninguém engabelava ninguém, e todos vestiam trapos sujos. Um cheiro de lixo mandou-me dar meia volta e volver. Porém meus olhos queriam inventar o mágico ou o político, e me grudaram às costas do último molambudo.

– Morreu galego?

O bruto fez ouvidos de mercador. Refiz a pergunta, de trás para frente, a rir de mim mesmo. Você me respondeu? Nem ele. Como podia estar muito distraído, toquei-lhe o braço, com ira. Não se virou, mas desfiou um metro de porcarias. Só depois virou a cabeça para trás e me fitou demoradamente. Dei um passo para a esquerda e postei-me às costas de um que bodejava e erguia os braços. Que diabo! Um terceiro, cheio de rugas e cãs, não parava de rir. Mais outro olhou-me. De seus olhos vermelhos escorria muita água. Aquilo já me assustava e perturbava. Não, não me amedrontava. Ora, nenhum daqueles coitados parecia ofensivo. E menos eu compreendia onde me achava. Claro, diante de uma casa em formato de arca, metido no meio de um magote de mazelentos. E no interior da tal arca? Saí a pedir licença a um e outro, a abrir alas, até alcançar a porta. O porteiro sorriu-me e convidou-me a entrar. Que alívio! Pacatos e inteligentes frequentadores de exposições fumavam e parolavam, requintadas senhoras furoavam intrigas entre si, bisonhos críticos parodiavam-se, risonhos e educados todos, bem vestidos e corados, alvos e adornados.

Dirigi-me a um gorducho de cara e jeito de sabido e indaguei o significado daquela multidão lá fora. Ele não me soube dar resposta, encenou uma exposição de motivos sobre o que acontecia do lado onde se achava. Ouvi por três vezes a palavra tranquilidade. Como eu lhe virasse o rosto, indicou-me um respeitável senhor sentado a um birô. Parti no rumo do venerando homem e repeti a pergunta. Para quê? Ele se enfureceu. Porém, antes de me agredir, levantou-se, como se despertasse de um sonho bom, e se disse sentir-se obrigado a ir chamar a polícia. E pôs-se a andar de um lado para outro. “Ora, são os mazelentos de segunda, terceira e quarta categorias que desejavam ser expostos. Impossível! Não adianta esse protesto absurdo. A exposição é de mazelas de primeira ordem, conforme o senhor pode ver.” E apontou para as quatro paredes. Só então percebi as peças expostas. A arca havia sido construída especialmente para a exposição. Relacionou os nomes das mazelas principais, representadas ali por figuras humanas. Agradeci as informações e juntei-me aos demais frequentadores. Remirei-os. Diante das peças expostas, trocavam opiniões. Uma lustrosa senhora, diante de um homem vestido de chagas, suspirava: “Maravilhoso! Maravilhoso! Maravilhoso!” Tentei ser polido e voltei-me para a exposição em si. Pernetas, manetas, coxos, cegos, leprosos, anões, gigantes, deformados compunham a galeria de mazelentos. Não seriam estátuas, manequins de gesso, plástico, bronze? Só então relacionei os protestos da multidão do lado de fora à explicação do diretor da Exposição. Sim, o chagado se retorcia. Logo, a amostra se constituía de seres vivos. Cheguei a deixar transparecer minha emoção. “Ah! estão vivos?” Um prestimoso senhor tratou de me ensinar que “logicamente, pois é a Primeira Exposição de Mazelas. De nada valeriam elas, se não fossem em seres humanos.” Procurei atenuar minha ignorância. Aqueles pedestais, as poses, a rigidez das figuras, tudo dava a impressão de estarmos diante de imagens, como as de museus, igrejas, jardins. O homem deixou-me a falar só, e eu terminei fugindo dos o lhos do outro – o exposto.

Adiante, outro mazelento sorria para uma criança, que o admira va. Ria e fazia trejeitos, caretas, mungangos. O rico menino encabulou-se e dirigiu-se ao pai: “Olhe, ele está rindo para mim.” Ao que o pai respondeu, asperamente: “É um mentecapto. Não se preocupe.” Noutro estande, um hermafrodita servia de motivo à briga de dois intelectuais a discutirem deuses e deusas. Para meu espanto, falavam ora em latim, ora em grego. E se maculavam disso e daquilo, entre risinhos e citações épicas, piscadelas e expressões vulgares: cachorro da moléstia, filho de uma égua, cabra da peste.

Eu, mal entendedor, tratei de pular fora daquilo, antes do dilúvio.

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Antonio Brás Constante (Como Nasce Uma Nova Crônica?)

Como nasce uma nova crônica? Muitas vezes, é necessária apenas uma conversa casual com um colega de serviço, durante uma breve subida de elevador. Claro que isso dependeria primeiramente do tipo de assunto discutido, pois teria que ser algo interessante. Outro fator determinante é o de que ao menos um dos presentes precisará ser algum tipo de aprendiz de escritor, ou coisa parecida (Guima: valeu pela idéia e pelo papo).

Essas conversas tendem a ser rápidas, e para virarem um texto têm que ter em seu conteúdo frases mais profundas do que os costumeiros: “bom dia”, “será que chove hoje?”, ou “o sexto-andar para mim, por favor”. Nestes encontros pode-se falar de qualquer assunto (geralmente corriqueiro), como por exemplo: os jogos de futebol, as musas que encantam nossos olhos, as mudanças de estação, quedas em geral (de cabelos, de aviões, de crianças, etc), ou diálogos feitos por ministros de grandes estatais de petróleo, quando estes resolvem tecer comentários “informais”, falando sobre possíveis descobertas de gigantescas jazidas do chamado “ouro negro” em território nacional, enaltecendo que tal fato tornaria seu país um dos primeiros produtores de petróleo do mundo.

Podemos imaginar que não faltarão aqueles que perceberiam comentários liberados desta forma, sobre descobertas de mega-jazidas, como não sendo informações inocentes e sem propósito, frutos de uma exacerbada empolgação pela possibilidade de ter sido encontrado algo que traria benefícios a toda nação, gerando divisas, movimentando a economia, etc. Mas quem poderá garantir que eles estão errados em suas suspeitas?

Se levarmos em conta a teoria da conspiração, inerente a todo ser humano que sobe em elevadores ou não, e que resolve não falar de futebol ou de belas musas, mas sim de comentários sobre descobertas mirabolantes, as idéias começam a voar mais longe do que padres atados a balões, atravessando as paredes dessas gaiolas de aço, presas por cabos cheios de graxa, passando a criar suposições fantásticas, onde tais atitudes poderiam ter um cunho mais financeiro do que patriota, já que o resultado imediato de pronunciamentos assim, seria a valorização de determinadas ações no mercado financeiro.

A imaginação é realmente algo incrível, pois consegue transformar lampejos que viajam por conexões neurais em cenários hipotéticos, onde homens engravatados e cheios de dinheiro reúnem-se para beber uísque importado, falar sobre futebol e musas inspiradoras, mas também aproveitam o encontro para planejar formas de manipular positivamente o preço de suas ações. Tudo feito com muita discrição, sorrisos e tapinhas nas costas.

Enfim, o que são meras suposições passageiras baseadas em vagas teorias, se não apenas fictícios universos paralelos, distantes deste nosso incrível e belo mundo perfeito, cujo máximo de realidade advindo destas elocubrações, não passa de um punhado de frases soltas em um pedaço de log ou de papel, moldadas pelas mãos de um pretenso escritor, que não bebe uísque, mas anda de elevador.

Fontes:
http://www.recantodasletras.com.br/autores/abrasc
Imagem = http://formulados.com.br

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Antonio Brás Constante (Deu a Louca nas Fabulosas Fábulas)

Se as fábulas infantis de outrora fossem escritas hoje em dia, tudo seria diferente, o Lobo Mau estaria mal, muito mal, combalido na cama da vovozinha, que teria saído de casa para passar trotes em algum telefone público (se na cidade de Canoas isso acontece, porque não poderia ocorrer em fábulas?). O lobo teria sido vítima dos três porquinhos, que lhe contaminaram com a gripe suína. Nesta história ao invés dele ter soprado neles, foram eles que assoaram o nariz perto dele.

Os porquinhos por sinal, não seriam apenas três, mas sim, milhares, que atirariam lixo pelas janelas dos carros, ou em terrenos baldios, ou ainda despejando detritos industriais em rios, sem preocupação nenhuma com reciclagem ou meio ambiente, e teriam a alcunha de sociedade.

Se não bastasse a gripe, o lobo ainda seria acusado de atentado violento ao pudor e canibalismo contra uma tal Chapeuzinho Vermelho, uma das lideres do comando vermelho, e conhecida no bosque encantado como a maior traficante de “docinhos” alucinógenos da região.

No caso de João e o pé de feijão, seria João que passaria o conto do vigário nas negociações, trocando vacas loucas por sacas de feijão, que ficariam armazenados em gigantescos silos subsidiados pelo governo, que ainda pagaria a João para guardá-los, mantendo assim o preço de mercado.

João também aprontaria das dele com sua irmã Maria, existindo inclusive boatos de que juntos eles teriam saqueado uma pobre velhinha, vandalizando sua casa e ainda chamando a coitada de bruxa. Tudo isso em decorrência do vício de ambos por “docinhos”, onde faziam de tudo para consegui-los. Seriam considerados como dois exemplos de jovens perdidos no bosque encantado.

A Cinderela da atualidade passaria o rodo na casa da madrasta, deixando-a sem nada, e fugiria com um tal de príncipe, marginal conhecido, que não engolia sapos de ninguém. Já a
Branca de neve ganharia este apelido em decorrência do pó que forneceria aos seus convidados em suas festinhas privativas para políticos entre outras personalidades influentes, utilizando anões nas suas operações, que em áureos tempos também já foram conhecidos como anões do orçamento, em terras brasilis.

Nos dias de hoje Pinóquio não seria literalmente um cara de pau, mas ainda assim seria um baita mentiroso, provavelmente entraria na política, mas ao invés de crescer o nariz, o que cresceria absurdamente seria sua conta bancária.

Estamos vivendo em um mundo onde os contos de fadas foram trocados pelos games, os príncipes e princesas por uma tentadora carreira (entenda-se isso em todos os sentidos) e a infância cada vez mais vem deixando de acontecer em meio a uma antiga bolha de fantasias, onde era a cegonha que trazia os ovos de páscoa e Papai Noel era pregado na cruz. As novas fontes de utopia são uma mescla entre o real e o digital. Um mundo em que pequenos e inquietos “pré-adultos” se formam antes mesmo de serem adolescentes.

Enfim, um mundo onde muitos adultos sentem-se tão obsoletos quanto seus saudosos contos de fadas de antigamente, sem conseguirem assimilar o que estas mudanças causarão as futuras gerações, que já há um bom tempo vem atropelando estas recordações com uma carruagem envenenada de abóboras transgênicas.

Fontes:
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/abrasc
Imagem = http://www.contaoutra.com.br

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Machado de Assis (Segunda Vida)

MONSENHOR CALDAS interrompeu a narração do desconhecido:
– Dá licença? é só um instante.

Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa:

– João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dous homens, para livrar-me de um sujeito doudo. Anda, vai depressa.

E, voltando à sala:

– Pronto, disse ele; podemos continuar.

– Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez?

– Não, senhor.

– São incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num palanquim feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e cores, uma cousa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas extraordinárias que me fizeram, e que duraram dois séculos, ou, pelas nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a tornar à terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que completava um milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia recusar. Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa Reverendíssima no meu lugar?

– Não posso saber; depende…

– Tem razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: – “Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!” Lembrou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no espaço: gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços de uma ama de leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é Romualdo, não?

– Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.

– Será parente do padre Sousa Caldas?

– Não, senhor.

– Bom poeta o padre Caldas. Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima. Entretanto, se me permitisse ir fumando…

Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das idéias ou o assombroso das invenções; pode ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxilio policial, Monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados.
José Maria acendeu finalmente o cigarro, e continuou:

– Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, cousas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas. Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores… Não se assuste; serei casto, como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres?

– Como quer que saiba?…

– Tinha dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia… Ninguém esperava tal cousa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo, um apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança de três indigestões apanhadas quarenta anos antes, na primeira vida, fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim. Você cura de um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas, sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.

– Com efeito…

– Não lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver… Não, a comparação não é boa. Como lhe parece que vivo?

– Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés…

– Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim…

José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro… De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada. Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: – carros e carroças que desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos:

– Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres…

– Sim, senhor.

– Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos livres, gostamos um do outro, e não nos casamos: tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a freqüentar a casa, em Mata-cavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro beijo… Perdoe estas cousas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão. Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planeando uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês. Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois de
meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.

– Não alcanço…

– Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa; tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me cousa pior: – podia ficar o fastio. Concluí a toilette de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois, adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma linda criancinha… Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez; algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica… Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que padeci nessa noite… Deixa-me fumar outro cigarro?

Não esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos polidos, e, que apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras. Quem diabo podia ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis saber o que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de amor queria que ela lhe desse. – A resposta de José Maria foi uma pergunta.

– Está disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou que sim. “Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade; venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado.” Compreendo que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um monstro.

– Não, senhor…

– Como não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina as festas com que a recebi. “Deixo tudo, disse-me ela; você é para mim o universo.” Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio meu, em Santa Ana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei fulminado. “Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo, porque tinha notícia da herança.” Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu. Um dia, dous dias, três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer. Então declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e apresentei-lho: é este.

Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou:

– Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição: doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil contos. Há de ter lido nos jornais… Três semanas depois casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao fim. Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é abreviar umas particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar, nem das ilusões de saia rota, nem do tal pássaro… plás… plás… plás…

E, de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços, e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente mais delirante. Contava os sustos em que vivia, desgostos e desconfianças. Não podia comer um figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras cousas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela idéia de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhado. Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue… Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou… Com quem pensava o padre que ele sonhou?

– Não atino…

– Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. “Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa, pode ombrear com eles. Salomão é a sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos.” Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: “José Maria, são os teus vinte anos.” Era uma gargalhada assim: – cá, cá, cá, cá, cá…

José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou; levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os olhos, como viu a mulher diante dele, aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés… Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido. “Não, miserável! não! tu não me fugirás!” bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando… recuando… Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés.

Fonte:
ASSIS, Machado de. Histórias sem data. 1.ed. SP: Cia. Editora Nacional, 2005.

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Walter Galvani (Mal Rompe a Manhã…”)

Amanhecer em Alcafache (pintura em pastel s/cartolina)
de Eduardo Soares Pereira Leitão
Por força das circunstâncias e uma longa atividade jornalística, acabei formatando (como diriam os viciados em informática) um estilo que se caracterizava por deitar tarde e levantar tarde. Depois a corrupção de costumes foi completada com o trabalho em um vespertino (sonho e glória de muitos jornalistas, mas hoje quase completamente expurgado do mercado pelo advento das televisões e as confusões do trânsito) que me propiciava a chance de dormir cada vez menos e misturar cada vez mais os horários.

O tempo foi fazendo seus habituais estragos, ventos de mais de cem quilômetros passaram a se tornar presentes em nossas vidas e meus relógios revolutearam também enlouquecidos. Hoje, levanto na hora em que antes ia deitar… E então, depois de um bom café à moda dos hotéis brasileiros, sento-me diante do computador. Tomo conhecimento do correio eletrônico, recebo e respondo as mensagens mais urgentes ou mais caras e começo a dedilhar em busca do primeiro texto ou da continuação do que venho transacionando comigo mesmo.

Como diria o velho e insubstituível Drummond: “A luta com as palavras/ é luta vã/ No entanto lutamos/ mal rompe a manhã!”

Hoje um texto curto, amanhã um artigo para uma revista, depois o romance, ah sim, o romance, desafiador, que ressurge sempre, estocado na memória do computador e que a um simples toque deixa seu esconderijo virtual e perpassa minha tela à espera da continuidade, ou para sofrer pacientemente as retificações. Entusiasmo-me e levo adiante, aproveitando o momento propício que se criou e que se repete todo o santo dia, menos aquele que sou obrigado a excluir para devotá-lo integralmente à incineração diante das necessidades prosaicas de vida bancária ou profissional jornalística, algo que me dá um prazer sofrido e condenado.

Certa vez, perguntaram a Pablo Picasso se ele acreditava em inspiração. “Sim, claro – foi sua resposta imediata. Sempre que ela chega me encontra trabalhando”.

E assim é, como foi hoje mesmo e como será amanhã. Cercado por livros, amigos e necessários apoios, com os dicionários alinhados à minha espera, e as fotos da minha mulher e das minhas filhas, como ícones capazes de me garantirem a tranqüilidade, sigo martelando com vigor datilográfico (velhas máquinas Remington e Olivetti) o teclado onde deveria pousar levemente a polpa dos dedos, num exercício de balé eletrônico. Minha digitação acompanha com o seu ritmo o progresso do meu pensamento, que, naturalmente por vezes ultrapassa a velocidade da sua conversão em matéria.

Vá lá, vá lá, ando para trás e para diante, retomo e súbito, um gesto desastrado destrói o que já se acumulava, é preciso recomeçar e eis que o telefone toca.

O recomeço é sempre mais difícil, é como descer um patamar do sonho, é um recuo e aos poucos vou deixando a minha identificação com o vôo. Os cães latem. Há uma nova retomada. Agora reviso o que fiz, retoco, reescrevo, ponho a dourar, reservo e estoco no fundo do misterioso computador. Amanhã, quando a manhã começar, descongelo e retomo o ritmo, procurando rapidamente acertar o passo, antes do mergulho.

Durante o restante do dia, viajo. Entrego-me a outras atividades, sinto que preciso fazer algumas anotações, faço exercícios de memória, mas o texto está lá, distante, ainda não o imprimi para que possa senti-lo, cheirá-lo e mostrá-lo quem sabe a alguém que possa perceber o que estou pretendendo dizer e confirmar-me que recebeu a mensagem, totalmente.

Perco minhas lembranças durante o dia, envolvido na movimentação, nos contatos, nos telefonemas, no trabalho e nas leituras. Os jornais, com textos tão dispersos e tão pouco inspiradores, ou os artigos retirados e reservados para leitura posterior. Há, sim, os livros que estão sendo lidos, religiosamente. Salto de um para o outro, vejo pouquíssima televisão, um pouco mais antes de preparar o sono, e diante de mim, outra vez a manhã.

E puxo então novamente da memória do computador o texto que dormiu o sono justo do esquecimento e lá está ele, implacável, a me cobrar a continuidade. Não, hoje não, ainda não está maduro, a digitação só vai perturbar o que está consolidado, mando-o de volta para sua caverna eletrônica.

Quando termino aquela jornada, alinho a nítida impressão de que desperdicei um dia de minha vida e com este sentimento venenoso faço todo o giro habitual, novamente o sono e outra vez o despertar com a expectativa de que, hoje sim, farei ressurgir do poço fundo do esquecimento, em todo o seu esplendor o que estou buscando botar de pé. Vejo e revejo os erros, hoje mais claros do que anteontem. Refaço, registro, faço o salvamento necessário para que seja aproveitado e sigo adiante. Outra vez o mesmo sofrimento, mal rompe a manhã…”
Portanto, de hoje em diante, “nenhum dia sem uma linha”.
=================
Fonte:
http://www.escritoresdosul.com.br/

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

José Araújo (O Lago das Batatas)

Todo mundo não via a hora de partir para as férias e ela se lembra ainda hoje, quantas e quantas noites de véspera de viagem ela passou sem dormir de tanta excitação e quantas vezes ao chegar lá ela sentiu como se seu estomago estivesse vazio, aquela mesma sensação estranha, que a gente sente quando se apaixona por alguém. A fazenda tinha nela um grande lago que havia recebido o nome de Lago da Batata, ele tinha este nome não porque você podia pescar batatas nele, mas porque a propriedade de Nhá Maria sua avó, tinha uma enorme plantação de batatas que abastecia grande parte das cidades vizinhas e região. Ana Maria lembra de quando aprendeu a ler e começou a compreender as coisas, ela achava lindo e adorava ver todos aqueles barquinhos na beira do lago, cada qual com um nome que sugeria uma ligação profunda com o nome do lugar, tais como, “Batata Frita”, “Batata Chips”, “Batata Palha” “Batata Boat” e havia tambem os pedalinhos, cada um uma cor que eram chamados de batatinhas, além do que, para alegria da criançada, todos os dias o almoço era servido em mesas de madeira, colocadas estrategicamente às margens do lago, embaixo de frondosas arvores de eucalipto, de onde se podia ter uma vista ampla do lugar e a comida, bem, esta então, era a grande atração, a paixão de todo mundo, sua avó servia a todos, arroz, feijão, bife e é claro, batata frita. Nhá Maria era uma figura constante na vida de todo mundo que freqüentava o lugar, fossem parentes ou amigos, seu sorriso que iluminava totalmente seu rosto encantava a todos que a conheciam e a partir daí, jamais deixavam de vir visitá-la, de trazer seu carinho, amor e respeito por ser tão especial.

Aos 78 anos de vida ela era talvez a pessoa mais ativa na fazenda quando chegava a época das férias, pois queria sempre que tudo estivesse perfeito para a chegada da família e dos amigos que lhe traziam tanta alegria e calor ao coração. Ela sempre foi de planejar brincadeiras paras crianças, jogos e passatempos para os adultos, mas dava sempre uma maior atenção ao inventar atividades que envolvessem tanto as crianças, quanto adultos, para que de uma forma sutil, cada um pudesse perceber que mesmo quando já adultos, há sempre uma criança adormecida dentro de nós, apenas esperando que em algum momento alguém nos chame para brincar de “Amarelinha”. Nhá Maria era baixinha, tinha 1,60m de altura, era magrinha, usava seus cabelos sempre presos num coque bem arrumadinho no alto de sua cabeça e usava vestidos de chita estampados e coloridos, sempre com motivos de flores que eram sua grande paixão. Com sua pele morena, seus cabelos brancos e olhos azuis da cor do céu, a faziam ainda mais do que especial, não havia que não admirasse e destreza e rapidez com que ela executava todas as tarefas diárias, alem de dar atenção, carinho e amor a todos que a rodeavam. Ela era extremamente sentimental e parecia sempre ter uma lágrima nos olhos quando ouvia uma musica no rádio, quando ouvia um pássaro cantar pela manhã em sua janela ou quando assistia o sol nascer por detrás das montanhas, mas certamente muitas outras lágrimas vinham quando ela recebia um beijo ou um abraço de uma criancinha. Ela sempre soube encontrar algo positivo em todo mundo que ela conhecia, mesmo que de vez em quando isto fosse muito difícil, mas com seu amor ela sempre descobriu belezas há muito escondidas nos corações mais duros e sempre deu um jeitinho de fazer desabrochar neles uma linda flor, mesmo que para isto, ela tivesse que surgir do meio de um lamaçal.

Ana Maria sempre se lembrará do que ela dizia quando encontrava alguém mais duro, mais frio e séptico com relação á vida, ela dizia com uma voz que transmitia toda a força da fé e dor amor, que Deus nos fez a todos e esta dentro de todos nós. As prioridades na vida de Nhá Maria sempre foram Deus, a família, os amigos e uma vida simples e feliz e para isto, ela diversificava suas atividades, fazia parte do grupo de senhoras de sua igreja, onde podia ajudar outras pessoas de formas diferentes e isto lhe trazia muita alegria em poder se doar um pouco mais. Todos os anos ela fazia uma grande festa na fazenda para angariar donativos para a ajudar a população carente de muitas cidades vizinhas e era tão ativa ainda aos 78 anos, que participava efetivamente na competição de barcos, remando como se daquilo dependesse sua vida e atravessava o lago de ponta a ponta, sem demonstrar nenhum cansaço, sempre sorrindo, abraçando e beijando a todos, pois para Nhá Maria, a vida sempre foi uma festa e ela sempre envolveu a todos neste espírito positivo e por isto as pessoas se sentiam outras ao lado dela, como tinha que ser. No outono de 1990, ela teve diagnosticado um câncer e é claro, todo mundo ficou absolutamente devastado com isto, mas no coração de Ana Maria, de alguma forma ela sabia que no final, tudo seria de acordo com a vontade de Deus. Ano após ano, desde a descoberta da doença, durante todos os tratamentos e sofrimentos com a quimioterapia, com perda de seus cabelos, com a tristeza da família, ela nunca perdeu a fé em Deus e a vontade de viver, sempre que alguém lhe parecia triste ela dizia que Deus sabe o que faz e que o que quer que ele houvesse designado para ela, todos deviam aceitar com respeito, pois era a vontade de Deus e nestes momentos, o sorriso que brotava em seu rosto, fazia com que lágrimas sentidas corressem livremente no rostos de quem a estivesse ouvindo, tendo seus corações mais uma vez, preenchidos pela fé e pelo amor que ela tinha o poder de transmitir.

Em 1993 Nhá Maria foi parar numa cadeira de rodas e a esta altura já tinha que ser alimentada por tubos, mas seu olhar, ele era o mesmo de antes, havia neles o brilho da vida e da crença na existência de um Deus todo poderoso e mesmo sabendo que sua morte estava próxima, todos já estavam acostumados com a idéia, era questão de tempo e quando a hora se aproximou, ela pediu para ver o padre da capela da cidade e quando ele chegou ela parecia estar vendo um anjo e disse a ele com uma voz que poderia derrubar por completo todas as barreiras que são compostas pelo ódio, pelo rancor, pela inveja e pelo ceticismo e suas palavras foram:

“Padre, o senhor sabe que nunca tive medo da morte porque eu sei para onde estou indo, eu não quis partir antes porque eu sabia que minha família ainda não estava pronta para aceitar minha partida, mas agora eu sei que eles estão e por isto vou partir padre, mas antes peço sua benção em nome do Senhor”.

E enquanto recebia a benção do Padre, Nhá Maria partiu calmamente, foi morar lá no céu, foi ficar ao lado de Deus nosso senhor, onde é o lugar de todos aqueles que acreditam nele e tem fé de que a vida não é passageira, que ela é muito mais do que a maioria enxerga, que ela em si, é uma benção divina, que aqueles que a recebem dele, é porque foram escolhidos para trazer ao mundo, mais uma prova de seu poder. Hoje já não há mais a presença física de Nhá Maria na fazenda, porém seu espírito iluminado esta presente o tempo todo nas mentes e nos corações daqueles que sempre a amaram e a tradição que se iniciou há séculos atrás não foi interrompida, a vida segue seu caminho e agora, outra avó tomou o lugar de Nhá Maria no Lago da Batata, sua filha, Albertina, mãe de Ana Maria, que aprendeu com ela os caminhos da luz e os filhos de Ana Maria, assim como todos as outras crianças da família ao longo das gerações, nem dormem na véspera da viagem de férias, de tanta excitação.
================
José Araújo, é autor do livro por um mundo melhor, publicou nos livros entrelinhas, Universo Paulistano, dimensões.br (Andross Editora), Enigmas do Amor, Delicatta IV (Scortecci Editora) em SP, coletânea 10 anos de usina de letras, antologia especial XIV Bienal do Rio All Print, poesia e prosa verão 2009, preces e reflexões (taba cultural) no R.J. estará no lançamento da antologia cidade volumes I,II e III em Belém na Feira Panamazônica do Livro dia 07/11 às 19hs.
=======================

Foto no alto da página = Lago de Bled, na Eslovênia

1 comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, notas biográficas, O Escritor com a Palavra

Volpone de Souza (Pra Riba, Descambeia!

Angélica era professora primária, recém-formada, jovem, formosa e delicada. Sempre viveu na cidade, estudou em bons colégios, leu muitas obras literárias e dominava a língua portuguesa na fala e na escrita. Em seu primeiro dia de trabalho, numa escola, sala multiseriada, entre crianças, galinhas, porcos, cachorros, gatos… começou a ensinar o beabá. Pegou giz branco e escreveu no quadro negro as vogais: A, E, I, O, U.

Os alunos copiavam em seus cadernos de caligrafia aquelas letras, menos Expedito, conhecido como “Dito”, menino calado, cabelo arrepiado e pés descalços balançando no ar, pois suas pernas eram curtas para a cadeira que sentava. A professora com muita paciência explicou novamente o movimento realizado para redigir aqueles símbolos. Dito tentou, mas não conseguiu. Calmamente, a jovem professorinha, sem perder o encanto, a doçura e a pronúncia das palavras, porém, tentando de forma mais simples e menos formal disse: – Expedito, você deve começar de baixo, traçando a letra para cima e para baixo, para cima e para baixo, para cima e para baixo…

Dito ainda não tinha entendido como deveria escrever a letra ‘A’.

Esgotada, suando frio, pois somente aquele menino não tinha compreendido a lição. As outras crianças, também aflitas, permaneciam em silêncio e tristes com o sofrimento da professorinha.

Frustrada de tanto tentar em vão, chorando, sentou-se, com as mãos na cabeça e exclamou: – Meu Deus dê-me força e sabedoria nesta hora! Foi quando Mariazinha, irritada, levantou, pegou o giz da mão da professora, foi até o quadro negro e apontando a atividade, gritou: – Dito, “seu burro”, pra riba, descambeia, pra riba, descambeia, pra riba, descambeia…

Então o menino compreendeu o que a professorinha queria explicar com palavras tão estranhas à realidade rural em que vivia.
==========================
Esta foi uma das cronicas vencedoras do 4º. Concurso Literário Cidade de Maringá – 2008
O autor é de Bragança Paulista/ SP
=========================
Fontes:
http://odiariomaringa.com.br/noticia/219511
Imagem =
http://www.eurekakids.net

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Andréia Donadon Leal (A Bibliotecária)

Os livros estavam devidamente enfileirados nas estantes. Poucos centímetros de distância um do outro. Nenhum torto, fora de foco. As orelhas desamassadas, passadas com chapa de ferro morno. O cuidado era devidamente dado para cada um, sem discriminação. O cheiro da sala, papel. O lugar pouco iluminado, embora o requeresse. Na mesa, ao fundo, uma figura vergada e escondida na pilha de livros para carimbar. Idade avançada. Cabelos cor de prata. Rugas rasgavam ponta a ponta o rosto descorado. Uma vida inteira de cultura, diversão, viagens, um pouco de tudo mostrado pelas palavras imprensas nas páginas dos livros.

Clarice estava pouco a aposentar. A preocupação acometia seus últimos dias com a idéia. Quem iria cuidar deles? Os sonhos lhe roubavam o sono; os olhos mais fundos. Os livros, sua vida, arremessados no lixão da cidade. Livros velhos? Antigos e restaurados; relíquias. Nas manhãs a cabeça queria explodir e quase Clarice perdera a hora de trabalhar. A biblioteca da escola não funcionava sem ela. Não abriam. Ninguém sabia mexer com carinho nos livros. Não encontravam a essência da pesquisa. Também só ela dera conta até hoje de livro por livro. As capas que fazia para os que estragavam tiravam exclamações de incredulidade. Ficavam perplexos. Era muito especial. Qualquer pesquisa Clarice dava conta. Ia sempre além, explicava com precisão todos os detalhes. Sabia um pouco de tudo. Com a sacola pesada de livros restaurados entrava diariamente na biblioteca cruzando a mão direita no rosto, rezava pai-nosso e ave-maria. Uma vida dedicada somente ao trabalho e nada mais.

Clarice morava três quarteirões da escola. Casa modesta, herdada. A outra única coisa que fizera foi cuidar de sua mãe – morta havia uma década. Cuidado devido de filha exemplar, solteirona e única. Dividia parte de suas horas ora com a mãe, ora com os livros. Dona Gertrudes morrera numa manhã cinzenta de sexta-feira treze. Clarice tinha pavor destes dias, mesmo sabendo que era lenda. O sossego, a paz e o sorriso meigo que sempre faziam parte do seu perfil ficavam tensos. Mas ninguém percebia. A bibliotecária, pessoa muito estimada, querida por todos. Falavam que nem pecado tinha. Nunca arrumara um namoro. Era santa. Diziam que quando a boa dona donzela morresse iria direto para o céu. Em quase trinta anos, Clarice nunca dera uma má resposta, uma palavra feia, nenhum olhar meio torto. Mas o sonho mexia com sua rotina. Seria aviso de morte repentina? Os dias estavam findando para ela? Livros no lixão da cidade! No livro de sonhos consistia informação de algo novo na vida.

Para Clarice, novo seria o fim. Deus dar cabo na vida atribulada e solitária. Ponto final. Tudo investido em quatro paredes infestadas de livros. Histórias, informações, um mundo, o segredo da vida impressos nas páginas. A sensação, a mesma de ter vivido com emoção detalhes, aventuras, desventuras… As paixões atingiam um mundo desconhecido para ela. Não abria estas páginas. As mãos iam vez ou outra em contramão com a cabeça. Rezava vários padre-nossos e pedia logo perdão. Mesmo com os livros não recomendados, tinha obrigação de conservá-los. Não discriminava nenhum. Apenas deixava-os de lado. Um outro gosto que não combinava com uma vida afastada dos desejos e maldades da carne. Mundo desconhecido. Um fim de expediente como outro qualquer. Um dia cinzento. Frio. Clarice limpou o último livro. Fechara com cuidado as janelas pesadas de madeira. Antes de sair, mais uma olhada. Uma olhada demorada, apaixonada, precisa. Os livros estavam cada um no seu lugar. Limpos, conservados. Devidamente enfileirados. Alguns estavam sobre a mesa. Estragados, mal conservados. Daria um jeito.

Clarice dirigiu-se à mesa. Pensou em juntá-los e levá-los para casa. Antes de dormir teria tempo para arrumar uns três. Pela primeira vez o cansaço venceu. Estava ficando mesmo velha. Tinha que aposentar. Uma dor de cabeça, corpo ruim. Com a idade, a gripe costumava visitá-la mais vezes no ano. E este frio piorava tudo. Em casa tomaria um chá quente. O resfriado iria embora.

Ainda com os olhos sobre a mesa de livros, Clarice pensava. Não viu quando um rapaz chegou e ficou olhando para ela. Alheia ao tempo e tudo. Voltou quando escutou um pigarro. Pela primeira vez, corou. Será que o rapaz pensaria que estava esclerosada? Falava sozinha? De vez em quando fazia isto. Costume de vida solitária. Ela, só na sua companhia. Mas, daí? Nunca importava. Não ligava. Ajeitou a postura, prontificou-se. O rapaz, viajante. Hoje iria demorar. O mal estar ficaria para depois. Certamente ele mostraria catálogos e mais catálogos de livros. Compra de livros.

Esquecera por completo.

O rapaz da editora sentou. Com os olhos puxados e enigmáticos abriu os catálogos. Mãos grandes e unhas bem aparadas. As mãos do rapaz. Clarice imaginou como seria o toque delas. Chegou a esbarrar sua mão. Desconfiou estar com febre. O danado do resfriado desestruturou tudo. O rapaz falava. Voz macia. Dentes brancos. Lábios bem desenhados. Clarice não escutava. Olhava para o rosto dele. Enfeitiçada. Como seria beijar aqueles lábios? O viajante perguntou algo, não respondeu. Não o ouvira. As mãos dele falavam. Tudo que queria era sentir o toque macio das mãos no rosto pálido. Aquelas mãos esquentariam a pele até torná-la corada, sadia. Uma vontade quase incontrolável.

Clarice pensou aterrorizada ter pedido ao viajante para acariciar-lhe o rosto. Um toque apenas, por favor. Fechou os olhos. Sentiu o calor das mãos do rapaz. Aquecida. Estava mesmo carente. Esqueceu de oferecer um chá para o viajante. A bibliotecária educada, contida, estava ficando lerda. Velha. O rapaz novamente perguntou. Voz grave, hálito cheiroso. Cheiro de menta. Um sorriso separou seus lábios. Clarice despertou dos pensamentos. Pediu desculpas. A explicação, pouco convincente, o cansaço, a gripe prestes a sair do corpo. O viajante sorriu. Os olhos também sorriram. Separou catálogos. Entregou um a um. Roçou as mãos. Olhou profundamente para ela. Chegou próximo. Mais alto que parecia. Mais bonito. Muito próximo. Clarice chegou a pensar que o viajante iria beijá-la. Fechou os olhos imaginando a cena. Nunca sentira um roçar de lábios e o gosto de uma boca que não fosse a sua.

Delicadamente as mãos do viajante passaram pelo rosto dela. Uma fração de segundos. Uma vida inteira, só. Um dia, um desejo. Toque como imaginara: suave, quente, delicado, gostoso… Uma última olhada apaixonada nos livros e com a chave passou a tranca na porta da biblioteca.
–––––––––––––––––––-
Obs: Este conto foi escrito em um parágrafo. Contudo, para não tornar a leitura cansativa em uma tela do computador, tomei a liberdade de parti-lo em alguns parágrafos. O texto permanece o mesmo, sem ser alterada a sequência.

Fonte:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/

Deixe um comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Sônia Cano (O pôr do sol)

Faz mais ou menos dois anos que estou morando num apartamento. A vida nos obriga a tantas reviravoltas, que acabamos nos acostumando a tudo.

A princípio, pensei que não me acostumaria fechada em quatro paredes, ‘engaiolada’, como disse um dia meu marido. Mas, aqui estamos e, para bem da verdade, acabei adorando nosso pequeno cantinho.

Já escrevi sobre minha casa. Grande, corredor largo, sala enorme, quartos imensos… Pra quê?
Só para juntar velharias, acumular ‘coisas’ sem nenhuma importância, talvez para ocupar espaços que estão sobrando.

Quando vejo os cristais, ainda intactos, perfeitos, e que foram presentes de casamento de meus avós, (ainda os conservo com carinho), penso que, na realidade, não deveriam importar para mim. Afinal, meus avós é que importavam. Sua presença amiga, seus conselhos, que na ocasião, via com desdém, seu sorriso, sua sabedoria, seu amor imenso e profundo como o mar. Os cristais, ora os cristais! Na sua fragilidade, permaneceram. As pessoas, não. Que ironia! Foram-se, como nuvens que passam. Deixaram, no entanto, uma mensagem forte, que não se diluiu com a ausência, nem se perdeu com o passar dos anos. E uma doce, suave e enorme saudade.
Mas… voltando ao apartamento, outro dia, descobri uma coisa maravilhosa. Estava eu preocupada com uma reunião importante que aconteceria naquele dia quando, ao olhar pela janela da cozinha (eram umas seis horas da manhã), vi o espetáculo maravilhoso do amanhecer.

Momento inesquecível!

O sol, ainda menino, deixava-se descobrir no horizonte, tímido, róseo, para alguns minutos, após, aparecer redondo, belo, imponente e dourado como um rei, anunciando que o dia chegava, claro e belo, tal qual a esperança e a certeza de que tudo estaria bem e que Deus, em seu imenso AMOR, me respondia a questões e esclarecia as dúvidas.

Lembrei-me, então, que todas as tardes; quando o céu está limpo, se quiser sentar-me em minha cadeira de balanço diante da janela da sala, tenho o espetáculo maravilhoso do entardecer ao meu dispor.

O sol se põe para mim, extasiando-me com a beleza desses momentos que são quase eternos. Saint Éxupery, através de seu Pequeno Príncipe, nos diz: ‘Assim eu comecei a compreender, pouco a pouco, meu pequeno principezinho, a tua vidinha melancólica. Muito tempo não tivesse outra distração que a doçura do pôr-do-sol. Aprendi esse novo detalhe quando me disseste, na manhã do quarto dia:

– Gosto muito de pôr-do-sol. Vamos ver um…
– Mas é preciso esperar…
– Esperar o quê?
– Esperar que o sol se ponha.

Tu fizeste um ar de surpresa e, logo depois, riste de ti mesmo. Disseste-me:

– Eu imagino sempre estar em casa!
… no teu pequeno planeta, bastava apenas recuar um pouco a cadeira. E contemplavas o crepúsculo todas as vezes que desejavas…
– Um dia, eu vi o sol se pôr quarenta e três vezes!

E um pouco mais tarde acrescentasse:

– Quando a gente está triste demais, gosta do pôr de sol…
– Estavas tão triste assim no dia dos quarenta e três?’

Pois é. De repente, descubro que posso assistir num mesmo dia à alvorada e ao pôr de sol. Descobri, também, que o apartamento, se eu quiser, pode se transformar em meu pequeno mundo, como o planeta do Pequeno Príncipe.

Afinal, considero-me privilegiada. Deus não me deixa nunca sem respostas. Está sempre a me tratar com carinho de Pai. E suas respostas estão aqui. Ao meu lado para que O sinta bem pertinho de mim.

Mesmo nesta época de tantas controvérsias, de tão avançada tecnologia e tanto progresso, em que a humanidade se vê esmagada por incompreensões, lutas de classes, violências desnecessárias, seqüestros, ganâncias desmedidas, apego ao dinheiro e ao poder, sufocada por suspeitas e ameaças de ‘vazamentos de substâncias químicas’, ainda não se pode parar para assistir a um espetáculo grandioso e gratuito como a aurora e o crepúsculo

Fontes:
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece
Imagem = http://www.melhorpapeldeparede.com

1 comentário

Arquivado em A Escritora com a Palavra, Cronicas - Contos, Magia das Palavras

Nei Duclós (Comboio de Livros)

Livro tem pai e avô, como todo mundo. Nenhum autor importante, desses que deixam marca, escreve a partir do nada. Ninguém que vá morrer consegue inventar, sem base, algo que preste. O truque dos gênios é participar de uma linhagem, sem precisar dar sempre o crédito (isso fica a cargo dos estudiosos, os apaixonados dispersos no tempo). Artistas africanos anônimos e ancestrais foram apropriados por Pablo Picasso. MacBeth e Hamlet já tinham sido escritos, mas Shakespeare fez muito melhor. Os Irmãos Grimm, todos sabem: colheram as histórias do povo e colocaram em papel impresso. Cervantes usou os romances da cavalaria para talhar seu antídoto.

Picasso falava em roubar, mas era seu jeito debochado de abordar coisas sérias. Não acredito nessa definição. Existe o plágio, o clone, mas isso é outra coisa. Está cheio de ladrão por aí, mas os mestres são de outra estirpe. Trabalhar uma história e elaborá-la de tal forma que cruze os séculos é entender que literatura, como toda arte, é matriz, tem antepassados e gera seres vivos. Chamam de livros, mas podem ser páginas virtuais em telas luminosas, espalhadas em inúmeras fontes. Por um tempo foram manuscritos perdidos, obra de copistas, papiros, tábuas, argila. Não importa a forma, mas a elaboração que identifique a obra.

O papel impresso, por existir há muito tempo, parece ter se transformado na natureza do livro, mas esse é um erro de percepção. É imbatível como objeto a ser levado para a varanda, o quarto, o banco da praça, do ônibus. Mas acredito que hoje existe um exagero de livros não reconhecidos como tal espalhados pela rede, assim como temos livros perdidos, mofados, jamais reeditados e que fazem parte de um acervo de maravilhas ocultas, como os tesouros das lendas, essas que eram transmitidas pela voz por gerações e só depois pousaram, modificadas, em volumes que ocuparam estantes.

A essência do livro, da literatura, é habitar o espírito. Vejam bem que não usei missão, função, “papel” no sentido de incorporar um personagem. Porque é dentro de nós que uma história, uma teoria, uma lenda, uma parábola, um texto, um poema, uma obra habita. Não vamos procurar lá na sala encerada, na biblioteca opressiva, nas prateleiras convulsas, nos armários fechados a glória de existir da literatura. Também não vamos procurar apenas nas conversas eruditas, embora estas possam nos levar pela mão até onde nem imaginávamos com nossa precária leitura. Não se trata de fazer pouco do acúmulo ou das análises, pois tudo tem lugar nos livros.

O fato é que os antigos tinham mais sabedoria, pois não era preciso o livro para que a literatura habitasse as gentes. Bastava um narrador em praça pública, um poeta popular, um arauto, um aventureiro e suas memórias ditas em cima de um caixote, uma gávea. Não havia intermediários, a não ser o autor da saga, que assim se transmitia diretamente para o coração do povo. O livro no fim aprisionou o talento a sete chaves e ficou cada vez mais custoso abri-lo para ler, à medida que as atrações da vida se multiplicaram e se tornaram mais acessíveis.

Quantos livros deixei pela metade? Quantos dormiram na minha estante, às vezes por vinte anos, para enfim eu poder ser capturado por eles? Ler tudo é impossível, devemos ler só o necessário e cada um sabe sua cota. Ao mesmo tempo me pergunto: e se eu não os tivesse à mão, o que seria de mim? Brutalizado pelo exílio, eu amargaria a pena de viver tentando imaginar o impossível. Seria uma bruma de possibilidades e talvez eu quisesse, a certa altura, escrever algo para poder ter o que ler. Esse é o segredo dos diários: todos os dias colocamos a vida nele para um dia podermos ler o que passou por nós como um comboio. É nossa obra favorita.

Chegará esse tempo em que verei a paisagem do que escrevi. Mas isso vai se desenrolar lá fora do trem. Dentro, sobre uma poltrona amigável, eu continuarei a abrir os grandes autores, os que jamais devem se distanciar de nós. Porque se algo fica na terra, é a literatura, semente de obras ao infinito.

Fonte:
http://consciencia.org/neiduclos/

Fotomontagem = José Feldman

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra

Aluísio de Azevedo (Hamleto)

Todo o homem inteligente, que tenha lido durante a vida mais de dez livros de literatura, sente um delicado abalo e um ligeiro frêmito nervoso agitarem-lhe o coração, todas as vezes que vê anunciado, por um ator de nome, o inabalável Hamleto de Shakespeare.

E só com o Hamleto acontece isto. Donde lhe virá tão transcendente privilégio? Qual o segredo da magia dessa misteriosa obra de arte, que assim acorda ao mesmo tempo mil impressões, sem que destas nenhuma entretanto se definisse até hoje claramente?

Todos conhecem Hamleto; muitos o discutem; ninguém e nega; todos o aceitam; todos o desejam; todos o amam doidamente; mas ninguém o explica; ninguém o define, porque o próprio Hamleto não se explica, nem se define a si mesmo. Não se define, porque ele próprio é a mesma dúvida; é a mesma contradição; ele é o indefinido afeiçoado por um poeta de gênio.

Anunciado o Hamleto, correm todos a vê-lo inda uma vez; mas, por melhor que seja a interpretação que lhe dê o artista ninguém até hoje saiu do teatro amplamente satisfeito por ter visto mover-se em cena o Hamleto sonhado pelo seu coração e pela sua inteligência.

Nenhum trágico deu jamais ou será capaz de dar ao vivo esse tipo-enigma, esse idolatrado mito, que vive na imaginação de todos, porque fia Hamleto, posto que muito humano, não é homem.

Não é um personagem em arte, é um símbolo. É a dúvida, intangível e incorporável como o indefinido. E nisso está o seu valor. Todos o compreendem, mas ninguém o define em crítica, nem o traduz em cena satisfatoriamente.

Todos o sentem; todos o compreendem; todos o conhecem, como a um íntimo e querido companheiro da sua própria alma e da sua própria incerteza. Pelo espírito de todo o homem inteligente, por mais curta, mais longa, mais tranqüila ou agitada que seja a sua vida, já pelo menos uma vez, atravessou essa misteriosa sombra, com O seu olhar estranho, embaciado pela indefinida tristeza da dúvida. E essa sombra nunca mais se apagou desse espírito.

Por todo o cérebro, iluminado pelo menos por uma idéia, já algum dia se arrastou gemendo a desvairada melancolia de Hamleto, perguntando à dor da sua própria dúvida, o irrespondível “ser ou não ser”? E o eco desse gemido sem resposta aí ficou gravado para sempre, como a saudade de um amor, ou como o remorso de um crime.

Shakespeare, que formou genialmente os seus tipos com a intensidade das próprias paixões que eles sintetizam; ele que criou o Ciúme com o próprio ciúme; a Loucura com a própria loucura; a Avidez com a própria avidez e o Amor com o próprio amor – fez o Indefinido com o próprio indefinido.

Se Hamleto não fosse contraditório; se fosse explicável e coerente, seria incoerente e contraditório, e nunca seria Dúvida.

Ele é todo feito de contradições; é enérgico e vacilante; indiferente e apaixonado; vingativo e carinhoso; louco e sensato; hipócrita e sincero; paciente e desensofrido; prudente e arrebatado; generoso e pérfido; é bom e é cruel; é bom filho, e é mau filho. As suas lágrimas são escarninhas e o seu sorriso dói. O seu amor é uma queixa contra o seu próprio amor, e o seu ódio é a seiva e é a vida do seu coração. Ele é a Dúvida, que só se define pela dúvida. Ele é a Contradição, que só se afirma pela contradição. Ele é enfim o indefinido.

Ele é o Indefinido quando diz a Ofélia que nunca a amou, mas que a ama agora, contanto que ela nada espere desse amor e se recolha a um convento. Ele é Contradição quando diz que todos os homens, sem excetuar nenhum, nem ele próprio, suo miseráveis, tendo afirmado que seu pai, o rei da Dinamarca, era tão belo modelo de valor e virtudes que só aos deuses podia ser comparado. Ele é contradição no seu extremoso amor filial, porque ele é o carrasco de sua própria mãe. Ele é Contradição quando, tendo já se encontrado e entendido com o espetro de seu pai, que lhe faz revelações imprevistas, vem depois, no célebre monólogo do terceiro ato, falar-nos dessa outra margem oposta à da vida, a morte, donde, afirma ele, nunca ninguém voltou ao mundo que habitamos. Ele é Contradição quando, tendo friamente assassinado Ofélia com a sua cruel indiferença, lança-se diante do cadáver dela, desafiando a quem na terra a possa amar mais do que ele.

Toda essa contradição é a Dúvida.

E porque Hamleto é a Contradição, Hamleto é inexplicável, é vago, é sombra que escapa à grosseira vista dos sentidos, e só pode ser bem julgada e compreendida pelo espírito e pelo coração. Ele, só dentro de nós mesmos, existe real e perfeito; desde que qualquer arte plástica pretenda dar-lhe forma, as suas fantásticas proporções logo se amesquinham, e Hamleto deixa de ser Hamleto como todos o conhecem.

Hamleto fora da nossa imaginação é um polvo fora d’água.

Ele pertence a todos e pertence a cada um em particular. O abalo que se experimenta ao ouvir o seu nome mágico parece a cada indivíduo um caso privado de simpatia. É que Hamleto é a misteriosa expressão da dúvida de cada um de nós. Todos nos embriagamos com esse doloroso e eternal idílio entre o conhecido e o desconhecido.

Pensar em Hamleto é pensar em Ofélia. Menos ideal do que ele, mais terrena, mais sensual, ela é também ainda assim uma visão intangível. Ofélia, toda branca, toda loura, toda amorosa, esbate-se como sombra abraçada à sombra de Hamleto; mas a loucura que nele é sonho e embriaga, nela é realidade e dói.

Só um instante ela é mulher. A sua carne de virgem desaparece desde que ela inclina a dourada fronte, vencida n’alma pela irresistível dúvida do seu príncipe incompreensível, e a pensativa sombra de Hamleto arrasta-a para o indefinido.

Ofélia é triste e contraditória estrela, que se acende à luz do dia e desmaia à sombra da noite. E’ uma estrela afogada na noite da Dúvida.

O seu diálogo com Hamleto é o melancólico idílio de uma luz que morre e suspira com a treva que geme e arqueja.

Há por entre as suas frases doloridas todos os soluços da miséria humana, como entre as de Hamleto há toda a velha agonia da dúvida em que nos arrastamos na vida.

– Eu te amei… Outrora…

– Assim o supus…

– Não devias acreditar… Eu nunca te amei…

– Ai!…

– Entra para um convento… não queiras ser mãe de pecadores. Nós somos todos miseráveis… Fecha-te num claustro…

– Os mimos de amor que me destes aqui os tendes, levai-os… já não têm perfume… o coração que mos deu já me não ama…

– Ah! Ah! és virtuosa?…

– Senhor…

– És… bela?

– Meu senhor…

– Bela e virtuosa. Separa a tua formosura da tua virtude, porque a beleza tem garras fortes e a virtude fraca defesa…

– Meu senhor…

– Entra para um convento… Eu supunha que te amava dantes… Só agora é que te… Faze-te freira…

E a estrela apaga-se de todo e a treva fecha-se na treva, deixando para sempre no espírito de quem escutou o seu idílio a saudade de unia música indefinida, feita de suspiros e de soluços.

* * *

E, pois, quinta-feira passada corri ao teatro Lírico. E o Sr. Novelli disse-me do palco, não sei em nome de quem, que Hamleto era “Histrião por vingança”.

E, com efeito, um calculado doido começou com a sua calculada loucura a intrigar, nem só todos os outros personagens da peça que se representava, como a mim próprio e aos outros espectadores que o ouviam.

Desconheci a tragédia. No fim de algum tempo perguntava a mim mesmo quem seria aquele violento intrigante, aquele sensual dinamarquês que vociferava contra os seus companheiros de cena.

E, â proporção que o Sr. Novelli refundia Shakespeare, Hamleto, a misteriosa sombra que persiste dentro de todo o homem que já leu dez livros literários, ia-se a pouco e pouco afastando de mim, até que, ao terminar o espetáculo, quando o falso doido estica-se e morre, já o meu querido e misterioso Príncipe da Dúvida, que nunca me abandonara o espírito desde que o conheci, tinha de todo me fugido; e eu comecei a sentir-me só, frio, abandonado moralmente, viúvo de um velho companheiro espiritual.

Tive vontade de chorar.

E então apoderou-se de mim um desejo forte, desensofrido de ver Hamleto, de ouvi-lo para matar saudades, de senti-lo vivo, para me convencer de que o Sr Novelli não o tinha assassinado para sempre.

Corri a casa e reli avidamente o divino poema da Dúvida.

Ah! felizmente, antes de adormecer, já de olhos fechados, achei de novo a querida sombra pensativa; estava defronte de mim, imóvel, a fitar-me com um triste olhar de tédio e de desdém, como se eu tivesse culpa do que. sucedeu quinta–feira no teatro Lírico.

Ela voltou, felizmente, mas do susto de a ter perdido é que já ninguém me livra.

E, agora, juro que o Sr. Novelli não ma roubará outra vez, ainda que por cinco minutos.

Nada, com cousas sérias não se brinca!

(Publicado Originalmente em O Pais, 23 de junho de 1895.)

Fonte:
Biblio

Deixe um comentário

Arquivado em Cronicas - Contos, Magia das Palavras, O Escritor com a Palavra