Arquivo do mês: janeiro 2009

Armando Sousa (Poesias Avulsas)

Ai poetas

Ai poetas como sofre vossa mentalidade e ser
Passais uma vida descrevendo cantos de amor
Sentis, mas o maior sentimento e de escrever
Escondendo sempre o grande padecer da dor
Vosso pensamento perde-se no espaço estelar
Contando e polindo, pondo diamante a brilhar
Juntando as estrelas do céu as estrelas do mar
Nunca falais da dor, tão grande é vosso penar
O jeito do poete fica embrulhado só em sonho
São secretas suas amarguras;… os desenganos
Aos golpes feitos pelo amor mostram ar risonho
Escrevem nódoas caídas, noutro branco pano
Arrastam na vida, amores e tantas amarguras
Descrevem vida brilhante toda em lidas cores
Na verdade passam tragédias das mais duras
Carregam com sorrisos os espinhos das dores
Mas o poeta finge para dar ao mundo coragem
Este quer que a vida seja para todos perfeição
Quer que aja verdadeira alegria na carruagem
As cantigas que escreve alegrem todo o coração
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Teus olhos verdes

Ai, teus olhos; mulher, esses teus olhos verdes
Me deixam paralisado perante encanto de serpente
Duas azeitonas verdes, meus olhos azuis as pede
Mágicos teus olhos verdes faz perder minha mente

Ai teus olhos verdes, navegaria como no mar
São a atração do amor, fazem meus azuis chorar
Vi-os um dia na net, esse verde de enfeitiçar
Os lábios eram rosados, pérolas para se beijar

Cabelo compunha a deusa em formas de violino
Traz-me preso ao mundo, e o verde de seu olhar
Minha cabeça roda; rosa te daria tanto mimo
Não te escondas; te adora meu pensar

Olhos verdes… sou poeta, pouco sei escrever
Escrevo para ti essas historias de ninar
Tuas primeiras palavras; teria muito a aprender
Só olhava teus olhos teus lábios queria beijar

Sei que não pode ser; só ver-te fico contente
Olha-me, com teus olhos verdes brilhantes
Olhos verdes, olha-me com encanto da serpente
Corpos separados, deixa os olho ser amantes

Tão longe, tremido, louco, encantado com teu olhar
Lábios frescos rosados, cobrem a mente de desejos
Teus olhos verdes me estão a encantar
Teus lábios rosados pedem aos meu para lhe dar beijos
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Montes da Minha Terra

Montes da minha terra
Monte; tantas vezes me viste a pinheiros trepar
Canas e rama cortadas para no lume arder
Tantas vezes me viste cansado e de fome chorar
Hoje penso… sinto saudades; mas tenho prazer
Montes vos me ouviste cantar também de alegria
Pregava como a declamar a cima do penedo da fraga
Já andava a minha volta o que hoje escrevo como poesia
Eram os contos da cobrinha a minha mente chegava
Hoje na minha mente ainda vos estou a ver
Do alto dos pinheiros vi tantas vezes o espelho do mar
Tão perto e tão longe, mas eu queria aprender
Ver beleza, fartura, ninguém por minha causa chorar
Teria, longe do monte e do rio, e noutra terra viver
Famalicâo minha Vila; Ruivães minha freguesia,
Os montes produziam lenha para me aquecer
Mato pinheiros e eucaliptos, testemunhas de minha poesia
Tudo destrocado, não vos vou voltar a ver
Foi nos monte que com colegas vimos folclore dançar
Nos montes lançamos um desafio ao livre divertimento
E nesse tempo de juventude que estou a pensar
Com medo da PIDE era um sofrimento
Rio Ave, viste minha nudez, de criança e juventude
Das tuas águas Ave, com fome comi peixe intoxicado
Caçados nas águas da açude, turbina de Delães
Veneno das tintas sódicas das fabricas a águas lançado
Que saudades dos montes e do campo de jogos do Freião
Da água pura das fontes, dos bois e do arado
Não vos volto a ver, levo-vos no coração
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Certos Lugares

Certos lugares países mares e continentes
Podem falar de mi, meu amor, minha alegria
Belezas falam como meus olhos indulgentes
Minha pena e Web fala da minha poesia

Meus olhos contam historias de jardins e de lagos
Minha mente atravessa montanhas mares e céus
Professores foram na terra meus magos
Agnósticos, procuravam no universo por seus deuses

Destino e mãe me tirou de suas entranhas
Para a maldade dos homens e egoísmo conhecer
Brutamontes, orgulhosos de suas façanhas
Com escárnio, vêem tantos inocentes morrer
Certos lugares já me viram fazer amor

Com doçura tratava minha eterna companheira
Correu mundos comigo sempre a minha flor
Quero a ver eternamente à minha beira
Não brigo com chuva ou a neve a cair

Fui penedo fui areia, fui pó fui nada
Me fez o amor, não sei quando partir
Fui som fui paixão entre o verbo entrelaçada
Lindos lugares passaram antes de eu ser por mi

Senti goste de viver nesta imensidão
Medos foi coisa que nunca os vi
Mas tenho medo de amar tanta paixão
Certos lugares são meus desejos meus prazeres

Terei de perder do viver esta ilusão
Esses lugares aumentaram em mi os meus deveres
Tantas vezes acalmaram meu amoroso coração
Ho… certos lugares…….
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Fontes:
E-mail enviado pelo autor.
http://www.notivaga.com.br/

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Aventuras de Pedro Malasartes

De como Malasartes entrou no céu

Quando Malasartes morreu e chegou ao céu, disse a S. Pedro que queria entrar.

O santo porteiro respondeu:

– Estas louco! Pois ainda tens coragem de querer entrar no céu depois que tantas fizeste, lá pelo mundo?!

– Quero, S. Pedro pois o céu é dos arrependidos e tudo quanto acontece é por vontade de Deus.

– Mas o teu nome não está no livro dos justos e portanto, não entras.

– Mas então eu desejava falar com o Padre Eterno.

S. Pedro zangou-se só com aquela proposta. E disse:

– Não, para falares a Nosso Senhor, precisavas entrar no céu e quem entra no céu Dele não pode mais sair.

Malasartes se pôs a lamentar e pediu que o santo ao menos o deixasse espiar o céu só pela frestinha da porta para que tivesse uma idéia do que fosse o céu, e lamentasse o que havia perdido por causa das más artes.

S. Pedro já amolado, abriu uma fresta da porta e Pedro meteu por ela a cabeça. Mas de repente, gritou:

– Olha, S. Pedro Nosso Senhor que vem falar comigo. Eu não te dizia!!

S. Pedro voltou-se com todo o respeito para dentro do céu, a fim de render as suas homenagens ao Padre Eterno que supunha ali vir.

E Pedro Malasartes então pulou para dentro do céu.

O santo viu que tinha sido enganado. Quis pôr o Malasartes para fora, mas ele contrariou:

– Agora é tarde! S. Pedro lembre-se que me disse que do céu uma vez entrando, ninguém pode mais sair. É a eternidade!

E S. Pedro não teve outro remédio senão deixar o Malasartes lá ficar.
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Malasartes no céu – II

Cansado de vagar pelo mundo, Malasartes resolveu dar um passeio ao céu, onde chegou com três dias de viagem. Bateu no portão do paraíso e esperou. Pouco depois ouviu a voz de São Pedro:

– Quem é?

– Sou eu.

– Eu quem?

– Pedro Malasartes.

– Que vem você fazer aqui no céu?

– Vim dar um passeiozinho. Quero ver essas belezas aí de dentro.

– Não pode ser, moço. No céu não entra ninguém vivo.

– Tenha piedade, São Pedro, só quero dar uma espiadinha…

– Nada, não é possível!

– Ora, abra, São Pedro, abra por favor… é só um instante… Deixe-me ao menos botar a cabeça aí dentro…

E tanto pediu e rogou, que São Pedro, já abalado, ou caceteado, entreabriu-lhe a porta para que espiasse.

Malasartes deitou-se, mais que depressa, de barriga para baixo, com os pés voltados para a porta, e foi-se deslizando para dentro do céu.

São Pedro protestou, mas o Malasartes retrucou-lhe que o santo se havia comprometido a deixá-lo meter a cabeça no céu, e era o que estava fazendo.. O chaveiro celeste não teve remédio senão conformar-se, porque palavra de santo é como a de rei, não volta atrás; e o caso é que quando a cabeça de Malasartes penetrou no céu já estava o corpo dele inteirinho…

Malasartes no céu – III

Andando Malasartes por uma estrada, encontrou-se com um pobre, que lhe pediu esmola. Deu um vintém ao pobre, e este que não era outro senão Nosso Senhor fez-lhe presente de um gorro vermelho, declarando-lhe que só ele Malasartes e ninguém mais poderia pôr a mão naquele objeto.

Tempos depois, cansado de vaguear pelo mundo, entendeu Malasartes de dar um passeio ao céu. Para lá se encaminhou, e depois de três dias de viagem batia no portão de São Pedro.

O santo porteiro perguntou lá de dentro quem era, e ele respondeu; perguntou o que desejava, e respondeu. O santo negou-lhe a permissão pedida; mas o viajante tanto rogou, tanto chorou que ele sempre consentiu em entreabrir a porta para que espiasse um pouco. Mal vê a fresta, Malasartes atira o gorro pra dentro e começa a gritar:

– Quero o meu gorro, quero o meu gorro!

São Pedro prontifica-se a ir buscá-lo, mas o burlão protesta:

– Não pode ser, só eu posso pegar no meu gorro. Ninguém mais, só eu. São ordens de Nosso Senhor.

São Pedro tratou de certificar-se da verdade, e veio a saber que Malasartes não mentia. Não havia outro remédio: deixou-o entrar para apanhar o gorro.

Assim Malasartes conseguiu entrar no céu. Mas não se demorou lá muito tempo…

Malasartes no céu – IV

Um dia chegou para Malasartes a hora de ir para o outro mundo, e de nada lhe valeu a esperteza; teve que marchar. Quando se viu no estradão da eternidade, pensou no que faria e resolveu, em primeiro lugar, ir bater à porta do céu.

Lá foi; mas São Pedro, assim que o enxergou, deu-lhe com a porta na cara. Então deliberou ir ao inferno; foi, bateu, mas o porteiro, dando com o homem que surrava até os diabos, tratou de fechar o portão com quantas trancas havia e foi correndo avisar o seu rei.

Houve um rebuliço dos diabos no inferno: pavor e correrias por todos os cantos. O próprio Satanás tremeu; mas, recuperando o sangue frio, pensou, pensou e ordenou que se deixasse entrar o hóspede. E disse-lhe:

– Eu não quero você no inferno, Malasartes; você, além do que já fez, ainda é capaz de vir aqui revolucionar a minha gente.

– Tenha paciência, seu Satanás, mas aqui estou e aqui fico.

– Então vou fazer uma proposta: que se decida o seu destino pela sorte do jogo. Aceita?

– Feito!

– Se você perder, irá diretinho para o caldeirão.

– Está dito. E se eu ganhar, você me paga com uma das almas que lá estão fervendo.

Começaram o jogo, e cada qual fazia o possível para passar a perna no outro. Mas Pedro Malasartes era mais esperto e ganhou a primeira partida, depois a segunda e assim outras. Satanás, vendo que não podia derrotar o parceiro e que ia perdendo almas sobre almas, postas em liberdade por Malasartes, mandou botar o insuportável para fora do inferno.

Malasartes andou vagando como alma penada, muito tempo, sem saber onde havia de se aboletar.. Até que um dia teve uma idéia e tocou de novo para o céu. Chegando à porta do céu, tomou uns ares muito humildes, e bateu devagarinho. São Pedro abriu um postigo, enfiou a cabeça e perguntou:

– Quem bate a estas horas?

– Sou eu, meu santo…

– Eu, quem? Diga o que quer, e toca!

– Será possível que o meu santo padroeiro não me reconheça… Pois eu sou o Pedro Malasartes.

– Malasartes?! Outra vez?! Já não lhe disse que o seu lugar não é aqui?

– Não se zangue, meu santo, meu grande santo… Sei muito bem que nunca entrarei neste lugar de glória…

– Então vamos ver, o que quer?

Malasartes, com muita brandura e muita lábia, pediu ao santo que entreabrisse ao menos a porta, um bocadinho, só para que pudesse espiar por um momento a beleza do céu. Tanto pediu e tanto fez que São Pedro o atendeu. Então, mais que depressa Malasartes atirou o chapéu pela fresta.

São Pedro bufou e descompôs o patife, e tanto barulho fez que começaram a ajuntar-se magotes de anjos e de justos ali junto da porta.

Acontece que o chapéu era um objeto terreno, além de estar muito sujo, e ninguém no céu lhe podia tocar. Mas Pedro Malasartes reclamava o chapéu, não abria mão, e enfim, para encurtar, não houve jeito senão, permitir-lhe que entrasse. E o malandro, entrou, muito contente, com ar vitorioso.

Mas o atrevimento não ficou sem castigo. Levaram o tal para junto de um monte enorme de milho e mandaram-no contar os grãos um por um. Malasartes, que remédio! Começou a contar, a contar, a contar, e levou um mundo de tempo a amontoar os grãozinhos para um lado. Quando já estava acabando a contagem, veio um anjo e misturou tudo. E Malasartes teve de contar de novo… E até hoje lá está contando e recontando os grãos de milho, sem acabar nunca.

Fonte:
http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/pedromala.htm
Imagem = http://climashopping.jacotei.com.br

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Franklin Ras Lopes (Esboço: A força dos medos e desejos)

“Sou contraditório por que sou vasto”
Walt Whitman

A fria e afiada lamina da razão corta o meu coração contraditório. O meu coração tem ímpetos naturais e contraditórios como ondas feitas de medo e desejo. A proximidade gera atritos, questionamentos sobre a minha liberdade e o afastamento natural vêm através de desavenças. Este afastamento gera o desejo de proximidade, de estreitar os laços e o ciclo continua.

O grande poeta e filósofo alemão Nietzsche dizia “cuidado ao tirar o pior de você, para que junto com ele você não tire também o seu melhor”. Sim meus caros leitores as rosas e o espinhos estão ligados. E a poesia nos diz “ O medo de espinho o desejo de flor, a tensão da roseira é a beleza em vigor, em meios a estas pedras a beleza chegou.” (Franklin Ras Lopes)..Se negarmos a tensão natural entre os opostos, perdemos a beleza, perdemos o melhor de nossas vidas.

As crianças quando brigam resolvem isto facilmente, não é necessário interferência Eles darão o dedinho e tudo continuará, os laços serão mais fortes,. os irmãos serão mais amigos quando a maturidade chegar.O amor não pode ser imposto, ele surge da tensão entre os opostos, ele é um processo natural e por isto surge através da liberdade de aprendermos com os altos e baixos de nossas vidas. Negar, cortar o um é negar, cortar o outro, e a mornidão gerada desta forma de agir, de nem uma forma é a ponderação ou o caminho do meio dos sábios.

Li um relato há muito tempo de místico Hassid que me esqueci o nome e não consegui encontrar referencias em minha pesquisa. Mas vale a pena comentar a explicação que ele deu a respeito da luminosidade surgida de alguém que a todos consideravam um grande devasso, um pecador, ele disse – “Quanto maior o pecador maior o santo” E particularmente acredito que não existem mais santos sobre a terra por que as pessoas constroem casas em cima da areia, constroem na verdade uma personalidade, aquilo que não são.. Tentam e acreditam serem maiores do que são e não trabalham onde realmente estão. A rocha firme para fazer nossos alicerces, estão nos processos associados aos nossos medos e desejos, no medo de não sermos amado que gera ciúmes, invejas, rancores, raivas, geram julgamentos capitais que servem apenas amparar o nosso ego, em meio a esta vastidão.

Somente um rebelde, somente um homem que foi ao deserto e enfrentou seus medos e desejos mais profundos podem proclamar e instigar a liberdade como fez Jesus na parábola do filho pródigo. Ele incentiva as pessoas a se aventurarem, a serem errantes, a experimentarem com seus próprios olhos, a vida. Não existe outra forma de poder andar sem ser caindo e se levantando, ficando forte para andar sem andador ou muletas.. E quando um errante voltar a casa do pai, a sua origem, ele voltará completamente transformado, pois estará fazendo os laços por que quer, estará se prendendo por gosto. Ao meu ver uma grande liberdade que surge em quem ama.

Obviamente existirão ciúmes por parte de quem ficou, daquele que seguiu os preceitos e nunca abandonou as regras da sociedade, pois a verdade da presença luminosa daquele que voltou trará uma festa, uma alegria que ele creditará ser o seu direito.Ele se sentirá injustiçados apenas por que se esqueceu que nos estamos aqui para aprender os caminhos da confiança, e o norte deste caminho é o amor.

Particularmente eu demorei muito a reconhecer o vasto pântano de homens que não sabem nem sair e nem entrar, demorei muito a olhar pra cima e ver a tabuleta que dizia – pântano do ser e do não ser. Nós não somos, nós estamos num fluxo continuo feito de polaridades como o dia e a noite..A crença no pântano impede a aventura do vir a ser, impede o fluxo natural de aceitação da polaridade de nossas vidas, o reconhecimento que temos que estar atentos, sermos testemunha de nós mesmos e assim mudarmos com a delicadeza e a tendência que quer a amorosidade.

A liberdade para encontramos a nossa essência, não é a mesma coisa que libertinagem. O processo tem de ser consciente, tem de ser intenso, um verdadeiro ato corajoso ou como diria o poeta Fernando Pessoa “sabendo viver bem saberemos navegar com todos os ventos”. Com estas considerações acredito que quando Walt Whitman disse “sou contraditório por que sou vasto” de forma nem uma estava se eximindo ou fugindo, eu pude sentir nestas palavras a afirmação da sua própria vida, do seu próprio processo de sanidade e não da paranóia que corta e dilacera o nosso natural coração contraditório.

Assim em verdade em verdade eu vós digo meus caros, o meu amor quebra taças, gera silencio e é muito carinhoso, o meu amor é delicado e esta delicadeza é fonte de asperezas, o meu amor é atento e dedicado e isto é a fonte do meu desejo de liberdade, o meu amor não é meu e me deixa inseguro, o meu amor existe com dois espinhos para exigir a atenção do outro, o meu amor quer o vôo e quer a liberdade de estar junto por que queremos, o meu amor nem eu entendo, mas uma coisa eu sei ele é frágil e precioso, pois sem medo e nem desejo não existe possibilidades de ir além.

Assim me ergo em oração: Deus afastai-vos de mim os homens de moral, afastai-vos de mim estes seres que pouco sabem da vida, mas querem encher meu coração de culpa, afastai-vos de mim estes seres que massageiam os pés mas logo chegam a agarrar o pescoço, Deus afastai-vos de mim estes imaturos papagaios, afastai-vos de mim estes seres que por ventura irão vir morder o meu dedo, ao invés de ver a lua clara na noite escura, para somente assim poder dizer com o meu próprio peito, eu sou um bem aventurado, eu sou um filho de Deus. Paz e prosperidade a todos
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Franklin Rodolfo Aguiar Silveira (Ras) Lopes é Oceanógrafo, Mestre em Aqüicultura, Doutor em ciências e atualmente trabalha como consultor ambiental.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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Francisco Sobreira (Compreender o incompreensível)

E me libertar do mundo sensível
Foi objeto do meu périplo
Atrás das salvações de cada uma das religiões

Hierofanias materiais, deuses transcendentais
Espíritos caídos e toda metafísica criada para explicar
Foram insuficientes para acalmar
A sede de verdade, as angustias e vaidades que atormentam o meu ser
Que se reluta em crer na ideologia de outro

Neste meu caminho solitário
Deparei-me com ânsias esmagadoras de morte
E me tornei voluntário das complexas experiências
Buscando uma clarividência do que é realmente transcendental

E de tanto pensar e não encontrar
Resposta alguma satisfatória
Resigno-me a minha insignificância
E contemplo a dissonância de toda matéria e nada infinitos
E sinto-me ungido por forças sobrenaturais

A resposta que me aparece
É que em tamanha estabilidade entre o nada e matéria
Encontro-me na esfera desta poesia paradoxal
E explicar com palavras o que não se pode contemplar
É divagar em terreno infértil
Mas sinto que há sempre por perto
Algo a me impulsionar.

Fonte:
Poesia enviada pelo autor.

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Edgar Allan Poe (Ligéia)

E ali dentro está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela qualidade de sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade.
Joseph GLANVILL

JURO PELA MINHA ALMA que não posso lembrar-me quando, ou mesmo precisamente onde, travei, pela primeira vez, conhecimento com Lady Ligéia. Longos anos se passaram desde então e minha memória se enfraqueceu pelo muito sofrer. Ou, talvez, não posso agora reevocar aqueles pontos, porque, na verdade, o caráter de minha bem-amada, seu raro saber, sua estranha mas plácida qualidade de beleza e a emocionante e subjugante eloquência de sua linguagem musical haviam aberto caminho dentro do meu coração, a passos tão constantes e tão furtivos que passaram despercebidos e ignorados. Entretanto, acredito que a encontrei, pela primeira vez, e depois frequentemente, em alguma grande e decadente cidade velha das margens do Reno. Quanto à família… certamente ouvia-a falar a seu respeito. Que fosse de origem muito remota é coisa que não se pode pôr em dúvida. Ligéia! Ligéia!

Mergulhado em estudos, mais adaptados que quaisquer outros, pela sua natureza, a amortecer as impressões do mundo exterior, é apenas por aquela doce palavra, Ligéia, que na imaginação evoco, diante de meus olhos, a imagem daquela que não mais existe. E agora, enquanto escrevo, uma lembrança me vem, como um clarão: que eu jamais conheci o nome de família daquela que foi minha amiga e minha noiva, que se tornou a companheira de meus estudos e finalmente a esposa de meu coração. Fora uma travessa injunção de Ligéia ou uma prova da força de meu afeto que me levara a não indagar esse ponto? Ou fora antes um capricho de minha parte, uma oferta loucamente romântica, no altar da mais apaixonada devoção? Só confusamente me lembro do próprio fato. Mas há alguma coisa de admirar no ter eu inteiramente esquecido as circunstâncias que o originaram ou o acompanharam?

É, na verdade, se jamais o espírito de Romance, se jamais a pálida Ashtophet, de asas tenebrosas, do Egito idólatra, preside, como dizem, aos casamentos de mau agouro, então com mais certeza presidira ao meu. Há no entanto, um assunto querido, a respeito do qual a memória não me falha. É a pessoa de Ligéia. Era de alta estatura, um tanto delgada, e, nos seus últimos dias, bastante emagrecida. Tentaria em vão retratar a majestade, o tranquilo desembaraço de seu porte, ou a incompreensível ligeireza de elasticidade de seu passo. Ela entrava e saía como uma sombra. Jamais me apercebia de sua entrada no meu gabinete de trabalho, exceto quando ouvia a música de sua doce e profunda voz, quando punha sua mão de mármore sobre o meu ombro. Em beleza de rosto, nenhuma mulher jamais se igualou. Era o esplendor de um sonho de ópio, uma visão aérea e encantadora, mais estranhamente divina que as fantasias que flutuam nas almas dormentes das filhas de Delos. Entretanto, não tinha suas feições aquele modelado regular, que falsamente nos ensinam a cultuar nas obras clássicas do paganismo. “Não há beleza rara -disse Bacon, Lorde Verulam, falando verdadeiramente de todas as formas e gêneros de beleza – sem algo de estranheza nas proporções.”

Contudo, embora eu visse que as feições de Ligéia não possuiam a regularidade clássica, embora percebesse que sua beleza era realmente “esquisita” e sentisse que muito de “estranheza” a dominava, tentara em vão descobrir essa irregularidades e rastrear, até sua origem, minha própria concepção de estranheza. Examinava o contorno da fronte elevada e pálida: era impecável – mas quão fria, na verdade, é esta palavra, quando aplicada a uma majestade tão divina! – pela pele que rivalizava puro marfim, pela largura imponente e calma, a graciosa elevação das regiões acima das fontes; e depois aquelas luxuriantes e luzentes madeixas, naturalmente cacheadas, dum negro de corvo, realçando a plena força da expressão homérica: “cabelo hiacintino” considerava as linhas delicadas do nariz e em nenhuma outra parte senão nos graciosos medalhões dos hebreus, tinha eu contemplado perfeição semelhante. Tinham a mesma voluptuosa maciez de superfície, a mesma tendência quase imperceptível para o aquilino, mesmas narinas harmoniosamente arredondadas, a revelar um espirito livre. Olhava a encantadora boca. Nela esplendia de fato o triunfo de todas as coisas celestes: a curva magnífica do curto lábio superior, o aspecto voluptuoso e macio do inferior, as covinhas do rosto, que pareciam brincar, e a cor que falava; os dentes, refletindo, com uma irradiação quase cegante, cada raio da luz que sobre eles caía, quando ela os mostrava num sorriso sereno e plácido, que era no entanto o mais triunfantemente radioso de todos os sorrisos. Analisava a forma do queixo, e aqui também encontrava a graciosidade da largura, a suavidade e a majestade, a plenitude e a espiritualidade grega, aquele contorno que o deus Apolo só revelou num sonho a Cleómenes, o filho do ateniense. E depois eu contemplava os grandes olhos de Ligéia.

Para os olhos, não encontramos modelos na remota antiguidade. Podia ser, também, que naqueles olhos de minha bem-amada repousasse o segredo a que alude Lorde Verulam. Eram, devo crer, bem maiores que os olhos habituais de nossa raça. Eram mesmo mais rasgados que os mais belos olhos das gazelas da tribo de Nourjahad. No entanto, era somente a intervalos, em movimentos de intensa excitação, que essa peculiaridade se tornava mais vivamente perceptível em Ligéia. E, em tais momentos, era a sua beleza – pelo menos assim surgia diante de minha fantasia exaltada – a beleza de criaturas que se acham acima ou fora da terra, a beleza da fabulosa huri dos turcos. As pupilas eram do negro mais brilhante, veladas por longuíssimas pestanas de azeviche. As sobrancelhas, de desenho levemente irregular, eram da mesma cor. Toda a “estranheza” que eu descobria nos olhos era de natureza distinta da forma, da cor ou do brilho deles e devia ser, decididamente, atribuida à sua expressão. Ah, palavra sem significação, e simples som, por trás de cuja vasta latitude entrincheiramos nossa ignorância de tanta coisa espiritual. A expressão dos olhos de Ligéia. . . Quantas e quantas horas refleti sobre ela! Quanto tempo esforcei-me por sondá-la, durante uma noite inteira de verão! Que era então aquilo – aquela alguma coisa mais profunda que o poço de Demócrito – que jazia bem no fundo das pupilas de minha bem-amada? Que era aquilo? Obsessionava-me a paixão de descobri-lo. Aqueles olhos, aquelas largas, brilhantes, divinas pupilas tornaram-se para mim as estrelas gêmeas de Leda e eu para elas o mais fervente dos astrólogos.

Não há caso, entre as numerosas anomalias incompreensíveis da ciência psicológica, mais emocionantemente excitante do que o fato – nunca, creio eu, observado nas escolas – de nos encontrarmos muitas vezes, em nossas tentativas de trazer à memória alguma coisa há muito tempo esquecida, justamente à borda da lembrança, sem poder, afinal, recordar. E assim, quantas vezes, na minha intensa análise dos olhos de Ligéia, senti aproximar-se o conhecimento completo de sua expressão!

Senti-o aproximar-se, e contudo não estava ainda senhor absoluto dele, e por fim desaparecia totalmente! E (estranho, oh, o estranho de todos os mistérios!) descobri nos objetos mais comuns do universo uma série de analogias para aquela expressão. Quero dizer que, depois da época em que a beleza de Ligéia passou para o meu espírito e nele se instalou como num relicário, eu deduzia de vários seres do mundo material, uma sensação idêntica a que me cercava e me penetrava sempre, quando seus grandes e luminosos olhos me fitavam.

Entretanto, nem por isso sou menos paz de definir essa sensação, de analisá-la, ou mesmo de ter dela uma percepção integral. Reconheci-a, repito-o, algumas vezes no aspecto duma vinha rapidamente crescida, na contemplação de uma falena, duma borboleta, duma crisálida, duma corrente de água precipitosa. Senti-a no oceano, na queda dum meteoro. Senti-a nos olhares de pessoas extraordinariamente velhas. E há uma ou duas estrelas no céu (uma especialmente, uma estrela de sexta grandeza dupla e mutável, que se encontra perto da grande estrela da Lira) que, vistas pelo telescópio, me deram aquela sensação. Sentindo-me invadido por ela ao ouvir certos sons de instrumentos de corda e, não poucas vezes, ao ler certos trechos de livros. Entre numerosos outros exemplos, lembro-me de alguma coisa num de Joseph GlanvilI que (talvez simplesmente por causa de sua singularidade, quem sabe lá?) jamais deixou de inspirar-me a mesma sensação: “E ali dentro está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como seu vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela qualidade de sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de débil vontade.”

Com o correr dos anos e graças a subsequentes reflexões, consegui descobrir, realmente, certa ligação remota entre esta passagem do moralista inglês e parte do caráter de Ligéia. Uma intensidade , de pensamento, de ação ou de palavra era possivelmente nela resultado, ou pelo menos sinal, daquela gigantesca volição que, durante nossas longas relações, deixou de dar outras e mais imediatas provas de sua existência. De todas as mulheres que tenho conhecido, era ela, a aparentemente calma, a sempre tranquila Ligéia, a mais violentamente presa dos tumultuosos abutres da paixão desenfreada.

E só podia eu formar uma estimativa daquela paixão pela miraculosa dilatação daqueles olhos que, ao mesmo tempo, me encantavam e atemorizavam, pela quase mágica melodia, pela modulação, pela clareza e placidez de sua voz bem grave e pela selvagem energia (tornada duplamente efetiva pelo contraste com sua maneira de emiti-las) das ardentes palavras que habitualmente pronunciava.

Falei do saber de Ligéia: era imenso, como jamais encontrei em mulher alguma. Era profundamente versada em línguas clássicas, e tão longe quanto iam meus próprios conhecimentos das modernas línguas européias, nunca a descobri em falta. E na verdade, em qualquer tema dos mais admirados, precisamente porque mais abstrusos da louvada erudição acadêmica, encontrei eu jamais Ligéía em falta? Quão singularmente, quão excitantemente, este único ponto da natureza de minha mulher havia, apenas neste último período, subjugado a minha atenção! Disse que seu saber era tal como jamais conhecera em mulher alguma, mas onde existe o homem que tenha atravessado e com êxito, todas as vastas áreas da ciência moral, matemática? Eu não via então o que agora claramente os percebo, que os conhecimentos de Ligéia eram gigantescos, espantosos. Entretanto, estava suficientemente cônscio de sua infinita supremacia para resignar-me, com uma confiança de criança, a ser por ela guiado através do caótico mundo da investigação metafisica em que me achava acuradamente ocupado durante os primeiros anos de nosso casamento. Com que vasto triunfo, com que vivo deleite com que tamanha esperança etérea sentia eu – quando ela se curvava sobre mim, em meio de estudos tão pouco devassados, tão pouco conhecidos – alargar-se pouco a pouco, diante de mim aquela deliciosa perspectiva, ao longo de cuja via esplêndida e jamais palmilhada podia eu afinal seguir adiante até o termo de uma sabedoria por demais preciosa e divina para não ser proibida!

Quão pungente, então, deve ter sido o pesar com que, depois de alguns anos , vi minhas bem fundadas esperanças criarem asas por si mesmas e voarem além! Sem Ligéia, era apenas uma criança tateando no escuro. Sua presença, somente suas lições podiam tornar vivamente luminosos os muitos mistérios do transcendentalismo em que estávamos imersos. Privado do clarão radioso de seus olhos, aquela literatura leve e dourada tornava-se mais pesada e opaca do que o simples chumbo. E agora aqueles olhos brilhavam cada vez menos frequentemente sobre as páginas que eu esquadrinhava. Ligéia adoeceu. Os olhos ardentes esbraseavam numa refulgência por demais esplendorosa; os pálidos dedos tomaram a transparência da morte e as veias azuis, na elevada fronte, intumesciam-se, e palpitavam, impetuosamente, aos influxos da mais leve emoção. Vi que ela ia morrer e, desesperadamente, travei combate em espírito com o horrendo Azrael. E os esforços daquela mulher apaixonada eram, com grande espanto meu, mais enérgicos mesmo do que os meus. Havia muito na sua severa natureza para fazer-me crer que, para ela, a morte chegaria sem terrores; mas assim não foi. As palavras são impotentes para transmitir qualquer justa idéia da ferocidade de resistência com que ela batalhou contra a Morte. Eu gemia de angústia diante daquele lamentável espetáculo. querido acalmá-la, teria querido persuadi-la, mas na intensidade de seu feroz desejo de viver, de viver, nada mais que viver, todos os alívios e razões teriam sido o cúmulo da loucura. Entretanto nem mesmo no derradeiro instante, entre as mais convulsivas contorções do seu espírito ardente, foi abalada a externa placidez de seu porte. Sua voz tornou-se mais suave, tornou-se mais grave, mas eu não queria confiar na significação estranha daquelas palavras, sossegadamente pronunciadas. Meu cérebro vacilava quando eu escutava extasiado por uma melodia sobre-humana, aquelas elevações e aspirações que os homens mortais jamais conheceram até então. Que ela me amasse, não podia pô-lo em dúvida, e era-me fácil saber que, num peito como o seu, o amor não deveria ter reinado como uma paixão comum. Mas somente na morte é que compreendi toda a força de seu afeto. Durante longas horas, presas minhas mãos nas suas, derramava diante de mim a superabundância dum coração cuja devoção, mais do que apaixonada, atingia as raias da idolatria. Como tinha eu merecido a beatitude de ouvir tais confissões?

Como tinha eu merecido a maldição de que minha me fosse roubada na hora mesma em que mais falta fazia? Mas sobre essa questão não posso suportar o demorar-me. Permiti-me apenas dizer que no abandono mais do que feminino de Ligéia a um amor, ai de mim!, inteiramente imerecido, concedido a quem era de todo indigno, eu afinal reconheci o princípio de sua saudade , com um desejo, tão avidamente selvagem, da vida que agora lhe fugia com tal rapidez. É essa violenta aspiração, essa ávida veemência do desejo da vida, apenas da vida, que não tenho poder para retratar, nem palavras capazes de exprimir.

Bem no meio da noite durante a qual partiu, chamando autoritariamente, a seu lado, ela me pediu para repetir-lhe certos versos, que ela mesma compusera, não muitos dias antes; obedeci-lhe. Eram os que seguem:

Vede! é noite de gala, hoje, nestes anos últimos e desolados!
Turbas de anjos alados, em vestes
de gaze, olhos em pranto banhados,
vêm sentar-se no teatro, onde há um drama
singular, de esperança e agonia;
e, ritmada, uma orquestra derrama
das esferas a doce harmonia.
Bem à imagem do Altíssimo feitos,
os atores, em voz baixa e amena,
murmurando, esvoaçam na cena,
São de títeres, só, seus trejeitos,
sob o império de seres informes,
dos quais cada um a cena retraça
a seu gosto, com as asas enormes
esparzindo invisível Desgraça!
Certo, o drama confuso já não
poderá ser una dia olvidado,
com o espectro a fugir, sempre em vão
pela turba furiosa acossado,
numa ronda sem fim, que regressa,
incessante, ao lugar de partida;
e há Loucura, e há Pecado, e é tecida
de Terror toda a intriga da peça!
Mas, olhai! No tropel dos atores
uma forma se arrasta e insinua!
Vem, sangrenta, a enroscar-se, da nua
e erma cena, junto aos bastidores,
a enroscar-se! Um a um, cai, exangue,
cada ator, que esse monstro devora.
E soluçam os anjos – que é sangue,
sangue humano, o que as fauces lhe cora.
E se apagam as luzes! Violenta,
a cortina, funérea mortalha,
sobre os trêmulos corpos se espalha,
ao cair, com um rugir de tormenta.
Mas os anjos, que espantos consomem,
já sem véus, a chorar, vêm depor
que esse drama, tão tétrico, é “0 Homem”
e que o herói da tragédia de horror
é o Verme Vencedor.

– Ó, Deus! – quase gritou Ligéia, erguendo-se sobre os pés e estendendo os braços para a frente num movimento espasmódico, quando terminei aqueles versos. – Ó, Deus! Ó, Pai Divino! Deverão ser essas coisas inflexivelmente assim? Não será uma só vez vencido esse vencedor? Não somos uma parte, uma parcela de Ti? …. quem conhece os mistérios da vontade, bem como seu vigor? O homem não se submete aos anjos, nem se rende inteiramente a morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade.

E então, como se a emoção a exaurisse, ela deixou os alvos caírem e regressou solenemente a seu leito de morte. E enquanto exalava os últimos suspiros, veio de envolta com eles um baixo murmúrio de seus lábios: “O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade.” Morreu. E eu, aniquilado, pulverizado pela tristeza, não pude mais suportar a solitária desolação de minha morada, na sombria e decadente cidade à beira do Reno. Não me faltava aquilo que o mundo chama riqueza. Ligéia me trouxera bem mais, muitíssimo mais do que cabe de ordinário à sorte dos humanos. Depois, portanto de poucos meses de vaguear cansativamente e sem rumo, adquiri e restaurei, em parte, uma abadia que não denominarei em um dos mais incultos e menos frequentados rincões da bela Inglaterra . A grandeza melancólica e sombria do edifício, o aspecto quase selvagem da propriedade, as muitas recordações tristonhas e vetustas que a ambos se ligavam tinham muito de união com os sentimentos de extremo abandono que me haviam levado àquela remota e deserta região do interior. Contudo, embora a parte externa da abadia, com sinais esverdinhados de ruína a pender em volta, apenas experimentasse pouca modificação, entreguei-me a perversidade como que pueril, e talvez com a franca esperança de encontrar alívio a minhas tristezas, a exibir dentro dela magnificência mais do que régia. Mesmo na infância, eu tomara gosto por tais fantasias, e agora elas me voltavam como uma extravagância do pesar. Ai! sinto quanto de loucura, mesmo incipiente pode ser descoberta nas tapeçarias ostentosas e fantasmagóricas nas solenes esculturas egípcias, nas fantásticas colunas, nos desenhos alucinados, nos desenhos alucinados dos tapetes enfeitados de ouro. Tornei-me um escravo acorrentado às peias do ópio, e meus trabalhos e decisões tomavam o colorido de meus sonhos. Mas não devo deter-me em pormenorizar tais absurdos. Permiti-me que fale só daquele aposento, maldito para sempre, aonde conduzi, como minha esposa, num momento de alienação mental – como sucessora da inesquecível Ligéia -, a loura Lady Rowena Trevanion, de Tremaine, de olhos azuis.

Não há pormenor da arquitetura e decoração daquela câmara nupcial que não esteja agora presente a meus olhos. Onde estavam as almas da altiva família da noiva quando, movidas pela sede do ouro, permitiram que transpusesse o umbral dum aposento tão ataviado uma jovem e tão amada filha? Disse que me recordo minuciosamente dos pormenores do quarto, se bem que minha memória tristemente se esqueça de coisas de profunda importância; e não havia nenhuma sistematização, nenhuma harmonia, naquela fantástica exibição que cativasse a memória. O aposento achava-se numa alta torre da abadia acastelada, tinha a forma pentagonal, era bastante espaçoso. Ocupando toda a face sul do pentágono havia uma única janela, imensa folha de vidro inteiriço de Veneza, só pedaço e duma cor plúmbea, de modo que os raios do sol, ou da lua, passando através dele, lançavam sobre os objetos do interior uma luz sinistra. Sobre a parte superior dessa imensa prolongava-se a latada duma velha vinha que grimpara pelas maciças paredes da torre. O forro, de carvalho quase negro, era excessivamente elevado, abobadado e primorosamente ornado com os mais estranhos e os mais grotescos espécimes dum estilo gótico e semi-druídico. Do recanto mais central dessa melancólica abóbada pendia, duma única cadeia de ouro de compridos elos imenso turíbulo do mesmo metal, de modelo sarraceno, e com numerosas perfurações, tão tramadas que dentro e fora delas se estorcia, como se dotada de vitalidade serpentina, uma continua sucessão de luzes multicores.

Algumas poucas otomanas e candelabros de ouro, de forma oriental, ocupavam em redor vários lugares; e havia também leito – o leito nupcial – de modelo indiano, baixo e esculpido em ébano maciço, encimado por um dossel semelhante a um pano mortuário. Em cada um dos ângulos do quarto se erguia um gigantesco sarcófago de granito negro tirado dos túmulos dos reis em face de Luxor, com suas vetustas tampas cheias de esculturas imemoriais. Mas a fantasia principal, ai de mim!, se ostentava nas colgaduras do aposento. As paredes elevadas a gigantesca altura – acima mesmo de qualquer proporção – estavam cobertas, de alto a baixo, de vastos panejamentos duma pesada e maciça tapeçaria, que tinha seu similar no material empregado no tapete do soalho, bem como a cobertura das otomanas e do leito de ébano, no seu dossel e nas volutas das cortinas, que parcialmente ocultavam a janela . Esse material era um tecido riquíssimo de ouro, todo salpicado, a intervalos regulares, de figuras arabescas com cerca de trinta centímetros de diâmetro e lavradas no pano em modelos do mais negros azeviche. Mas essas figuras só participavam do caráter de arabesco quando observadas dum único ponto de vista. Graças a um processo hoje comum, e na verdade rastreável até a mais remota antiguidade, eram feitos de modo a mudar de aspecto. Para quem entrasse no quarto, tinham a aparência de simples monstruosidades, mas à medida que se avançava desaparecia gradualmente esse aspecto e passo a passo, à proporção que o visitante mudasse de posição no quarto, via-se cercado por uma infindável sucessão das formas espectrais pertencentes às superstições dos normandos ou que surgem nos sonhos pecaminosos dos monges. O efeito fantasmagórico era vastamente realçado pela introdução artificial duma forte corrente contínua de vento por trás das cortinas, dando horrenda e inquietante animação ao todo.

Em aposentos tais como aquele, numa câmara nupcial tal como aquela, passava eu, com Lady de Tremaine, as horas não sagradas do primeiro mês do nosso casamento, e as passava com muito inquietação. Que minha mulher receava o violento mau-humor do meu temperamento, que me evitava e que me amava muito pouco eram coisas que eu não podia deixar de perceber. Mas isto isso me causava mais prazer que outra coisa. Eu a detestava com um ódio que tinha mais de diabólico que de humano. Minha memória retornava (oh, com que intensa saudade!) a Ligéia, a bem-amada, a augusta, a bela, a morta. Entregava-me a orgias de recordações de sua pureza, de sua sabedoria, de sua nobre, de sua etérea natureza de seu apaixonado e idolátrico amor. Agora, pois, plena e livremente, meu espírito se abrasava em chamas mais ardentes que as da própria Ligéia. Na excitação de meus sonhos de ópio (pois vivia habitualmente agrilhoado às algemas da droga) gritava seu nome em voz alta, durante o silêncio da noite, ou de dia, entre os recantos protetores dos vales, como se, pela ânsia selvagem, pela paixão solene, pelo ardor devorante de meu desejo pela morta, eu pudesse ressuscitá-la, nas sendas que abandonara nesta terra… será possível que para sempre?

Cerca do começo do segundo mês do casamento, Lady Rowena foi atacada por súbita doença, da qual só lentamente veio a restabelecer-se. A febre que a consumia tornava suas noites penosas e no seu agitado estado de semi-sonolência referia-se ela a sons e a movimentos dentro e em redor do quarto da torre, e não podia deixar de atribuir senão ao desarranjo de sua imaginação ou talvez às fantasmáticas influências do próprio quarto. Veio afinal a convalescer. . . e, por fim, recobrou a saúde. Todavia mal se passara breve período, eis que segundo e mais violento acesso a lança de novo no leito de sofrimento; e deste ataque, seu corpo que sempre fora fraco, jamais se restabeleceu inteiramente.

Desde essa época, sua doença tomou caráter alarmante e de recaídas mais alarmantes, desafiando ao mesmo tempo o saber e os grandes esforços de seus médicos. Com o aumento da moléstia crônica, que é assim, ao que parecia, de tal modo se apoderara de sua constituição que não era mais possível erradicá-la por meios humanos, não podia eu deixar de observar idêntico aumento da irritação nervosa, de seu temperamento e da sua excitabilidade por triviais de medo. Referia-se novamente, e agora com mais frequência e mais pertinácia, aos sons, aos mais leves sons e aos insólitos movimentos das tapeçarias, a que já antes aludira.

Numa noite dos fins de setembro, chamou minha atenção, com insistência insólita, para o desagradável assunto. Ela acabava de despertar de um sono inquieto e eu estivera observando, com sentimentos mistos de ansiedade e vago terror, as contrações de sua fisionomia emagrecida. Sentei-me ao lado de seu leito de ébano, sobre uma das otomanas da India. Ela ergueu-se um pouco e falou num sussurro ansioso e baixo, de sons que ela então ouvia mas que eu não podia perceber. O vento corria com violência por trás das tapeçarias e eu tentei mostrar-lhe (o que, confesso, eu mesmo não podia acreditar inteiramente) que aqueles sopros, quase inarticulados, e aquelas oscilações muito suaves das figuras na parede eram apenas o efeito natural daquela corrente costumeira de vento. Mas uma palidez mortal, espalhando-se em sua face, demonstrou-me que os esforços para reanimá-la seriam infrutíferos. Ela parecia desmaiar, e nenhum criado poderia ouvir se eu chamasse. Lembrei de onde fora guardado um frasco de vinho leve que os médicos haviam receitado e apressei-me em atravessar o quarto para ir buscá-lo. Mas, ao passar por sob a luz do turíbulo, duas circunstâncias de natureza impressionante me atraíram a atenção. Senti que coisa palpável, embora invisível, passara de leve junto de mim, e vi que jazia ali, sobre o tapete dourado, bem no meio do forte clarão lançado pelo turíbulo, uma sombra, uma sombra fraca, indecisa, de aspecto angélico, tal como o que se poderia imaginar ter a sombra de uma sombra. Mas eu estava desvairado pela excitação de uma dose imoderada de ópio e considerei essas coisas como nada, não falando delas a Rowena. Tendo encontrado o vinho, tornei a atravessar o quarto e enchi uma taça, que levei aos lábios da mulher desmaiada. Ela havia então, em parte, recuperado os sentidos, porém, e segurou o copo, enquanto eu me afundava numa otomana próxima, com os olhos presos à sua pessoa. Sucedeu então que percebi distintamente um leve rumor de passos sobre o tapete e perto do leito, e um segundo depois, quando Rowena estava a erguer o vinho aos lábios, vi ou posso ter sonhado que vi, caírem dentro da taça, como vindos de fonte invisível na atmosfera do quarto, três ou quatro grandes gotas de um líquido brilhante, cor de rubi. Se eu o vi, não o viu Rowena. Bebeu o vinho sem hesitar e eu contive-me de falar-lhe de uma circunstância que, julguei, devia, afinal de contas, ter sido apenas a sugestão de uma imaginação viva, tornada morbidamente ativa pelo ópio e pela hora da noite.

Não posso, contudo, ocultar de minha própria percepção que, imediatamente após a queda das gotas de rubi, uma rápida mudança para pior se verificou na enfermidade de minha mulher; assim que, na terceira noite subsequente, as mãos de seus criados a preparavam para o túmulo, e na quarta, eu me sentei só, com seu corpo amortalhado, naquele quarto fantástico que a recebera como minha esposa. Fantásticas visões, geradas pelo ópio, esvoaçavam como sombras à minha frente. Contemplei com olhar inquieto a essa armada nos ângulos do quarto, as figuras oscilantes da tapeçaria e o enroscar-se das chamas multicoloridas do turíbulo, no alto.

Meus olhos então caíram, enquanto eu recordava as circunstâncias de uma noite anterior, sobre o lugar por baixo do clarão do turíbulo, onde eu vira os fracos traços da sombra. Ela, contudo, já não estava mais ali, e, respirando com maior liberdade, voltei a vista para a pálida e rígida figura que jazia no leito. Então precipitaram-se em mim milhares de recordações de Ligéia, e então recaiu-me no coração, com a violência turbulenta de uma torrente, o conjunto daquele indizível sentimento de desgraça com que eu a contemplara, a ela, amortalhada assim. A noite avançava e ainda, com o peito cheio de amargas lembranças dela, a única e supremamente amada, eu continuava a olhar o corpo de Rowena.

Podia ser meia-noite, ou talvez mais cedo ou mais tarde, pois eu não notava o decorrer do tempo, quando um soluço, baixo, suave, mas bem distinto, me sobressaltou do sonho. Senti que ele vinha do leito de ébano, do leito da morta. Prestei ouvidos, numa agonia de terror supersticioso, mas não houve repetição do som. Agucei a vista para apreender qualquer movimento do cadáver, mas perceptivelmente nada havia. Contudo, eu não podia ter sido enganado. Ouvira o ruído, embora fraco, e minha alma despertara dentro de mim. Resoluta e perseverantemente conservei a atenção fixa no corpo. Muitos minutos decorreram antes que qualquer circunstância ocorresse tendente a atirar luz sobre o mistério. Afinal, tornou-se evidente que uma coloração fraca, muito fraca e mal perceptível, corava as faces e se estendia nas pequenas veias deprimidas das pálpebras.

Através de uma espécie de horror e espanto indizíveis, para os quais a linguagem humana não tem expressões suficientemente significativas, senti meu coração deixar de bater e meus membros se enrijeceram, no lugar em que estava sentado.O senso do dever, contudo, agiu para devolver-me o domínio de mim mesmo. Não podia mais duvidar de que havíamos sido precipitados em nossos preparativos, de que Rowena ainda vivia. Era necessário que se fizesse alguma tentativa; entretanto, o torreão estava completamente separado daquela parte da abadia em que residiam os criados, e não havia nenhum que se pudesse chamar; eu não podia ordenar-lhes que me ajudassem sem deixar o quarto por muitos minutos e isso não me podia aventurar a fazer. Lutei, portanto, sozinho, nas tentativas para chamar de volta o espirito que ainda pairava sobre o corpo.

Em curto período tornou-se certo contudo, que uma recaída se verificara; a coloração desapareceu tanto das pálpebras como da face, deixando em seu lugar uma palidez ainda maior do que a do mármore; os lábios tornaram-se duplamente fechados e contorcidos, na espantosa expressão da morte; uma frialdade e uma viscosidade repulsivas espalharam-se rapidamente na superfície do corpo; e sobreveio imediatamente toda a costumeira e rigorosa rigidez. Caí, trêmulo, sobre a poltrona que me erguera tão sobressaltadamente e de novo me entreguei as apaixonadas recordações de Ligéia.

Uma hora assim decorreu, quando (podia ser possível?) , verifiquei, pela segunda vez, que certo som indeciso saía da região do leito. Prestei ouvidos, na extremidade do horror. Repetiu-se o som, era um suspiro. Correndo para o cadáver, vi, vi distintamente um tremor em seus lábios. Um minuto depois, eles se abriram, exibindo uma fileira brilhante de dentes de pérola. A estupefação agora lutava em meu corpo, com o profundo horror que até então dominara sozinho. Senti que minha vista se ensombrava, que minha razão divagava; e foi só com violento esforço que afinal consegui dominar os nervos para entregar-me à tarefa que o dever assim mais uma vez me apontava. Havia agora um brilho parcial na fronte, na face e na garganta; um calor perceptível invadia todo o corpo; havia mesmo um leve bater do coração. A mulher vivia, e com redobrado ardor entreguei-me ao trabalho de reanimá-la. Esfreguei-lhe e banhei-lhe as têmporas e as mãos e usei de todos os esforços que a experiência e não pouca leitura de assuntos médicos puderam sugerir. Mas em vão. De súbito, a cor desapareceu, a pulsação cessou, os lábios retomaram a expressão cadavérica e, um instante depois, todo o corpo se tornou de frialdade de gelo, com a coloração lívida, a rigidez intensa, os contornos cavados e todas as particularidades repulsivas de quem tinha sido, durante muitos dias um habitante do sepulcro.

E imergi de novo nas recordações de Ligéia, e de novo ( será de admirar que eu estremeça ao escrevê-lo?), de novo alcançou meus ouvidos um baixo soluço vindo da região do leito de ébano.Mas por que irei pormenorizar miudamente os indescritíveis horrores daquela noite? Por que me demorarei a relatar como de tempo em tempo, até quase a hora acinzentada do alvorecer, se repetiu esse horrendo drama de revivificação? E como cada terrível recaída só o era numa morte mais profunda e aparentemente mais irremissível? E como cada agonia tinha o aspecto de uma luta com algum adversário invisível? E como a cada luta se sucedia não sei que estranha mudança na aparência pessoal do cadáver? Permiti que apresse a conclusão.

A maior parte da noite terrível se fora e aquela que morrera, ,de novo, outra vez, se movera, e agora mais vigorosamente do que até então, embora erguendo-se de um aniquilamento mais apavorante, em seu extremo desamparo, do que qualquer outro. Eu já muito cessara de lutar, ou de mover-me, e permanecia rigidamente sentado na otomana, presa inerme de um turbilhão de emoções violentas, das quais o pavor extremo era talvez a menos terrível, a menos consumidora. O cadáver, repito, moveu-se, e agora mais violentamente do que antes. As cores da vida irromperam, com indomável energia, no seu rosto, os membros se relaxaram e, a não ser porque as pálpebras ainda se mantivessem estreitamente cerradas e porque os panejamentos e faixas tumulares ainda impusessem seu caráter sepulcral ao rosto, eu poderia ter sonhado que Rowena na verdade, repelira completamente as cadeias da Morte.

Mas se essa idéia não foi, mesmo então, inteiramente adotada, eu não pude pelo menos duvidar mais quando, erguendo-se do leito, vacilando , com passos trôpegos, com os olhos fechados e com as maneiras de alguém perdido num sonho, a coisa amortalhada avançou ousada e perceptivelmente, para o meio do aposento. Não tremi…não me movi.. . pois uma multidão de inenarráveis fantasias, ligadas com o aspecto, a estatura, a maneira do vulto precipitando-se atropeladamente em meu cérebro, me paralisaram, me enregelaram em pedra. Não me movi, mas contemplei a aparição. Havia uma louca desordem em meus pensamentos, um tumulto não apaziguável. Podia, na verdade, ser Rowena viva que me enfrentava? Podia, de fato, ser verdadeiramente Rowena, a loura, a dos olhos azuis, Lady Rowena Trevanion de Tremaine? Por que, por que duvidaria disso? A faixa rodeava apertadamente a boca; mas então não podia ser a boca respirante de Lady de Tremaine? E as faces, onde havia rosas, como no esplendor de sua vida, sim, bem podiam ser elas as belas faces da viva Lady de Tremaine. E o queixo, com suas covinhas, como antes da doença, não podia ser o dela? Mas, então, ela crescera desde a doença?

Quase inexprimível loucura me dominou com este pensamento? Um salto e fiquei a seu lado! Estremecendo ao meu contato, deixou cair a cabeça, desprendidos, os fúnebres enfaixamentos que a circundavam, e dali se espalharam, na atmosfera agitada pelo vento do quarto, compactas massas de longos e revoltos cabelos: e eram mais negros do que as asas de corvo da meia-noite! E então se abriram vagarosamente os olhos do vulto que estava à minha frente. Aqui estão, afinal – chamei em voz alta -, nunca poderei enganar-me … Estes são os olhos grandes, negros e estranhos de meu perdido amor…de Lady. . . de “Lady Ligéia!”

Fontes:
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias.
Imagem =
http://scarstuff.blogspot.com

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Palavras e Expressões mais Usuais do Latim e de outras línguas) Letra F

Facio ut des
Latim ;Direito = Faço para que dês. Norma de contrato bilateral.

Facio ut facias
Latim; Direito = Faço para que faças. Contrato em que o pagamento de um serviço é pago com a prestação de outro serviço.

Facit indignatio versum
Latim = A indignação faz o verso. Segundo Juvenal, a ira serve, às vezes, para inspirar os poetas.

Factum principis
Latim =Fato do príncipe. Direito = Em direito trabalhista, cessação do trabalho por imposição da autoridade pública, sem culpa do empregador, ficando o governo responsável pela indenização devida ao empregado (CLT, art. 486).

Fair play
Inglês = Jogo correto. Lealdade no modo de agir.

Fama volat
Latim = A fama voa; a notícia se espalha rapidamente. (Virgílio, Eneida III, 121).

Fatta legge, pensata la malizia
Italiano = Feita a lei, pensada a malícia. Muitos burlam a lei interpretando a seu modo a intenção do legislador.

Fatuus fatuum invenit
Latim = Um tolo encontra outro tolo.

Favete linguis
Latim = Favorecei com as línguas. Calai-vos. Expressão usada nos espetáculos e reuniões.

Feci quod potui, faciant meliora potentes
Latim = Fiz o que pude, façam melhor os que puderem.

Felix culpa
Latim = Feliz culpa. Expressão de Santo Agostinho referindo-se ao pecado de Adão, que nos mereceu tão grande redentor.

Felix qui potuit rerum cognoscere causas
Latim = Feliz o que pode conhecer as causas das coisas. Elogio de Virgílio àqueles que pesquisam os fenômenos da natureza.

Fervet opus
Latim = Ferve o trabalho. Expressão virgiliana para descrever a atividade das abelhas no cortiço.

Festina lente
Latim = Apressa-te devagar. Frase atribuída a Augusto, que quer dizer que o trabalho executado devagar é melhor do que quando feito apressadamente.

Fête galante
Francês = Festa galante. Pintura de cenas de reuniões ao ar livre que teve origem na França, no século XVII.

Fiat lux
Latim = Faça-se a luz. Palavras pelas quais, segundo o Gênesis, 1, 3, Deus criou a luz.

Fiat voluntas tua
Latim = Seja feita a tua vontade. Palavras duas vezes pronunciadas por Cristo, quando ensinou aos apóstolos a oração dominical (Mt. VI, 10) e quando no Jardim das Oliveiras (Mt. XXVI, 42). São usadas para demonstrar submissão em coisas que repugnam ou contrariam.

Fin de siècle
Francês = Fim de século. Designa coisa ou acontecimento tão raro que não se repete no mesmo século.

Finis coronat opus
Latim = O fim coroa a obra. A obra está completa, de acordo com o seu planejamento.

Firmum in vita nihil
Latim = Nada (é) firme na vida. Tudo é inconstante, transitório.

Five o’clock tea
Inglês = Chá das cinco horas. Tradicional costume inglês de tomar leve refeição às cinco horas, na qual é sempre servido o chá.

Flagrante delicto
Latim; Direito = Ao consumar o delito. Diz-se do momento exato em que o indivíduo é surpreendido a perpetrar o ato criminoso, ou enquanto foge, após interrompê-lo ou consumá-lo, perseguido pelo clamor público.

Fluctuat nec mergitur
Latim = Flutua, não se submerge. Divisa da cidade de Paris, que tem um navio como emblema.

Foenum habet in cornu
Latim = Tem feno no chifre. Refere-se Horácio aos críticos que investem como bois contra os literatos mas não lhes causam dano, pois suas armas estão inutilizadas como as dos bois bravos cujos cornos eram cobertos com feno.

Fontes aquarum
Latim = As fontes das águas. Expressão bíblica. Empregada contra os maus poetas que se servem do dicionário de rimas.

Foreign Office
Inglês = Designa o Ministério das Relações Exteriores, da Inglaterra.

For ever!
Inglês = Para sempre! Locução muito usada nas campanhas eleitorais da Inglaterra e Estados Unidos.

Forget-me not
Inglês = Não te esqueças de mim. Nome dado pelos ingleses ao miosótis.

Forsan et haec olim meminisse juvabit
Latim = Talvez algum dia nos seja agradável recordar estas coisas. Enéias procura confortar os companheiros de infortúnio (Eneida, 1, 203).

Four in hand
Inglês = Quatro em mãos. Parelha de quatro cavalos. Fig Abastança, vida luxuosa.

F. S. et S.
Latim = Fez para si e para os seus. Inscrição que se encontra em muitos monumentos da Antiguidade que eram de uso particular.

Fuero juzgo
Espanhol = Compilação da lei visigótica, primeiro código espanhol, que vigorou em Portugal até 1446.

Fugit irreparabile tempus
Latim = Foge o tempo irreparável. Virgílio lembra-nos que o tempo passa rapidamente e que não devemos desperdiçá-lo.

Full time
Inglês = Tempo integral. Trabalho nos dois períodos.

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br

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João Cirino Gomes (O Despertar do Paraíso)

Os primeiros raios de sol despontavam no horizonte opaco.

Um homem ainda jovem, mas com aparência de ancião, sentou-se na areia, onde costumava brincar na infância. Cruzou as mãos sobre os joelhos, e pensativo, lembrou-se saudoso da época em que aquelas praias eram tumultuadas, e ele, em meio a outras crianças, ali se divertia pulando as ondas… Fechou os olhos, e regrediu no tempo; memorizou seus gritos, e suas inocentes gargalhadas. Quando voltou a abri-los, uma dor imensa invadiu seu peito e as lágrimas escorreram por sua face enrugada. Seu mundo de sonhos e fantasias havia desmoronado.

Enquanto olhava com os olhos embaçados pelas lágrimas, para as ondas poluídas, que vinham de encontro aos seus pés, apertou o calcanhar na terra, e imaginou a insignificância do ser humano, perante a grandeza do universo.

Pensou na ganância e no progresso desordenado, que haviam afastado os homens das suas origens. Agora, as pragas e as doenças atingiam a todos: e em tenra idade, à morte os nivelava. Dos dias de glorias, restavam somente às lembranças.

As intempéries do tempo haviam fugido da compreensão do ser humano, e estava o destruindo. Não existia mais vegetação; o solo seco se rachava e os animais agonizavam. As cadeias continuavam superlotadas, e o índice de criminalidade crescia. Quando a chuva caia, sua acidez corroia; exterminando o que não havia sido destruído pela seca. Um imenso deserto se formava na superfície terrestre.

Amargurado o homem tentou respirar, mas se conteve, não conseguiu absolver o odor nauseabundo, exalado pelo oceano poluído. Maquinalmente levou uma mascara de oxigênio ao rosto… Respirou com sofreguidão,… e entre lágrimas, murmurou chorando: – Paraíso encantado…

Era assim que seus ancestrais.
Referiam-se àquelas praias.
Há alguns tempos atrás.

Mas, ao tempo que passava.
Não tiveram tempo de se queixar.
Pois o tempo indiferente.
Passou apressado a voar…

Fontes:
http://www.grandesautores.com.br
Imagem = David Monsores. http://cadernoalternativo.blogspot.com

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Geraldo Júnior (O Tesouro do Céu)

No que você se dispõe comigo?!
Contando as vidas, na trilha da existência
A ciência dos céus
Os horizontes da vã espiritualidade.

Menina encantada no firmamento!
O que posso eu fazer pra que tu me sejas um pedido
E que se realize, sem que precises também deixar de ser sonho
Eu sempre contei estrelas, mundos e anos-luz de possibilidade
E nunca temi que eu meus dedos nascessem verdades

Teu mapa astral me levou a essa paixão infinda
Dos confins do hemisfério sul, observo o cosmo!
Meu sertão lendário de poesias cadentes.

Um sumério a desbravar desejos sem limites
Um caririense a tragar mistérios, acredite!
Prevejo o futuro decifrando nossos mundos
Em canções que nos brotam do âmago mais profundo

Os que somos, o que fomos
O que desenharemos nas nuvens e além?
Nas constelações?!
O que faremos pra nunca deixarmos de ser elementais?!
Na falta de gravidade, uma gravidez imprevista
Os olhos me saltando a vista
A dádiva mais sutil do universo
A rima mais pueril dos meus versos

Foi o que aprendi em tantos planos vencidos
Evoluindo em danças circulares ethereas
Minha alma que sempre foi tão séria
Hoje sorri cantando em lágrimas
Uma velha canção à capela

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Edgar Allan Poe (O Gato Preto)

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror – mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum – uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento. Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua. Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento – enrubesço ao confessá-lo – sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência.

Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool? – e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor. Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade. Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados já os vapores de minha orgia noturna – , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera. Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor.

Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado – um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de “fogo!”. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero. Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras “estranho!”, “singular!”, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal. Logo que vi tal aparição – pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa – , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio.

O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via. Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo. Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão.

Era um gato preto, enorme – tão grande quanto Pluto – e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo – e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito. Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes. Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse – detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por quê – seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente.

Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos – muito gradativamente – , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste. Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros. No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo – apresso-me a confessá-lo – , pelo pavor extremo que o animal me despertava. Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso – , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar.

Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível – que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte! Na verdade, naquele momento eu era um miserável – um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído… Uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso – encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim – pousado eternamente sobre o meu coração! Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom.

Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros – os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade – e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas. Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo.

Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido. Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas. Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer.

Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede.

Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão”. O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite – e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma. Transcorreram o segundo e o terceiro dia – e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre.

O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura. No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência. – Senhores – disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada – , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída… (Quase não sabia o que dizia, em meu insuportável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes – os senhores já se vão? – , estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração. Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação. Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

Fontes:
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. SP: Nova Cultural, 1993. p.39.

Foto por José Feldman

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Luis Fernando Verissimo (Papos)

– Me disseram…

– Disseram-me.

– Hein?

– O correto é “disseram-me”. Não “me disseram”.

– Eu falo como quero. E te digo mais… Ou é “digo-te”?

– O quê?

– Digo-te que você…

– O “te” e o “você” não combinam.

– Lhe digo?

– Também não. O que você ia me dizer?

– Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou te partir a cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?

– Partir-te a cara.

– Pois é. Parti-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.

– É para o seu bem.

– Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender. Mais uma correção e eu…

– O quê?

– O mato.

– Que mato?

– Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?

– Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo e elitismo!

– Se você prefere falar errado…

– Falo como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou entenderem-me?

– No caso… não sei.

– Ah, não sabe? Não o sabes? Sabes-lo não?

– Esquece.

– Não. Como “esquece”? Você prefere falar errado? E o certo é “esquece” ou “esqueça”? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos.

– Depende.

– Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não sabes-o.

– Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.

– Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso mais dizer-lo-te o que dizer-te-ia.

– Por que?

– Porque, com todo este papo, esqueci-lo.

Fonte:
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p.65.

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Edgar Allan Poe (Poema: Balada Nupcial)

Aliança coloco na mão , de grinaldas a fronte ornamento;
tenho jóias, cetins, em montão. Ah! sou feliz neste momento.
Dá-me amor, afeição verdadeira, meu senhor; mas fiquei sem alento
ão ouvir-lhe a promessa primeira, pois sua voz tinha um som de lamento,
semelhante ao da voz derradeira
de alguém, morto ao lutar na trincheira, que é bem feliz neste momento.
Porém ele acalmou-me, com um lento beijo, que na fronte alva senti.
E, num sonho, nas asas do vento, para o campo dos mortos parti. Suspirei, a
pensar que ele, ali, fosse o meu morto amor, D’Elormie:
“Oh! sou feliz neste momento!”
E a palavra assim foi proferida e trocamos assim juramento.
Ah! que importa se fui fementida, se traí, se tenho a alma ferida? Este anel provará,
a quem duvida,
que sou feliz neste momento.
Tivesse eu, ó meu Deus, despertado! Porque sonho, e a sonhar me atormento,
sem que o espírito saiba, agitado se houve um erro e se, por ter errado, esse
morto, esse morto olvidado
será feliz neste momento.
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Obs: Fementida = traída

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Machado de Assis (Três tesouros perdidos)

Uma tarde, eram quatro horas, o Sr. X… voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolet que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e… dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.

Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:

— Senhor, eu sou F…, marido da senhora Dona E…

— Estimo muito conhecê-lo, responde o Sr. X…; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E…

— Não a conhece! Não a conhece! … quer juntar a zombaria à infâmia?

— Senhor!…

E o Sr. X… deu um passo para ele.

— Alto lá!

O Sr. F… , tirando do bolso uma pistola, continuou:

— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!

— Mas, senhor, disse o Sr. X., a quem a eloqüência do Sr. F… tinha produzido um certo efeito: que motivo tem o senhor…

— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?

— A corte à sua mulher! não compreendo!

— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira.

— Creio que se engana…

— Enganar-me! É boa! … mas eu o vi… sair duas vezes de minha casa…

— Sua casa!

— No Andaraí… por uma porta secreta… Vamos! ou…

— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo…

— Não; não; é o senhor mesmo… como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer… Escolha!

Era um dilema. O Sr. X… compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.

Surgiu, porém, uma objeção.

— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos…

— Os seus recursos! Ah! tudo previ… descanse… eu sou um marido previdente.

E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:

— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai?

— Para Minas.

— Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento… Perdôo-lhe, mas não volte a esta corte… Boa viagem!

Dizendo isto, o Sr. F… desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolet, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

O Sr. X… ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranqüilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o Sr. F. para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.

Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:

— “ Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P… Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E…”.

Desesperado, fora de si, o Sr. F… lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às 8 horas.

— Era P… que eu acreditava meu amigo… Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolet e dirigiu-se à casa do Sr. X…, subiu; apareceu o moleque.

— Teu senhor?

— Partiu para Minas.

O Sr. F… desmaiou.

Quando deu acordo de si estava louco… louco varrido!

Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:

— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas… que bem podiam aquecer-me as algibeiras!…

Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.
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Fontes:
Páginas Recolhidas de Machado de Assis,
Publicado originalmente em A Marmota, 1858.
Imagem = http://www.vestibatotal.kit.net

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Napoleão Valadares (Tico Tico Preto)

Cinco da manhã. Pedro saía para o trabalho e, ao abrir a porta, um embrulho no chão. Criança recém nascida, enrolada nuns panos. Agora essa! As mães deixando as crias em portas alheias. Na hora de fazer, todo mundo está pronto. Vão parindo e abandonando os inocentes.

Com aquela filharada, vinha lhe agora mais uma boca para comer. Do jeito que a vida andava difícil… Por que não deixavam na porta de um rico? Ali perto morava Dr. Santana, advogado, cheio da grana, folgado. Dr. Santana nem precisava se levantar a uma hora daquelas, só saindo para o escritório mais tarde. Ele, Pedro, é que tinha de pular da cama com o escuro, correr uma água na cara e se mandar para a obra.

Se chamasse Madalena, ela ia querer ficar com a criança. Não chamaria. Ia era levar aquele embrulho e entregar ao juiz. Ele que arranjasse um jeito de resolver o problema. Mas àquela hora não ia encontrar juiz nenhum. O juiz, como Dr. Santana, só se levantaria mais tarde.

Pegou aquilo com cuidado, atravessou a rua, amaciou o passo, puxou o trinco do portãozinho e colocou na porta de Dr. Santana. Um aperto no coração e uma vontade de retomar a criança e levá la para casa. Mas teve medo de ser visto ali na porta alheia. Fazendo o quê? E saiu apressado, segurando se para não correr.

Na obra, os pensamentos. Se puseram em sua porta, tinha que tomar conta. Teria agido certo, recusando se a dar abrigo à criança, colocando a na porta de outro, negando a caridade?

– Seu Pedro, a massa tá pronta. O senhor hoje tá pensativo… – despertou-o Manuel, o servente.

– É… Não. Pensando é mesmo nisso aqui. Essa obra…

Que obra que nada! Teve que empurrar a criança para outra porta, negando a caridade. Tinha ouvido Frei Plequelmo dizer num sermão que o sujeito pode ser tudo neste mundo, mas se for caridoso, vai para o céu. Parece que era o caso de Dimas, que pintou o sete e depois ainda ganhou o reino de Deus.

– Seu Pedro, o senhor não disse que ia começar o reboco lá pela frente? Tá no mundo da lua hoje…

– Sim, Manuel, é pela frente. Distração minha.

Não podia criar mais ninguém. Bastavam lhe os seus. A vida custando o olho da cara. Chegava de despesas. Mais uma criança em casa significaria repartir o que os filhos comiam.

Em casa, Madalena já tinha a novidade. Veio toda repórter com as canjicas de fora:

– Pedro, não te conto a maior: deixaram um nenenzinho essa noite na porta de Dr. Santana. Uma gracinha! D. Terezinha mais Dr. Santana tão encantados com ele. Só vendo…

– É homem?

– É. Você já sabia?

– De quê?

– Do nenem, uai.

– Eu? Eu não. Por quê?

– Está perguntando se é homem, como se já soubesse…

– Não. Sabendo agora.

Dr. Santana, mais que depressa, deu ao menino o nome de Otávio, em homenagem ao civil dos Dezoito do Forte. Otávio, crioulinho bem nutrido em casa de branco, novo encanto de D. Terezinha, que já tinha os filhos grandes.

Na porta de outro. Sujeito fraco não pode se meter a caridoso. Fazer caridade para sacrificar os seus? Tinha agido certo. Dr. Santana era rico. Ele que criasse.

Acabava de largar o prato, quando o telefone tocou.

– Alô. É Pedro que está falando?

– Ele mesmo.

– Pedro, aqui é a Valquíria.

Gelou se. Valquíria, um caso antigo e complicado. Depois de umas brigas, ela sumiu. Fazia meses. Agora vinha telefonar para casa, o que nunca tinha feito.

– Alô…

– Alô, Pedro. Valquíria. Estou telefonando para avisar. Olha, não quero criar problema pra você não. Escuta. Só pra avisar que deixei nosso filho em sua porta essa noite. Toma conta. Você sabe, eu não posso criar. E, pra deixar numa porta, achei melhor deixar na sua, que é pai. Pode ficar tranqüilo, que não vou complicar sua vida não. Estou me mandando pro Paraná. Fica com Deus e olha ele.

Na porta de outro. Tinha botado o menino lá, sem saber que era seu filho. Se soubesse, não botaria. Co¬mo não sabia, estava certo. Estava? A situação pra lá de feia, com essa carestia dos diabos. Dificuldades e dificuldades. E uma criança dá despesa que não é brinquedo.

Lembrava se do tempo de menino, quando caçava ninhos. Por vezes, achava filhote de pássaro preto em ninho de tico tico. A fêmea preta botando em ninho alheio. O velho Procópio ensinava: “É, menino, a passa-preta é uma sem vergonha, e a tica tica é uma besta que cria o pretinho.” Sem vergonheza… A natureza não sabe tudo? Não seria porque a comida fica mais escassa para o pássaro preto? Pobre criado em casa de rico pode estar apartado da idéia de fome. Otávio crescia gordo. Um pássaro preto em ninho de tico tico. Tico-tico preto. Deus o abençoasse.

Fontes:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/
Imagem =
http://flickr.com

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Napoleão Valadares e a Formação Poética em Delírio Lírico

Vencedor do Concurso de Contos Cyro dos Anjos, promovido pela Academia Montesclarense de Letras, autor de muitos livros, Napoleão Valadares, urucuiano da Barra da Vaca, hoje próspera cidade de Arinos (MG), cenário de um conto de Guimarães Rosa

Nestes tempos de pós-modernidade, de poesia neobarroca, de poema verbivocovisual e outras designações que têm norteado certa poesia praticada entre nós, o surgimento de um livro de poesia que explora a linguagem dos signos e dos símbolos, concomitantemente palatáveis à compreensão geral, é motivo suficiente para a manifestação de uma resenha ou de um artigo em letra de imprensa.

Vamos, pois, ao livro. Trata-se de Delírio Lírico, poema longo, em trinta e quatro cantos, de Napoleão Valadares, editado por Edições Galo Branco, Rio de Janeiro, 2008, e lançado em Brasília em novembro desse ano. O poema é todo construído em decassílabos brancos, sem estrofes, cujos cantos têm 49 versos cada um, exceto os de números V, VI e VII que se estendem a 80, num total de 1.759 versos. O assunto é tratado em ordem cronológica e abrange mais de 30 séculos de história, que se inicia com a Guerra de Tróia (séc. XIII a.C.), passando por Sócrates, Platão, Aristóteles, até chegar praticamente aos nossos dias.

Napoleão Valadares, na sua construção poética, optou pela narrativa épica em que, com mestria e bom humor, funde a linguagem nobre, clássica, à linguagem popular, atual, numa tirada muito interessante e jamais vista em nenhum poeta brasileiro de qualquer escola. Mas o que salta aos olhos e aos sentidos é a correção gramatical, o domínio da língua, a clareza de expressão, a concisão. Além, é claro, do senso de humor nas “pilhérias” e “invenções” que o Autor derrama pelo texto afora. Sirva-se de exemplo o Canto XXVI, em que o narrador, em diálogo com Camões, ouve do mestre de Os Lusíadas a seguinte confissão: “Amor é fogo”, numa clara alusão ao célebre soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, do bardo português.

Por força da circunstância de leitura, há que se fazer agora uma referência enfática: ao longo do poema são praticados os mais variados tipos de verso decassilábico, que vão dos mais comuns (heróico e sáfico) aos de maior raridade. Por exemplo: a gaita galega (também chamada moinheira), decassílabo que apresenta sílabas tônicas nas posições 4, 7 e 10; e o que Anderson Braga Horta chama de “decassílabo átono”, aquele cuja décima sílaba abre mão da tônica para criar um novo tipo de enjambement — o que desafia a linguagem poética em benefício da fluência rítmica da prosa. Deve-se acrescentar que, de rara apresentação nos poemas latinos, esse tipo de verso aparece, no entanto, algumas vezes em letras de música. (Quem ama a poesia e conhece um pouco os seus mistérios, sabe que a figura da métrica no poema não é, como na música, uma regência implacável sobre o ritmo. Mas sabe, sobretudo, que é o ritmo que dá beleza à música, bem como ao poema. Fora disso, a poesia escrita sob os parâmetros do que foi mencionado no primeiro parágrafo deste texto corre sério risco: pode cair no vazio absoluto ou no descrédito normativo da língua. E aqui cabe um provérbio chinês: “O tolo corre onde o sábio não andaria.”)

A temática simples, porém inusitada de Napoleão Valadares, exposta por intermédio de um personagem delirante, vítima de febre intermitente, abrange o conhecimento universal da política, da filosofia, da cultura, das artes; enfim, da história da humanidade, em seus mais variados arcabouços lingüísticos e semânticos. E apresenta — et pour cause — um conhecimento profundo das coisas e das mazelas do mundo. A exemplo de Machado de Assis e Francisco Carvalho — para citar somente dois escritores que nunca saíram de sua terra natal e conhecem cada canto do mundo, cada rua e cada pedra de muitas cidades, sem ter viajado para nenhuma delas —, Napoleão Valadares vai descrevendo vilas, urbes, países, continentes inteiros, só pela leitura sistemática e pelo estudo regular. Seu texto é uma vitória sobre o turismo funcional e dirigido…

Outro registro que vale a pena ser consignado é com relação à simetria de alguns grupos de versos encontrados em três cantos do poema. A saber: no Canto XXV, que trata do Descobrimento da América, há, além da simetria, um reducionismo consciente do verso “Colombo olhando o azul” para, dez versos abaixo, “Olhando o azul” e, nos dez seguintes, simplesmente “O azul”. No Canto XXVIII — sobre Shakespeare — ocorre semelhante simetria do número oito entre os versos “Hamlet, o Príncipe da Dinamarca”, “Depois, Otelo, o Mouro de Veneza” e “rapazes muito diferentes delas”. Finalmente, no Canto XXXII — num encontro com Dostoievski e Tolstoi — pode ser facilmente encontrada a relação com o número sete entre os versos “porque o primeiro, condenado à morte”, “O outro, mundana mocidade, estróina” e, finalmente, “os meandros da alma humana conhecia”. Mas esta numerologia deverá ser tratada em outro estudo.

Napoleão Valadares, com este livro, apresenta um poema novo e singular, mas não pretende inventar ou reinventar estilo nem fundar escola. Quer tão-somente fazer partícipe o leitor dos delírios da febre, nesta grande viagem pelo mundo e pela história da humanidade, empreitada que realiza, com percuciente habilidade, por intermédio de uma linguagem poética fluente e agradável.

Ler “Delírio Lírico” é uma forma recreativa de reestudar a história. Descrevendo poeticamente um delírio de febre ele conclui, no Conto I: E foi nesse delírio que saltei / do Vale para o Mar Egeu. Desci / à praia, caminhei e fui a Tróia, / no extremo noroeste da Anatólia. / Trinta e três séculos já passados, / e eu, tonto, ali na capital de Príamo, / via o cerco dos gregos, via Ulisses / com mil astúcias, via Agamenon / raptando a escrava do guerreiro Aquiles, / como se não bastasse a justa cólera / de Menelau, que fez se unirem todos / os príncipes da Grécia belicosa.

Bem mais adiante, ele percorre as margens do rio Tigre: Vi-me no Tigre, num lugar bem antes / da sua confluência com o Eufrates, / e fui descendo. Inesperadamente, / topei de testa com o grande rei / Alexandre, de Pela, aquele moço / da Macedônia, filho de Felipe, / que tinha sido aluno de Aristóteles, / interessando-se pela política, / filosofia, medicina e tudo / o que viesse do mestre de Estagira.

Delírio Lírico é leitura obrigatória para todos aqueles que amam a tradição e aceitam o novo, pois essa dicotomia geralmente possibilita maior compreensão e fruição da Arte, seja ela musical, pictórica ou literária.
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Fontes:
João Carlos Taveira. http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/
Petrônio Braz. http://www.gazetanortemineira.com.br/

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Napoleão Valadares (1946)

NAPOLEÃO VALADARES, filho de João Valadares Carneiro e de Maria Cordeiro Valadares, nasceu em Arinos (MG), a 6 de fevereiro de 1946. Depois de freqüentar escolas rurais, estudou no Grupo Escolar Major Saint-Clair, em sua cidade natal. Mudou-se com a família para Formosa (GO), no início de 1958, completando o curso primário na Escola Paroquial Nossa Senhora da Conceição, que funcionava no Ginásio Arquidiocesano do Planalto. De 1962 a 1965, fez o curso ginasial no Ginásio São João, da cidade são-franciscana de Januária (MG). Concluído o curso ginasial, partiu para Brasília, cursando o científico no Centro de Ensino Médio Elefante Branco. Ingressou na UnB (Universidade de Brasília), onde fez o curso de Direito, colando grau em 20 de dezembro de 1972.

Ainda quando universitário, fundou, com alguns colegas, o periódico “Correio do Vale”, que circulou nas cidades de Arinos e Buritis, de maio de 1971 a dezembro de 1972. Um dos fundadores e presidente da Associação dos Urucuianos em Brasília, que fez editar o “Jornal do Urucuia”, de junho de 1984 a abril de 1986. Presidiu também a Associação Nacional de Escritores.

Exerceu os cargos de Assistente Jurídico da União, Diretor de Secretaria da Justiça Federal, Assessor de Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e Advogado da União.

Pertence à Associação Nacional de Escritores, ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, à Academia de Letras do Brasil, à Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco.

Participa da Antologia de Contos Alberto Renart, 1994; Cronistas de Brasília, 1995; De Mãos Dadas, 1995; O Prazer da Leitura, 1997; Poesia de Brasília, 1998; Poetas Mineiros em Brasília, 2002; Antologia Literária – Aclécia, 2003; Antologia do Conto Brasiliense, 2004; Chuva de Poesias, Cores e Notas, 2005; Todas as Gerações, 2006.

Autor dos livros: Os Personagens de Grande Sertão: Veredas, 1982; Planalto em Poesia (organização e participação), 1987; Contos Correntes (organização e participação), 1988; Urucuia (romance), 1990; Dicionário de Escritores de Brasília, 1994; Resposta às Cartas Chilenas, 1998; De Gregório a Drummond (organização), 1999; Remanso (romance), 2000; Pensamentos da Literatura Brasileira, 2002; Chuvisco, 2003; Antologia de Haicais Brasileiros (organização e participação), 2003; Descendentes de Pedro Cordeiro, 2004; Campos Gerais, 2004; Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal – Patronos (organização e participação), 2007; Passagens da Minha Aldeia (crônicas), 2007; Delírio Lírico (poema), 2008.

Premiado no Concurso Petrobrás de Literatura, no Concurso de Contos Cidade de Cataguases, no Concurso de Contos Cyro dos Anjos (Academia Montesclarense de Letras), entre outros.

Fonte:
Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco.
http://www.aclecia.art.br/

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Célia Dias (Nas Trilhas do Sol)

Nas trilhas do sol
Rebusco as canções
Presentes do tempo
Que brotam na gente
E se espalham no vento…

Nas trilhas do tempo
Rebusco as pessoas
Presentes do sol
Que brilham na gente
Em qualquer estação…

Nas trilhas do sol e do tempo
Rebusco outros elos
Entre o céu e o momento de um lugar…
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Edgar Allan Poe (Coração Denunciador)

É verdade tenho sido nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente posso contar toda a história.

É impossível dizer como a idéia me penetrou primeiro no cérebro, uma vez concebida, porém, ela perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos parecia com o de um abutre… um olho de cor azul pálida, que sofria de catarata . Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre mim; e assim, pouco a pouco, bem lentamente , fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre.

Ora, aí é que estava o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveríeis ter visto como procedi cautelosamente, com que prudência, com que previsão, com que dissimulação, lancei mão à obra!

Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira, antes de matá-lo. todas as noites, por volta da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria-a… oh! Bem devagarinho! E depois, quando a abertura era suficientemente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabeça. Oh! Teríeis rido ao ver como enfiava habilmente! Movia-a lentamente, muito, muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até podê-lo ver deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente… oh! Bem cautelosamente!… cautelosamente… por que a dobradiça rangia… abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse no olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites… sempre precisamente à meia-noite… e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas seu olho diabólico. E todas as manhãs, sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz para suspeitar que todas as noites, justamente às doze horas, eu o espreitava, enquanto dormia.

Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de hábito, ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com meus atos ou pensamentos secretos… Ri com gosto, entre dentes, e essa idéia; e talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensava talvez que recuei? Não! O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechado, por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta; continuei a avançar, cada vez mais, cada vez mais.

Já estava com a cabeça dentro do quarto e a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho da porta e o velho saltou na cama gritando: “Quem está aí?”

Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira não movi um músculo e, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo: ele ainda estava sentado na cama, à escura; justamente com eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.

Depois, ouvi um leve gemido e notei que era um gemido de terror mortal. Não era um gemido de dor ou pesar, oh não! Era o som grave e sufocado. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar a meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia de meu próprio peito, aguçando, com o seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci também o eu o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse o riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado, desde o primeiro leve rumor, quando se voltar na cama. Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo mas não fora possível. Dissera a si mesmo; “É só o vento na chaminé”, ou “é só um rato andando pelo chão”, ou “foi apenas um grilo que cantou um instante só”: sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a Morte, ao aproximar-se dele, projetava sua sombra negra para frente, envolvendo nela a vítima. E era a influência tétrica dessa sombra não percebia que o levava a sentir – embora não visse, nem ouvisse – a sentir a presença de minha cabeça dentro do quarto.

Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco, a tampa da lanterna. Abri-a, podeis imaginar o quão furtivamente; até que, por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.

Ele estava aberto; todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo, minha fúria cresceu. Vi-o, com perfeita clareza; todo de um azul desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, ou do corpo do velho, pois dirigira a luz como por instinto, sobre o maldito lugar.

Ora, não vos disse que apenas é superacuidade dos sentidos aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos em som baixo, monótono, rápido, como o de um relógio, quando abafado com algodão. Igualmente eu bem sabia que som era. Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria, como o bater um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tam-tam do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido! Cada vez mais alto, repito, a cada momento! Prestai-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso: sou. E então, àquela hora morta da noite, tão estranho ruído excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angústia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele guinchou mais uma vez… uma vez só. Num instante arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som surdo. Isto, porém, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era um pedra, uma pedra morta. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olho não me perturbaria.

Se ainda pensais que sou louco, não mais pensareis, quando eu descrever as sábias precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente, porém em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei depois três pranchas do soalho e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tábuas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o dele, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar, nem mancha de espécie alguma, nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo… ah! Ah! Ah! Terminadas todas essas tarefas, eram quatro horas. Mas ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram a porta da rua. Desci para abri-la, de coração ligeiro,… pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens que se apresentaram , com perfeita mansidão, com soldados de polícia. Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denúncia à polícia e eles, soldados , tinham sido mandados para investigar.

Sorri… pois que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi que dessem busca… completa. Conduzi-os, afinal, ao quarto dele. Mostrei-lhe suas riquezas, em segurança inatas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia do meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira , precisamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da vítima.

Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversavam coisas familiares. Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça me doía e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto: eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação: ela, porém, continuava a aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro dos meus ouvidos.

É claro que então minha palidez aumentou sobreposse. Mas eu falava ainda mais fluentemente e num tom de voz muito elevada. Não obstante, o som se avolumava… E que podia fazer? Era um som grave, monótono, rápido… muito semelhante ao de um relógio envolto em algodão. Respirava com dificuldade… E no entanto, os soldados não o ouviram. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado, e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Por que não se iam embora? Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até a fúria pela vigilância dos homens… mas o som aumentava constante. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei… enraiveci-me… praguejei! Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se então mais alto… mais alto… mais alto! E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!… não, não! Eles suspeitavam!.. Eles sabiam!… Estavam zombando do meu horror!… Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer, porém, era melhor que essa agonia! Qualquer coisa era mais tolerável que essa irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer!… E agora… de novo! Escutai! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto…

Visões! – trovejei – Não finjam mais! Confesso o crime!… Arranquem as pranchas!.. aqui, aqui! … ouçam o bater do seu horrendo coração!

Fonte:
POE, Edgar Allan. Contos de Mistério e terror.

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Machado de Assis (Crônica: O jornal e o livro)

AO SR. MANUEL ANTONIO DE ALMEIDA

O espírito humano, como o heliotrópio, olha sempre de face um sol que o atrai, e para o qual ele caminha sem cessar: — é a perfectibilidade.

A evidência deste princípio, ou antes deste fato, foi claramente demonstrada num livro de ouro, que tornou-se o Evangelho de uma religião. Serei eu, derradeiro dos levitas da nova arca, que me aba­lance a falar sobre tão debatido e profundo assunto?

Seria loucura tentá-lo. De resto, eu manifestei a minha profissão de fé nuns versos singelos, mas não frios de entusiasmo, nascidos de uma discussão. Mas então tratava-se do progresso na sua expres­são genérica. Desta vez limito-me a traçar algumas idéias sobre uma especialidade, um sintoma do adiantamento moral da humanidade.

Sou dos menos inteligentes adeptos da nova crença, mas tenho consciência que dos de mais profunda convicção. Sou filho deste século, em cujas veias ferve o licor da esperança. Minhas tendências, minhas aspirações, são as aspirações e as tendências da mocidade; e a mocidade é o fogo, a confiança, o futuro, o progresso. A nós, guebros modernos do fogo intelectual, na expressão de Lamartine, não importa este ou aquele brado de descrença e desânimo: as sedi­ções só se realizam contra os princípios, nunca contra as variedades.

Não há contradizê-lo. Por qualquer face que se olhe o espírito humano descobre-se a reflexão viva de um sol ignoto. Tem-se reco­nhecido que há homens para quem a evidência das teorias é uma quimera; felizmente temos a evidência dos fatos, diante da qual os São Tomés do século têm de curvar a cabeça.

É a época das regenerações. A Revolução Francesa, o estrondo maior dos tempos europeus, na bela expressão do poeta de Jocelyn, foi o passo da humanidade para entrar neste século. O pórtico era gigantesco, e era necessário um passo de gigante para entrá-lo. Ora, esta explosão do pensamento humano concentrado na rainha da Europa não é um sintoma de progresso? O que era a Revolução Francesa senão a idéia que se fazia república, o espírito humano que tomava a toga democrática pelas mãos do povo mais democrá­tico do mundo? Se o pensamento se fazia liberal é que tomava a sua verdadeira face. A humanidade, antes de tudo, é republicana.

Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? Não; nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático, como ele. Foi a nova cratera do vulcão.

Tratemos do jornal, esta alavanca que Arquimedes pedia para abalar o mundo, e que o espírito humano, este Arquimedes de todos os séculos, encontrou.

O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?

A humanidade desde os primeiros tempos tem caminhado em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia. Uma pedra convenientemente levantada era o símbolo representativo de um pensamento. A geração que nascia vinha ali contemplar a idéia da geração aniquilada.

Este meio, mais ou menos aperfeiçoado, não preenchia as exigências do pensamento humano. Era uma fórmula estreita, muda, limitada. Não havia outro. Mas as tendências progressivas da humanidade não se acomodavam com os exemplares primitivos dos seus livros de pedra. De perfeição em perfeição nasceu a arte. A arquitetura vinha transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos. O Egito na aurora da arquitetura deu-lhe a solidez e a simplicidade nas formas severas da coluna e da pirâmide. Parece que este povo ilustre queria fazer eterna a idéia no monumento, como o homem na múmia.

O meio, pois, de propagar e perpetuar a idéia era uma arte. Não farei a história dessa arte, que, passando pelo crisol das civilizações antigas, enriquecida pelo gênio da Grécia e de Roma, chegou ao seu apogeu na Idade Média e cristalizou a idéia humana na catedral. A catedral é mais que uma fórmula arquitetônica, é a síntese do espírito e das tendências daquela época. A influência da Igreja sobre os povos lia-se nessas epopéias de pedra; a arte por sua vez acompanhava o tempo e produzia com seus arrojos de águia as obras-primas do santuário.

A catedral é a chave de ouro que fecha a vida de séculos da arquitetura antiga; foi a sua última expressão, o seu derradeiro crepúsculo, mas uma expressão eloqüente, mas um crepúsculo palpitante de luz.

Era, porém, preciso um gigante para fazer morrer outro gigante. Que novo parto do engenho humano veio nulificar uma arte que reinara por séculos? Evidentemente era mister uma revolução para apear a realeza de um sistema; mas essa revolução devia ser a expressão de um outro sistema de incontestável legitimidade. Era chegada a imprensa, era chegado o livro.

O que era a imprensa? Era o fogo do céu que um novo Prometeu roubara, e que vinha animar a estátua de longos anos. Era a faísca elétrica da inteligência que vinha unir a raça aniquilada à geração vivente por um meio melhor, indestrutível, móbil, mais eloqüente, mais vivo, mais próprio a penetrar arraiais de imortalidade.

O que era o livro? Era a fórmula da nova idéia, do novo sistema. O edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma coisa local, estreita. O vivo procurava-o para ler a idéia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada. O progresso aqui é evidente.

A revolução foi completa. O universo sentiu um imenso abalo pelo impulso de uma dupla causa: uma idéia que caía e outra que se levantava. Com a onipotência das grandes invenções, a imprensa atraía todas as vistas e todas as inteligências convergiam para ela. Era um crepúsculo que unia a aurora e o ocaso de dois grandes sóis. Mas a aurora é a mocidade, a seiva, a esperança; devia ofuscar o sol que descambava. É o que temia aquele arcediago da catedral parisiense, tão bem delineado pelo poeta das Contemplações.

Com efeito! a imprensa era mais que uma descoberta maravilhosa, era uma redenção. A humanidade galgava assim o Himalaia dos séculos, e via na idéia que alvorecia uma arca poderosa e mais capaz de conter o pensamento humano.

A imprensa devorou, pois, a arquitetura. Era o leão devorando o sol, como na epopéia do nosso Homero.

Não procurarei historiar o desenvolvimento desta arte-rei, desenvolvimento asselado em cada época por um progresso. Sabe-se a que ponto esta aperfeiçoada, e não se pode calcular a que ponto chegará ainda.

Mas restabeleçamos a questão. A humanidade perdia a arquitetura, mas ganhava a imprensa; perdia o edifício, mas ganhava o livro. O livro era um progresso; preenchia as condições do pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma coisa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornal.

O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e o fogo das convicções.

O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social.

Quem poderá marcar todas as conseqüências desta revolução?

Completa-se a emancipação da inteligência e começa a dos povos. O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica.

Não é uma aurora de felicidade que se entreabre no horizonte? A idéia de Deus encarnada há séculos na humanidade apareceu enfim à luz. Os que receavam um aborto podem erguer a fronte desassombrada: concluiu-se o pacto maravilhoso.

Ao século XIX cabe sem dúvida a glória de ter aperfeiçoado e desenvolvido esta grandiosa epopéia da vida íntima dos povos, sempre palpitante de idéias. É uma produção toda sua. Depois das idéias que emiti em ligeiros traços é tempo de desenvolver a questão proposta: — O livro absorverá o jornal? o jornal devorará o livro?

II

A lei eterna, a faculdade radical do espírito humano, é o movimento. Quanto maior for esse movimento mais ele preenche o seu fim, mais se aproxima desses pólos dourados que ele busca há séculos. O livro é um sintoma de movimento? Decerto. Mas estará esse movimento no grau do movimento da imprensa-jornal? Repugno afirmá-lo.

O jornal, literatura quotidiana, no dito de um publicista contemporâneo, é reprodução diária do espírito do povo, o espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete, não a idéia de, um homem, mas a idéia popular, esta fração da idéia humana.

O livro não está decerto nestas condições; — há aí alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão, porque a discussão é — movimento. Ora, o livro não se presta a essa necessidade, como o jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo pela presteza e reprodução diária desta locomoção intelectual. A discussão pelo livro esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. O panfleto não vale um artigo de fundo.

Isto posto, o jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito humano. Nulifica-o como o livro nulificará a página de pedra? Não repugno admiti-lo.

Já disse que a humanidade, em busca de uma forma mais conforme aos seus instintos, descobriu o jornal.

O jornal, invenção moderna, mas não da época que passa, deve contudo ao nosso século o seu desenvolvimento; daí a sua influência. Não cabe aqui discutir ou demonstrar a razão por que há mais tempo não atingira ele a esse grau de desenvolvimento; seria um estudo da época, uma análise de palácios e de claustros.

As tendências progressivas do espírito humano não deixam supor que ele passasse de uma forma superior a uma forma inferior.

Demonstrada a superioridade do jornal pela teoria e pelo fato, isto é, pelas aparições de perfectibilidade da idéia humana e pela legitimidade da própria essência do jornal, parece clara a possibili­dade de aniquilamento do livro em face do jornal. Mas estará bem definida a superioridade do jornal?

Disse acima que o jornal era a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo social, do mundo literário e do mundo econômico. Do mundo literário parece-me ter demonstrado as vantagens que não existem no livro. Do mundo social já o disse. Uma forma de literatura que se apresenta aos talentos como uma tribuna universal é o nivelamento das classes sociais, é a democracia prática pela inteligência. Ora, isto não é evidentemente um progresso?

Quanto ao mundo econômico, não é menos fácil de demonstrar. Este século é, como dizem, o século do dinheiro e da indústria. Tendências mais ou menos ideais clamam em belos hexâmetros contra as aspirações de uma parte da sociedade e parecem prescrever os princípios da economia social. Eu mesmo manifestei algumas idéias muito metafísicas e vaporosas em um artigo publicado há tempos.

Mas, pondo de parte a arte plástica dessas produções contra o século, acha-se no fundo pouco razoáveis. A indústria e o comércio não são simples fórmulas de uma classe; são os elos que prendem as nações, isto é, que unem a humanidade para o cumprimento de sua missão. São a fonte da riqueza dos povos, e predispõem mais ou menos sua importância política no equilíbrio político da humanidade.

O comércio estabelece a troca do gênero pelo dinheiro. Ora, o dinheiro é um resultado da civilização, uma aristocracia, não bastarda, mas legitimada pelo trabalho ou pelo suor vazado nas lucubrações industriais. O sistema primitivo da indústria colocava o homem na alternativa de adquirir uma fazenda para operar a compra de outra, ou o entregava às intempéries do tempo se ele pretendia especular com as suas produções agrícolas. O novo sistema estabelece um valor, estabelece a moeda, e para adquiri-la o homem só tem necessidade de seu braço.

O crédito assenta a sua base sobre esta engenhosa produção do espírito humano. Ora, indústria manufatora ou indústria-crédito, o século conta a indústria como uma das suas grandes potências: tirai-a aos Estados Unidos e vereis desmoronar-se o colosso do norte.

O que é o crédito? A idéia econômica consubstanciada numa fórmula altamente industrial. E o que é a idéia econômica senão uma face, uma transformação da idéia humana? É parte da humanidade; aniquilai-a, — ela deixa de ser um todo.

O jornal, operando uma lenta revolução no globo, desenvolve esta indústria monetária, que é a confiança, a riqueza e os melhoramentos. O crédito tem também a sua parte no jornalismo, onde se discutem todas as questões, todos os problemas da época, debaixo da ação da idéia sempre nova, sempre palpitante. O desenvolvi­mento do crédito quer o desenvolvimento do jornalismo, porque o jornalismo não é senão um grande banco intelectual, grande monetização da idéia, como diz um escritor moderno.

Ora, parece claro que, se este grande molde do pensamento cor­responde à idéia econômica como à idéia social e literária, — é a forma que convém mais que nenhuma outra ao espírito humano.

É ou não claro o que acabo de apresentar? Parece-me que sim. O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; por­que ele diz ao talento: “Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!” Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?

Não! graças a Deus! Esse mau uso caiu com o dogma junto do absolutismo. O jornal é a liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização. Tudo se liberta; só o talento ficaria servo?

Não faltará quem lance o nome de utopista. O que acabo, porém, de dizer me parece racional. Mas não confundam a minha idéia. Admitido o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo. Destruída a arquitetura, quem evita que à fundação dos monumentos modernos presida este ou aquele axioma d’arte, e que esta ou aquela ordem trace e levante a coluna, o capitel ou zimbório? Mas o que é real é que a arqui­tetura não é hoje uma arte influente, e que do clarão com que inun­dava os tempos e os povos caiu num crepúsculo perpétuo.

Não é um capricho de imaginação, não é uma aberração do espírito, que faz levantar este grito de regeneração humana. São as circunstâncias, são as tendências dos povos, são os horizontes rasgados neste céu de séculos, que implantam pela inspiração esta verdade no espírito. É a profecia dos fatos.

Quem enxergasse na minha idéia uma idolatria pelo jornal teria concebido uma convicção parva. Se argumento assim, se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia; e a democracia é o povo, é a humanidade. Desaparecendo as fronteiras sociais, a humanidade realiza o derradeiro passo, para entrar o pórtico da felicidade, essa terra de promissão.

Tanto melhor! este desenvolvimento da imprensa-jornal é um sintoma, é uma aurora dessa época de ouro. O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva-se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada da razão o manto dos dogmas no­vos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer, — eis a obra das civilizações modernas.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, 1994.
Publicado originalmente no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12/01/1859.

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Davi Machado (O Relogio e a Areia levada pelo Vento)

Salvador Dali (A Presistência da Memória)
Eu era o pobre, o pastor de ovelhas, o rude…
Eu nunca quis aquilo que chama, ilude
E descompassa o coração por uma surpresa…
( Fui caçador do tempo, hoje sou presa.)

Eu era o incenso ascendido para seu Deus,
Eu não podia conter as lágrimas nos meus
Olhos cansados hoje tão cheios de mágoas
(Fui homem pairando sobre às águas!)

Quis te querer em mim por uma vontade
Que por todas as noites traria a “metade”
E cedo, n’alvorada, levaria de volta a dor…
(Fui incrédulo ao ver o sol se por…)

Na desventurada avenida da inoscência
Eu era o pedinte que clamava com veemência,
Rogando aos anjos que eu não pude amar
(Fui o desague de sangue no frio mar!)

E na tempestade de areia eu quis tê-la
Para mim; esta escarlate e terna estrela,
Erguendo as mãos aos céus, de joelhos
(Fui todos os rostos nos teus espelhos!)

No Éden e em Shangri-la eu era o fruto
Guardado no teu coração como o luto,
Feito da força e do avesso de viver
(Fui o eclipse que não pudes-tes ver!)

E do temor apocalíptico fui forjado…
Tive a cruz da solidão como legado…
Como pomba que por flecha atingida
(Fui a mão que não aponta a saída!)

E o assombro que assobia à janela
Feito luz da lua de íris amarela
Não poderia ser outro além de mim.
(Fui o grito de agonia antes do fim!)

Na tua cama a escuridão da meia noite
Eu trazia aos seus ouvidos o açoite
Transmutado em brisa quase matutina…
(Fui das chagas da paixão tua vacina!)

Por todas as vezes nos corpos todos fui
O que o alquimista da vida dilui
E molda a cada era com esmero…
(Fui o vinho envelhecido em desespero!)

E seguindo a aventura longa e mística
Indo contra a fé cristã e metafísica,
D’outras vidas eu nasci reencarnado
(Sou aquele que adormece a teu lado!)

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Edgar Allan Poe (Manuscrito encontrado dentro de uma Garrafa)

Qui n’a plus qu’un moment à vivre
N’a plus rien à dissimuler.
Quinault, Atys

Quem tem apenas um momento mais de vida
Nada mais tem a dissimular.
Da minha terra e da minha família pouco tenho a dizer. Os maus costumes e o acumular dos anos afastaram-me da primeira e alhearam-me da segunda. O meu patrimônio proporcionou-me uma educação pouco comum e uma disposição de espírito contemplativa permitiu-me ordenar metodicamente as aquisições diligentemente reunidas pelo estudo precoce. O estudo dos filósofos alemães fez particularmente as minhas delícias: não por qualquer mal-avisada admiração pela sua eloqüente loucura, mas antes pela facilidade com que os meus hábitos de raciocínio rigoroso me facultavam a detecção dos seus erros. Fui muitas vezes admoestado pela aridez do meu gênio; imputavam-me, como se de um crime se tratasse, falta de imaginação, e o pirronismo das minhas opiniões sempre me tornou notado. De fato, receio bem que uma forte atração pela filosofia física me tenha impregnado o espírito de um defeito muito comum nesta época: refiro-me ao hábito de reportar os acontecimentos, mesmo os menos susceptíveis de o serem, aos princípios de tal ciência. Em suma, ninguém seria menos dado que eu a deixar-se desviar das estritas fronteiras da verdade pelos ignes fatui da superstição. Achei que se justificaria esta introdução, sob pena de o incrível relato que se segue ser tomado mais pelo delírio de uma imaginação desenfreada do que pela experiência positiva de um espírito para o qual os devaneios da fantasia sempre foram letra morta e coisa de nulo valor.

Após muitos anos passados em deslocações pelo estrangeiro, larguei no ano de 18… do porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, em viagem ao arquipélago de Sunda. Embarquei como passageiro, sem outro estímulo que não fosse uma qualquer nervosa irrequietude que me obcecava como espírito maléfico.

O nosso navio era um belo veleiro de umas quatrocentas toneladas, construído de teca do Malabar em Bombaim. Levava um carregamento de algodão em rama e azeite, proveniente das ilhas Lacadivas. Transportávamos ainda fibra de coco, açúcar mascavado, manteiga, cocos e algumas caixas de ópio. A estiva tinha sido feita de modo descuidado, pelo que o navio ia adornado.

Largamos sob um tênue bafejo de vento e mantivemo-nos durante vários dias ao longo da costa oriental de Java, sem mais incidentes que iludissem a monotonia da nossa singradura para além do encontro ocasional com alguns grabs (Embarcação oriental armada de velas latinas e normalmente de dois mastros. (N. do T.)) do arquipélago a que nos mantínhamos confinados.

Uma tarde, debruçado à balaustrada da popa, observei uma nuvem isolada muito estranha, a noroeste. Era singular, quer pela cor, quer por ser a primeira com que deparávamos desde a largada de Batávia. Contemplei-a atentamente até ao sol-pôr, altura em que alastrou repentinamente para leste e oeste, cercando o horizonte de uma estreita faixa de vapor e assemelhando-se a uma baixa linha de costa. Não tardou que a minha atenção fosse subseqüentemente atraída pelo aspecto vermelho-escuro da Lua e pelo invulgar estado do mar. Este sofreu uma rápida alteração e a água parecia mais transparente do que o habitual. Embora conseguisse ver distintamente o fundo, ao lançar a sonda verifiquei que a profundidade local era de vinte braças. O ar tornara-se agora intoleravelmente quente e estava carregado de exalações espirais semelhantes às que se desprendem do ferro quando aquecido. Com o tombar da noite, o vento caiu totalmente, sendo impossível conceber calmaria mais completa. A chama da lanterna sobre a popa ardia sem o menor movimento perceptível, e um cabelo comprido, seguro entre o polegar e o indicador, pendia sem que pudesse observar-se a mais pequena ondulação. No entanto, como o comandante dissesse que não se apercebia de qualquer indício de perigo, e uma vez que estávamos a abater totalmente para terra, mandou ferrar as velas e fundear. Não se passou a regime de quartos e a tripulação, constituída principalmente por malaios, veio deitar-se deliberadamente no convés. Desci aos alojamentos – não sem um forte pressentimento de desastre. De facto, todas as aparências me levavam a suspeitar da aproximação do simum. Dei parte dos meus temores ao comandante, mas este não prestou a menor atenção às minhas palavras e deixou-me sem ao menos se dignar de responder. Todavia, a inquietação não me deixou dormir e, perto da meia-noite, subi ao convés. Ao colocar o pé no último degrau da escada, fui surpreendido por um forte ruído sussurrante como produzido por rápida rotação de moinho e, antes que pudesse averiguar o seu significado, apercebi-me de que o navio estremecia na direção do seu centro. No instante imediato, um cachão de espuma fez-nos adornar subitamente e, passando sobre nós, varreu todo o convés de popa a proa.

A extrema violência do choque veio, em grande parte, a ser a salvação do navio. Embora completamente inundado, quando os mastros foram pela borda fora, ergueu-se pesadamente das águas um minuto depois e, vacilando um instante sob a intensa pressão da tempestade, endireitou-se finalmente.

Não sei dizer por que milagre escapei à destruição. Atordoado pelo embate de água, dei por mim, uma vez refeito, entalado entre o cadaste e o leme. com grande dificuldade, pus-me de pé e, olhando confusamente ao redor, fui inicialmente assaltado pela idéia de que estivéssemos no meio de recifes, de tal modo terrível e inimaginável era o turbilhão do oceano alteroso e espumejante em que estávamos mergulhados. Passados algum tempo ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara conosco no momento em que largávamos do porto. Gritei-lhe com todas as forças e ele acabou por dirigir-se, a cambalear, para a popa. Depressa descobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convés, exceto nós, tinham sido varridos pela borda fora; o comandante e os oficiais deviam ter perecido durante o sono, visto que os camarotes se encontravam totalmente alagados. Sem auxílio, pouco poderíamos contar fazer pela segurança do navio e os nossos esforços foram de princípio paralisados pela perspectiva momentânea de irmos a pique. Era evidente que a amarra se quebrara como se fosse uma guita ao primeiro sopro do furacão, pois de contrário teríamos sido instantaneamente esmagados. Corríamos com o furacão a uma velocidade assustadora e as águas abriam brechas visíveis à nossa frente. A estrutura da popa tinha sofrido enormes danos e, praticamente sob todos os aspectos, fôramos objeto de consideráveis avarias; mas para nossa extrema alegria, descobrimos que as bombas não tinham ficado obstruídas e que o lastro não sofrera grande deslocação. A maior fúria da tempestade tinha já amainado e a violência do vento não parecia oferecer grande perigo: contudo, ansiávamos, consternados, por que ele cessasse completamente, pois estávamos em crer que, com tais estragos, inevitavelmente pereceríamos na ondulação tremenda que sobreviria. Contudo, esta justíssima apreensão não parecia de modo algum em vias de concretizar-se. Durante cinco dias e cinco noites – no decurso dos quais tivemos por único alimento uma pequena porção de açúcar mascavado, obtido com grande dificuldade no castelo da proa – o calhambeque correu a uma velocidade que desafiava qualquer cálculo, impulsionado por rajadas de vento que se sucediam rapidamente, as quais, sem contudo se compararem à violência inicial do simum, eram ainda mais terríveis do que qualquer tempestade que até então eu tivesse presenciado. O nosso rumo durante os primeiros quatro dias foi, com insignificantes variações, sueste quarta a sul, e deveríamos ir parar às costas da Nova Holanda. No quinto dia começou a fazer-se sentir um frio extremo, embora o vento tivesse rondado mais uma quarta para norte. O Sol despontou com um fulgor amarelo doentio e ergueu-se apenas alguns graus acima do horizonte – sem emitir uma luz definida. Não havia nuvens à vista, mas o vento continuava a refrescar e soprava com uma violência irregular e instável. Cerca do meio-dia, tanto quanto nos era possível estimar, a nossa atenção foi novamente desperta pela aparência do Sol. Não emitia luz propriamente dita, mas antes um clarão mortiço e soturno sem reverberação, como se todos os seus raios estivessem polarizados. Imediatamente antes de mergulhar no mar túrgido, a sua chama central extinguiu-se de súbito, como que pressurosamente apagada por algum inexplicável poder. Era apenas um arco esbatido e quase prateado ao precipitar-se no oceano insondável.

Aguardamos em vão a chegada do sexto dia: esse dia para mim não chegou: para o sueco, não existiu sequer. De então em diante, vimo-nos amortalhados numa escuridão de breu, de tal modo que não conseguiríamos ver um objeto a vinte passo do navio. A noite eterna começou a envolver-nos, nem sequer mitigada pela fosforescência das águas a que nos habituáramos nos trópicos. Observamos igualmente que, embora a tempestade continuasse a bramir com inquebrantável violência, já não conseguia descortinar-se o habitual aparecimento de rebentação ou espuma, que até então nos havia acompanhado. À nossa volta tudo era horror, trevas profundas e um negro e abrasador deserto de ébano. Um terror supersticioso começou a invadir progressivamente o cérebro do velho sueco, e meu próprio espírito estava mergulhado em profundo espanto. Abandonáramos todos os cuidados do navio, mais do que inúteis, e, amarrando-nos o melhor que pudemos ao mastro da mezena, observávamos amargamente a imensidão do oceano. Não tínhamos maneira de calcular o tempo nem fazíamos a menor idéia de qual a nossa posição. Contudo, estávamos perfeitamente cientes de que havíamos navegado mais para sul do que qualquer outro mareante e experimentamos grande admiração por se não nos depararem os habituais obstáculos de gelo. Entrementes, cada instante ameaçava ser o último da nossa vida: não havia vaga alterosa que não se precipitasse para nos esmagar. A ondulação ultrapassava tudo o que eu imaginara possível e o fato de o mar não nos ter sepultado instantaneamente constituía um milagre. O meu companheiro referiu-se ao pouco peso da carga que transportávamos e recordou-me as excelentes qualidades do navio; fosse como fosse, eu não conseguia deixar de sentir o extremo desespero da própria esperança e preparei-me melancolicamente para a morte que acreditava nada poder adiar por mais que uma hora, visto que, a cada nó que o navio avançava, a agitação das prodigiosas águas negras se tornava cada vez mais lugubremente aterradora. Por vezes, ao elevarmo-nos mais ainda que um albatroz, perdíamos a respiração; outras ficávamos atordoados com a velocidade com que o navio se afundava em qualquer inferno aquático, onde o ar estagnava e nenhum som perturbava o sono do kraken (Monstro marinho lendário das costas escandinavas. (N. do T.)).

Encontrávamo-nos no fundo de um desses abismos quando um súbito grito do meu companheiro rompeu temerosamente na noite:

– Olhe! Olhe! – gritou angustiadamente aos meus ouvidos. – Deus todo-poderoso! Olhe! Olhe!

Enquanto ele falava, apercebi-me do clarão mortiço e sombrio de uma luz vermelha que se escoava de um e outro lado do abismo em que estávamos mergulhados, e lançava um brilho incerto sobre o nosso convés. Erguendo a vista, observei um espetáculo que me fez gelar o sangue nas veias. A uma altura descomunal acima de nós, e precisamente na orla precipício das águas, pairava um gigantesco navio de umas quatro mil toneladas. Apesar de alcandorado na crista de uma vaga que tinha mais de cem vezes a sua altura, as suas dimensões aparentes ainda assim excediam as de qualquer navio de linha ou da Companhia das Índias. O seu casco enorme era de um negro profundo, nem sequer atenuado por qualquer dos habituais ornatos que os navios ostentam. Uma fileira única de peças de artilharia de bronze emergia das escotilhas abertas e as suas superfícies polidas refletiam os clarões das inúmeras lanternas de combate que balouçavam de um lado para outro na mastreação. Todavia, o que fundamentalmente nos encheu de horror e espanto foi que ele navegava a todo o pano, a despeito daquele mar sobrenatural e do incontrolável furacão. Quando o avistamos a primeira vez, apenas se lhe via a proa, ao erguer-se lentamente do sombrio e horrível fosso que ia deixando para trás. Por um instante de intenso terror, deteve-se sobre o cume vertiginoso, como que imerso na contemplação da sua própria magnificência, após o que estremeceu, vacilou e… iniciou a queda.

Nesse instante, não sei que súbita serenidade me invadiu o espírito. Avançando a cambalear para a popa o mais que me foi possível, aguardei sem receio a catástrofe que certamente nos iria esmagar. O nosso próprio navio começava a abandonar a luta e a mergulhar a proa nas águas. O choque daquela mole que se abatia atingiu-o, por conseguinte, naquele porção da estrutura que estava já sob a água, e o resultado inevitável foi precipitar-me, com irresistível violência, de encontro ao cordame do intruso.

Quando caí, o navio aproou ao vento e virou de bordo; foi à confusão que se seguiu que atribuí o fato de ter passado despercebido aos olhos da tripulação. Não encontrei dificuldade em abrir caminho sem ser detectado até à escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e pouco tardou que se me deparasse uma ocasião propícia para me ocultar no porão. Não sei exatamente por que razão o fiz. Talvez uma indefinida sensação de temor, que desde a primeira visão dos tripulantes do navio se me apoderara do espírito, estivesse na origem desta tentativa de buscar esconderijo. Não me sentia inclinado a confiar numa raça de gente que havia revelado, perante o olhar apressado que lhes deitara, tantos motivos de vaga estranheza, dúvida e apreensão. Julguei, pois, acertado arranjar um lugar no porão onde pudesse ocultar-me. Fi-lo deslocando uma porção de pranchas, de modo a obter um abrigo adequado entre o cavername enorme do navio.

Mal terminara ainda a tarefa, quando o som de passos no porão me obrigou a utilizá-lo. Um homem de andar débil e incerto passou junto ao meu esconderijo. Não pude ver-lhe o rosto, mas tive ocasião de observar-lhe o aspecto geral. Apresentava indícios de idade avançada e de doença. Os joelhos vacilavam ao peso dos anos e todo o corpo estremecia sob o seu fardo. Murmurava de si para si, em tom grave e entrecortado, quaisquer palavras numa língua que não logrei distinguir e tateou a um canto entre uma pilha de instrumentos de aspecto invulgar e de cartas de navegação apodrecidas. O seu comportamento era uma estranha mistura de rabugice da segunda infância e da solene dignidade de um deus. Acabou por regressar ao convés e não voltei a vê-lo.
* * *
Um sentimento que não sei designar apossou-se-me do espírito: uma sensação que não admite análise, para a qual os ensinamentos do passado de nada servem e, receio, nem o porvir me fornecerá a chave. Para um espírito da estrutura do meu, esta última consideração é uma tortura. Nunca hei de ser esclarecido – sei que nunca o serei – relativamente à natureza das minhas concepções. E contudo não será de estranhar que tais concepções sejam mal definidas, posto que têm a sua origem em causas tão inteiramente inéditas. Um novo sentido – uma nova entidade – foi acrescentada à minha alma.

Faz já muito que pisei pela primeira vez o convés deste terrível navio e julgo que os raios do meu destino convergem para um foco. Homens incompreensíveis! Imersos em meditações cuja natureza não logro adivinhar, passam por mim sem darem pela minha presença. O fato de me esconder é puro disparate da minha parte, pois esta gente não quer ver. Ainda há instantes passei diretamente pela frente do imediato; não faz muito tempo que me aventurei a penetrar mesmo no camarote individual do comandante e de lá tirei o material com o qual escrevo e tenho vindo a escrever. Continuarei este diário de quando em quando. É certo que posso não ter ocasião de transmiti-lo ao mundo, mas não deixarei de o tentar. No último momento meterei o manuscrito numa garrafa e lançá-la-ei ao mar.
* * *
Deu-se um incidente que me forneceu novos motivos de reflexão. Será tudo isto obra de um desordenado Acaso? Tinha-me aventurado a sair ao convés e estendi-me, sem despertar a menor atenção, no meio de um amontoado de cabos de enxárcias e de velas usadas, no fundo do escaler. Enquanto meditava sobre a singularidade do meu destino, rabisquei inconscientemente com uma brocha de alcatrão as orlas de um cutelo cuidadosamente dobrado que tinha perto de mim sobre uma barrica. O cutelo está agora envergado no navio e as pinceladas irrefletidas da brocha, com a vela esticada, formam a palavra DESCOBERTA.

Ultimamente fiz várias observações sobre a estrutura do navio. Embora bem armado, creio que não se trata de um navio de guerra. Quer o cordame, quer a construção, quer o equipamento em geral levam a por de lado tal hipótese. O que ele não é posso eu facilmente compreender; receio é que seja impossível dizer o que é. Não sei como, mas, ao perscrutar o seu estranho modelo e a forma singular da mastreação, o seu enorme tamanho, o exagerado número de jogos de velas, a sua proa austeramente simples e a popa antiquada, acontece vir uma ou outra vez ao meu espírito uma sensação de coisas familiares, e a essas sombras indistintas da memória mistura-se sempre uma inexplicável reminiscência de velhas crônicas estrangeiras e de épocas remotas.

Estive a observar o madeiramento do navio. O material de que é feito é-me desconhecido. Há uma característica peculiar da madeira que me choca como se a tornasse inadequada para o fim ao qual foi destinada: refiro-me à sua extrema porosidade, considerada independentemente do fato dos estragos que os parasitas provocam nestes mares e para além da podridão concomitante com a idade. Isto poderá porventura parecer uma observação algo sutil, mas esta madeira teria todas as características do carvalho espanhol se este tivesse sido distendido por quaisquer meios não naturais.

Ao reler a frase anterior, ocorre-me intacto à memória o curioso adágio de um velho marinheiro holandês forjado nas intempéries: “É tão verdade”, costumava dizer quando alguém albergava qualquer dúvida sobre a veracidade do que contava, “como é verdade existir um mar onde o próprio navio aumenta de volume como o corpo vivo de um marinheiro”.

Há cerca de uma hora, ousei introduzir-me num grupo de tripulantes. Não me deram a menor atenção e, embora estivesse mesmo no meio de todos eles, pareceram completamente alheios à minha presença. Tal como o que tinha visto antes no porão, qualquer deles apresentava indícios de encanecida velhice. Os joelhos tremiam-lhes de doença; tinham os ombros duplamente abaulados devido à decrepitude; os seus rostos ressequidos abanavam ao vento; as vozes eram baixas, trêmulas e entrecortadas; os olhos cintilavam-lhes com a corrente dos anos e os cabelos grisalhos tremulavam espantosamente na tempestade. Em redor deles, por todo o convés, estavam espalhados instrumentos matemáticos da mais singular e obsoleta estrutura.

Referi um pouco atrás o envergar de um cutelo. Desde essa altura o navio, correndo com o vento, continuou a sua assustadora carreira para sul, com todo pano largado, dos topos dos mastros aos botalós dos cutelos baixos, e balançando a cada instante as vergas do joanete no mais aterrador inferno marinho que a imaginação humana possa conceber. Acabo de abandonar o convés, onde concluí ser impossível manter-me, embora a tripulação não pareça experimentar grande incômodo. Afigura-se-me o milagre dos milagres o fato de a massa enorme de nosso navio não ser tragada de uma vez por todas. Estamos certamente condenados a pairar continuamente sobre a orla da Eternidade, sem dar um mergulho final no abismo. Deslizamos entre vagas mil mais tremendas do que alguma vez vi, com a facilidade da sagitada gaivota; e as ondas colossais erguem as cristas sobre nós como demônios das profundezas, mas como demônios limitados a meras ameaças e impedidos de destruir. Sinto-me tentado a atribuir esta repetida salvação à única causa natural que pode explicar tal efeito: devo supor que o navio está sob a influência de uma forte corrente, de uma impetuosa ressaca.

Vi o comandante cara a cara, e no seu próprio camarote; mas, como esperava, não me prestou atenção. Embora nada haja no seu aspecto, para um observador pouco atento, que possa sugerir ser ele alguma coisa mais ou menos do que humano, misturaram-se-me uma irreprimível reverência e temor à sensação de espanto com que o observei. A estatura dele é quase a mesma que a minha, isto é, certa de um metro e setenta. É de compleição proporcionada e compacta, sem ser robusto nem quanto ao resto digno de nota. É, porém, a singularidade da expressão que lhe anima o rosto, é o intenso, maravilhoso e empolgante testemunho de velhice, de uma tão extrema velhice que suscita no meu espírito um sentimento, uma sensação inefável. A sua fronte, conquanto pouco enrugada, parece transportar a marca de uma miríade de anos. Os seus cabelos grisalhos são registros do passado e os olhos ainda mais cinzentos são sibilas do futuro. O pavimento do camarote estava densamente juncado de in-fólios com fivelas de ferro, de esboroados instrumentos científicos e de cartas obsoletas e há muito abandonadas. Tinha a cabeça inclinada sobre as mãos e lia atentamente, com um ardente olhar inquieto, um papel que tomei por uma carta de comando e que, em qualquer caso, apresentava a assinatura de um monarca. Murmurava de si para si, em voz baixa e rabugenta, como fazia o primeiro marinheiro que eu vira no porão, quaisquer sílabas de uma língua estrangeira, e, embora falasse mesmo junto de mim, a sua voz parecia chegar-me aos ouvidos vinda de uma milha de distância.

O navio e todos os que nele seguem estão imbuídos do espírito de Antanho. A tripulação desliza para um lado e para outro como fantasmas de séculos enterrados; os seus olhares têm uma expressão ansiosa e intranqüila; e quando os seus dedos, à minha passagem, caem sob o brilho cru das lanternas de combate, sinto o que nunca antes senti, embora toda a vida tenha negociado em antiguidades e me tenha impregnado das sombras das colunas caídas de Balbec, Tadmor, e Persépolis, até a minha própria alma se converter numa ruína.

Quando olho em redor envergonho-me das minhas apreensões iniciais. Se tremi ante a tempestade que até agora nos acompanhou, não deveria ficar horrorizado perante a adversidade do vendo e do oceano, que as palavras tornado e simum se tornam banais e ineficazes para descrever? Tudo o que se encontra na imediata proximidade do navio é a escuridão da noite eterna e um caos de água sem espuma; mas, cerca de uma légua para um e outro bordo, podem ver-se, indistintamente e de quando em quando, enormes baluartes de gelo, que se erguem ao longe contra o céu desolado, semelhantes às muralhas do universo.

Conforme imaginei, prova-se que o navio está sob a ação de uma corrente, se é que assim se pode apelidar uma maré que, gemendo e uivando através da brancura do gelo, troveja para o sul com uma velocidade semelhante à impetuosa precipitação de uma catarata.

Creio ser totalmente impossível transmitir o horror das minhas sensações; porém, a curiosidade de penetrar os mistérios destas horríveis regiões prevalece mesmo sobre o meu desespero e reconcilia-me com o aspecto mais hediondo da morte. Torna-se evidente que corremos ao encontro de qualquer revelação emocionante: algum segredo que nunca será transmitido, descoberta é o termo da vida. Talvez esta corrente nos leve ao próprio Pólo Sul. Devo considerar que esta suposição, aparentemente tão estranha, tem todas as probabilidades de estar correta.

A tripulação percorre o convés com passo inquieto e trêmulo; mas há na sua atitude uma expressão que é mais da ânsia da esperança do que da apatia do desespero.

Entretanto, temos ainda o vento na popa e, como navegamos com imenso pano, o navio é por vezes erguido do mar em peso. Oh, horror sobre horror! O gelo abre-se simultaneamente à direita e à esquerda e começamos a rodopiar vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, em torno de um gigantesco anfiteatro, de paredes cuja altura se perde na escuridão e na distância. Mas pouco tempo me restará para ponderar sobre o meu destino: os círculos estreitam rapidamente… mergulhamos loucamente nas garras do turbilhão… e, por entre o rugir, o bramir e o ribombar do oceano e da tempestade, o navio começa a estremecer e – meu Deus! – e… a afundar.
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Obs: O Manuscrito encontrado numa garrafa foi publicado pela primeira vez em 1831, e só muitos anos mais tarde tomei conhecimento das cartas de Mercator, nas quais o oceano é representado a precipitar-se, por quatro embocaduras, no Abismo Polar (do Norte), para ser absorvido pelas entranhas da terra, sendo o próprio pólo representado por um rochedo negro que se ergue a uma altura prodigiosa. (N. do A.)

Fontes:
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias.
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Aluisio de Azevedo (O Japão Crônica = Capítulo 4)

Capitulo 1 – http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/aluisio-de-azevedo-o-japo-cronica.html
Capítulo 2 – http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/alusio-de-azevedo-o-japo-crnica-captulo.html
Capítulo 3 – http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/aluisio-de-azevedo-o-japo-cronica.html
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Eliminaram Ii Kammon, mas o grande fato estava consumado, bem ou mal os tratados concluídos, e o Japão aberto aos estrangeiros.

Em breve, à semelhança da América do Norte, os Estados europeus entravam de mandar os seus representantes diplomáticos, e atrás destes surgiam logo, de focinho arregaçado e palpitante, os primeiros furões comercias, os farejadores de negócios virgens de exploração, os avançados de Ashaverus que aí já vinha se arrastando azafamado de saco vazio às costas; enquanto do arquipélago muitos indígenas curiosos, estalando por gosto o ocidental fruto até aí proibido pelas “Cem Leis”, muniam-se de ouro e tomavam as pressas o primeiro barco a sair para a China, com medo de que, uma vez morto o Regente, não fosse de novo trancada a autorização de viajar pelo estrangeiro. Esta leva tão espontânea, quase toda de gente moça e rica, na melhor parte inteligente e ávida de aprender coisas novas; haveria no futuro de influir também nos acontecimentos políticos do país.

Quanto ao que neste ia por dentro, agora a grande questão pública era apurar se valiam ou não valiam os tratados apenas com a assinatura do Shogun. O Imperador abanava as mãos e sacudia os ombros, declarando a quem lhe ia falar em credenciais e exequatur que não lhe constava haver nenhum compromisso formal entre o seu império e qualquer Potência estrangeira; e que de sua parte evidenciassem ao novo Regente a necessidade de desenganar semelhantes importunos antes de ser preciso lançar mão dos meios extremos. Ao mesmo tempo decreta a retirada de todo o forasteiro que se ache no território sem clara e positiva autorização do Micado, e delega a Mito essa incumbência, repetindo-lhe numa carta escrita de seu próprio punho, a frase da vassoura e da poeira com que ele havia ressuscitado do outro mundo para acudir ao momento crítico.

Visionário! Agora já não era uma simples esquadra que flutuava nas águas japonesas, era uma formidável armada constituída pelo contingente marítimo das principais potências do mundo. Dir-se-ia um congresso universal nas costas do Japão, porque, além das bandeiras que de tão longe vinham por defender os seus tratados, outras novas iam chegando desejosas de entrar também em fala com a sedutora esfinge do Extremo Oriente.

E os radicais elementos patrióticos do altaneiro Sul coração do Império, sequiosos por descarregar em alguém ou alguma coisa a raiva de cruel despeito em que ardiam, nada podendo fazer contra o verdadeiro objeto do seu impotente desespero, voltaram-se contra a instituição a que pertencera o causador de tio irreparável desastre nacional; tomando porém o Shogunato para alvo dos golpes que precisavam descarregar, forçoso era opor-lhe em campo de combate a bandeira de outro poder, pelo qual se batessem e pelo qual, no momento da vitória, substituíssem o do vencido, resolveram então, depois de muito bem discutir o caso, adotar o unitarismo do Trono como ideal político. Mito, consultado, aplaudiu-os e deu-lhes de conselho que procurassem pôr à sua frente os príncipes do extremo sul.

Foi desse modo que se formou, para logo se desenvolver maravilhosamente, o partido popular do Imperador, coisa que até aí nunca tinha existido no movimento político do país. Ora, como o pobre Soberano, no seu empírico patriotismo, punha antes de tudo a preocupação de expulsar os estrangeiros, o novo partido, por cair-lhe em graça, fez o seu lema com o grito de guerra “Honra ao Micado! Fora os bárbaros!”, apesar de compreender perfeitamente a impossibilidade de levar a efeito nessa ocasião tão adorado sonho.

Assim pois vinha à luz o partido do Imperador já com um plano de mistificação urdido contra o seu próprio chefe, disposto a servir-se da mesma maromba que caíra das mãos fracas de Yeçada e que servira Ii Kammon para equilibrar os seus primeiros passos no governo, pois como esses iria dizendo ao Micado que se constituía e fortificava só com o fim de bater os estrangeiros, quando a sua real intenção era, pelo menos antes de cuidar doutra coisa, combater o Shogunato.

Os daimos do sul, ligando-se a esse elemento popular, não calculavam o alcance que contra eles próprios poderia ter a campanha empreendida, não previam que a unificação do poder do trono iria absorver também o dos principados; e contavam ingenuamente que, abolido o Shogunato, o Império voltaria sem dúvida ao regime feudal de antes de Yoritomo, quando os príncipes governavam ao lado do Imperador e não estavam sujeitos i alçada do Shogun. Quanto ao que pensava a Nobreza e Povo com respeito aos estrangeiros, era opinião corrente que qualquer ação decisiva seria impossível contra eles enquanto existissem a Corte e as forças shogunais para defendê-los dentro do país, desde porém que o Imperador concentrasse na mão todo o poder e comandasse diretamente os daimos, claro estava que a questão seria prontamente resolvida.

Eis aqui em que estado se achava o país nas vésperas da sua grande revolução. A terrível guerra civil que se ia abrir, isto é, a luta de parte dos príncipes e parte do povo contra a instituição do Shogunato ou contra a dinastia dos Tokugawas, era pois conseqüência direta dos atos de Ii Kammon e não tinham raízes em nenhum fator político precedente à chegada do Comodoro Perry, como pretendem os ocidentais nos seus livros sobre o Japão.

Alçando-se o partido do Imperador até a esfera dos príncipes do sul, que eram muito unidos e poderosos, converteu-se em força disciplinada capaz de fazer frente à do Shogun, contra a qual ninguém até aí se atreveria a levantar o braço. Para ter o leitor idéia justa da importância dessa campanha, convém lembrar-lhe quão extensa permanecia então a autoridade shogunal. Além das suas inveteradíssimas tradições, mantidas por enorme família e filtradas durante dois séculos e meio ininterruptamente até os íntimos refolhos da alma da nação, era mais que considerável a força material de que dispunha, graças à maravilhosa posição por Ieiás escolhida para sede do seu poder. O grande homem havia, nem só aproveitado admiravelmente as condições topográficas do Império, como a dos elementos militares que encontrou disseminados por todas as províncias, cujos castelos fortificados se acharam sempre nas mãos de príncipes por muitos laços jungidos à família Tokugawa e à instituição agora ameaçada. A zona Tokugawal propriamente dita era a enorme bacia de Kuanto na parte leste da grande ilha central do Japão, compreendendo oito províncias cercadas de montanhas abruptas que lhes serviam de natural defesa, com os seus despenhadeiros inacessíveis, não deixando ao inimigo outro ponto estratégico mais que a cidade de Hokone na província de Izo, entre as duas bacias de Suruga e de Sagami, lugar este precisamente onde Ieiás estabelecera as barreiras dos seus vastos domínios territoriais e em que lhe era fácil verificar uma a uma as pessoas que neles penetravam. Nessas oito províncias de Kuanto residiam os oitenta mil hattamotos, vassalos diretos dos Tokugawas, os quais por sua vez, como nobres, tinham nos samurais inferiores os seus vassalos próprios. Toda essa gente se levantaria em massa ao primeiro apelo do chefe suserano.

Yedo, capital do Shogun e centro das suas operações militares, está no fundo de um golfo, cuja boca estreita era defendida de um dos lados pela fortaleza de Futsu e do outro pela de Kannonzaki, e tinha como tem, as costas guardadas por uma anfractuosa cordilheira de montanhas que só dão uma garganta praticável, a de Akonê. Em volta, para além das penedias e quebradas, todos os príncipes fortificados, menos o de Mito em Hitachi e Chimoosa, eram simpáticos à causa dos Tokugawas; e para o norte até Hakodate em Yezo, e para o sudoeste, e na ilha de Sikok, até certo ponto da ilha de Kiuciu ao sul, não havia um daimo inimigo dela, podendo por conseguinte as forças do Shogun moverem-se por toda a parte, certas de que só poderiam encontrar auxílio e proteção. Os únicos pontos do Império que escaparam à imensa rede estendida por Ieiás eram, além de Hitachi e Chimoosa a noroeste, o extremo sul da ilha de Kiuciu, onde se acham as províncias de Ocumi e Satzuma, e o extremo oeste de Hondo em que existe a de Nagato. E foi precisamente destes pontos que rebentou a guerra.

Havia assumido a regência do Shogunato Ando Tsusima, como ministro sucessivo do príncipe de Hikone. É um comparsa sem feitio próprio, com quem não vale a pena gastar muitas palavras em descrevê-lo; sumir-se-á daqui a pouco nos bastidores, substituído pelo dono legítimo do papel, Iyemochi, que reclama o seu cargo e entra a exercê-lo antes mesmo da maioridade comum, no Japão fixada aos vinte anos; comum, disse eu, porque a dos membros da família imperial é privilegiadamente contada dos dezoito anos em diante, e a dos príncipes Tokugawas era a partir dos quinze.

Como esperavam todos, Ando Tsusima, galgando o poder, declarou logo sustentar os atos e a norma política do seu antecessor, mas ao mesmo tempo, para fazer crer que não persistiam divergências entre o Shogunato e o trono micadoal, abriu mão do príncipe de Mito, a quem Ii Kammon havia condenado ao exílio perpétuo e a quem o Imperador agora por último delegava a expulsão dos estrangeiros; e faz melhor: consegue a aliança do seu jovem chefe Iyemochi com uma princesa ainda mais jovem, irmã legitima do Micado; pomposo casamento que se realizou em 15 de dezembro de 1860.

Nada disto porém impediu que continuasse cavado o abismo entre as duas Cortes, como não impediu que se desse, para mais agravá-lo, o seguinte revoltante fato: precisando Mito recompor uma parte desmantelada das trincheiras do seu castelo e estando com toda a gente ocupada, mandou chamar de fora alguns pedreiros; apresentaram-se oito sujeitos com o traje característico daquele ofício e armados de picaretas, martelos e alavancas (no Japão cada artífice trazia sempre o seu uniforme próprio). Confiou-lhes o príncipe o trabalho e foi em pessoa mostrar o que havia de fazer. Os oito operários desceram com ele ao fundo das fortificações e lá, vibrando as ferramentas que levavam, o trucidaram e mais a dois pajens que o acompanhavam. Aos gritos destes últimos, acudiram as sentinelas, mas antes já os assassinos tinham galgado os fossos e mergulhado nas valas sem deixar rastros de si. Eram os oito samurais que em Yedo sobre o cadáver de Ii Kammon haviam jurado vingar-lhe a morte.

Semelhante crime, tão vil e traiçoeiro, tão contrário aos usos cavaleirescos do japonês do tempo, achou enorme repercussão na alma generosa do povo, a quem sem dúvida não desagradava um homem que só tinha coração para amar o seu imperador e odiar os estrangeiros; pelo menos todas as classes armadas, até mesmo as hostes do Shogun, viam em Mito a legítima e briosa expressão do velho sentimento nacional. A nódoa daquela covardia chegou para todos os samurais que foram de Ii Kammon; alguns rasgaram o ventre sentindo-se desonrados; e, sabendo-se que Iyemochi ao ouvir falar do monstruoso crime, tivera um mau sorriso e nenhuma providência dera para castigar os criminosos, nobreza e povo começaram a ver nele um Tokugawa degenerado e um dinasta perverso, apesar da sua extrema juventude e natural donaire que o faziam simpático aos olhos da nação. O Imperador, desde esse fato, começou a desdenhá-lo.

Com a morte do seu idolatrado chefe, os nativistas de Hitachi e Chimoosa sentem-se desamparados, ali tão cerca de Yedo, valhacoito do estrangeirismo, e tão longe do extremo sul, onde palpitava o coração da pátria. O sucessor natural de Mito era uma criança e no horizonte político da nação não havia ainda então apontado o vulto juvenil e petulante de Mori Daízen, príncipe de Nagato, parente do assassinado, e que foi quem o secundou no ardor da convicção e na audácia franca de sustentá-lo pelas armas.

À falta de sinceridade e firmeza nos chefes nativistas, ganhava terreno a causa dos estrangeiros, fortalecida agora pela veemência do novo Shogun; herdeiro de muito ódio e muita sede de vingança contra os inimigos da sua dinastia. Mas, enquanto com mil disfarces, e às pressas se levantavam em Yedo, no Coten Yama, terreno de propriedade particular dos Tokugawas, os edifícios destinados às legações ocidentais, ia minando o pais nas mais fundas camadas até aí indiferentes à agitação política, um surdo mal estar, uma angustiosa desesperança no futuro, um desses perigosos descontentamentos do povo, que são já principio de raiva e revolta contra os que governam. Entretanto, nem uma só parcela de tal repugnância pública visava a pessoa do Micado, porque o pobre povo, na sua instintiva vidência, compreendia, adivinhava, que contra os invasores da pátria, só havia agora em campo duas vontades sinceras — a dele próprio e a do Imperador, dois utopistas, dois ignorantes da vida nova, dois ludibriados pelas ambições dos outros, desses outros que só faziam política de intriga, tratando cada qual do seu particular interesse. O Shogun, a Corte Shogunal, a Corte Imperial, os príncipes do Sul, os príncipes do Norte, todos disputavam entre si o maior quinhão de domínio público sem cogitar nenhum deles da ferida que fazia gemer a pátria apunhalada.

Mas esse contínuo gemido sem socorro pode transformar-se em uivo de tempestade feroz; aquele surdo e recalcado desespero pode de súbito fazer-se aspiração nacional e rebentar com fúria, devorando todos os poderes constituídos para só deixar firme e de pé as duas expressões sinceras da nação — O Micado e o povo. Foi isto o que não souberam ver, o Shogun, nem os senhores feudais, nem a Corte do Imperador, nem o seu próprio partido. É fácil enganar diplomatas estrangeiros, mal conhecedores do verdadeiro mecanismo político do país que os engana; é fácil mistificar um monarca espiritual, sofismar-lhe as ordens e torcer-lhe a vontade ao sabor dos ministros que ele supõe governar; mas iludir um povo ferido no seu patriotismo, isso deixa de ser difícil para ser impossível e só pode ter conseqüências desastrosas para o temerário que o surpreender. E foi isso justamente o que aconteceu. Muitos soldados começam logo a abandonar entristecidos os seus nobres chefes, a quem de corpo e alma obedeciam, para se incorporarem à ventura, sem patentes nem garantias, aos grupos sediciosos que se vão formando entre os samurais do sul e os roninos de todo o Império. O recente partido do Imperador estala em pedaços, e cada cisão é mais uma nuvem sinistra que vai bandear-se com a tempestade iminente. Em breve de Hitachi e Chimoosa, as duas províncias viúvas do único príncipe com que contava o povo, surgem multidões armadas que chegam até às portas da capital do Imperador, soltando o mesmo grito de guerra do partido despedaçado, mas agora não como simples embuste para agradar ao chefe e sim fazendo dele o sincero programa do seu ideal político. “Honra ao Micado! Fora os bárbaros!” é agora um ardente grito d’alma e há de ecoar por todos os recantos do país até a explosão da mina.

E começam os saques e as pilhagens, porque toda essa gente que grita, de mãos arrancadas para o céu e olhos desvairados pelo ódio, já não trabalha nem ganha com que comer. O terror invade os campos abundantes e os centros populosos por onde voa essa multidão devastadora, mas ninguém, por medo ou espontânea cumplicidade, não se atreve a denunciar um deles. E das mãos do lavrador e do operário arrancam as ferramentas para as transformar em armas de combate.

Todavia, essa gente, que os alheios historiadores do Japão tratam com tão negro e desabrido rancor; essa gente que exerce a pilhagem para não morrer de fome, nada mais quer do que a deixem morrer gloriosamente defendendo a pátria ferida e sem socorro, a tenda em que vivem honrada e feliz e que agora, tão mesquinha! parece abandonada dos seus divinos príncipes e dos seus humanos deuses. Essa alucinada farândola, que lá vai, legião de espectros! — a correr, uivando através dos campos e das cidades, de província em província, de castelo em castelo, anda doida, como seu Imperador, à procura de uma espada que a conduza contra os malditos abutres que lhe invadem o ninho paterno. É morto porém o grande Mito, o homem que partiu o coração em duas conchas, para encher uma de amor nativo e com ela dar de beber à sua raça, e a outra de ódio envenenado reservada às que viessem lá de fora banquetear-se no inviolável e sagrado arquipélago de Amateras; é morto o grande Mito, e os príncipes que aí restam de pé, nem parecem descenderem dos preclaros daimos dos tempos heróicos — Satzuma negou-se a comandar o bando desamparado; negaram-se outros; negaram-se todos.

Então, como as primeiras bolhas de uma efervescência subterrânea, irrompem por aqui e por ali, em plena rua das duas capitais e das cidades imediatas, represálias cruéis já ensopadas em sangue: no dia 14 de janeiro de 1862 assassinam em Yedo a golpes de machado o Secretário da Legação norte-americana, Heusken, então interinamente encarregado de negócios, e que acabava de representar papel saliente nas pretensões internacionais do seu país; em 15 de julho do mesmo ano, o templo cedido pelo Shogun à Inglaterra para ai fazer funcionar provisoriamente a sua Legação, é atacado durante a noite e são estranguladas as duas sentinelas inglesas que o guardavam e detruídos todos os móveis, escudo d’armas, bandeiras, livros e papéis que havia dentro; em seguida é uma tentativa de morte contra Ando Tsusima, que escapou gravemente ferido e inutilizado para o resto da vida, tendo de abandonar por vez o Governo no qual persistia em atividade como ajudante d’ordens de Iyemochi; depois foi uma descarga de arcabuzes contra um grupo de cinco estrangeiros que passeavam no Tokaido e o assassínio do inglês Richardson; logo adiante o incêndio da nova Legação da Inglaterra, cujo edifício se acabava de construir no parque de Goten Yama em Kioto; e outros, e outros desforços se sucederam, e outros e outros terão de vir, e as provocações por parte dos nacionais se irão multiplicando cada vez mais cruas e destemidas. O bando impetuoso avulta e enrobustece de dia para dia; já não é a humilde farândola que suplicava um braço armado, é agora um indômito vulcão que rola de norte a sul, de leste a oeste, deixando atrás de si o arquipélago aceso na cólera por ele desencadeada; é um baluarte ambulante que à nação inteira se impõe pelo desespero da causa que o agita; é uma força tempestuosa, desordenada e cega, que depois de varrer a necrópole dos Tokugawa em Nikko, decepando as centenas de ídolos de granito celebrados dos shoguns passados, vai à Corte Imperial tomar-lhe contas pela infame lentidão e covarde cautela que estão pondo seus membros em cumprir as ordens do Chefe do Estado, e vai depois ao castelo do próprio Imperador para pedir-lhe que se não deixe ludibriar por mais tempo, que abandone a sua túnica celestial, envergue as armas dos seus antepassados de antes de Yoritomo e venha cá fora à rua, entre o seu povo, repelir à frente dele os bárbaros atrevidos.

O soberano não aceitou o alvitre, mas atendeu comovido aos que reclamavam; chegou a mandar, contra todas as fórmulas da etiqueta micadoal, descer as portas do chiro, abrir as portas do sagrado recinto e mostrar-se à multidão, envolto espectralmente da cabeça aos pés, num enorme véu todo negro, que lhe não deixava transparecer o menor vislumbre das suas formas de homem.

A multidão prosternou-se com um gemido de súplica, emborcando por terra, braços estendidos, rosto colado ao chão. E aquela imóvel sombra divina, daquele mistério todo negro, uma voz saiu e ressoou, amiga e humana, no meio do religioso silêncio, como um balbuciar de bênçãos enviadas pelo céu. A boca do santo falou pela segunda vez, para dizer:

– O espírito dos meus avós penetrou vossas entranhas e é convosco! A vossa vontade é a vontade do meu coração, e ela se fará verdade, se os Deuses a quem pertenço me não tomarem antes para junto de nossa mãe formosa e cheia de luz. Em nome de Amateras vos digo que tomeis ao vosso lar pelo caminho da satisfação: vou remeter ao Shogun ordem terminante para repelir os bárbaros. Ide vós, e que os olhos de Izananmi vos acompanhem pela estrada!

Cerrou-se o reposteiro do santuário e desapareceu o divino espectro. A multidão ergueu-se com um suspiro de consolo, e foi feliz e reconfortada de esperança que retirou do sagrado reduto, bradando o seu grito de guerra contra os estrangeiros e em honra do Micado.

Este, cumprindo o que acabava de prometer, expediu logo ao Shogun por cinco kugês uma ordem escrita de seu próprio punho, na qual, descobrindo-se de novo, fazia já sentir bem ao vivo a sua ascendência monárquica. Os emissários partiram a galope para Yedo e o bando de nativistas atirou-se a correr na mesma direção.

Eis o que dizia a carta do Imperador:

Desde a primeira vinda dos tais americanos, Eu Micado, dei ordem para varrê-los do meu Império. Não fui atendido. Meu coração vive agitado dia e noite, porque até hoje nada se decidiu com respeito à expulsão dos bárbaros. Entre as forças regulares do Estado e as forças vivas da Nação não existe a menor coerência; de sorte que, em vez de guerra com o inimigo exterior por mim determinada, é a guerra civil que ameaça agora devorar e país. Para evitar esta tão grande calamidade e outras que depois ainda sobrevenham, pois a desgraça é má e medrosa e nunca se apresenta desacompanhada, recomendo ao Shogun que delibere positivamente sobre a expulsão dos invasores, e leve quanto antes esta minha irrevogável ordem ao conhecimento de todos os príncipes fortes do Império. O Shogun, na qualidade de Comandante em Chefe dessas forças, há de achar meios estratégicos de pôr em execução as minhas ordens. Tal é o seu dever e tal é a minha vontade de Imperador.

“Vigésimo oitavo dia do quinto mês” (25 de junho de 1862).

Os nativistas não tardaram a surgir em Yedo, reclamando a execução da ordem imperial e declarando ao Shogun que se achavam prontos a expulsar os bárbaros, se lhes desse ele elementos para a luta. Por única resposta, Iyemochi, que se havia prevenido, mandou destroçá-los pelos seus oitenta mil hattamotos.

Seguiu-se uma infernal tragédia, porque os visionários tentaram resistir e assaltar o castelo e foram completamente esmagados, deixando mais de vinte mil mortos no campo da sua heróica temeridade. Os que conseguiram escapar à rápida carnificina despejaram-se como demônios pelas ruas de Yedo, a lançar fogo em quarteirões inteiros da vastíssima capital. Mas naquele mesmo decreto do Imperador estava implicitamente imposta a anistia dos implicados nos sucessos contra Ii Kammon, e o Shogun, para não desobedecer de frente ao Soberano, teve que desencadear por suas próprias mãos os príncipes inimigos do Shogunato, Owari, Echízen, Uwajima e os outros postos em liberdade vão apresentar-se logo ao Micado e passam, por ordem deste, a exercer altos cargos na Corte Imperial, ou são restabelecidos na posição oficial que dantes ocupavam; por outro lado, o Monarca resolve punir com a supressão parcial nas rendas os daimos que s~ tinham posto ao lado de Ii Kammon.

Como se vê, já em fatos se traduzem os sonhos do divino fantasma e a situação política começa a definir-se. Os príncipes de Satzuma e de Tosa, acompanhados pelo de Nagato, o jovem e ardente Mori que até então não tinha aparecido na cena política, vão também apresentar-se ao Imperador e oferecer-lhe os seus serviços na defesa do Trono. Esses três príncipes formavam o mais poderoso núcleo de resistência entre todos os daimos do Império. Komei recebeu-os nadando em júbilo e entregou-lhes logo a guarda e segurança da sua capital, agora a regurgitar de população com o enxurro fugitivo dos litorais; gente fraca e desarmada que, no momento do perigo, ia abrigar-se estarrecida de medo à protetora sombra do filho dos deuses. Volvia esse povo, como no principio da sua formação étnica a agremiar-se em torno do centro espiritual da sua raça.

Para a sagrada Kioto voltavam-se todas as vistas, e os fidalgos não ligados diretamente ao Shogun por interesses dinásticos de família, cargo público ou solidariedade política, entraram de abandonar Yedo que era nessa época, como ainda é hoje, a maior e mais importante cidade do Japão; nos rastros da nobreza seguem também os artistas e os obreiros, e afinal os mercadores, com a tenda às costas, arribam por sua vez. É o abandono palpável da capital do homem mau. O restante da população levanta-se em massa, e da noite para o dia a incomensurável Yedo despovoa-se de todo, não ficando lá senão os Tokugawas, os hattamotos, e a Corte de Iyemochi com as suas duas câmaras, e os seus samurais e funcionários permanentes

Por essa ocasião, a 15 de abril de 1863, o Ministro plenipotenciário da Inglaterra, em termos arrogantes, reclama uma indenização de cem mil libras esterlinas pelo assassínio de Richardson, desculpas formais pedidas pelo Governo Japonês ao Governo daquela Potência, e a execução dos criminosos diante de uma força naval da Marinha Britânica que iria à terra só para esse fim; e mais vinte e cinco mil libras pelos feridos em diversas ocasiões, e mais dez mil pelas duas sentinelas mortas no ataque à legação provisória, limitando em vinte dias o prazo para uma resposta categórica e declarando que, no caso de recusa ou negligência por parte do Governo Japonês, passaria a questão às mãos do Comandante em Chefe das forças navais de Sua Majestade Britânica nas águas do Extremo Oriente, o Almirante Kuper, para que tomasse este as medidas coercivas que lhe parecessem acertadas.

Bárbaros lhe chamavam os filhos do país, e com razão, porque bárbaro não é só o que comete barbarias, é também todo aquele que comete barbaridades.
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continua…
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Fontes:
http://www.biblio.com.br
Pintura =
http://meublocodeanotacoes.blogspot.com

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O Nosso Português de Cada Dia (Para Mim Fazer – Entre Eu e Você)

Para Mim Fazer

De jeito nenhum. Nessa forma, você não faz nada. Analisemos essa construção. Nós temos a preposição PARA, temos o pronome MIM e o verbo FAZER que está na forma nominal, como diz a gramática.

Entendendo o sentido da expressão, nós vemos que o pronome MIM é quem vai praticar a ação expressa pelo verbo que vem em seguida. E é aí que está o erro. O pronome MIM, segundo a gramática, não pode ser o agente de verbo nenhum. Em outras palavras, os pronomes MIM e TI nunca podem ser sujeitos da ação expressa pelo verbo. Assim, nesse tipo de construção, use sempre os pronomes EU e TU, nunca MIM e TI.

Dessa forma, diga sempre:
Para eu fazer / para tu fazeres
Para eu contar / para tu contares
Para eu estudar / para tu estudares
E assim por diante.
===========================
Entre Eu e Você

Esse é um erro muito comum. O correto é dizer ENTRE mim e você.

E por quê?

A resposta é simples. A palavra ENTRE é uma preposição. E diz uma regra gramatical que não se usa o pronome pessoal do caso reto EU após preposição. Segundo a regra, após preposição nós devemos usar sempre o pronome pessoal do caso oblíquo, que são:

me, mim, comigo,
te, ti, contigo,
o, a, lhe, se, si, consigo
nos, conosco,
vos, convosco
os, as, lhes, se si, consigo

Por isso, diga sempre: ENTRE MIM e você.

Fonte:
Prof. Dr. Ozíris Borges Filho. http://www.movimentodasartes.com.br/

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Luis Kandjimbo (Breve História da Ficção Narrativa Angolana nos últimos 50 anos)

5. Boaventura Cardoso: A voz representativa da geração de 70

O escritor, que nasceu em Luanda em 26 de Julho de 1944, passou parte da sua infância na região de Malanji. Fez os estudos primários e secundários em Luanda. É licenciado em Ciências Sociais. O início da sua carreira literária data de 1967, com a publicação de vários contos e poemas nos jornais luandenses. A sua obra resume-se em três livros de contos e dois romances, nomeadamente: Dizanga dia Muenhu, O Fogo da Fala, A Morte do Velho Kipacaça e O Sino do Fogo, Maio, Mês de Maria. Com efeito, é no plano da linguagem que Boaventura Cardoso alcança resultados que o inscrevem por direito próprio na galeria dos autores mais representativos da sua geração e da literatura angolana.

Os registros de discursos que atravessam toda essa produção textual, numa deliberada adequação do espaço físico e social à modulação fónico-linguística das personagens, comportam além do labor estilístico, uma estrutura de superfície com construções sintáticas apontando para a existência de sujeitos textuais responsáveis por tais ações enunciativas, onde o autor introduz estratégias discursivas da oralidade. Aí subjazem igualmente estilos de comportamento e uma figuração léxico-gramatical que os nomes hipocorísticos das personagens corroboram. Esse aparente minimalismo textual que a elipse institui, esconde paradoxalmente um esforço em adensar os contornos não-verbais e as diversas circunstâncias envolventes, isto é, os chamados não-ditos culturais. Do ponto de vista sociológico, a estratégias de Boaventura Cardoso, à semelhança de Luandino Vieira, inspira rigorosamente à denúncia de clivagens de ordem diastrática no funcionamento da língua portuguesa em Angola.

A diglossia imprópria é para este autor um importante instrumento. De tal modo que todos os textos parecem levanta a problemática da língua literária, relativizando-a no contexto angolano. De onde a ação desviacionista do autor traduz-se em exploração das virtualidades do sistema linguístico. Os resultados que alcança no plano formal, deixam de ser suficientes para explicar tais níveis de realização, exigindo-se ainda a convocação do projeto estético subjacente. Mas semelhante constatação só é possível se tiver em atenção a situação de discurso em que os textos se engendram. Os dois últimos romances apresentam um coerente fio condutor do ponto de vista da concatenação das histórias respectivas.

Se O Signo do Fogo é um romance que se inscreve no contexto temporal anterior à independência,ou seja, no período colonial, já em Maio, Mês de Maria temos um típico romance pós-colonial ou do pós-independência, em que se incorporam de elementos do imaginário religioso perante as crises que fraturam o tecido social no centro do qual está a personagem chamada João Segunda. O imaginário religioso e sagrado é vazado através das relações que João Segunda estabelece com um animal doméstico, a cabra Tulumba, em cujo comportamento se podem interpretar os sinais premonitórios e reprobatótios das peripécias do protagonista.

6. Os narradores da Geração de 80

Para a ficção narrativa, a geração de 80 traz vários nomes em que se incluem escritores que emergem na diáspora. A produção global desta geração comporta cerca de cinquenta títulos. Do interior destacam-se entre outros, Cikakata Mbalundu, um dos fundadores da Brigada da Huíla; Mota Yekenha, um dos poucos clérigos da geração que se dedicam ao romance, trazendo inovações no capítulo da linguagem, ao lado de Jacinto de Lemos; João Melo cujo livro de contos introduz um novo segmento temático, ao dar um tratamento privilegiado ao tema do amor e do erotismo. O mesmo acontece com Rosária Silva, um dos poucos nomes femininos que se revelam neste gênero em prosa. Da diáspora são dignos de referência Sousa Jamba e José Eduardo Agualusa.

Cikakata Mbalundu é natural do Mungo, província do Huambo onde nasceu em 1955. Fez os estudos na capital da província. Fixou-se na cidade do Lubango em fins da década de 70. Aí iniciou os estudos universitários em filologia germânica, vindo a licenciar-se em psicologia pelo ISCED, designação dada posteriormente a antiga Faculdade de Letras, no âmbito da reforma do ensino superior. Reside atualmente em Portugal onde prepara a sua tese de doutoramento na Universidade do Minho. Publicou dois romances: Cipembúwa (1986) e O Feitiço de Rama de Abóbora (1996). Com ambas as obras o autor participou no concurso do Prémio Sonangol de Literatura,tendo a primeira sido distinguida com uma menção honrosa e a segunda merecido o troféu do ano de 1991.

Jacinto de Lemos nasceu em Icolo – e – Bengo a 2 de Janeiro de 1961. É técnico médio de bioquímica. Publicou Undengue (1989) que foi menção honrosa do Concurso Sonangol de Literatura em 1986 e O Pano Preto da Velha Mabunda ( 1997).

João Melo é natural de Luanda, onde nasceu em 1955. Fez estudos de Direito em Coimbra. Licenciou-se em comunicação social pela Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro, tendo obtido o mestrado em comunicação e cultura. Foi Secretário Geral da União dos Escritores Angolanos. Atualmente é deputado à Assembleia Nacional.Publicou uma única obra de ficção narrativa, Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir (1998).
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José Eduardo Agualusa nasceu em Dezembro de 1960, na cidade do Huambo. Reside em Lisboa. É jornalista do Público e da RDP-África. Publicou A Conjura (1989) que mereceu o Prémio Sonangol de Literatura, D.Nicolau Água-Rosada e Outras Estórias Verdadeiras e Inverossímeis (1990), A Feira dos Assombrados (1992), Estação das Chuvas (1996), Nação Crioula (1997).

Mota Yekenha nasceu no Cipeio, província do Huambo, em Fevereiro de 1962. Aí viveu a infância e juventude. Frequentou a escola primária na missão católica local. Formou-se em filosofia e teologia no Seminário Maior do Huambo. Tem um romance publicado em 1992, sob o título Kambonha, com a chancela da Europress.

Roderick Nehone nasceu em Luanda a 26 de Março de 1965. Fez os estudos secundários e universitários em Cuba. Licenciou-se em Direito pela Universidade Central de Las Villas. É um dos autores que mais recentemente se revelaram no plano da ficção narrativa. Publicou Estórias Dispersas de um Reino (1996) e O Ano do Cão (1998). Ambas as obras foram agraciadas com o Prêmio Sonangol de Literatura.

Rosária Silva é natural do Kwanza Norte, onde nasceu em 4 de Abril de 1959. Aí realizou os estudos primários e secundários. É formada em Ciências da Educação, na especialidade de linguística portuguesa, pelo Instituto Superior da Universidade Agostinho Neto. Publicou Totonya (1998),uma narrativa que mereceu menção honrosa do Prêmio Literário António Jacinto.

Sousa Jamba nasceu na vila do Dondi, província do Huambo, em 1966. Passou a infância na capital da província. Em 1976 emigra para a Zâmbia, em consequência da guerra. Fez os estudos em língua inglesa, e com ela se iniciou na atividade literária. Em 1986 foi para Londres com o objetivo de estudar jornalismo. Trabalhou para o jornal The Spectator onde lhe foi atribuído o Prêmio Shiva Naipul. Reside atualmente em Londres. Publicou dois romances: Patriotas (1991) e Confissão Tropical.

Nas obras dos autores que constituem o elenco dos mais representativos da geração de 80, observa-se a predominância de quatro temas principais: a guerra e seu impacto na psicologia coletiva pós-colonial ( Cipembúwa, Patriotas); o sagrado na vida quotidiana (O Feitiço de Rama de Abóbora, O Pano Preto da Velha Mabunda, Totonya); o amor e o erotismo ( Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir, Totonya); a ironia sobre degradação social e a precariedade da existência humana ( Kambonha, O Ano do Cão).

No plano da estética narrativa, verifica-se uma diversidade de recursos, destacando-se a linguagem, em que se notam, além de ocorrências e situações de diglossia imprópria, a estrutura narrativa, os diálogos, a construção de personagens, sua tipologia e tratamento em variados contextos, que vão desde o urbano ao rural, com a articulação de elementos metafísicos da civilização bantu dos povos de Angola. Em tudo isto os autores procuram levar ao máximo a rentabilização das suas experiências. Tais aspectos evidenciam já sinais de uma ruptura, relativamente à ficção das décadas de 60 e 70, apesar de os seus indícios não serem ainda muito abundantes.

Uma perversa tematização da história no quadro da literatura angolana, registra-se nesta geração. É o caso de José Eduardo Agualusa que tendo iniciado a sua escrita narrativa com tratamento de um tema histórico, representa o modo como escritores contemporâneos podem efetivamente produzir textos típicos da literatura colonial. É que numa boa parte, para não dizer em todos os livros subsequentes demonstra a sua predileção pela chamada estética lusotropicalista e crioula, teoricamente elaboradas pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre e, no contexto angolano, pelo ensaísta Mário António com a chamada teoria da crioulidade, que é uma versão do lusotropicalismo. Através de tais elucubrações, determinados críticos e ficcionistas pretendem, com variado arsenal de saudosismo, alusões e simbolismos, reavivar um mundo africano visto sob a batuta da cultura e ideais de Portugal nos trópicos. Basta ler Nação Crioula de José Eduardo Agualusa.

Não é ilusória a afirmação segundo a qual despontam na geração das incertezas , a geração de 80, valores que aduzem níveis de inovação a ter em conta. O espaço não permite que sobre ela nos detenhamos. Mas fica a lista de alguns autores e respectivas obras.

Alberto Oliveira Pinto, Mazanga (1998);
Ana Major, Estrela Lundu (1998), O Rival ( 1998);
António Fonseca Crônicas de um tempo de silêncio,(1988);
Carlos Ferreira, Sabor a Sal- Crônicas de dias cinzentos (1985);
Carmo Neto, A Forja (1985), Meu Réu de colarinho branco ( 1986);
Eduardo Pimenta, Dipanda (1985);
Isaquiel Cori, Sacudidos pelo Vento (1997);
João Miranda, Nambuangongo (1998);
João Portelinha, Crônicas de risos e lágrimas (1997);
Jorge Ntyamba, Cinquenta e seis dias de terror e morte (1995);
Luís Rosa Lopes, A gota d’água ( 1985);
Manuel da Costa, O fervor da kianda (1997);
Miguel Júnior, A bessangana kikinhas da Fonseca (1994);
Nda Lussolo,O homem das sereias (1996), Puko, o Ngombo, Deus da verdade 1997);
Sílvio Peixoto, Crónicas Indigestas (1985), O abraço da guilhotina (1990);
Tiago de Buca, Esquebras de uma paixão (1998);
Timóteo Ulika, A rola de Cingandu (1990).
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continua… Esboço para uma Bibliografia da Ficção Literária Angolana
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Fonte:
http://www.nexus.ao/kandjimbo/breve_historia.htm

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Antonio Sávio (Com os Olhos de achar Poesia)

Do porto as velas cercam o sol no fim da tarde
Os homens descarregam das jangadas a geometria infinda das redes
Na peregrinação dos músculos cansados
No olhar crispado dos peixes

No fim da tarde o sol escorre como a lágrima na face,
As ondas se movimentam como a repiração, como arfar de um peito
E com efeito, o sol que lambe os rostos ainda arde
Arde como a paixão, sem brida arreio ou freio.

No fim das tardes, do chocalho de dias que são os anos
A escaler, a jangada, os peixes, as ondas ainda se hamonizam
E na mesma valsa dançam, sob as retinas deste olhar praiano.
No fim da tarde ninguém diria, mas tudo é possível, com os olhos de achar poesia.

Fonte:
http://cariricult.blogspot.com/

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Bicentenário de Edgar Allan Poe

Depois de anos de miséria e infortúnio, parecia que Edgar Allan Poe finalmente teria a paz e a estabilidade financeira tão sonhadas. No dia 17 de outubro de 1849, iria se casar com Sarah Elmira Royster, que, agora viúva, chamava-se A. B. Shelton. Ela se encontrava em boas condições monetárias e estava disposta a se tornar sua esposa; haviam noivado antes, mas ambos eram muitos jovens, e seus parentes se opuseram ao casamento. Quis o destino fazê-los se reencontrar 23 anos depois. Apesar de prometer não mais tocar na bebida, que tantos dissabores lhe trouxera, o autor continuava bebendo, mas, segundo relatos da época, tinha partido de Richmond (EUA) no dia 23 de setembro sóbrio. Era de manhã quando deixou a cidade e foi de navio até Baltimore, chegando em 29 de setembro. Os acontecimentos lá ocorridos permanecem nebulosos até hoje. O que se averiguou posteriormente foi que o escritor bebeu muito e caiu na mão de uma quadrilha. Esta, ao que tudo indica, misturou alguma droga em sua bebida para ele não poder votar nas eleições que estavam ocorrendo naquela ocasião. Foi encontrado no dia 3 de outubro numa taverna suspeitíssima da região, pelo Dr. James E. Snodgrass, velho amigo, num estado lastimável, moribundo e semiconsciente. Quando Sondgrass o levou para o hospital da cidade, já estava inconsciente. Permaneceu internado por três dias, apresentando pequenos intervalos de lucidez. E nesses períodos sempre chamava por um tal de “Reynolds”. Suas últimas palavras foram “Senhor, ajudai minha pobre alma”. Com essa sombria tragédia final, quase que imitando certos mistérios de sua ficção, nascia o mito de tantas Histórias extraordinárias.

Poe é considerado o “pai” do romance policial, tendo influenciado autores em todo o mundo ao traçar as regras e os princípios do gênero, que pouco mudou até nossos dias, e dos contos de terror, mistério e morte, que ajudou a renovar, trazendo novo frisson para eles. Com seus contos filosóficos e humorísticos, houve ainda espaço para o sarcasmo e o satírico, como reflexo de alguns períodos menos turbulentos e miseráveis de sua vida pessoal, ou simplesmente como forma de rir das próprias mazelas em sua curta existência de quatro décadas, que teve ainda poemas seminais, como O corvo. Os delírios e o desespero só se acalmaram na manhã de 7 de outubro de 1849. Morria o homem que levou para as letras norte-americanas o respeito e o reconhecimento universais.

SIMBIOSE ENTRE VIDA E OBRA

Ele pertence ao panteão de autores que exigem, para entender a obra, conhecer a vida. Nasceu Edgar Poe, a 19 de janeiro de 1809, filho dos atores amadores e medíocres Davi e Isabel. O pai alcoólatra abandonaria os filhos, incluindo o primogênito, William Henry Leonard, e a filha caçula, Rosália Poe, provavelmente nos idos de 1810. Um ano depois, sua mãe morreria em situação de miséria extrema. A pobreza e a morte iriam espreitar sua existência, como um corvo a repetir sempre “Nunca mais!”, palavras pronunciadas pelo personagem de seu poema mais famoso e que o tornou conhecido e respeitado mundialmente, O corvo, publicado originalmente em 29 de janeiro de 1845 na revista Evening Mirror. Seu irmão morreu anos depois e sua irmã faleceria louca numa instituição de caridade. Além disso, sua prima e depois esposa, Virgínia, morreria de tuberculose em situação material lastimável, em 1847, dois anos antes da morte do próprio escritor.

Órfão, Poe foi criado por um próspero comerciante escocês, John Allan, e sua esposa, Frances Allan. Incluiu o “Allan” em seu nome em homenagem a eles. Foi nesse período da infância e juventude que teve conforto material e carinho da mãe adotiva, o que lhe faltaria pelo resto da vida. Morou por cinco anos na Inglaterra, conheceu a Escócia, e esses lugares estão presentes em alguns de seus contos, como William Wilson. Aos 13 anos, já escrevia poesias, e foi nessa época que conheceu Jane Stith Stanard, mãe de um colega, por quem passou a nutrir uma paixão, ao que parece, correspondida. Ela enlouqueceu e morreu algum tempo depois. Esse fato marcou-o para sempre, sendo inclusive a tônica de sua obra. Anos depois, escreveria o poema Para Helena, em sua homenagem.

Alguns biógrafos dizem que ele ficava rondando o túmulo dela no cemitério. Certos poemas de Edgar Allan Poe foram feitos em homenagem a essas paixões platônicas, como Para Annie, que o ensaísta Otto Maria Carpeaux, no monumental História da literatura ocidental (esgotado), considera uma obra-prima. Interessante observar que, mesmo próximo de se casar com a Sra. Shelton, no final da vida, ele dizia que ainda amava a Sra. Annie Richmond, a quem dedicou o poema.

A vida em família e sua relação amigável com o pai adotivo mudariam depois que foi estudar na Universidade de Virgínia. A mesada que John Allan dava era insuficiente, e ele passou a jogar, beber e contrair dívidas. Essa incursão pelo álcool seria um dos principais transtornos do autor e prejudicaria em muito sua estabilidade financeira e profissional. Abandonou a universidade por pressão do pai, que também não via com bons olhos suas pretensões literárias. Eles nunca mais teriam relações próximas e, a partir daí, começava sua peregrinação por cidades, pensões, empregos temporários em jornais, projetos nunca realizados e sua luta para ser reconhecido e viver das letras que passara a produzir.

Alguns fatos de sua trajetória permaneceram nebulosos, muito em decorrência do fato de ter forjado sua autobiografia. Para Carpeaux, ele era um charlatão que inventou uma história para enganar os estudiosos e os críticos depois de sua morte. “Era um neurastênico, gravemente inadaptado à vida, literato paupérrimo entre burgueses arrogantes e jornalistas sensacionalistas. Tinha complexos patológicos”. Mas o crítico brasileiro soube reconhecer sua “…extrema lucidez de espírito, que se revela nos engenhosos contos policiais e em vários tratados científicos”. Fora, portanto, “um homem fora do tempo e do espaço”.

GENIALIDADE E INFLUÊNCIAS

O que torna o escritor de contos policiais, como Os assassinatos da rua Morgue, que inauguraria o gênero policial quando publicado em abril de 1841, incomum e genial? Sua forma de desenvolver essas histórias. Em obras anteriores, já havia os crimes a serem desvendados, mas foi Poe quem deu tratamento diferente para a solução deles no decorrer da trama e no seu clímax. Cabia a solução, na maioria das vezes, ao personagem detetive. Esses detetives, diferentes dos de outros autores até então, têm cultura vasta, são estetas, poetas, cientistas, matemáticos, intuitivos e tiram as conclusões dos fatos analisados, respeitando métodos de trabalho que derivam do raciocínio e da dedução. Para tanto, utilizavam cálculos de probabilidade e análise matemática como ferramenta de trabalho. Foi ele, portanto, quem deu dignidade intelectual às histórias de crimes e mistérios tão em voga no final do século 18 e início do 19.

As influências do autor de O gato preto, A queda da casa de Usher e A carta roubada foram decisivas e amplas na literatura universal. Muitos escritores tornaram- se seus discípulos. O francês Émile Gaboriau criou o personagem Lecoq, que se assemelha ao detetive Dupin, de Poe, e Conan Doyle, com a publicação da novela Um estudo em vermelho, em 1889, trouxe o personagem Sherlock Holmes, o mais conhecido detetive dos romances policiais de todos os tempos, até mais que Dupin, que, evidentemente, lhe serviu de modelo. No campo de histórias de ficção científica e de aventuras fantásticas, Júlio Verne foi seu mais conhecido e talentoso seguidor. Segundo especialistas, a novela Cinco semanas num balão (esgotado) se deriva de Balela do balão; A esfinge dos gelos é a continuação de A narrativa de Arthur Gordon Pym, o texto mais longo de Poe; e, em Vinte mil léguas submarinas há traços de Descida ao Maelström. Além disso, sua escrita influenciaria autores do porte de Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, Paul Valéry e seu mais fervoroso discípulo, Charles Baudelaire, que traduziu alguns de seus textos para o francês e fez um esboço biográfico do autor e de seus livros em Ensaios sobre Edgar Allan Poe. Outros autores lhe devem algum tributo, como Fiódor Dostoiévski, Fernando Pessoa, que fez a versão de O corvo para o português, assim como Machado de Assis, que também traduziu o poema para nosso idioma.

Trechos de um conto de Edgar Allan Poe, Berenice, servem como epígra fe para sua vida, e, portanto, para sua obra. “A desgraça é variada, o infortúnio da terra é multiforme.” Ou, ainda: “A lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje” e “as amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que podiam ter existido”.

Fonte:
Revista da Cultura. Edição 18 – Janeiro de 2009. Seção Perfil. p. 14.

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Edgar Allan Poe (Poema: A Cidade no Mar)

Olhai! a Morte edificou seu trono
numa estranha cidade solitária
por entre as sombras do longínquo oeste.
Lá, os bons, os maus, os piores e os melhores,
foram todos buscar repouso eterno.
Seus monumentos, catedrais e torres
(torres que o tempo rói e nào vacilam!)
em nada se parecem com os humanos.
E em volta, pelos ventos olvidadas,
olhando o firmamento, silenciosas
e calmas, dormem águas melancólicas.

Ah! luz nenhuma cai do céu sagrado
sobre a cidade, em sua imensa noite.
Mas um clarão que vem do oecano lívido
invade dos torreões, silentemente,
e sobe, iluminando capitéis,
pórticos régios, cúpulas e cimos,
templos e babilônicas muralhas;
sobe aos arcos templos magníficos, sem conta,
onde os frios se enroscam e entretecem
de vinhedos, violetas, sempre-vivas.

Olhando o firmamento, silenciosas,
calmas, dormem as águias melancólicas.
Torreões e sombras tanto se confundem
que é tudo como solto nos espaços.
E a Morte, do alto de soberba torre,
contempla, gigantesca, o panorama.
Lá, os sepulcros e os templos se escancaram
mesmo ao nível das águas luminosas;
mas não pode a riqueza portenhosa
dos ídolos com olhos de diamente,
nem das jóias que riem sobre os mortos,
tirar as vagas de seu leito imóvel;
pois, ai! nem leve movimento ondula
esse imenso deserto cristalino!
Nem ondas falam de possíveis ventos
sobre mares distantes, mais felizes;
ondas nào contam que existiram ventos
em mar de menos espantosa calma.

Mas, vede! Um frêmito percorre os ares.
Uma onda… Fez-se ali um movimento!
e dir-se-ia que as torres vacilaram
e afundaram de leve na água turva,
abrindo com seus cumes, debilmente,
um vazio nos céus enevoados.
As ondas têm, agora, luz mais rubra,
as horas fluem, lânguidas e fracas.
E quando, entre gemidos sobre-humanos,
a cidade submersa for fixar-se no fundo,
o Inferno, erguido de mil tronos,
curvar-se-á, reverente.

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Edgar Allan Poe (Sombra: uma parábola)

“Na verdade, embora eu caminhe através do vale da Sombra …”

SALMO de David.

Vós que me ledes, por certo estais entre os vivos, mas eu que escrevo, terei partido há muito para a região das sombras. Porque de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão, antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide, e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados, com estilete de ferro.

O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na terra. Pois muitos prodígios e sinais se haviam produzido e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se, não somente no orbe físico da terra, mas nas almas, imaginações e meditações da humanidade.

Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes de nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de bronze, de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o pressentimento e a lembrança do Flagelo não podiam ser assim excluídos. Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar precisa conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade, e, sobretudo, aquele terrível estado de existência, que as pessoas nervosas experimentam, quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimiam nossos ombros os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas as coisas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro, que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava, sobre a redonda mesa de ébano, a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo, que era histérico. E cantávamos as canções de Anacreonte, que são doidas, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido ao comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria, salvo seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão, e, mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Telos. Mas, pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvaecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções , se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua, quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto de um homem: mas não era a sombra de um homem, nem a sombra de um Deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E tremendo, um instante, entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente, sobre a superfície da porta de ébano.

Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de Deus, de deus da Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável . Os pés do jovem Zoilo amortalhado encontravam-se, se bem me lembro, na porta na qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra, no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos, e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e seu lugar de nascimento. E a sombra respondeu:

— Eu sou a sombra e minha morada está perto das Catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais, que orlam o sujo canal de Caronte.

E então, todos os sete erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era o de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando nas suas inflexões, de silaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos, que a morte ceifara.

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Edgar Allan Poe (1809 – 1849)

NASCIMENTO

ATÉ BEM POUCOS ANOS, vinha sendo a biografia de Poe uma das mais obscuras e controvertidas no campo das letras americanas. Os cuidadosos trabalhos de vários eruditos e o aparecimento periódico de novas provas, devidas a pesquisas e felizes acasos, no correr dos anos, tornaram agora possivel reconstruir, com um grau mais ou menos definitivo de exatidão, os principais acontecimentos da vida de uma das poucas figuras da literatura americana que alcançaram um nicho na galeria da fama universal. No que concerne aos acontecimentos e aos fatos do calendário da vida do poeta, nao há mais desculpa em falar no “mistério de Poe”.

O enigma, se algum há, que continua preso ao nome de Edgar Allan Poe deve ser encontrado mais no caráter do homem do que nos fatos de sua jornada terrestre.

Edgar AlIan Poe nasceu no n.0 33 da Rua Hollis, em Boston (Massachusetts), a 19 de janeiro de 1809, filho de pobres atores, Davi e Isabel (nascida Arnold) Poe. Seus pais achavam-se então cumprindo um contrato num teatro de Boston e as representações de ambos, juntamente com sua permanência em vários lugares, durante sua carreira errante, podem ser acompanhadas plenamente pelos programas de teatro do tempo.

LINHAGEM PATERNA

O PAI DO POETA era um tal Davi Poe, de Baltimore (Maryland), que havia abandonado o estudo de Direito, naquela cidade, para seguir a carreira teatral, contra o desejo de sua família. Os Poe haviam-se estabelecido na América, duas ou três gerações antes do nascimento de Edgar.

Traça-se distintamente sua linha ascendente até Dring, da paróquia de Kildallen, do Condado de Cavan, na Irlanda, e daí até a paróquia de Fenwick, em Ayrshire, na Escócia. Portanto, derivavam eles dum tronco escoto-irlandês, sendo duvidoso que haja traços de celtas. Os primeiros Poe vieram para a América aí por 1739. Os imediatos antepassados paternos do poeta desembarcaram em Newcastle (Delaware), em 1748, ou pouco mais cedo. Eram eles João Poe e sua mulher, Joana McBride Poe, que foram estabelecer-se na Pensilvânia oriental. Este casal teve dez filhos, entre os quais Davi, que foi o avô do poeta. Davi Poe casou-se com Isabel Cairnes, também de ascendência escoto-irlandesa, e viveram em Lancaster (Pensilvânia), donde, algum tempo antes de rebentar a Revolução Americana, se removeram para Baltimore (Maryland).

Davi Poe e sua mulher, Isabel Cairnes Poe, tomaram o partido patriótico da Revolução. Davi mostrou-se ativo em expulsar de Baltimore os partidários do Rei e foi nomeado “Deputado Quartel-Mestre Assistente”, o que significava ser ele agente de aprovisionamentos militares para o Exército Revolucionário. Diz-se que ele prestou considerável auxílio a Lafayette, durante as campanhas da Virgínia e do Sul, e por essa patriótica atividade recebeu o título de “General” honorário.

Sua mulher, Isabel, tomou parte ativa na confecção de roupas para o Exército Continental. Davi e Isabel Poe tiveram sete filhos. Davi, o mais velho, veio a ser o pai do poeta. Duas irmãs de Davi, Elisa Poe (depois Sra. Henry Herring) e Maria Poe (mais tarde Sra. William Clemm), entram na história da vida do poeta, a última, especialmente, por se ter tornado sua sogra, além de ser sua tia. Com ela ele viveu de 1835 a 1849.

O jovem Davi Poe estava destinado ao estudo do Direito, mas, como já mencionamos, deixou por fim a cidade natal para seguir a carreira do teatro. Sua estréia profissional realizou-se em Charleston (Carolina do Sul), em dezembro de 1803. Uma noticia teatral dessa representação, num jornal local, descreve Davi Poe como sendo extremamente timido, ao passo que: … Sua voz parece clara, melodiosa e variavel; qual possa ser seu compasso, só se revela quando ele representa libertado de sua timidez. Sua dicção parece ser bem distinta e articulada; e seu rosto e sua pessoa dizem muito em seu favor. Seu tamanho é daquele porte bem adequado à ação geral, se seu talento se adaptasse ao soco e ao coturno…

É este, talvez, o único testemunho direto existente do aspecto físico do pai do poeta. Não se conhecem retratos dele. Suas qualidades histriônicas eram, quando muito, limitadas. Continuou a representar papéis menores em várias cidades do Sul e, em janeiro de 1806, casou-se com Isabel Arnold Hopkins, jovem viúva sem filhos, também atriz, cujo marido morrera havia poucos meses. Isabel Arnold Poe veio a ser a mãe de Edgar Allan Poe.

LINHAGEM MATERNA

A JOVEM VIUVA, com quem Davi Poe se casou em 1806, nascera na Inglaterra, na primavera de 1787. Era filha de Henry Arnold e de Isabel Arnold (nascida Smith), ambos atores no Teatro Real de Covent Garden, em Londres. Henry Arnold morreu, ao que parece, em 1793. Sua viúva continuou a sustentar-se e à filha, representando e cantando, e, em 1796, trazendo consigo sua jovem filha, veio para a América, desembarcando em Boston. A Sra. Arnold continuou sua carreira profissional na América, a princípio com pouquíssimo êxito. Ou imediatamente antes, ou logo depois de chegar aos Estados Unidos, porém, casou-se uma segunda vez, com um tal Charles Tubbs, inglês de poucos dotes e pouco caráter.

O casal continuou a representar, a cantar e dançar em várias cidades, por toda a costa oriental, e a jovem Srta. Arnold foi logo notada nos cartazes, aparecendo em papéis juvenis, como membro de várias companhias a que sua família pertencia. O Sr. e Sra. Tubbs desapareceram de vista, aí por 1798, mas a carreira de Isabel Arnold, mãe de Poe, pode ser seguida, cuidadosamente, pelos vários cartazes de anúncios e notícias nos jornais das diversas cidades em que representou, até sua morte, em 1811. Foi durante suas viagens como atriz que se casou com C. D. Hopkins, também ator, em agosto de 1802. Não houve filhos dessa união. Hopkins morreu três anos depois, e, em 1806, como foi dito antes, sua viúva casou-se com Davi Poe.

O casal continuou a representar junto, mas com muito pouco êxito. Nasceram-lhe três filhos: William Henry Leonard, nascido em Boston, em 1807; Edgar, nascido em Boston, em 1809; e Rosália, em Norfolk (Virgínia), provavelmente em dezembro de 1810. Devido à pobreza deles, que era sempre extrema, o primeiro filho, Henry, fora deixado aos cuidados de seus avós, em Baltimore, logo depois de nascido. Edgar nascera enquanto seus pais cumpriam um contrato no Teatro de Boston. No verão de 1809, os Poe foram para Nova York, onde Davi Poe ou morreu ou abandonou sua mulher, provavelmente esta última coisa.

A Sra. Poe foi abandonada com o menino Edgar e, algum tempo depois, deu à luz a uma filha. Lançou-se suspeita, mais tarde, a respeito da paternidade dessa última criança e sobre a reputação da Sra. Poe, suseita essa que desempenhou desgraçado papel nas vidas de seus filhos. Não é preciso dizer que tal suspeita era injusta.

De 1810 em diante, a Sra. Poe continuou, embora com a saúde decadente, a aparecer em vários papéis em Norfolk (Virgínia), em Charleston (Carolina do Sul), e em Richmond. No inverno de 1811, foi dominada por uma doença fatal e morreu a 8 de dezembro, em situação de grande miséria e pobreza, na casa de uma modista de chapéus, escocesa, em Richmond. Foi sepultada no cemitério da Igreja Episcopal de S. João, daquela cidade, dois dias mais tarde, mas não sem alguma pia oposição.

INFÂNCIA

SOBREVIVIAM à Sra. Poe três crianças órfãs. Duas delas, Edgar e Rosália, achavam-se com ela ao tempo de sua morte e foram tratadas por pessoas caridosas. Edgar, então com cerca de dois anos de idade, foi levado para a casa de John Allan, negociante escocês, em situação francamente próspera, ao passo que a pequena Rosalia recebera abrigo em casa do casal William Mackenzie. Os Alians e os Mackenzies eram amigos íntimos e vizinhos. As crianças ficaram naquelas casas e o fato de sua criação tornou-se, com o correr do tempo, equivalente a uma adoção.

Frances Keeling Valentine Allan, esposa do comerciante escocês que dera abrigo ao “pequeno órfão Edgar Poe”, não tinha filhos, embora estivesse casada havia muitos anos. O menino Edgar parece ter sido uma criança viva e atraente, e, a despeito de certa relutância do Sr. Allan, foi logo admitido como membro permanente da família. Embora haja certa prova de uma tentativa da parte dos parentes paternos de Baltimore para demonstrar seu interesse pela criança, o rapazinho ficou como filho de criação de John Allan, em Richmond, onde bem cedo foi posto numa escola mantida por uma dama escocesa, e, ao que parece, mais tarde, na de um tal William Irving, professor local. Há bastante prova de que seus primeiros anos de infância passou-os, ele, em ambientes felizes e confortáveis. A Sra. Allan e sua irmã solteira Nancy Valentine, que residia na mesma casa eram especialmente loucas pelo seu “garoto”. Parece que ele, realmente, foi um tanto tratado com excesso de mimos, como se fosse uma criancinha, da parte das mulheres, o que o pai de criação procurava contrabalançar com severidade ocasional, mas provavelmente bem oportuna.

Em 1815, a família viajou para a Inglaterra, a bordo do Lothair, levando Edgar consigo. Depois de breve estada em Londres, visitaram uns parentes da Escócia, os Galts, Alíans e Fowlds, em Kilmarnock, Irvine e outros lugares perto de Ayrshire. Viajaram para Glasgow e depois voltaram a Londres, no fim do outono de 1815, quando Edgar foi enviado de volta à Escócia, para Irvine. Ali, durante pouco tempo, frequentou a Escola de Gramática. Em 1816, porém, regressou a Londres, onde seu pai de criação estava procurando fundar uma sucursal de sua firma de Richmond, Ellis e AlIan, com comércio de tabaco e mercadorias em geral.

A família residia na Praça Russell, em Southampton Row, e, nessa ocasião, o jovem Edgar foi matriculado num internato, dirigido pelas Srtas. Dubourgs, na Rua Sloane, n.0 146, em Chelsea. Ali permaneceu até o verão de 1817. No outono desse ano, entrou para a escola de Manor House, do Reverendo John Bransby, em Stoke Newington, então subúrbio de Londres, Ali permaneceu até certo tempo, na primavera de 1820, quando foi retirado para voltar à América. As memórias do jovem Poe, de seus cinco anos de estada na Escócia e na Inglaterra, foram excessivamente vivas e continuaram a fornecer-lhe recordações para o resto da vida. Parece ter sido um jovem cavalheiro um tanto precoce e orgulhoso.

Curiosas e vividas reminiscências desses antigos dias escolares na Inglaterra encontram-se na sua história de “William Wilson”. É significativo de suas relações com seus pais adotivos que as notas de sua instrução na Inglaterra sejam dadas para o jovem Allan. Não pode haver a menor dúvida de que, naquela ocasião, o Sr. Allan o olhava como filho. Outras provas não faltam.

ADOLESCÊNCiA

As ESPECULAÇÕES comerciais de John Allan em Londres não foram felizes. Voltou para os Estados Unidos, chegando a Richmond, em agosto de 1820, cheio de consideráveis dificuldades, nas quais se viu também envolvido seu sócio Charles Ellis. Cessões de bens de raiz tiveram de ser conseqúentemente feitas para satisfazer os credores. A vida da família Allan, porém, continuou a ser confortável. Edgar foi mandado para uma Academia, dirigida por William Burke e mais tarde por Joseph H. Clarke, e frequentada pelos filhos das melhores famílias de Richmond. Na escola, o jôvem Poe sobressaiu-se em línguas, oratória, representações teatrais e realizou notáveis façanhas em natação. Parece ter atraído a atenção de seus mestres e dos colegas mais velhos pelo seu brilho e ter sido bastante estimado, apesar de mostrar-se um tanto distante, pela maior parte de seus companheiros. Em idade muito precoce começou a escrever poesias, datando seus versos logo dos treze anos. Em 1823, tornou-se íntimo da casa dum colega de escola, Robert Stanard, cuja mãe, Jane Stith Stanard, tomou terno interesse pelo brilhante rapaz, afeição que foi ardente e romanticamente retribuida. Foi a essa senhora que Poe dedicou mais tarde seu poema “Para Helena”, que começa:

Helena, tua beleza é para …..
A Sra. Stanard em breve enlouqueceu e morreu. Essa tragédia atingiu, sem dúvida, profundamente o coração de Poe, tendo sido para ele um grande golpe, que o abalou de modo intenso. Conta-se, não sem discutível autoridade, que ele rondava à noite o seu túmulo, no cemitério solitário. Não há dúvida, porém, de que continuou a estremecer-lhe a lembrança, enquanto viveu.

Seja como for, porém, em 1824, o jovem poeta, que estivera dirigir às moças dum colégio feminino vizinho juvenis versos lírico: achou-se plenamente embarcado nas águas turvas duma vida ma adulta. A Sra. Stanard morrera; seu pai adotivo achava-se em graves apuros financeiros; a saúde da Sra. Allan ia rapidamente definhando e havia na casa uma dissensão doméstica da mais séria espécie: John Allan dava-se, de tempos em tempos, a relações extra maritais. Alguns de seus filhos naturais viviam então em Richmon e, dessa ou daquela forma, chegou isso ao conhecimento de sua mulher, cujo pesar foi imenso. Durante a visita de Lafayette a Richmond em 1824, o jovem Poe, que era oficial numa companhia de cadetes, esteve na escolta do velho general. Isto lhe deu novo senso de sua própria dignidade e importância, e ao mesmo tempo parece que em alguns de seus encontros na cidade com companheiros adultos veio a saber do modo de vida de seu pai de criação.

Em casa Edgar tomou o partido de sua mãe e uma desavença, que, através de várias ramificações, durou por mais de dez anos, se criou entre Poe e John Allan.A situação era caracteristicamente exasperante a todos os respeitos, e o conflito, dramático.

O Sr. Allan, ao que parece, havia, ao tempo da morte da Sra. Davi Poe, entrado na posse de parte da correspondência dela. ( que havia naquelas cartas ninguém jamais saberá, pois foram mais tarde destruidas pela Sra. Clemm, a pedido do próprio Poe. Talvez houvesse algo de comprometedor nelas. Seja como for, a fim de garantir-se o silêncio de Edgar em torno de seus próprios negócio, o Sr. Allan escreveu uma carta a William Henry Leonard Poe, em Baltimore, queixando-se de Edgar em vagos termos, acusando-o de ingratidão e atacando a legitimidade de Rosália, irmã do rapaz. ( O efeito dessa carta, e talvez tenha havido mais de um, foi evidentemente transtornador para ambos os filhos de Isabel Poe. Decerto tornou ainda mais tensas as relações na casa de Allan, em Richmond. Três anos mais tarde, encontramos Henry, em Baltimore publicando um poema, intitulado “Numa Carteira de Lembranças” que dá todas as mostras de que as dúvidas a respeito da legitimidade de sua irmã tinham atingido o alvo.

Por esse tempo começava Rosália Poe a dar sinais de paralisação do desenvolvimento. Jamais se desenvolveu plenamente e, embora continuasse a ser estimada como filha pelos Mackenzies, que haviam desde o começo acolhido, permaneceu, quando muito, com uma triste recordação do passado para seu irmão Edgar. Sobreviveu-lhe muitos anos, morrendo afinal numa instituição de caridade em Washington, D.C.

A morte da Sra. Stanard, os apuros financeiros e consequente irrtabilidade de John Allan, as disputas e contra-ataques em casa, sua própria posição duvidosa ali – pois nunca fora adotado e sua situação de caridade era constantemente reiterada -, tudo isso formava um penoso ambiente para um poeta jovem e ambicioso. Acresce que há indicações de que o Sr. Allan, como escocês prático,tinha pouca ou nenhuma simpatia pelas ambições de seu filho de criação no campo da literatura.

Em 1825, os apuros financeiros do Sr. Allan foram amplamente aliviados, pela herança de grande fortuna de seu tio William Galt. Viu-se ele, em suma, homem bastante rico. Todo o teor de vida da família mudou então para um método consoante com suas melhores condições. Foi comprada nova casa de considerável aparato, e nessa vasta e confortável mansão, situada nas Ruas Quinta e Principal, da cidade de Richmond, teve início uma série de diversões e funções sociais , a despeito da saúde decadente da dona da casa. Poe acompanhou a família, na nova casa. Seu pai de criação retirou-o da Academia do Sr. Clarke e tinha-o preparado para a Universidade de Virgínia, que, sob o patrocínio de Thomas Jefferson, acabara recentemente de abrir as portas.

Numa rua vizinha, vivia uma mocinha, chamada Sara Elmira Royster. Poe frequentava-lhe o salão, onde cantavam e desenhavam quadros. Elmira tocava piano, enquanto Edgar a acompanhava na flauta, ou passeavam pelos jardins, de mãos dadas. Sabe-se que Henry Poe visitou seu irmao, em Richmond, por esse tempo e acompanhou Poe à casa dos Roysters. Antes de seguir para a Universidade, Edgar ficou noivo de Elmira. O trato, porém, foi mantido oculto das pessoas de ambas as famílias.

Em fevereiro de 1826, Edgar A. Poe matriculou-se na Universidade de Virgínia. Tinha então apenas pouco mais de dezessete anos, mas pode dizer-se que sua idade adulta começara.

Sua posição na Universidade era precária. Como ‘filho” dum homem rico, possuía bastante crédito e o próprio Poe estava disposto a viver de acordo com tal reputação. Por outro lado, seu pai de criação parece mesmo, naquele tempo, ter-se mostrado tão alheio a seu pupilo que lhe dava mesada muito menor do que a necessária para sua manutenção. O jovem estudante fez brilhantes progressos nos estudos, mas também se entregou a rapaziadas um tanto fortes. A fim de manter sua posição, começou a jogar intensamente; perdeu, e utilizou-se de seu crédito junto aos lojistas locais de modo atrevido. Foi por esse tempo também que ficamos sabendo, pela primeira vez, ter ele começado a beber. Os efeitos de bem pequena porção de álcool no organismo de Poe foram devastadores. Parece ter sido um jovem brilhante, mas um tanto excêntrico e francamente nervoso. Outra causa de tensão, nessa época, foi o infeliz “desenvolvimento” do seu caso amoroso. O Sr. e a Sra. Royster tornaram-se evidentemente conhecedores do fato de que o jove Poe não era mais considerado herdeiro por seu pai de criação. Logo souberam, sem dúvida, de seu namoro com Elmira, e então trataram de fazer pressão para desfazer o noivado. As cartas de Poe para sua amada foram interceptadas; proibiram que Elmira lhe escrevesse; as atenções de um jovem solteiro aceitável, A. Barrett Shelton a cercaram, insistentes; e por fim mandaram-na para fora, por algum tempo, sob custódia.

Entrementes, o Sr. Allan foi informado das dificuldades financeiras de seu pupilo, cujas dívidas, dizia-se, haviam atingido o montante de 2500 dólares. Sua cólera tornou-extrema, e quando Poe voltou a Richmond, para passar as férias do Natal de 1826, foi avisado por seu tutor que não poderia voltar para a Universidade.

As primeiras semanas de 1827 foram passadas em Richmon nas mais tensas relações entre o jovem Poe e o Sr. Allan. A carreira de Poe na Universidade fora, sem dúvida, bastante insatisfatória. Por outro lado, a cólera do Sr. Allan era implacável e extrema. Recusou-se a pagar qualquer das dívidas de honra de seu pupilo ou quaisquer outras dívidas; por esse meio reduzindo ao desespero o espírito altivo do rapaz, que ele tinha elevado à categoria de seu filho. O jovem Poe estava perseguido pelas letras de câmbio. Seu pai de criação aproveitou a oportunidade para insistir em que ele estudasse Direito e abandonasse todas as ambições literárias. Aparentemente por causa disso deu-se, afinal, o rompimento. Tíveram eles violenta discussão, em março de 1827, ao fim da qual o jovem poeta deixou a casa e foi para uma hospedaria, donde escreveu pedindo sua mala e suas roupas e objetos pessoais. Muitas cartas foram trocadas entre os dois sem que se chegasse a uma reconciliação. Seus mútuos agravos se repetiram e Poe, afinal, acabou por, a despeito de seu extremo desamparo, seguir para Boston então a capital literária dos Estados Unidos. Parece que o Sr. AlIan tentou evitá-lo, mas sua mulher e sua cunhada talvez tenham suprido Poe secretamente de uma pequena soma de dinheiro, por intermédio de um dos escravos, antes que o rapaz se pusesse a caminho.

Sob o nome falso de Henri Le Rennet, abandonou Richmond com um companheiro, Ebenezer Burling, e alcançou Norfolk (Virgínia). Ali Burling o deixou, enquanto Poe continuava a viagem num navio até Boston, onde chegou quase sem dinheiro, em certo dia de abril de 1827. Não foi para o estrangeiro, como tem sido tantas vezes afirmado, até por ele mesmo. As datas de seus conhecidos paradeiros, tomadas de suas cartas e documentos naquela ocasião, afastam definitivamente mesmo a possibilidade de uma viagem à Europa.

Em Boston há provas um tanto obscuras de que Poe tentou manter-se escrevendo – para um jornal. E certo, porém, que, e quanto se achava em Boston, durante a primavera e o verão 1827, travou amizade com um jovem impressor, um tal Calvino F. S. Thomas, entrado de pouco no negócio, e valeu-se dele para imprimir um volume de versos, Tamerlão e Outros Poemas. Parece que o impressor não conheceu Poe senão por um falso nome. A capa do pequeno volume afirmava que o trabalho era de “Um Bostoniano”. A maior parte da edição, provavelmente devido à incapacidade de Poe para pagar ao impressor, foi ao que parece destruída, ou teve que ficar encalhada. Somente poucos exemplares do livro entraram em circulação e apenas apareceeram duas apagadas noticias. O próprio Poe parece ter reservado muito poucos livros para seu uso pessoal. Entrementes, o autor desse volumezinho desconhecido, mas agora famoso, achava-se reduzido à maior pobreza.

Totalmente sem meios, demasiado orgulhoso ou incapaz de recorrer a Richmond, tomou por fim a desesperada resolução de alistar-se no Exército dos Estados Unidos, em 26 de maio de 1827, sob o falso nome de Edgar A. Perry. Foi destacado para a Bateria H do 1O. de Artilharia dos Estados Unidos, e passou o verão de 1827 no acampamento do Forte Independência, no porto de Boston. No fim de outubro, seu regimento teve ordem de seguir para o Forte Moultrie, em Charleston (Carolina do Sul).

JUVENTUDE

Os dois e meios anos que se seguem formam curioso intermédio na vida de um poeta. Poe passa o tempo, entre novembro de 1827 e dezembro de 1828, cumprindo os deveres militares de um soldado no Forte Moultrie. O forte estava localizado na ilha de Sullivan, à entrada do porto. O jovem soldado tinha muitas horas de lazer, que certamente gastava vagueando ao longo das praias, escrevendo poesias e lendo. Seus deveres militares eram leves e completamente burocráticos, pois os oficiais logo notaram que ele se adaptava melhor aos serviços de escritório do que à prática com canhães. Deste período e do que ele fez e imaginou, a melhor recordação é “O Escaravelho de Ouro”, escrito muitos anos mais tarde, mas repleto de cenas de cor local exatas. As obrigações de Poe certamente o punham em estreito contacto com seus chefes. Ele era diligente, sóbrio e inteligente; e uma promoção logo se seguiu. Em breve o encontramos destacado para serviços especializados, primeiro passo fora da posição de soldado raso. Ele mesmo, porém sentiu que sua vida estava sendo desperdiçada e, em certa época de 1828, reatou a correspondência com seu pai de criação em Richmond, com o objetivo de solicitar uma reconciliação e volta à vida civil. Embora as cartas de Poe fossem tocantes, rogativas penitentes, seu tutor mostrou-se obstinado e o jovem permaneceu no seu posto, até dezembro de 1828, quando seu regimento teve ordena de seguir para o Forte Monroe, na Virgínia.

Vendo que o tutor não lhe permitia voltar à casa, concebeu ele então a idéia de entrar em West Point. Mguns dos oficiais de seu regimento, e, de modo particular, um cirurgião, se interessaram por ele e trataram de exercer pressão sobre John Allan. A 1o. de janeiro de 1829, Poe, servindo ainda sob o nome de Perry, foi promovido a sargento mor de seu regimento, o posto mais alto para um engajado.

Suas cartas para casa tornaram-se mais insistente e a elas acrescentavam-se agora os rogos da Sra. Allan, moribunda. Desejava ver seu “querido menino” antes de morrer. Por mais estranho que possa parecer, John Allan manteve-se firme até o último instante. Por fim, mandou chamar seu filho de criação que se achava então apenas a poucas milhas de Richmond; mas era demasiado tarde. A Sra. Mlan morreu antes que Poe chegasse à casa e, apesar de seu último pedido de não ser enterrada senão quando seu filho de criação voltasse, seu marido ordenou que se fizess o enterro. Quando Poe chegou à casa, poucas horas depois, tudo quanto ele mais amava se achava na sepultura. Diz-se que sua angústia diante do túmulo foi extrema.

A Sra. Allan, todavia, arrancara de seu marido a promessa de não abandonar Poe. Realizou-se então uma reconciliação parcial e o Sr. Allan consentiu em ajudar o plano de Poe de entrar em West Point. Escreveram-se cartas para o coronel de seu regimente arranjou-se um substituto e o jovem poeta conseguiu dar baixa do Exército, a 15 de abril de 1829. Voltou a Richmond para passa pouco tempo.Poe não demorou muito “em casa”. Arranjou, em grande parte por solicitação própria, numerosas cartas de recomendação para o Departamento da Guerra.

Armado delas e de uma carta bastante fria de seu tutor, que afirmava: “Francamente, senhor, declaro qu ele não tem parentesco nenhum comigo”, partiu, mais ou menos 7 de maio, para Washington, onde apresentou as credenciais, inclusive numerosas recomendações de seus oficiais, concebidas nos mal elevados termos, para o Secretário da Guerra, Sr. Eaton. Longo período de quase um ano decorreu, durante o qual esteve em dúvida sua nomeação para West Point.

Durante a maior parte deste período, de maio de 1829 até o fim daquele ano, residiu ele em Baltimore. Seu pai de criação enviava lhe de vez em quando pequenas somas, o suficiente apenas paramantê-lo vivo, e continuava frio e suspeitoso de suas boas intenções relativas a West Point. Entretanto, o jovem Poe, depois de ter sido roubado por um primo num hotel, procurou abrigo junto à sua tia Maria Clemm, irmã de seu pai. Em casa desta boa mulher, que foi desde o princípio seu anjo da guarda, encontrou Poe sua avó,a Sra. Davi Poe Sênior, que era então mulher idosa e paralítica, seu irmão Henry e sua prima primeira Virgínia Clemm, menina de cerca de sete anos de idade. Mais tarde, veio ela a ser a esposa do poeta. Durante esta estada em Baltimore, esforçou-se Poe em tornar conhecido seu nome literário. Pouco depois de sua chegada, nós o vemos visitando William Wirt, que acabava de retirar-se de uma ativa vida política em Washington, autor das Cartas de um Espião Ingles e homem de considerável reputação literária. Poe deixou com Wirt o manuscrito de “A Aaraaf”, e dele recebeu uma carta mais de conselho que de elogio. O incidente, porém, mostra que ele tinha em mãos, então, o manuscrito para um segundo volume de poemas. Consistia este de numerosas poesias que tinham aparecido no primeiro volume, bastante revistas, e algumas novas.

Seguiu então para Filadélfia e entregou o manuscrito a Carey, Lea & Carey, famosa firma editora de então, que exigiu uma garantia antes de imprimi-lo. Poe escreveu a seu tutor pedindo-lhe auxiliar com a soma de cem dólares a publicação do pequeno volume, mas recebeu uma negativa colérica e uma censura severa por pensar em tal coisa. A 28 de julho tinha ele, porém, ao que parece, arranjado a publicação do volume em Baltimore, e escreveu a Carey, Lea & Carey, retirando o manuscrito. Por intermédio de amigos e parentes de Baltimore, pôde seu nome chegar aos ouvidos de John Neal, então influente jornalista em Boston, e a obra a aparecer recebeu algumas noticias encorajadoras nos números de setembro e dezembro do Yankee de 1829. O volume mesmo, intitulado Al Aaraa/, Tamerlão e Poemas Menores, foi publicado por Hatch & Dunning, em Baltimore, em dezembro de 1829. Um tanto abrandado por este êxito e a fama que ele atraiu, porém muito mais pela certeza de que seu filho de criação estava prestes a receber sua tão retardada nomeação para a Academia Militar, permitiu o Sr. Allan que Edgar voltasse a Richmond, onde ele permaneceu de janeiro a maio de 1830, na “grande mansão”. Sua vida em Baltimore tinha sido assombrada pela pobreza e a volta a seu antigo modo de existência foi, sem dúvida, bem-vinda para Poe.

O Sr. Allan, porém, tinha razões particulares para desejar que seu pupilo estivesse fora de Richmond o mais cedo possível. Havia reatado relações íntimas com uma antiga companheira, após a morte de sua mulher, e achava-se agora esperando um malvindo acréscimo aos seus filhos naturais. Renovaram-se as brigas com Poe. Depois de uma delas, peculiarmente amarga, escreveu Poe uma carta a um antigo conhecido do Exército, um sargento a quem devia pequena soma de dinheiro. Nesta carta, permitiu-se ele fazer uma infeliz afirmativa acerca de seu tutor.

Esta carta foi mais tarde usada pelo homem para cobrar do Sr. Allan a quantia que lhe era devida e foi a causa final da expulsão de Poe. A nomeação para a Academia Militar foi recebida em fins de março. Os exames do admissão eram processados em West Point no fim de junho e, em maio, Poe despediu-se de seu tutor e seguiu para a Academia Militar, visitando de passagem seus parentes em Baltimore. A primeiro de julho de 1839 prestou o juramento e foi admitido como cadete em West Point.

Poe permaneceu na Academia Militar dos Estados Unidos de 25 de junho de 1830 a 19 de fevereiro de 1831. Não pode haver dúvida de que a carreira militar não lhe agradava e que fora forçado a entrar nela pelo seu tutor, de cuja fortuna podia ainda esperar partilhar. O Sr. Allan, porem, achava já ter cumprido seu dever, estando Edgar colocado em cargo público, e sentia-se satisfeito por tê-lo afastado de Richmond. No dia em que Poe entrou para West Point, seu tutor foi presenteado com um par de gêmeos naturais, a quem mais tarde contemplou no seu testamento. Isto não o impediu, contudo, de casar-se pela segunda vez e a nova ligação tornou-o mais do que nunca inimizado com seu filho de criação.

Edgar Poe continuou a cumprir honrosamente seus deveres na Academia Militar, quando toda a esperança de qualquer auxílio no futuro da parte do Sr. Allan foi destruída por uma carta de Richmond, que o repudiava. O soldado havia apresentado a seu tutor a carta escrita por Poe, um ano antes, e extrema foi a cólera do Sr. Allan. Certificado de que toda esperança de ajuda financeira, vinda de Richmond, desaparecera agora, Poe resolveu tomar decisões próprias e deixar o Exército para sempre. Como não pudesse obter do Sr. Allan o consentimento para dar baixa, fez greve e deixou de comparecer às formaturas, às aulas e à igreja. Foi submetido a corte marcial e destituído por desobediente. Enquanto se achava na Academia Militar, arranjara com Elam Bliss, editor nova-iorquino, a publicação dum terceiro volume de poemas, subscrita pelo corpo de estudantes da Academia.

Em fevereiro de 1831, seguiu para Nova York. Estava sem dinheiro, mal vestido, e quase morreu dum “resfriado”, complicado com uma doença do ouvido interno, depois de ter chegado à cidade.Forçado a pedir desculpas, apelou de novo para seu tutor, mas em vão.

Permaneceu em Nova York o bastante para ver seu terceiro volume fora do prelo. Intitulava-se Poemas, Segunda Edição, e continha um prefácio dirigido ao “Querido B”, personagem desconhecido, no qual algumas das opiniões críticas do jovem autor, largamente procedentes de Coleridge, eram pela primeira vez expostas.

Depois de tentar baldadamente obter do Coronel Thayer, comandante de West Point, cartas de apresentação para Lafayette, a fim de juntar-se aos patriotas poloneses, que se tinham então revoltado contra a Rússia, Poe deixou Nova York e viajou de Filadélfia a Baltimore. Chegou a esta última cidade em dias do fim de março de 1831 e novamente passou a residir em Mechanics Row, Rua do Leite, com sua tia Maria Clemm, e a filha desta, Virgínia. Seu irmão Henry achava-se então de pessima saúde, “tendo-se entregue à bebida “, e moribundo. Poe passou os quatro anos seguintes, em em condições de extrema pobreza. Era ainda obscuro e suas açoes, na maior parte das vezes, são muito vagas. Alguns fatos porém, podem ser com certeza relanceados.

Durante a maior parte do período de Baltimore, deve ter Poe levado uma vida reclusa. Começou então a voltar sua atenção para a prosa e conseguiu colocar alguns contos numa publicação de Filadélfia. Seu irmão Henrv morreu em agosto de 1831. Edgar continuava a morar com os Clemms. A família vivia atenazada pela pobreza e ele próprio, na maior parte do tempo, não gozava de boa saúde. De que vivia a família não se sabe bem. Foram feitas tentativas para interessar mais uma vez o Sr. Allan em favor dele, mas sem resultado. Nenhum auxílio veio de Richmond, exceto em certa ocasião em que, por causa duma dívida contraída por seu irmão Henrv, esteve Edgar em perigo de ser preso. O Sr. Allan enviou uma tardia resposta, que foi a última que Poe veio a receber dele. Sabe-se que Poe dedicou ardente interesse a Maria Devereaux, moça que morava perto da sua casa. Foi recusado e chicoteou o tio da moça. Por esta ocasião, frequentava ele também as casas de seus parentes, os Poe e os Herring, especialmente estes últimos. Foi então, também, que se pôs a trabalhar com ardor, aperfeiçoando sua arte de contista e compondo o seu único drama, “Policiano”.

Em outubro de 1833, concorreu a um prêmio de cinqúenta dólares, oferecido ao melhor conto apresentado a um jornal de Baltimore, The Salurday Visitor. O prêmio foi concedido, por uma comissão de cidadãos bem conhecidos, ao “Manuscrito Encontrado Numa Garrafa”, de Poe.

Foi seu primeiro êxito assinalável e marca sua entrada no caminho da fama. O dinheiro vei-lhe em socorro as necessidades, mas o efeito mais importante do concurso foi o auxílio dado ao jovem poeta, agravado de pobreza, por John P. Kennedy, cavalheiro de Baltimore, bastante rico, de coração bondoso e, ele próprio, escritor de teatro. O Sr. Kennedy, por meio de vários e oportunos atos de caridade e de prestígio, fez Poe enveredar pela estrada do renome. Kennedy possibilitou a publicação de alguns dos contos de Poe e apresentou-o a Thomas White, editor do Southern Literary Messenger, que se publicava em Richmond (Virgínia). Poe começou então a colaborar, com críticas e contos, naquele periódico e finalmente foi convidado, em 1835, a ir para Richmond, como redator-auxiliar. Entrementes, o Sr. Allan havia morrido, em 1834, e no seu testamento não havia menção de Poe. Duas mal-avisadas viagens de Poe a Richmond, entre 1832 e 1834 tinham tido apenas como resultado afastar ainda mais de si seu antigo tutor e a família Allan. Mantiveram-se de mal até o fim. Em julho de 1835, Poe deixou Baltimore para assumir suas novas funções de redator, em Richmond.

Como jornalista, considerado simplesmente do ponto de vista do escritório e da cadeira, Poe constituiu um autêntico êxito. As assinaturas do Southern Literary Messenger se multiplicaram. O Sr. White não podia deixar de ficar bem satisfeito. Era homem bondoso e de boas disposições. Bastante significativo da inabilidade de Poe em abandonar os estimulantes é o fato de que, poucas semanas depois de sua chegada a Richmond, achou-se desempregado. Voltou a Baltimore e ali se casou secretamente, a 22 de setembro de 1835, com sua prima primeira Virgínia Clemm. Tinha esta, naquela ocasião, mais ou menos apenas treze anos de idade e o casamento secreto originou-se da oposição dos parentes a uma união tão prematura. Poe apelou então, de novo, para o Sr. White, com promessas de abster-se da bebida e reassumiu seu antigo posto, sob condição de boa conduta e com uma paternal advertência. A Sra. Clemm e sua filha Virgínia acompanharam Poe a Richmond e ficaram morando com ele numa pensão, na Praça do Capitólio.

Poe permaneceu em Richmond, como redator-auxiliar do Sr. White, no Southern Literary Messenger, do outono de 1835 até janeiro de 1837. Durante sua estada no jornal, a circulação deste aumentou de 700 para 3 500 exemplares, atraiu a atenção nacional e pode-se dizer que foi inicialmente devido a Poe que se tornou o periódico mais influente do Sul. Sua reputação foi depois mantida e aumentada por outros homens de considerável habilidade jornalística.

A tarefa do jovem redator escalonava-se do mero trabalho mercenário de natureza francamente jornalística até a colaboração literária. Escrevia poemas, resenhas de livros, crítica literária geral e particular e histórias curtas, quer seriadas, quer completas. As notas sobre livros variavam desde o comentário sobre as memórias, de Coleridge, até as referências a livros tais como as Cartas da Senhora Sigourney às Moças; em resumo, desde as críticas bem raciocinadas e muitas vezes severas até às simples notícias com leve comentário critico. Alguns dos poemas que tinham anteriormente aparecido nos volumes de poesia a que já aludimos foram republicados, consideravelmente revistos. Poe continuou seguindo essa política de maior ou menor revisão constante e de republicação im-pressa durante toda a sua carreira. Entre os mais notáveis dos novos poemas que apareceram nessa ocasião contam-se “Para Helena”, “Irene”, ou “A Adormecida”, “Israfel” e “Zante”.

O tom geral da crítica literária nos Estados Unidos, ao tempo em que Poe começou a escrever para o Southern Literary Messenger, era um tanto superficial, servil ou nebuloso. O comentário do rapaz de Richmond era interessante, perturbador e renovador. Sua freqúente severidade provocava réplicas e observações e, embora suscitasse antagonismo em alguns setores, sua presença em cena e a mordacidade de seu estilo tornaram-se cada vez mais evidentes.

Muitas das estórias que Poe tinha preparado para os Contos do Fólio Clube. Em Baltimore , antes de receber o prêmio do Saturday Visitor, publicou-as então no Messenger. Estórias tais como “Metzengestein” – atraíram considerável atenção, como bem mereciam, e aumentaram não pouco a sua fama. Em algumas delas assinalada era já então observada e censurada. Tais comentários de censura, porém, não impediam que sua fascinação rara deixasse de ser sentida.

Sob o título de “Pinakídia”, o jovem jornalista publicou também, nessa ocasião, uma coleção do curiosas anotações, abrangendo vasto campo de interesse, tiradas de seu livro de notas. Muitas delas utilizou-as de novo, mais tarde, na Re-vista Democrática, com o título de “Marginalia”. Por este tempo, Poe foi descrito como sendo “gracioso, de cabelos negros e ondulados, e magníficos olhos, usando colarinho à Byron e parecendo poeta da cabeça aos pés”. O mais antigo retrato dele que se conhece data de seus primeiros dias no Messenger e o mostra com suíças e uma expressão um tanto sardônica para homem tão jovem. Mesmo naquela data ele era evidentemente um tanto frágil e delicado. Sua tez, que mais tarde se tornou completamente lívida, é descrita como tendo sido amorenada.

De seus negócios particulares, o mais importante acontecimento da época de Richmond foi seu segundo casamento com sua prima Virginia. As razões do mesmo parecem ser suficientemente claras. Fora clandestino o primeiro casamento em Baltimore, tendo como única testemunha a Sra. Clemm. Parentes influentes tinham-se oposto a ele e jamais fora tornado público. Todas as explicações foram evitadas por um segundo casamento em público, nada tendo sido dito a respeito do primeiro, e a 16 de maio de 1836 um contrato de casamento foi assinado no Juizado de Paz da cidade de Richmond, que dá Virgínia CIemm como tendo vinte e um anos. Na realidade, tinha ela menos de catorze anos de idade naquele tempo e a aparência de uma criança. O casamento realizou-se em uma pensão de propriedade de uma tal Sra. Yarrington, em companhia de amigos, tendo oficiado um teólogo presbiteriano chamado Amasa Converse. Depois de simples cerimônia o casal partiu para sua lua-de-mel, que se passou em Petersburgo, na Virginia, em casa de certo Sr. Hiram Haines, diretor do jornal local. Poe estava de volta para Richmond e seu trabalho no Messenger em fins de maio de 1836. O Sr. White prometera-lhe um aumento de salário para mais tarde.

Depois de seu casamento, na verdade algum tempo antes, a correspondência do poeta com parentes e amigos mostra que ele desejava montar casa. O plano seguido era solicitar dinheiro para que a Sra. Clemm e Virgínia pudessem estabelecer uma pensão. Embora alguns pequenos auxílios, “empréstimos”, fossem obtidos, o plano fracassou e a pequena família mudou-se para uma casa barata na Rua Sete, onde parece que ficou até o fim de sua estada em Richmond.

Poe continuou seu trabalho redatorial e, como resultado de sua observação, experiência e ambição, começou a desenvolver-se em sua mente um plano cujos começos podem ser rastreados desde Baltimore. Esperava montar e ser o editor de um grande magazine literário nacional. De que Poe foi um dos primeiros homens na América a compreender as possibilidades do jornalismo moderno, no que se refere a um magazine, não resta a menor dúvida. Desde então, e até o fim de sua história, foi esse o plano acarinhado de sua vida. O infortúnio e a sua própria personalidade, mais do que as teorias que a respeito do jornalismo entretinha, foram os responsáveis pelo seu fracasso na realização de tal ambição.

Começou então a pensar em seguir para o Norte, a fim de montar a nova publicação, mudança que a fama crescente e os atritos sempre numerosos com seu redator-chefe serviram para apressar. Poe era brilhante, mas inadaptado ao trabalho em posição subalterna. Deve-se, com toda justiça, dizer que o Sr. White foi paciente. Foi porém dominado, em várias ocasiões, pelo seu versátil e jovem redator e há também indicações de que, no outono de 1836, havia Poe mais uma vez decaído de suas boas graças e, a despeito de suas promessas bem intencionadas a White, estava-se entregando de novo, de vez em quando, à bebida. Em adendo a isto, parece ter-se ele mostrado incontentável. Tirando vantagem de relações que fizera por correspondência com homens de Nova York, tais como o Prof. Charles Anthon, John K. Paulding, os irmãos Harper e outros, decidiu mudar-se para aquela cidade.

Em consequência, em janeiro de 1837, liquidou seus negócios com o Southern Literary Messenger e com o Sr. White e, levando a família consigo, partiu para Nova York. Parece que ali chegaram mais ou menos em fins de fevereiro de 1837 e se alojaram na esquina da Sexta Avenida com a Praça Waverly, partilhando um andar com um tal William Gowans, livreiro, que prestou consideráveis serviços a Poe.

Antes de deixar Richmond, no verão de 1836, fizera Poe várias tentativas de reunir as estórias contidas nos Contos do Fólio Clube e publicá-las em volume. Os manuscritos tinham sido anteriormente deixados em Filadélfia com Carey & Lea, que os conservaram durante algum tempo para examiná-los, mas finalmente os haviam devolvido ao autor, menos uma estória, em fevereiro de 1836. Poe enviou-os para .J. K. Paulding, em Nova York, que os sub-meteu à apreciação dos Harpers. O resultado foi outra recusa. Paulding escrevera a Poe, contudo, quando devolveu os contos, sugerindo uma longa narrativa em dois volumes, em formato bem popular. Em consequencia desta sugestão surgiu uma comprida estória de aventuras, naufrágio e horríveis sofrimentos no então desconhecido hemisfério meridional. Chamou-se “A Narrativa de Artur Gordon Pym” e foi finalmente aceita pelos Harpers, que a publicaram em 1838, nos Estados Unidos. Wiley & Putnam fizeram uma edição na Inglaterra, onde mais tarde a plagiaram. Foi o primeiro livro de prosa de Poe, embora seu quarto livro publicado, havendo precedido três volumes de poesia.

A estória apareceu em séries no Southern Literary Messenger mesmo depois de ter Poe cortado suas relações redatoriais. Era dada como escrita pelo próprio Artur Gordon Pym e o verdadeiro autor apenas vinha mencionado no prefácio. O tipo de estória de aventuras que a “Narrativa de Artur Gordon Pym” seguiu de perto era popular naquele tempo. Poe deixou simplesmente que sua imaginação se entretivesse com materiais conhecidos, encontrados em livros tais como O Motim do Bounty, a Narrativa de Quatro Viagens ao Pacífico, de Morell, e quejandos. Seu entusiasmo do momento pelo Antártico parece ter surgido dos preparativos então feitos porum tal J. N. Reynolds para uma expedição do Governo àquelas partes. Nathaniel Hawthorne estava também interessado no mesmo plano, que, porém, deu em nada. O êxito do livro foi pequeno e trouxe ao autor muito pouca fama e menos dinheiro ainda.

Pouco tempo depois de sua chegada a Nova York, Poe, Virgínia e a Sra. Clemm mudaram-se para uma pequena casa, na Rua Carmine, n.0 13½, onde a Sra. Clemm aceitou pensionistas para poder-se manter. Poe estava ganhando quase nada.

Era um período de pânico financeiro, sendo quase impossível obter-se trabalho literário. Os Poe foram acompanhados à sua nova residência pelo livreiro Gowans, que parece ter apresentado o poeta a numerosos literatos, mas com pouco resultado. A pobreza da família era agora extrema. A despeito disso, contudo, Poe continuou a escrever. As principais notícias que se podem ter desta primeira, mas um tanto breve, estada em Nova York referem-se a uma resenha de “Arabia Petraea”, na Revista de Nova York, “Silêncio (Fábula)”, publicado no Baltimore Book, e um conto chamado “Von Jung, o Místico” (Mistificação) que apareceu no American Monthly Magazine, de junho de 1837.

Os planos de iniciar um magazine de sua propriedade não devem ter encontrado aceitação naquele tempo, devido à depressão financeira. Poe, na verdade, não era capaz de obter até mesmo um lugar de redator secundário, ou o suficiente trabalho mercenário que lhe garantisse a subsistência. Seus atos desse tempo hão de permanecer para sempre um tanto obscuros. Provavelmente por intermédio de Gowans, foi posto em contato com James Pedder, inglês de capacidade literária quase nula, mas homem bondoso. Pedder, por esse tempo, ocupava-se em obter, para si mesmo, ligações com magazines de Filadélfia, onde suas irmãs residiam. Por intermédio dele parece bastante provável que Poe foi induzido a deixar Nova York e mudar-se para Filadélfia, então o grande centro editorial dos Estados Unidos. Seja como for, nós o encontramos em Filadélfia pelos fins de agosto de 1838, pensionista, juntamente com sua família e James Pedder, de uma casa de cômodos mantida pelas irmãs do inglês na Rua Doze, um pouco acima de Mulberrv (Arch). Poe achou-se logo definitivamente encarregado de dois projetos literários, a edição de um compêndio de Concologia e a de há muito adiada publicação de seus contos escolhidos.

Logo depois de sua chegada a Filadélfia, Poe mudou-se para mais perto das livrarias e tipografias da cidade baixa, para uma casa de número 4 da Rua Arch (então Mulberry), onde continuou até 4 de setembro de 1838. Estava agora encarregado de editar o “Primeiro Livro do Concologista, ou Sistema de Malacologia dos Testáceos”, compêndio ao qual ele emprestou seu nome.

Foi um mero trabalho mercenário, e nada tem que ver com os originais e artísticos de Poe. O livro é bastante procurado pelos colecionadores. São conhecidas pelo menos umas nove edições dele, tendo sido a primeira publicada em abril de 1837, por Barrington e Haswell. Poe escreveu o prefácio e a introdução e foi auxiliado no arranjo do texto e das ilustrações por um tal Sr. Isaac Lee e pelo Prof. Thomas Wyatt, De Blainville e Parkinson são citados, e Cuvier profusamente aproveitado.

As belas gravuras de conchas foram furtadas do Compêndio dos Concologistas, trabalho dum ingles Thomas Brown, a quem nao foram dadas satisfações.Posteriormente foi Poe atacado por causa disso e acusado de plágio. A verdade é que o costume de furtar material para livros escolares era então quase universal e muito pouco censura se pode fazer realmente a Poe. Recebeu 50 dólares pela utilização de seu nome como redator . Na série dos volumes publicados por Poe é este o quinto.

Esse compêndio escolar era apenas uma transação financeira. Poe voltou a atenção para a publicação de seus contos. Arranjou-se publicar suas estórias escolhidas sob o título de Contos do Grotesco e Arabesco em dois delgados volumes. Foram publicados em dezemmbro de 1839 por Lea & Blanchard, de Filadélfia. A página do título traz a data de 1840. O autor não recebeu direitos autorais pelo seu trabalho, mas apenas uns poucos exemplares para distribuir com seus amigos. O editor assumiu o risco, não muito agradável, pois os volumes se venderam muito devagar. Havia catorze estórias no primeiro volume e dez no segundo, compreendendo o total todos os contos publicados até aquela ocasião pelo autor e “Por que o francesinho Está com a Mão na Tipoia “, so aparecido mais tarde. Foi esta a sexta aventura de Poe com um volume impresso, nenhum dos quais fora de modo algum um êxito do ponto de vista financeiro.

MATURIDADE

ENTREMENTES havia-se Poe assegurado um emprego com William E. Burton, editor do Burton’s Gentleman’s Magazine. O Sr. Burton era um inglês, ator, nas melhores condições para a farsa grosseira, empresário teatral e jornalista. Poe colaborou nesse magazine, com resenhas bibliográficas, artigos sobre esporte, pelo menos com cinco , contos notáveis e alguns poemas, sendo ”Para Alguém no Paraíso” o mais notável destes. Foi no magazine de Burton que apareceram “A Queda do Solar de Usber”, “William Wilson” e “MoreIa”. Ao mesmo tempo Poe correspondia-se com várias figuras literárias, entre as quais era Washington Irving a mais eminente.

A ligação de Poe com Burton não durou muito tempo. Houve numerosos atritos entre os dois. Duma feita, Poe se retirou, mas foi induzido a voltar. Seu salário era pequeno, seu trabalho inadequado e um tanto intermitente. Passava novamente mal de saúde, não sendo certo se devido, em parte, ao uso de excitantes. De qualquer forma, ele e o Sr. Burton não podiam concordar. Este último vendeu seu magazine a George Rex Graham, em outubro de 1840, e Poe foi conservado pelo novo editor um dos mais capazes jornalistas da época. Devido à má saúde não assume Poe suas funções no novo magazine de Graham senão em janeiro de 1841, quando se tornam plenamente evidentes em suas páginas traços de sua pena.

Estava ele então morando numa pequena casa de tijolos, na junção da Rua Coates e Fairmont Drive, em Filadélfia, para onde se tinha mudado, provavelmente no outono de 1839. Foi dessa residência que ele deu a lume, no outubro de 1840, seu “Prospecto do Penn Magazine, jornal literário mensal, a ser redigido e publicado na cidade de Filadélfia, por Edgar A. Poe”. Neste prospecto as teorias de Poe, a respeito de um magazine, são completamente postas a claro. Esperava receber bastantes assinaturas para prover-se de fundos, a fim de lançar a empresa. Numerosíssimas pessoas subscreveram, mas os negócios do editor em perspectiva estavam em tais condições que ele foi forçado a abandonar seu plano, a fim de aceitar uma posição de assalariado, junto ao Sr. Graham. O Penn Magazine foi, em consequência, adiado, ao passo que Poe aceitava um lugar em
casa de Graham, por 800 dólares por ano.

O êxito do Graham’s Magazine foi fenomenal. As assinaturas montaram de 5 000 a 40 000, em cerca de dezoito meses, sendo o aumento devido à capacidade redatorial de Poe, ao número de artigos e poemas garantidos pela colaboração de notáveis escritores, por ele solicitada, e pela política do Sr. Graham, que era profuso nas ilustrações e bastante generoso nos honorários aos autores.

O período da sociedade de Poe com o Sr. Graham, que durou de janeiro de 1841 a abril de 1842, foi o período financeiro mais folgado de sua vida. Seus lucros eram pequenos, mas suficientes para mantê-lo e à sua família com algum conforto. Foi por esta epoca que ele iniciou o conto de raciocínio e publicou “Os Crimes da Rua Morgue” e outras estórias de crime e sua descoberta. Interessou-se também bastante por criptogramas e sua solução, e, em 1842, publicou no Dollar Newspaper, a 20 de junho daquele ano, sua estória do “Escaravelho de Ouro”, na na qual a solução dum papel cifrado faz parte do enredo. Por esta estória recebeu um prêmio de 100 dólares. Alguns dos mais reputados trabalhos de Poe apareceram no magazine de Graham e atraíram assinalada atenção. Começou então a tornar-se vasamente conhecido como competente redator, crítico brilhante e severo, escritor de estórias arrepiantes e poeta. Sua sociedade com Graham foi, porém, de curta duração. Não suportava sua posiçao subalterna, com tão pequeno salário, esperançoso de lançar seu magazine próprio, e também deu para beber. Em abril de 1842, suas “irregularidades” levaram o Sr. Graham a empregar Rufus Wilmot Griswold, o mais notável antologista americano daquela época, e competentíssimo redator, em lugar de Poe. Encontrando um dia Griswold na sua cadeira, Poe deixou as oficinas do magazine e nunca mais voltou, embora continuasse a colaborar para ele, de vez em quando.

Em breve se tornou um livre-atirador, escrevia onde e quando podia, tentou obter um emprego do Governo, na Alfândega de Filadélfia, por meio de amigos em Washington, e de novo tentou lançar seu próprio magazine, agora projetado como O Estilo. Estava prestes a ser bem sucedido, mas uma visita a Washington, em março de 1843, quando infelizmente se embebedou e exibiu sua fraqueza, mesmo na Casa Branca, arruinou suas mais profundas esperanças. Até mesmo seu melhor amigo, F. W. Thomas, novelista secundário e político do tempo, nada mais podia fazer por ele. O infortúnio de agora por diante lhe segue os passos.

Sua mulher Virgínia estava a morrer de tuberculose e tinha frequentes hemorragias. Ele mesmo começou a recorrer à bebida mais do que antes. Há também algumas provas de que se haja utilizado de ópio. Foi mandado para Saratoga Springs, para recuperar a saúde, e voltou a Filadélfia, onde quase morreu duma lesão cardíaca. Naquela ocasião, 1844, estavam residindo os Poe no n.0 234 (agora 530) da Rua Sete do Norte, em Filadélfia, numa casa ainda hoje de pé. Ali, embora visitado por vários amigos leais, entre os quais se contavam o romancista Capitão Mayne Reid, George Rex Graham, o gravador Sartain, o editor Louis Godey, o ilustrador F. O. C. Darley, o poeta Hirst, o editor Thomas Clarke e outros, experimentava Poe os tormentos da pobreza e do desespero. Correspondia-se com James Russell Lowell e outras pessoas notáveis, mas era incapaz, por várias causas, largamente devidas a seu temperamento e a suas condições físicas, de lutar contra o mundo. Certa vez, no outono de 1843, fez uma tentativa abortada de publicar nova edição de seus contos, com o título de Romances em Prosa de Edgar A. Poe. Houve uma pequena edição em brochura, para ser vendida a 12 e meio cêntimos, mas o n.0 1, contendo “Os Crimes da Rua Morgue” e “O Homem que Foi Desmanchado”, é o único da série que se saiba tenha aparecido, embora se conheça a existência dum exemplar, contendo apenas a primeira estória. Do ponto de vista do colecionador é este o mais raro de todos os volumes de Poe. O opúsculo foi o sétimo dos trabalhos impressos de Poe. Nenhuma recompensa lhe adveio.

Reduzido à mais horrenda necessidade e encontrando todos os caminhos fechados para si, em Filadélfia, resolveu então voltar para Nova York. A Sra. Clemm ficou, para fechar a casa, e a 6 de abril de 1844, levando sua mulher inválida consigo, Poe seguiu para a cidade de Nova York. Chegou ali na mesma noite, com quatro dólares e meio nos bolsos e sem fins definidos.Poe e sua mulher doente acharam abrigo numa humilde pensão da Rua Greenwich, n.0 130. Com imediata necessidade de dinheiro, lançou uma de suas pilhérias favoritas, escrevendo uma estória de falsas notícias para o Sun, de Nova York, mais tarde publicada com o titulo de “A Baleia do Balão”. Tais “balelas” eram “populares” naquele tempo e favorecidas pelos diretores de jornais. A estória era hábil, é notável mesmo agora, e divertiu milhares de pessoas naquele tempo – com grande satisfação para Poe. O dinheiro assim ganho possibilitou a vinda da Sra. Clemm, de Filadélfia, para juntàr-se aos dois em Nova York.

Deixando a família na pensão da Rua Greenwich, Poe passou a morar sozinho então, na pensão duma Sra. Foster, n.0 4, da Rua Ana. Durante a primavera e o verão de 1844, conseguiu arranjar o bastante, com artigos vendidos, alguns dos quais apareceram no Columbia Spy (Pa.), no Godey’s Lady’s Book, no Ladies’ Home Journal da época, para manter-se e manter difícilmente a família. A saúde de Virgínia piorava constantemente e, no começo do verão de 1844, toda a família se mudou para uma fazenda, localizada na estrada de Bloomingdale, onde é hoje a Rua 84 e Broadway. A fazenda era de propriedade dum bondoso casal de irlandeses, com numerosa família, os Brennans. Ali, durante uns poucos meses, no que era então uma encantadora solidão rural, no formoso vale Hudson, parece que Poe gozou breve período de paz. Durante este intervalo, compôs “O Corvo”, ou antes, deu-lhe a redação final, pois que se sabe que poema já existia em versões mais antigas, que remontam a 1842. A própria idéia do corvo foi tirada do Barnaby Budge. Durante o verão, manteve Poe correspondência com James Russel Lowell que estava escrevendo uma curta biografia de Poe, de Graham, e com o Dr. Thomas Holley Chivers, poeta da Geórgia, cuja obra influenciou certamente o autor de “O Corvo “.

No outono , achou-se o poeta novamente sem recursos e a Sra. Clemm poe-se então, decididamente, em campo para arranjar-lhe allgum trabalho pago. Foi ter com Nathaniel P. Willis, então diretor do Evening Mirror, de Nova York, e persuadiu-o a empregar Poe em funções redatoriais de menos importância. Em certo dia do outono de 1844, a família mudou-se de novo para uma pensão, na cidade, na rua da Amizade número 15, em Nova York, onde ocuparam poucos quartos.

Poe continuou a fornecer trabalhos de ocasião para o Willis, e também pelas colunas do Mirror, encontrou a oportunidade de chamar a atenção sobre si, dando umas notas favorávies das poesias de Miss Barrett ( mais tarde Sra. Robert Browning) e metendo-se num infeliz ataque contra Longfellow, conhecido como “A Pequena Guerra de Longfellow”, com numerosas repercussões.

Em fins de 1844, estava Poe prestes a cortar relações com Willis, que se conservou seu amigo fiel até o fim. Por intermédio dos bons ofícios de Lowell, fora Poe posto em contacto com alguns jornalistas secundários das vizinhanças de Nova York, que se preparavam para lançar um novo semanário, que se chamaria o Broadway Journal. Para esse jornal foi Poe contratado, com funções reditoriais mais importantes do que as que lhe poderia oferecer Willis.

Em janeiro de 1845, o poema de Poe “O Corvo” foi publicado anonimamente no Evening Mirror, antes de seu aparecimento na Amencan Whig Review, de fevereiro. Provocou furor, e no sábado, 8 de fevereiro de 1845, o Sr. Willis tornou a publicá-lo, sob o nome do autor, no Evening Mirror. A reputação de Poe tomou imediatamente o aspecto da fama que nunca mais veio a perder. É inútil dizer que nenhum poema na América jamais se tornara tão popular. O poeta continuou a redigir o Broadway Journal, onde prosseguiu na polêmica com Longfellow, resenhou livros, publicou e republicou suas poesias, escreveu resenhas dramáticas e críticas literária, e reimprimiu muitas de suas estórias, agora mais avidamente lidas, por provirem de uma pena famosa. Estava-se também preparando para tornar-se proprietário do Broadway Journal e, com este fim, endividou-se, enquanto querelava com Briggs, um de seus sócios.

Começou então, também, pela primeira vez, desde seus antigos dias de Richmond, a levar uma vida menos solitária e a frequentar uma sociedade semiliterária e artística. Poe foi bastante visto, durante o inverno de 1845, nos “salões” de vários escritores e de menores luminares da sociedade de Nova York, que eram conhecidos como “os literatos”. Por intermédio do Sr. Willis conheceu uma tal Sra. Fanny Osgood, mulher de um artista de alguma importância e poetisa de segunda ordem, com quem ele logo travou uma amizade íntima, senão amorosa. Acompanhava-a por toda parte, a tal ponto que ela se viu finalmente obrigada, por causa do escândalo provocado e por causa de seu próprio estado de tuberculose, a seguir para Albany. Poe acompanhou-a até ali, depois a Boston, e dali a Providência, em Rhode Island, onde, num passeio solitário, tarde da noite, viu pela primeira vez uma tal Sra. Helen Whitman, com quem mais tarde tratou casamento. O segundo poema chamado “A Helena” celebra esse encontro.

Lowell visitou Poe em Nova York, na primavera de 1845, e encontrou-o levemente embriagado, nos seus aposentos da Broadway, 195, para onde ele se havia recentemente mudado. Em julho, o Dr. Chivers também o visitou e viu-o, certas vezes, sob a influência do álcool, mas, não obstante, com as características de seu gênio.

Os negócios de Poe, a despeito de sua crescente fama, não prosperavam. Publicou uma série de artigos no Godey’s Lady’s Book, sobre os literatos de Nova York. Eram esboços pessoais, combinados com os obiter dicta do autor e um traço de crítica literária, que causaram considerável rumor naquele tempo e, em um ou dois casos, envolveram Poe em questões pouco dignas. Os “Artigos Sobre os Literatos” não pertencem á crítica literária mais séria de Poe, mas são essenciais como um comentário fácil e contemporâneo sobre pessoas que ele conhecia, a maior parte delas obscuras.

Em fins de 1845, apesar de seus desesperados esforços, o Broadway Journal faliu, deixando seu redator, e já naquele tempo seu único proprietário, endividado, desanimado e doente. Virgínia, sua mulher, continuava a definhar e aproximava-se da morte. Poe achava-se, mais uma vez, sem meios de vida. Entretanto, tinha-se mudado de novo para a Rua da Amizade, n.0 185. Uma infeliz conferência em Boston, no outono daquele ano, tinha proporcionado uma oportunidade a Poe, então em sério estado nervoso, de fazer mais ou menos uma exibição de si mesmo. O caso foi aproveitado pelos seus inimigos de Nova York, que o exploraram muito. Tudo isso contribuiu para aumentar sua depressão. Apesar disso, porém, conseguira dar a lume, em junho de 1845, seus Contos, coleção de estórias suas, selecionadas por E. A. Duyckinck, hábil editor, e publicada por Wiley & Putnam. Seguiu-se-lhe, em dezembro de 1845, O Corvo e Outros Poemas, seleção de seus versos, editada pelo mesmo livreiro. Na série de trabalhos de Poe surgidos durante sua vida, constituem estes dois, respectivamente, os livros oitavo e nono. Os Contos foram, em alguns casos, publicados em dois volumes e ambas as edições obtiveram pouco êxito. Ao mesmo tempo, sabia-se que Poe estivera a trabalhar numa antologia de vários escritores americanos, em que se ocupava de vez em quando, durante vários anos. Nunca foi publicada, embora existam alguns fragmentos do manuscrito.

Os negócios de Poe e a saúde do Virgínia urgiam mais uma vez uma mudança para o campo. Enquanto Poe viajava para Baltimore, a fim de fazer conferências, na primavera de 1846, a Sra. Clemm e Virgínia foram de novo passar uma temporada na fazenda de Bloomingdale. Poucas semanas depois, encontramos a família toda, numa casa de fazenda, na “Baía da Tartaruga”, atualmente Rua 47 e East River. A estada ali foi breve. Poe alugou uma casinha de campo de madeira em Fordham, então uma pequena aldeia, a cerca de quinze milhas de Nova York, e para ali a família se mudou, em fins de maio de 1846.

Na casinhola de Fordham, ainda conservada como relíquia no Parque de Poe, na cidade de Nova York, o poeta e sua bondosa sogra, Maria Clemm, sofreram juntos os extremos da tragédia da pobreza, da morte e do desespero. O verão de 1846 foi amargurado por uma violenta briga com um tal T. D. English, a quem Poe havia atacado azedamente nos “Artigos Sobre os Literatos”. English então replicou e depois de um encontro pessoal com Poe acusou-o de falsificação, no Mirror, de Nova York. Poe processou o jornal e conseguiu receber pequena quantia como indenização, em fevereiro de 1847.

A saúde de Poe era excepcionalmente má. Sua mulher continuava a definhar rapidamente e ele próprio nem podia escrever bastante nem obter emprego. Durante a maior parte do tempo, a Sra. Clemm, graças a vários artifícios e ardis, conseguiu alimentá-los. Ela, ao mesmo tempo, pedia emprestado e mendigava e viu-se mesmo reduzida à necessidade de cavar legumes, à noite, nos campos das fazendas vizinhas. Com a chegada do tempo frio, as visitas de amigos e pessoas curiosas da cidade cessaram e os Poe foram deixados sozinhos, em face dos rigores do inverno, sem combustível ou suficientes roupas e alimentos. Sob tais rigores, Virgínia definhava rapidamente. Jazia numa cama de palha, enrolada no capote de seu marido e com um gato de estimação no colo, para fornecer-lhe calor. Em dezembro de 1846, a família foi visitada por uma amiga de Nova York, a Sra. Maria Luisa Shew, que encontrou Virgínia moribunda e Poe e sua “mãe” sem recursos. Graças à sua bondade e um apelo público pelos jornais, as necessidades imediatas da família foram aliviadas e Virgínia pôde morrer em relativa paz, nos fins de janeiro de 1847. Foi enterrada em Fordham, mas depois removida para o lado de seu marido, em Baltimore.

O FIM

DEPOIS DA MORTE de Virgínia, a Sra. Clemm continuou a tratar de Poe, que pouco a pouco voltou a um estado de saúde um tanto melhor. A Sra. Shew auxiliou-a nisso, mas se viu por fim obrigada a retirar-se, devido às exigências amorosas de seu paciente. Ajudado por seus amigos, mais uma vez começou Poe a aparecer em público. Em Fordham, escrevera ele “Eureka”, longo “poema em prosa”, de forma semicientífica e metafísica, que foi publicado em março de 1848, por Geo B. Putnam, de Nova York. Foi este o décimo e último dos livros do poeta, publicados durante sua vida, embora se saiba existir uma ediçao de seus contos, datada de 1849. A natureza de “Eureka” impediu-o de se tornar popular. Poe começou a fazer então conferências, depois de uma viagem a Filadélfia, no verão de 1847, quando outra recaída na bebida quase se revelou fatal.

O fim de sua vida foi assinalado pela publicação de alguns de seus mais notáveis poemas, “Os Sinos”, “Ulalume”, “Annabel Lee” e outros, e por sua paixão por diversas mulheres.

Durante várias viagens, a fim de pronunciar conferências em Lowell, Massachusets, e Providência, em Rhode Island, ficou ele conhecendo Annie
Richmond e Sara Helen Whitman, a primeira, uma mulher casada, e a última, viúva, de certa reputação literária e de considerável encanto. Depois de uma visita a Richmond, na Virgínia, no verão de 1848, na qual tentou travar um duelo com um tal Daniel, redator de um jornal de Richmond, de novo entregou-se à bebida. Começou a fazer a corte à Sra. Whitman, visitando-a muitas vezes em Providência e mantendo uma intensa correspondência. Por fim obteve o seu hesitante consentimento para casar-se com ele, sob a condição de que se abstivesse da bebida.

Porém, então num estado de triste aturdimento, achava-se “apaixonado”, ou tão escravizado à simpatia da Sra. Richmond (1) que, numa tentativa de pôr fim aos seus impossíveis problemas amorosos, tentou suicidar-se, ingerindo láudano, em Boston, em novembro de 1848. A dose foi apenas um vomitório e ele sobreviveu.

No dia seguinte, num estado que raiava pela loucura, apareceu em Providência e suplicou à Sra. Whitman que cumprisse sua promessa. Ela; ao que parece, na esperança de talvez salvá-lo, estava inclinada a casar com o poeta, mas a oposição dos parentes e outra volta a bebedice da parte de Poe, finalmente levaram-na a despedi-lo . Grandemente pesaroso voltou para Fordham, na mesma noite. Para os confortadores cuidados da pobre da senhora Clemm, que se preparava com relutância para acholher uma noiva.

Poe, tentou abafar o negócio e liquidá-lo com certa fanfarronice. Haviam divulgado, porém, notícias que causaram considerável escândalo. Ele se pôs então a escrever com renovada atividade, enquanto continuava sua correspondência com a Sra. Richmond. A infeliz ,persistia em acompanhar-lhe os passos como um cão. Magazines que haviam aceitado seu trabalho faliam, ou suspendiam pagamento, sua saúde novamente piorou, e a Sra. Clemm viu-se obrigada a cuidar dele, em meio do delírio. Finalmente um melhor, mas simples fantasma de si mesmo, empreendeu reviver seu plano de um magazine, O Estilo, e, com capital fornecido por um admirador do Oeste, E. H. N. Patterson, partiu para Richmond (Virgínia), na primavera de 1849, esperando obter auxilio ali de velhos amigo. A Sra. Clemm ficou em Nova York, em casa duma poetisa, em Brooklyn, que devia favores a Poe.

A caminho de Richmond, Poe se deteve em Filadélfia, onde começou de novo a beber, andando a vagar num estado de demência .Por fim foi salvo da prisão e tirado das ruas por alguns amigos fiéis, que reuniram a quantia suficiente para enviá-lo a seu destino.

Avisado pelo que fora uma quase aproximação da morte em Filadélfia, Poe lutou com todas as forças que lhe restavam para abster-se da bebida, e durante algum tempo conseguiu-o. Em Richmond, pôde, com auxílio de velhos amigos e de outras pessoas, que agora reconheciam tanto sua fraqueza quanto seu gênio, encenar uma breve rentrée. Fez conferências em Richmond e em Norfolk com grande êxito; apareceu com aplausos e dignidade na sociedade, e se tornou, finalmente, depois de alguma dificuldade mais uma vez merecedor de obter a promessa de casamento de seu amor da mocidade, Elmira Royster – agora Sra. A. B. Shelton, viúva em boa situação.

Os preparativos para o casamento prosseguiram. A data foi marcada. Por algum tempo, parecia que o romance da mocidade do poeta com Elmira ia merecer a recompensa de sua mão e de un vultoso quinhão da viúva, em meio da vida. Cartas foram escritas à Sra. Clemm participando o estado de coisas, e Poe estava pronto a voltar a Nova York, a fim de trazê-la a Richmond, para assistir ao casamento. Pouca dúvida pode haver de que em todos esse planos visse Poe não apenas a volta de sua “perdida Lenora”, mas uma velhice confortável, preparada para a Sra. Clemm, refúgio contra o mundo e vitória sobre a pobreza. Até o fim, escrevia ele à Sra. Clemm, dizendo que ainda amava a Sra. Annie Richmond e desejava que o “Sr. R. ” morresse. Com esta carta, uma das últimas que escreveu, a curiosa história de seus amores acaba em contradição e ambiguidade, como começara.

Tomando algum pouco dinheiro, que recebera do produto de uma conferência, realizada pouco antes de sua partida, Poe deixou Richmond, de manhã bem cedo, a 23 de setembro de 1849. Passara a tarde anterior com a Sra. Shelton e o casamento fora marcado para 1o. de outubro. Poe não conseguira abster-se completamente de beber enquanto estivera em Richmond, e se encontrava indubitavelmente num estado anormal, quando partiu. O inquérito, porém, mostra que ele se achava perfeitamente sóbrio naquela ocasião particular.

Viajou de navio até Baltimore e ali chegou a 29 de setembro. ( que lhe aconteceu, naquela cidade, não pôde ser exatamente afirmado até hoje. Desenrolava-se uma eleição e a maioria das provas aponta o fato de que ele começou a beber e caiu nas mãos dumi quadrilha de repeaters,(Eleitores que, nos Estados Unidos, votam duas vezes na mesma eleição (N.T.)) que provavelmente lhe ministraram algum licor com drogas e o fizeram votar. A três de outubro, foi encontrado pelo Dr. James E. Snodgrass, velho amigo, em horrível estado na sórdida taberna da Rua Lombard. Mandando avisar um parente de Poe, o Dr. Snodgrass levou o poeta, agora inconsciente e morimbundo, num carro, até o Hospital Washington e pô-lo sob os cuidados do Dr. J. J. Moran, que era o médico-residente.

Seguiram-se muitos dias de delírio, com apenas poucos intervalos de lucidez parcial. Chamava repetidamente por um tal “Reynolds” e revelava todos os indícios de extremo desespero. Finalmente, na manha de domingo, 7 de outubro de 1849, aquietou-se e pareceu repousar por breve tempo. Depois, movendo devagar a cabeça, disse: “Senhor ajudai minha pobre alma.”E assim morreu, como vivera – em grande miséria e tragicamente.
Agosto de 1927.

notas de rodapé:
(1) As relações amorosas de Poe integram uma enorme bibliografia, iniciada pelas memórias ou pelas fábulas escritas posteriormente por várias das protagonistas, que não fizeram mais do que aumentar a confusão sobre este tema. Edmund Gosse resumiu humoristicamente nas seguintes palavras: “Que Poe foi um pertinaz enamorado, constitui um outro encargo irrefutável. Cortejou muitas mulheres, porém sem acarretar dano a nenhuma. A todas agradou muitíssimo. Houve, pelo menos, uma duzia, e o orgulho que cada uma delas demonstra em suas memórias pelas atenções de Poe somente é igualado pelo seu ódio para com as outras onze.”

Fonte:
Esta é a biografia de Poe feita pelo escritor norte-americano Hervey Allen. Retirada do livro: Edgar Allan Poe – Ficção Completa, Poesias & Ensaios (Volume Único, Organização, Tradução e Notas de Oscar Mendes e colaboração de Milton Amado).

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Livraria Cultura (Eventos de 26 jan a 06 de fevereiro)

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São Paulo (Café Cultura/ Palestras)
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Data 26 de janeiro, segunda-feira, às 19h30
Tema Constelações familiares
Palestrante Zaquie Meredith
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Pompéia

Data 27 de janeiro, terça-feira, às 19h00
Tema MEDO DE DIRIGIR, EU PERDI O MEU
Palestrante Soraya Borges
Local Livraria Cultura Market Place Shopping Center

Data 27 de janeiro, terça-feira, às 19h30
Tema Ilusionismo corporativo
Palestrante Fernando Ventura
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Data 28 de janeiro, quarta-feira, às 19h00
Tema Panorama das relações culturais França-Brasil: de 1503 aos nossos dias
Palestrante Profa. Dra. Ligia F. Ferreira
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Data 29 de janeiro, quinta-feira, às 18h30
Tema 9º Seminário de educação e orientação ao índigo
Palestrantes Américo Canhoto, Valdeniza Sire Savino e Lourdes Canova
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Pompéia

Data 30 de janeiro, sexta-feira, às 19h00
Teatro Leitura dramática de “O segredo do caleidoscópio”
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Pompéia

Data 31 de janeiro, sábado, às 15h00
Teatro Dia do mágico com Ismael de Araujo
Local Livraria Cultura Market Place Shopping Center

Data 31 de janeiro, sábado, às 18h00
Teatro Dia do mágico com Ismael de Araujo
Local Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos

Data 03 de fevereiro, terça-feira, às 19h00
Gravação do programa “No divã do Gikovate”
Talk-Show ao vivo com Flávio Gikovate
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Data 03 de fevereiro, terça-feira, às 19h30
Tema Career Center – Planejamento de carreira
Palestrante Cássia Lourenci
Local Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos

Data 04 de fevereiro, quarta-feira, às 19h30
Tema A nova realidade do varejo
Palestrantes Eugenio Foganholo e Marcos Morrone
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional
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São Paulo (Noite de Autógrafos)
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Data 27 de janeiro, terça-feira, às 19h00
Livro MEDO DE DIRIGIR, EU PERDI O MEU
Autor Soraya Borges
Local Livraria Cultura Market Place Shopping Center

Data 28 de janeiro, quarta-feira, às 19h00
Livro NO SILÊNCIO DOS MEUS OLHOS
Autor Claudia Castro
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Pompéia

Data 29 de janeiro, quinta-feira, às 19h00
Livro REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO DO SEGURO E DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Autor Ernesto Tzirulnik e Flávio de Queiroz Bezerra Cavalcanti (orgs.)
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Data 29 de janeiro, quinta-feira, às 19h00
Livro AS AVENTURAS DA BLITZ
Autor Rodrigo Rodrigues
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Data 29 de janeiro, quinta-feira, às 19h00
Livro UM PINTOR SEM NOME
Autor Fernando C. Villafranca
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Data 02 de fevereiro, segunda-feira, às 19h00
Livro MACHADO DE ASSIS, OS JUDEUS E A REDENÇÃO DO MUNDO
Autor Anita Waingort Novinsky
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Data 04 de fevereiro, quarta-feira, às 19h00
Livro BOAS PRÁTICAS PARA PROJETO, HOMOLOGAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E MANUTENÇÃO DE SISTEMAS DE GESTÃO
Autor Mauricio Ferraz de Paiva
Local Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos

Data 05 de fevereiro, quinta-feira, às 19h00
Livro CUMPRIMENTO DE SENTENÇA & MULTA DO ARTIGO 475-J
Autor Carlos Alberto de Santana
Local Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos
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São Paulo (Cursos)
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Data Dia 26 de janeiro de 2009 (segunda-feira) às 19h30
Tema &Degustação musical na Cultura – Módulo III – Haydn, Mozart e Beethoven I
Local Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos – Av. Nações Unidas, 4777 – São Paulo/SP

Data Dia 2 de fevereiro de 2009 (segunda-feira) às 19h30
Tema &Degustação musical na Cultura – Módulo III – Haydn, Mozart e Beethoven II
Local Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos – Av. Nações Unidas, 4777 – São Paulo/SP

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Porto Alegre (Café Cultura/ Palestras)
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Data 28 de janeiro, quarta-feira, às 19h30
Tema Tendências na moda festa (feminina)
Palestrante Vol Fioravante (estilista)
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Country

Data 05 de fevereiro, quinta-feira, às 19h00
Tema PLANETA ESTRANHO: ÍNDIA EXOTICA
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Country

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Porto Alegre (Noite de Autógrafos)
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Data 28 de janeiro, quarta-feira, às 19h30
Livro DESCULPEM, SOU NOVO AQUI
Autor Carlos Moraes
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Country

Data 03 de fevereiro, terça-feira, às 19h30
CD DEZ CANÇÕES
Autor Adriana Maciel
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Country

Data 05 de fevereiro, quinta-feira, às 17h00
DVD/Video PLANETA ESTRANHO: ÍNDIA EXOTICA
Autor
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Country

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Recife (Café Cultura/ Palestras)
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Data 26 de janeiro, segunda-feira, às 19h00
Tema Festival Grito Rock – Identidadade visual como ferramenta na produção cultural
Palestrantes Raul Luna, Léo Antunes, Daniel Edmundson e Todé
Local Livraria Cultura Paço Alfândega

Data 27 de janeiro, terça-feira, às 19h00
Tema Festival Grito Rock – Novas diretrizes para a gestão pública de cultura
Palestrantes Renato L, Adriano Araújo e Lula Cortes
Local Livraria Cultura Paço Alfândega

Data 28 de janeiro, quarta-feira, às 19h00
Tema Festival Grito Rock – Sustentabilidade no mercado musical autoral
Palestrantes Cannibal, Zeh Rocha, Roger de Renor e Bruno Nogueira
Local Livraria Cultura Paço Alfândega

Data 30 de janeiro, sexta-feira, às 19h00
Tema História dos quadrinhos pernambucanos
Palestrantes Amaro Braga e Henrique Virgínio
Local Livraria Cultura Paço Alfândega

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Recife (Café Cultura/ Palestras)
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Data 30 de janeiro, sexta-feira, às 19h00
Livro HERÓIS DA RESTAURAÇÃO PERNAMBUCANA EM QUADRINHOS
Autor Amaro Braga, Danielle Jaimes, Roberta Cirne e José Antônio Gonçalves de Mello
Local Livraria Cultura Paço Alfândega

Programação sujeita a alterações. Consulte o site da Livraria Cultura

Fonte:
Livraria Cultura.

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Laé de Souza (Esmeraldo, o garçom)

Esmeraldo servia um bife acebolado, enquanto outro cliente fazia insistentes sinais chamando-o. Ele, fingindo não perceber para não interferir no seu trabalho, atendeu com presteza e só então deslocou a sua visão à outra mesa. (Aí que descobri que quando chamamos um garção e parece que ele não vê, às vezes está vendo e finge que não vê). Acostumado com os tipos e pela cara sentiu que era reclamação, e era mesmo. O sujeito, irritado, sentia-se indignado com a refeição. O macarrão estava grudado e o molho salgado.

Esmeraldo, educadamente, perguntou:

– Como é o seu nome, senhor?

O cliente mais irritado ainda respondeu:

– Jonas.

– Pois é senhor Jonas, vou lhe explicar como funcionam as coisas -, disse-lhe Esmeraldo. – A minha função aqui, é a logística. Ou seja, coleto os pedidos do cliente, passo para a copa, que manda para a cozinha. Daí para a frente não interfiro em nada, até que eu ouça dois toques da sineta, o sinal de que o meu pedido está à disposição. Então apanho a mercadoria, vejo se está bem separada, cada qual em sua bandeja e faço a distribuição para os clientes. Quanto a verificar se os produtos estão perfeitos, se a qualidade é boa, foge ao meu alcance e se o fizesse, estaria me intrometendo no trabalho de outro setor, com o que o senhor há de concordar, seria antiético.

Agora, é responsabilidade minha e o senhor pode me chamar a atenção que eu vou abaixar a cabeça, se ocorreu alguma coisa que me diz respeito como: Seu pedido veio trocado? Sua cerveja chegou quente? O refrigerante diet da sua esposa e as cocas normais dos seus filhos não vieram certinhos, como pedidos? Sua comida veio misturada, decorrente do transporte da copa até a sua mesa? Deixei cair um copo ou derramei molho na mesa ou em algum dos senhores?

O senhor pode não ter percebido, senhor Jonas, mas a sineta tocou e eu já corri para trazer sua refeição. Se houve demora, foi lá para dentro, mas não no serviço de distribuição. Agora, se o senhor quer fazer reclamação do serviço da produção, posso chamar o cozinheiro ou então o senhor Manoel, que é o dono, portanto, é quem tem que ouvir essas reclamações, não eu. Aliás, aqui pra nós, acho que o senhor tem que reclamar com ele sim, porque esse cozinheiro é muito folgado e anda fazendo as coisas de qualquer jeito. É a segunda reclamação injusta que recebo hoje. Que culpa tenho eu, senhor Jonas, que estou aqui do lado de fora, nem sabendo do que está acontecendo lá por dentro e alguns clientes sem atentar para isto, me chacoalham? O senhor, sinceramente, não acha que é injusto seu Jonas? Vou chamar o seu Manoel, o senhor reclama do macarrão, do molho e, não diga que falei nada, mas pode reclamar que a carne está dura, porque sei que está, pois, uns dois clientes já reclamaram. Lá está o seu Manoel. Seu Manoel! Seu Manoel , faz o favor!

Enquanto o Sr. Manoel se aproximava, Esmeraldo cochichou para o cliente:

– O senhor pode reclamar do que quiser seu Jonas, mas não da comida fria, porque se esfriou, foi por culpa sua que iniciou a conversa, deixando-a esfriar.

Jonas, mulher e filhos boquiabertos olhavam para o Esmeraldo e o Sr. Manoel, que todo solícito dizia um “pois não”, bem macio.

Fonte:
http://www.projetosdeleitura.com.br/cronica01.html

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Laé de Souza

O escritor Laé de Souza é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura.

Preocupado com o déficit educacional e inconformado com o slogan “Brasileiro não gosta de ler” vem criando projetos de leitura, objetivando gerar alternativas que favoreçam e criem o hábito da leitura.

Obras: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho – Um cãozinho especial.

Projetos: “Encontro com o Escritor”, “Ler É Bom, Experimente!”, “Lendo na Escola”, “Minha Escola Lê”, “Viajando na Leitura”, “Leitura no Parque”, “Dose de Leitura”, “Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, “Minha Cidade Lê”, “Dia do Livro” e “Leitura não tem idade”.

Palestras: Ao longo de sua carreira de escritor e na aplicação de seus projetos de leitura, Laé de Souza já ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. “A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano”, dirigida a estudantes e “Como formar leitores”, voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras.

Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças “Noite de Variedades” (1972), “Casa dos Conflitos” (1974/75) e “Minha Linda Ró” (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.

Criou o jornal “O Casca” e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco.

Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica.

Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para “O Labor”(Jequié, BA), “A Cidade” (Olímpia, SP), “O Tatuapé” (São Paulo, SP), “Nossa Terra” (Itapetininga, SP); como colaborador no “Diário de Sorocaba”, O “Avaré” (Avaré, SP) e o “Periscópio” (Itu, SP).

Fonte:
http://www.projetosdeleitura.com.br/autor.html

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Carlos Drummond de Andrade (Presépio)

Presépio (Jeronimo Boch) –
Museu do Prado, Espanha

Dasdores (assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre a Missa do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado.

É difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se diriam jaulas.

Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para sua mãezinha”. Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. Em seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo com brilhantina, está Abelardo.

Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho… Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a atividade interior — é uma conspiradora — e sempre acha folga para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto repentino, desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há quase dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do presépio que cede a novidades.

As caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las é a primeira satisfação entre as que estão infusas na prática ritual da armação do presépio. Todos os irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da direção. Jamais lhes será dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor seria que não amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de circundar a manjedoura. Nem todos os animais estão perfeitos; este carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar, mas parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção com os cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e participam da natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez participa obscuramente da natureza da família. Através de um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não há limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de Abelardo.

Alguém bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de ir para a igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa (“Agarra-me! Agarra-me!”). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos para fazer algo de muito importante e que exige não somente largo espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito importante e que não pode absolutamente ser adiado – se esse alguém é nervoso, sua vontade se concentra, numa excitação aguda, e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas. Dasdores não pertence a essa raça torturada e criadora; figura no ramo também delicado, mas impotente, dos fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos, dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte.

A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio dispondo-as onde convém. Nada fará com que erre; do passado a tia repete sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos de celulóide, está alterado, ou subtraí-se. Dasdores não o saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando, talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já sabeis de quem.

Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo, acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com os muitos braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação, vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa, ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não braços e pernas suplementares, e sim outra natureza, diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria folga para localizar condignamente os três reis na estrada, levantar os muros de Belém. Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo. “Agarra-me! Agarra-me!” Nas cabeças que espiam pela porta entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais para caber em instantes tão curtos, no calor que começa a fazer apesar das janelas escancaradas — há uma previsão de malogro iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro.

Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na imaginação os dois deuses, colocando os pastores na posição devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro — quem botou! — ardendo na areia do presépio, e que Abelardo fumava na outra rua.

Fontes:
MORICONI, Ítalo (organizador). Contos de Aprendiz. RJ: Editora do Autor, 1963. p. 51.
Pintura = http://diariodeodivelas.com

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Antonio Sávio (Contemplação da Dor)

As noites de trevas perseguem as vitórias
E os quase heróis fraquejam, perecem e morrem
E assim nascem as histórias
Para os que acreditam nos versos que lêem, com a mesma pressa que correm.

Nascem as trevas infindas e obscuras,
Mas riscam os céus as estrelas cortando como lâmina as brumas.
Nascem para os ais e gemidos todas as curas…
Assim como somem os sonhos, no aluvião de cinzas do cigarro que fumas

As noites de trevas, de medo, serão uma constante
Mas resta aos homens de figa, soprar as brumas
Como quem afasta um vaso ou uma estante
Sem perturbar a tez, como quem não faz coisa alguma

Como quem sopra as plumas no céu perdidas,
Qual o vento se põe a soprar a vela de um escaler.
Como o sol e as trevas que saram feridas
Como quem sara um câncer, tal como uma ferida qualquer.
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Domingos Barroso (Teia de Poesias)

Idiossincrasia

Antes de dormir,
não escovarei os dentes.
Hei de eternizar essa quimera
de tapioca com manteiga e café com leite.
Quem sabe sonhar com meus ancestrais
sob teto de palha admirando as estrelas.
Antes de dormir,
não mijarei no assento.
Vou torcer para que amanheça a rede mijada.
Meu filho de seis anos debate-se em meu peito.
Um ritmo inocente rastejando-se pela sala.
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Manequins Embalsamados

Vinde, tem vinho.
Mas não existe embriaguez.
Questão de impulso e percepção.
Vinde, tem coisa.
Mas não há alucinações.
A síntese mais bela é agua oxigenada
nas coxas da cabocla lavando roupa.
Vinde, tem ritmo.
Mas longe a trova.
Trovões!
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São

Não, meu caro.
A angústia não tem motivo.
Tampouco é necessário um balaço no ouvido.
A angústia é obesa mas não é mórbida.
Não, caríssimo.
A angústia não traz fardo ao ombro.
A cruz dos tolos aquece os calos.
As nuvens me embriagam mesmo à noite.
As estrelas são cadáveres que brilham.
Prefiro ser pardo:
roubar dos santificados o vício.
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Fonte

As unhas morrem de ódio das cutículas.
Os neurônios abobalhados planejam suicídios.
Tudo em mim é inveja e tédio.
Tantos quartos empoeirados
para uma só aranha trêmula.
A única refeição do dia
não saiu da toca.
Não me resta outra morte
senão lançar-me os dedos às teclas.
Tudo em mim é tolice e frio.
Meu coração mama sangue
por uma seringa enferrujada.
Meu paraíso é obscuro.
Entes sorridentes dizem olá.
Conquistam-me pela lábia.
Desperto. Tarde.
Tudo em mim é paraíso.
Um inferninho legal.
Desses de Leônidas,
o espartano.
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Divino Osso

Não largo meu osso.
Osso saboroso
que dói no dente.
Todo santo dia
ou dia infernal
tiro uma casquinha.
Alimento-me a loucura.
Vejo nódoas verdes no teto.
Ouço grilos matinais.
Tem hora que caio da rede.
Mas o abismo jardim florido.
Trigal ao luar.
Cães, vândalos, pilantras
tentam roubar-me quando durmo.
Tenho dó dos tolos.
Só fecho os olhos fingimento.
Não largo mesmo meu osso
nem bêbado nem duende.
Meu osso é um osso labareda.
Queima as mãos dos incautos.
Não largo meu osso.
Meu osso é uma parada.
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Cicero Sandroni (Conversa de Bebado no Alto Escalão)

Mesmo nos anos mais duros da guerra, quando os aviões da Luftwaffe despejavam bombas sobre Londres e outras cidades inglesas, Winston Churchill jamais dispensou uma garrafa de champanhe ao almoço e outra ao jantar; uma dose de uísque ao entardecer e duas ou três antes de deitar-se, às duas da manhã. Então metia-se na cama, dizia para si mesmo ”danem-se todos!” e dormia tranqüilamente, sem sonhar. Alcançar objetivos concretos, na paz ou na guerra, constituía para ele algo melhor do que o sonho. E se a realidade incluísse garrafas de fermentados ou destilados, melhor.

Em agosto de 1942, quando Hitler estava na ofensiva na frente russa, Churchill empreende cansativa e perigosa viagem aérea de Londres até Moscou, com escala no Cairo e em Teerã, para explicar ao seu antigo inimigo e então novo parceiro na guerra, Josef Stalin, que os aliados não abririam logo uma segunda frente na Europa, operação que desde a invasão nazista os soviéticos exigiam desesperadamente para ontem. Antes disso, tropas britânicas e americanas invadiriam a África para expulsar Rommel do Egito e controlar o Mediterrâneo. A invasão pelo norte da França só viria depois.

Na primeira reunião dos dois líderes e seus assessores (Motolov e Alexander Cadogan), enquanto eles discutiam no Kremlin, tropas nazistas estavam próximas da capital. Impaciente, Stalin exigia a abertura da segunda frente na Europa.

– O que os ingleses esperam? – indagava o marechal, com a voz alterada – Estão com medo de combater os soldados nazistas?

A argumentação de Stalin encontrou resistência por parte de Churchill, que ignorou o insulto: os aliados nada fariam além do acertado com Rooselvelt. Invadir o norte da França antes de 1943 (o desembarque na Normandia só ocorreu em julho de 1944) seria um desastre militar que permitiria a Hitler consolidar seu poder na Europa. Enfurecido, Stalin não teve outro recurso senão conformar-se. Mas arrancou a promessa de que a RAF e os americanos bombardeariam a Alemanha – o que Churchill não precisava prometer: os aviões aliados já despejavam bombas sobre Hitler.

Na véspera de sua partida, depois de dois dias de discussões, Churchill vai ao Kremlin para despedir-se. Mais conformado, Stalin adota tom cordial, em diálogo traduzido por um poliglota chamado Pavlov, que nada conhecia de reflexologia:

– Você parte ao raiar do dia. Por que não vamos à minha casa para beber um pouco? Tenho lá boa adega, você não se arrependerá.

Churchill respondeu que apoiava a política dos drinques à tarde, mesmo em uma Moscou quase nas mãos dos nazistas. Detalhes sobre o encontro estão nas suas Memórias da Segunda Guerra Mundial, em tradução de Vera Ribeiro, com selo da editora Nova Fronteira. Vale a pena ler a descrição da insólita happy hour de dois líderes que, naquele momento decisivo e dramático, parecia o encontro casual de dois amigos no melhor dos mundos; jogavam conversa fora enquanto russos e alemães lutavam encarniçadamente bem perto do Kremlin. Os dois tinham consciência do que acontecia na desesperada linha de resistência soviética, mas precisavam se conhecer melhor. E também porque, como diria o inglês, que diabo, gostavam de beber.

Stalin jogava sua última carta naquele pôquer em que as fichas eram as vidas de milhões de soldados soviéticos: esperava embebedar Churchill e assim obter dele o compromisso de invadir a Europa nazista; com o monstro voltado para quem o atacasse no canal da Mancha ele teria um alívio nos Urais. Mas, diante da implacável firmeza do seu companheiro de copo, irritou-se:

– A Marinha britânica não tem senso de glória? Vocês eram os donos dos mares e agora têm medo de atravessar o Canal da Mancha?

– Você pode crer – respondeu Churchill – o que estamos fazendo é o certo. Eu entendo um bocado sobre marinha e guerra naval.

– O que significa então que eu não entendo nada? – respondeu, abrupto, Stalin, fingindo-se envolvido.

– A Rússia é animal terrestre – retrucou Churchill – enquanto os britânicos são animais marítimos. Nós conhecemos a nossa força naval, sabemos o que podemos e o que não podemos fazer. Não despreze a força dos submarinos nazistas, que já destroçaram boa parte da nossa frota.

Stalin permaneceu instantes em silêncio, contendo a raiva que sentia daqueles ingleses resistentes à bebida e de quem precisava desesperadamente. Enfim, meio conformado, disse:

– Vamos chamar o Motolov, ele também gosta muito de beber.

Churchill concordou e por sua vez convidou o embaixador Alexander Cadogan, que segundo ele, também era bom de copo. E a conversa continuou, agora a quatro, com o professor Pavlov dividindo-se entre eles, enquanto as garrafas iam sendo esvaziadas. E assim passavam as horas, contando histórias e anedotas, levantando brindes à vitória que sabiam estar tão longe quanto perto de Moscou estavam os alemães. Nas palavras de Churchill: ”Bebemos uma multiplicidade de vinhos excelentes. Motolov assumiu seus ares mais afáveis e Stalin, para animar a situação, caçoou dele implacavelmente”.

O encontro terminou às 2h30m da manhã, com as despedidas de Stalin, que foi ler os telegramas que chegavam do front; a situação estava ruim, mesmo. Churchill voltou à Residência Estatal nº 7, ainda encontrou forças para ouvir as queixas de um impaciente general polonês que o esperava, e não teve tempo para dormir. Quando chegou ao aeroporto, às 5h, sua cabeça estalava. E lá encontrou, para as despedidas, um cambaleante Motolov.

– Você achou que eu não viria? – perguntou o russo, estremunhado.

Churchill agradeceu a gentileza do ministro do Exterior soviético e embarcou, sem fazer idéia de onde Motolov arranjaria forças para passar aquele dia. Quanto a ele, confessou: dormiu durante toda a viagem.

Mesmo na hipótese improvável de Stalin conseguir de Churchill embriagado o compromisso de invadir a França, dificilmente Roosevelt embarcaria nessa canoa. E por falar em Roosevelt: mesmo doente, o presidente americano jamais dispensou dois ou três martínis antes do jantar. Não era uma esponja do calibre de Churchill ou de Stalin, mas também entornava bem. O Times, os tablóides londrinos ou o The New York Times jamais informaram aos seus leitores londrinos que a guerra contra os nazistas era conduzida por três líderes que bebiam todas.

E que no final venceram Adolf Hitler, um ditador sanguinário e… abstêmio.

Fontes
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro – RJ) 26/05/2004. In Academia Brasileira de Letras.

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Cicero Sandroni (Monstros contra Deuses)

Sucesso em Hollywood depende menos de talento e mais de estar no lugar certo na hora certa, dizia William Henry Pratt, ator inglês que emigrou para os Estados Unidos em 1913, adotou o nome de Boris Karloff e tornou-se mundialmente conhecido ao interpretar o monstro no filme Frankenstein, do diretor James Whale. O lugar certo para Karloff alcançar o sucesso foi a lanchonete do estúdio da Universal, em Hollywood, onde o diretor Whale tomava chá gelado e, ao vê-lo, impressionou-se com seu rosto.

O primeiro trabalho de James Whale para a Universal seria uma adaptação do romance de Mary Shelley e ele procurava um ator com o physique du rôle para encarnar o monstro. Quando viu Boris na lanchonete do estúdio, chamou-o e, comentou:

– Seu rosto tem possibilidades surpreendentes… Você gostaria de fazer um teste para o papel da criatura do doutor Frankenstein?

Boris espantou-se com a proposta, mas aceitou o teste e, logo na primeira cena, demonstrou que, se alguém poderia interpretar a criatura imaginada por Mary Shelley, era ele e ninguém mais. Começou a trabalhar obedientemente sob as ordens de um tirânico Whale. O ”escultor” da face horrível e insondável foi Jack Pierce, o chefe de maquiagem do estúdio. E, desde a primeira tomada, a persona do monstro impressionou a todos. Em pouco tempo ninguém tinha dúvidas de que a figura desengonçada e maligna seria a principal atração do filme.

Não foi necessário passar muito tempo para Whale perceber que a grotesca figura permaneceria para sempre no imaginário de todos, enquanto ele, o diretor do filme, seria esquecido. E tinha razão. Só mesmo os cinéfilos guardaram seu nome, enquanto o monstro construído por Pierce a partir do corpo de Karloff tornou-se um dos ícones do terror do século 20, popularizando a obra de Mary Shelley. E a tal ponto que quando Bill Condon faz um filme para mostrar os dias finais de Whale, quem aparece na última cena é o ator Brandon Fraser imitando Karloff na pele do monstro. A criatura mais uma vez vencera o criador.

Lançado em 1931, com produção de US$ 250 mil, Frankenstein rendeu US$ 12 milhões à Universal e salvou a empresa da falência. Descoberto o filão, Carl Laemmle, o chefão do estúdio, queria mais filmes de terror com a dupla Whale/Karloff, mas o diretor resistiu a um novo confronto com aquela força da natureza, que eletrizava as audiências assim que sua figura disforme aparecia na tela. Só em 1935 Whale sentiu-se com forças para enfrentar o monstro novamente e consentiu fazer uma continuação da história de Mary Shelley: A noiva de Frankenstein, com Elsa Lanchester. Submetida ao mesmo tratamento de Pierce, Elsa (que também interpreta Mary Shelley no prólogo do filme) servia de contrapeso à presença de Karloff.

Boris Karloff prosseguiu então em sua carreira, muito marcado pela figura do monstro. Por excessiva modéstia, costumava dizer que não podia se comparar com os grandes atores ingleses da época, a exemplo de Laurence Olivier, Leslie Howard e John Gielguld. Talvez não fosse mesmo grande como eles, mas o sistema patronal de exploração, vigente em Hollywood, o condenava aos filmes de horror. E, quando ele conseguia escapar, era para interpretar gângsteres ou índios, ou então paródias de si mesmo, como no filme The seven lifes of Walter Mitty, com Danny Kaye.

Na vida real, segundo conta Cynthia Lindsay no livro Dear Boris, uma biografia, ele era tímido, cordial e excessivamente modesto. Apesar da fama, raramente conseguia bons papéis em filmes que não fossem de terror. E, tal como o monstro que ansiava pela liberdade e por uma vida ”humana”, ele também tentou livrar-se do estereótipo para mostrar sua capacidade de interpretar outros tipos que não apenas vilões ou monstros. Mas quase nada conseguiu. Peter Bogdanovitch contou um pouco do seu drama em Targets, de 1968, no qual Boris Karloff interpreta Byron Orlok, ator de filmes de horror que deseja fazer outro tipo de cinema, que não os filmes de violência.

Pouco se vê de Boris Karloff no filme Deuses e monstros, de Bill Condon, no qual a interpretação magistral de Yan McKellen no papel de James Whale, nos seus últimos dias, domina a história do começo ao fim. Mas nas sombras da tela – e na mente do Whale personagem – a presença do monstro, tal como criado por Karloff, é intensa. E repercute até hoje, nas imagens do terror produzido para o consumo das multidões, permanecendo no imaginário de todos e na iconografia do século 20. Quem, em criança, não sentiu medo do monstro Frankenstein, dos filme de Whale e seus epígonos, ou, mais tarde, não riu do jovem Frankenstein da comédia de Mel Brooks, ou ainda, entre nós, não se divertiu com o fascinante Frankenstein punk, curta-metragem de Cao Hamburguer?

O monstro está entre nós. E não apenas por sua figura aterrorizante. Segundo o filósofo francês Jean-Jacques Leclerc, o romance de Mary Shelley permite várias leituras. A que ele fez no seu livro Frankenstein, mito e filosofia apresenta o monstro na condição de metáfora das massas exploradas, que reagem de forma ”monstruosa” na Revolução Francesa, ou nas manifestações da mob londrina. Para Leclerc, Mary Shelley construiu o seu monstro com pedaços do proletariado nascente (uma espécie de Prometeu acorrentado), influenciada pelos acontecimentos históricos da época e pelas idéias libertárias de seu marido, o poeta Percy Shelley, cujo codinome, na polícia política, era Red Shelley.

Mas, se no filme de Whale sobra muito pouco do texto de Mary Shelley, muito menos fica, é claro, da leitura ideologizada que Jean-Jacques Leclerc fez. No entanto, não se pode ser muito rigoroso com as versões filmadas. E, no caso de Frankenstein, de Whale, seu filme sobreviveu exatamente por aquilo que ele mais temia: a fixação de um mito criado no século 19, na aterrorizante figura do monstro, interpretado por Boris Karloff.

E, quando ele aparece na tela, patético e selvagem, podemos até pensar que, em relação ao Brasil de hoje, Leclerc talvez tenha um pouco de razão. Aqui, tal como no ancien régime na França ou durante a Revolução Industrial na Inglaterra, os donos do poder vêem e tratam as dezenas de milhões de excluídos da economia do mercado como seres monstruosos, ameaçadores e perigosos, quando são apenas sub-empregados, explorados, desempregados e desesperados em busca de um mínimo de condição humana. E muitos deles incapazes de articular palavras de defesa, tal como a criatura imaginada por Mary Shelley, o monstro cujas cordas vocais só emitiam grunhidos.

Fonte:
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro – RJ) 04/08/2004. In Academia Brasileira de Letras.

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Cícero Sandroni (1935)

Cadeira n. 6 da Academia Brasileira de Latras, desde 2003.

Cícero Augusto Ribeiro Sandroni nasceu na cidade de São Paulo, a 26 de fevereiro de 1935, filho de Ranieri Sandroni e Alzira Ribeiro Sandroni (ambos nascidos em Guaxupé, Minas Gerais).

Fez os estudos primários e parte do ginasial na capital paulista. Com a transferência de sua família para o Rio de Janeiro, em 1946, aqui concluiu os estudos secundários. Cursou a faculdade de Jornalismo (hoje de Comunicação) da Pontifícia Universidade Católica e a EBAP – Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas, onde foi bolsista.

Em 1954 fez os primeiros estágios em redações de jornais, inicialmente na Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda e em seguida no Correio da Manhã, sob a direção de Antônio Callado e Luiz Alberto Bahia, onde chegou a chefe da reportagem. Convidado por Odylo Costa, filho, ingressou na redação do Jornal do Brasil, na época da reforma editorial do diário, e ao mesmo tempo atuou na Rádio Jornal do Brasil.

Em julho de 1958 transferiu-se para O Globo onde, destacado para a cobertura da área da política exterior, fez várias viagens internacionais entre as quais ao Chile para a cobertura da V Conferência Extraordinária dos Chanceleres Americanos, e aos Estados Unidos, convidado pelo Departamento de Estado americano e enviado por O Globo para escrever sobre a primeira visita de Nikita Kruschev à ONU. Na mesma ocasião entrevistou Alexander Kerensky, então diretor da Torre Herbert Hoover, na Universidade de Stanford, na Califórnia e participou de uma semana de estudos brasileiros, naquela universidade, em que a homenageada foi a poetisa Cecília Meireles. Em abril de 1960 integrou a equipe de O Globo que, chefiada por Mauro Salles, fez a cobertura da inauguração de Brasília. Naquele mesmo ano assumiu a chefia da reportagem política do Diário de Notícias, então sob a direção de Prudente de Morais, neto, onde escreveu a coluna “Notas Políticas”, em substituição de Heráclio Salles.

Convidado por José Aparecido de Oliveira e pelo prefeito de Brasília, Paulo de Tarso Santos, em 1961 transferiu-se para a nova capital, onde foi Secretário de Imprensa da Prefeitura do Distrito Federal, diretor de Relações Públicas da Novacap e ao mesmo tempo atuou, ao lado de José Aparecido, na coordenação da equipe, chefiada por Candido Mendes de Almeida, que preparou a primeira (e única) mensagem do Presidente Jânio Quadros ao Congresso Nacional. Integrou o Conselho Fiscal da Fundação Cultural de Brasília, presidida por Ferreira Gullar, ao lado do então deputado José Sarney.

No governo parlamentarista de João Goulart/Tancredo Neves, foi subchefe do gabinete do Ministro Franco Montoro, na pasta do Trabalho e Previdência Social e em 1962 foi nomeado representante do governo no Conselho Fiscal do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), sendo naquele mesmo ano eleito presidente do órgão, do qual foi demitido em abril de 1964.

Com a instalação do regime militar, voltou a trabalhar na Tribuna da Imprensa de Hélio Fernandes, e em O Cruzeiro, sob a direção de Odylo Costa, filho. Com Odylo, Álvaro Pacheco e o diplomata Pedro Penner da Cunha adquiriu uma empresa gráfica, de cujas máquinas saíram as duas primeiras edições da revista de contos Ficção, editada com a colaboração de Antônio Olinto e Roberto Seljan Braga. Em seguida, com Pedro Penner da Cunha, fundou a Edinova, editora pioneira no Brasil no lançamento de literatura latino-americana e do nouveau roman francês.

Em 1965 participou de conferência de jornalistas em Bonn, na Alemanha, que resultou na criação da agência internacional de notícias Interpress Service, da qual foi diretor no Brasil. Naquele mesmo ano retornou ao Correio da Manhã, onde escreveu a coluna diária “Quatro Cantos!, de oposição ao governo militar, e conviveu com Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Paulo Francis, José Lino Grünewald, Osvaldo Peralva e Newton Rodrigues. Sobre esta fase do seu trabalho, Alceu Amoroso Lima escreveu, em artigo publicado no Jornal do Brasil, “Cícero Sandroni renovou o colunismo, na imprensa do Rio de Janeiro”.

Com a censura imposta à imprensa após o Ato Institucional nº 5 e o arrendamento do jornal, deixou o jornalismo diário e ingressou em Bloch Editores, onde foi redator-chefe das revistas Fatos e Fotos, Manchete e Tendência. Sob sua direção esta última recebeu, em 1974, o Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria de Melhor Contribuição à Imprensa. Em 1976 dirigiu, para Fernando Gasparian, a última fase do Jornal de Debates, semanário de política e economia fundado por Mattos Pimenta, que se notabilizara, na década de 50, na luta pela criação da Petrobras.

Ainda em 1976 lançou novamente a revista Ficção, com Fausto Cunha, Salim Miguel, Eglê Malheiros e Laura Sandroni. Na segunda fase, em 44 edições, Ficção publicou mais de quinhentos autores brasileiros. Naquele mesmo ano coordenou, com os escritores Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Hélio Silva, José Louzeiro, Ary Quintella e Jefferson Ribeiro de Andrade um manifesto contra a censura aos livros, assinado por mais de mil intelectuais brasileiros, conhecido como o Manifesto dos Mil. Publicado na imprensa, o documento impediu a continuação da censura aos livros, que proibira a circulação de mais de quatrocentos títulos de autores brasileiros e estrangeiros. O mesmo grupo renovou o Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e levou à sua presidência o Acadêmico Antonio Houaiss.

Em 1977, a convite de Walter Fontoura, retornou ao Jornal do Brasil inicialmente como redator do Caderno B, onde escreveu sobre arte e cultura e foi crítico de cinema. Em seguida editou o suplemento literário “Livro” e de 1979 a 1983 escreveu a coluna “Informe JB”. Em 1984 assinou a coluna “Ponto de Vista”, no jornal Última Hora, com a colaboração do poeta José Lino Grünewald. Nesse tempo, foi um dos primeiros jornalistas a defender a realização de eleições diretas para a presidência da República.

Em 1984 editou o Jornal do País, semanário de Neiva Moreira e, em 1985, escreveu artigos sobre política para a Tribuna da Imprensa. Colaborou com a revista Elle, onde publicou perfis de artistas e escritores e colaborou com resenhas de livros para a página literária de O Globo. Naquele mesmo ano passou a colaborar com a Companhia Vale do Rio Doce na área de assuntos culturais. Foi editor do “house-organ” Jornal da Vale e coordenou duas edições do Prêmio Nacional de Ecologia, instituído pela CVRD e apoiado pelo CNPq., Petrobras e a SEMA. Em 1990 foi editor-geral da Tribuna da Imprensa e a seguir passou a escrever uma página semanal sobre cultura e política.

Em 1991 fundou, para a prefeitura do Rio de Janeiro, o mensário literário RioArtes, o qual dirigiu até ser convidado, em fins de 1992, pelo então ministro da Cultura, Antonio Houaiss, e o presidente da Funarte, Ferreira Gullar, para dirigir o Departamento de Ação Cultural da entidade. No DAC, entre outras atividades na área das artes plásticas e da música, organizou o Salão Nacional de Artes Plásticas de 1993 e 1994 e a Bienal de Música de 1994. Na mesma ocasião dirigiu, com Ferreira Gullar e Ivan Junqueira, a revista Piracema.

Editor de Cultura e Opinião do Jornal do Commercio em 1995, afastou-se no ano seguinte para escrever, com Laura Sandroni, a biografia de Austregésilo de Athayde. Voltou ao Jornal do Commercio em 2000, como diretor-adjunto da Redação e participou, com Antônio Calegari, da reforma gráfica que modernizou o Jornal. Criou o suplemento cultural Artes e Espetáculos e deixou a redação em agosto de 2003 para escrever a história do Jornal do Commercio.

Sexto ocupante da Cadeira nº 6 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 25 de setembro de 2003, na sucessão de Raimundo Faoro com 36 votos (a unanimidade dos votantes), foi recebido em 24 de novembro de 2003 pelo Acadêmico Candido Mendes de Almeida. No mesmo ano, eleito tesoureiro da Presidência de Ivan Junqueira, dois anos depois, Secretário-Geral do Ministro Marcos Vinicios Vilaça. Tomou posse como Presidente da ABL em 13 de dezembro de 2007, eleito pela unanimidade dos seus pares.

Cícero Sandroni tem participado de vários júris de prêmios jornalísticos notadamente o Esso de Jornalismo, o Prêmio Embratel de Jornalismo e o Prêmio de Jornalismo Científico do CNPq. Na área de literatura integrou o júri do concurso de contos da revista Ficção, e do Prêmio Goethe de literatura do ICBA. Colaborador de jornais e revistas, tem participado de seminários de jornalismo e literatura e pronunciado palestras sobre aqueles temas em centros universitários. Escreveu prefácios para vários livros, entre os quais Memórias Improvisadas de Alceu Amoroso Lima e Medeiros Lima, segunda edição.

Casado desde janeiro de 1958 com a escritora Laura Constância Austregésilo de Athayde Sandroni, tem cinco filhos, Carlos (1958) sociólogo e Doutor em Etnomusicologia pela Universidade de Tours, França; Clara (1960), cantora e bacharel em música pela UniRio; Eduardo (1961), ator e diretor de teatro formado pela CAL; Luciana (1962) autora de literatura infantil e mestre em literatura pela PUC de SP e Paula (1970), atriz, diretora de teatro e pós-graduada em teatro pela UniRio. O casal tem um neto, Pedro, nascido em agosto de 2003.

Participações

– Sócio da ABI desde 1971, foi eleito membro do Conselho Administrativo em 1979. A partir de então atuou ao lado do presidente da entidade, Barbosa Lima Sobrinho até a sua morte, em junho do ano 2000.
– Foi diretor da Biblioteca Bastos Tigre, secretário-geral da Diretoria e presidente do Conselho Administrativo no biênio 2000/2001.
– No episódio do impeachment do Presidente Fernando Collor assessorou Barbosa Lima Sobrinho, ao lado de Raymundo Faoro, Evandro Lins e Silva e Clóvis Ramalhete.
– Atualmente é membro do Conselho de Ética e da Comissão de Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa da ABI.
– Membro da Academia Carioca de Letras, Cadeira número 13. 2003.
– Sócio titular do PEN Clube do Brasil. 1985
– Membro da Assembléia Geral da GERIS – Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social.
– Membro do Capítulo Brasileiro da Society foi International Development, SID. Presidente do Capítulo Brasileiro da SID em 1987.
– Curador do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade.
– Membro do Conselho Consultivo do Instituto Cultural Brasil-Alemanha.
– Membro e Presidente (1992) da Associação de Canto Coral.
– Membro do Conselho da Sociedade dos Amigos do Museu do Inconsciente.
– Sócio do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RJ.
– Sócio do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro.

Bibliografia
Jornalismo na televisão
– Redator e comentarista dos telejornais apresentados por Heron Domingues, na TV Rio e na TV Continental.
– Redator e apresentador substituto do programa de entrevistas “Frente a Frente”, de Heron Domingues, na TV Tupi.
– Produtor da série Caminhos da Sobrevivência, dirigido por Washington Novaes e transmitido pela TV Manchete, sob o patrocínio da Companhia Vale do Rio Doce.
– Comentarista do telejornal de Fernando Barbosa Lima na TVE.
– Criador e apresentador do programa de entrevistas literárias “A Arte de Ler”, na TVE.
– Desde 2001 é comentarista de livros do telejornal Edição Nacional, da TVE/Rede Brasil.

Livros publicados
– O Diabo só chega ao meio-dia, contos, Nova Fronteira, 1985.
– O vidro no Brasil, ensaio histórico, Objetiva, 1989.
– Austregésilo de Athayde, o século de um liberal, Agir, 1998. (Prêmio José Ermínio de Moraes de 1999 da ABL)
– Cosme Velho, passeio literário pelo bairro, Relume Dumará, 1999.
– 50 anos de O Dia, história do jornal, 2002
– O peixe de Amarna, romance, Record, 2003.
– Carlos Heitor Cony, da coleção Perfis do Rio, Relume Dumará, 2003.
– De Pedro I a Lula – História do Jornal do Commercio, Quorum, 2007.

Colaborador em obras coletivas
– Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, edição do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, coordenação de Alzira Abreu, RJ.
– Novo Dicionário de Economia, de Paulo Sandroni, editora Best Seller, SP.

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

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Sandra M. Julio (Ecos da saudade …)

Encontrei teu olhar perambulando meus sonhos… Descuidado, despertou a saudade adormecida na engelhada ausência.

Lembranças brincaram relembrando doces instantes em que meus olhos pousaram em teu mais doce sorriso. Dele minh’alma ainda se embriaga, acordando tua imagem.

As fímbrias do luar iluminam sonhos quando trôpegos caminham por horizontes buscando a paz que goteja dos versos que a mim dedicas, nas entrelinhas do teu coração.

Não sabes do amor que trago em mim, ele é como a brisa perfumando as flores, como o orvalho saciando a sede de áridos sonhos, é o gorjeio de cada pássaro entoando teu nome na mais doce oração.

Sabe… Quando as fantasias adormecem na rede do tempo e a solidão se faz coberta para a fria saudade, ouço teu palmilhar envolto nos cabelos da noite, esculpindo carícias num infinito que abre as portas do desejo.

Jamais partiste… Meus sonhos a ti encontram no colo de cada noite, és parte indelével de mim.

Tua lembrança é a primavera florescendo em cada estação, nela o tempo faz pouso, e a felicidade reflete no espelho de cada sonho, estilhaçando-se em sorrisos e alegrias.

Em cada anoitecer busco nas estrelas o teu olhar… Faço da prece canção e a consagro ao vento, para que a cada noite presenteie seus lábios com o meu mais doce beijo.

Assim desarrumo os ecos da saudade, quando embriagam meus reflexos.
20/01/09

Fonte:
Douglas Lara.
http://www.sorocaba.com.br/acontece

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Sarau em Itu dia 31 de Janeiro

O Ponto de Leitura de Itu realizará no sábado, dia 31, um Sarau Beat com o grupo Coesão Poética de Sorocaba.

A Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima, uma das 516 iniciativas selecionadas pelo governo federal como Ponto de Leitura, sediará no próximo dia 31, a partir das 19 horas, um Sarau em homenagem à geração beat. Haverá música ao vivo, exposição de cartazes psicodélicos, sons de vinis dos anos 60 e 70, declamação de poemas e textos dos maiores expoentes do gênero e exibição do filme Chappaqua, além de curtas metragens sobre o tema.

A geração beat (beat generation em inglês) é um termo usado tanto para descrever um grupo de escritores americanos que vieram a se tornar conhecidos no final da década de 1950 e no começo da década de 1960, quanto ao fenômeno cultural que eles escreveram e inspiraram (posteriormente chamados beatniks).

As principais obras da geração beat na literatura são Howl (1956) de Allen Ginsberg, Naked Lunch (1959) de William S. Burroughs e On the road (1957) de Jack Kerouac. Tanto Howl quanto Naked Lunch foram o foco da prova de obcenidade que ajudaram a liberar o que poderia ser publicado nos Estados Unidos. E On the road transformou o amigo de Kerouac, Neal Cassady, em um herói dos jovens.

Os escritores beat davam ênfase em um engajamento visceral em experiências com as palavras combinadas com a busca a um entendimento espiritual mais profundo. Ecos da geração beat podem ser vistos em muitas outras subculturas (hippies, punks etc.).

Os anos 60, acima de tudo, foi um período de explosão de juventude em todos os aspectos. Era a vez dos jovens, que influenciados pelas idéias de liberdade começavam a se opor à sociedade de consumo vigente. O movimento beat, que nos 50 vivia recluso nos EUA, passou a caminhar pelas ruas nos anos 60 e influenciaria novas mudanças de comportamento, como a contracultura e o pacifismo. O psicodelismo foi um caminho que grande parte da juventude estava escolhendo ou iria escolher nos anos 60, dentro do contexto da contracultura. Teve vida curta, mas foi de grande influência e incandescência.

Os cartazes psicodélicos eram criados para uma platéia bem exclusiva, com letreiros praticamente ilegíveis, carregando a mensagem implícita: “Se você não consegue ler, não é para você.”

Fontes:
Biblioteca Comunitária Prof. Waldir de Souza Lima
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece

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Pinheiro Chagas (1842 – 1895)

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas (Lisboa, 13 de Novembro de 1842 — Lisboa, 8 de Abril de 1895) era um prolífico escritor, jornalista e político português. Destacou-se como romancista, historiador e dramaturgo, tendo escrito inúmeros romances históricos e diversas peças de teatro, algumas das quais se mantiveram em cena por mais de um século. Foi diretor de vários periódicos de Lisboa. Exerceu as funções de deputado e par do Reino e foi Ministro da Marinha e Ultramar na fase decisiva das movimentações das potências européias em torno da partilha de África. Foi um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Biografia

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas nasceu em Lisboa, a 13 de Novembro de 1842, filho de Gertrudes Ramos e de Joaquim Pinheiro das Chagas, major do Exército, veterano das guerras liberais e secretário particular do rei D. Pedro V. Destinado a seguir a carreira militar, frequentou o Colégio Militar, a Escola do Exército e a Escola Politécnica de Lisboa. No seu percurso militar, que interrompeu em 1866, alcançou o posto de capitão. Retomaria a carreira militar em 1883, ao ser chamado para integrar o ministério.

A produção literária

Foi aluno brilhante, começando desde cedo a demonstrar grande interesse pela escrita. A sua primeira obra publicada foi Anjo do Lar (1863), uma coletânea de poemas, a que se seguiu Poema da Mocidade (1865), outra coletânea poética, agora prefaciado por António Feliciano de Castilho.

Foi o prefácio de Castilho àquela obra de poesia juvenil, apropriadamente intitulada Poema da Mocidade, que levou à eclosão da Questão Coimbrã, polemica onde o grupo de Pinheiro Chagas, Júlio de Castilho, Brito Aranha, Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão enfrentou Teófilo Braga e Antero de Quental, num epifenómeno literário das tensões entre conservadorismo e reformismo que atravessavam a sociedade portuguesa de então.

A partir daí passa a colaborar intensamente na imprensa e a manter uma atividade literária a que cedo associou uma não menos intensa atividade política. Passou a publicar textos de ficção, sendo um dos introdutores do romance de aventuras em Portugal. Também se interessou pela História, tendo produzido trabalhos, que embora operosos, não seguem as preocupações de rigor e de erudição dos mais conceituados historiadores da época.

Apesar das suas obras oscilarem entre um estilo rigoroso e uma atmosfera de afetação, a popularidade de Pinheiro Chagas foi grande, sendo durante muito tempo considerado como um dos mais populares escritores portugueses. A prová-lo esta que o plebiscito literário realizado em 1884 pelo jornal O Imparcial de Coimbra, que tendo feita uma sondagem sobre quem seriam os três escritores portugueses mais notáveis nessa época, obteve dos seus leitores a seguinte classificação: 1.º Camilo Castelo Branco; 2.º Manuel Pinheiro Chagas; e 3.º José Maria Latino Coelho.

Eça de Queiroz, que, fazendo referência ao seu passado como militar, o apodava de brigadeiro Chagas, aparecia apenas no 4.º lugar, seguido de Ramalho Ortigão, Teófilo Braga, Oliveira Martins e Guerra Junqueira, numa ordenação que pouco diz sobre a popularidade futura dos escritores.

Apesar dessa opinião dos leitores e das suas obras terem gozado de êxito imediato e grande divulgação, tal não se repercutiu após a morte do autor, sendo este praticamente esquecido. Para isso muito contribuíram as polemicas que manteve com Eça de Queirós, que o fizeram pouco querido da geração de intelectuais que se lhe seguiu. Hoje algumas das suas obras têm vindo a ser reeditadas, com razoável êxito. A peça A Morgadinha de Valflor (1869) teve assinalável êxito e manteve-se popular, sendo encenada, particularmente por grupos amadores, durante todo o último século. Foi ainda tradutor de obras de Jules Verne e de Daniel Defoe, contribuindo em muito para a introdução e popularidade do romance de aventuras em Portugal.

Numa nomeação controversa, foi feito professor de Literatura Clássica do Curso Superior de Letras, conjugando também nessa função a sua atividade literária com os seus ideais políticos. Entrou em choque com muitos dos principais protagonistas da vida literária portuguesa de então, do que resultaram inúmeras polemicas, das quais a mais azeda e prolongada, durando mais de 20 anos, foi mantida com Eça de Queirós. A sua produção literária, em especial na área da História, levou a que em 16 de Janeiro de 1866 fosse eleito sócio efetivo, e depois secretário-geral, da Academia das Ciências de Lisboa.

O jornalista e parlamentar

Contudo, foi na atividade jornalística que Pinheiro Chagas mais se destacou, demonstrando uma capacidade de trabalho e combatividade inesgotáveis. Tendo-se iniciado no jornal A Revolução de Setembro, na altura dirigido por António Rodrigues Sampaio, cedo assumiu um estilo que privilegiava a visão crítica da sociedade e da governação, mesclando o jornalismo noticioso com a intervenção política. A partir dessa iniciação, Pinheiro Chagas colaborou em diversos periódicos, nos quais sustentou acesas polemicas, fez comentário político, animou secções de folhetim e fez crítica artística, em especial literária, teatral e das artes plásticas.

Foi a partir desta presença na imprensa que Pinheiro Chagas construiu a sua carreira política, a qual ganhou ímpeto em 1871, aos 29 anos de idade, quando passou a colaborar no jornal A Discussão, órgão oficioso do recém-fundado Partido Constituinte liderado por José Dias Ferreira. Nesse mesmo ano, nas eleições gerais de 9 de Julho, é eleito deputado para a 20.ª Legislatura da Monarquia Constitucional, pelo círculo uninominal da Covilhã, por onde se candidatara com o apoio de Manuel Vaz Preto Geraldes, um importante cacique de Castelo Branco. Foi reeleito, pelo mesmo círculo, nas eleições gerais de 12 de Julho de 1874 (21.ª Legislatura).

Para além das suas funções como deputado, a partir de 1875 passa a exercer as funções de diretor político de A Discussão, cujo título seria alterado em Janeiro de 1876 para Diário da Manhã, com Pinheiro Chagas como seu diretor.

Nas eleições gerais de 13 de Outubro de 1878 foi novamente eleito pela Covilhã, para uma legislatura que terminaria em 19 de Junho de 1879 com a dissolução prematura das Cortes. Na eleição seguinte, realizada a 19 de Outubro de 1879, perde o lugar para o candidato do Partido Progressista, mas numa eleição suplementar, realizada no ano seguinte no círculo de Arganil, volta a ser eleito, regressando assim ao parlamento em meados de 1880. Na eleição geral de 21 de Agosto de 1881 foi reeleito pelo círculo de Arganil.

Como deputado revelou-se participativo e de grande combatividade, tratando uma grande profusão de temas, sem contudo se notar uma linha condutora da sua ação política, apenas sendo clara a sua postura conservadora e pró-colonial, defendendo a consolidação da presença portuguesa em África e a necessidade de dotar o país dos meios necessários à defesa do império ultramarino face ao crescente apetite das potências européias por territórios que nominalmente eram considerados como sob controlo português.

O incidente com Manuel Joaquim Pinto

Quando a Comuna de Paris foi formada em 1871, a imprensa portuguesa foi extremamente crítica. Entre os jornalistas mais contundentes estava Pinheiro Chagas, que escreveu um artigo de opinião, em que ironizava que se fosse a Portugal nem valia a pena julgar a líder communard Louise Michel, pois que para pôr aquela mulher na ordem, bastava levantarem-lhe as saias e darem-lhe um bom par de açoites, numa apologia implícita do uso da violência doméstica contra os males da emancipação das mulheres.

O Revolução Social, um dos primeiros jornais portugueses ligados à Associação Internacional dos Trabalhadores, o primeiro movimento internacionalista que aliou comunistas, socialistas e anarquistas, publicou então uma resposta, da autoria do jornalista e professor primário Manuel Joaquim Pinto, em que criticava duramente a deficiência dos argumentos e a baixeza das razões de Pinheiro Chagas.

Manuel Joaquim Pinto dava aulas numa escola de ensino livre que funcionava em Alcântara, então um bairro operário de Lisboa. Era uma escola gratuita destinada sobretudo a proporcionar o acesso à educação aos filhos dos operários das fábricas que durante o século XIX se tinham fixado nas imediações daquele local.

Pinheiro Chagas, ofendido pelo artigo, escreveu uma carta a Manuel Joaquim Pinto pedindo explicações. Quem não se ficou pelos ajustes foi o professor anarco-comunista, que se dirigiu ao parlamento e lá, encontrando Pinheiro Chagas, resolveu aplicar a sugestão feita a propósito de Louise Michel: deu umas valentes bengaladas no deputado, para grande escândalo da imprensa e das Cortes. Por esse atentado, Manuel Joaquim Pinto, foi julgado e condenado a dezoito meses de prisão e ao pagamento de uma multa.

A passagem pelo Ministério da Marinha e Ultramar

Por esta altura os seus dotes de oratória, demonstrados no parlamento e nas cerimônias públicas onde era um dos oradores mais convidados, aliados à sua ativa participação na imprensa, tinham feito de Pinheiro Chagas um dos mais importantes e influentes políticos do tempo. Assim, quando em Outubro de 1883 o governo presidido por Fontes Pereira de Melo se viu confrontado com crescentes problemas colocados pelas potências européias, para além das pressões antiescravagistas lideradas pela Grã-Bretanha, Pinheiro Chagas foi chamado para substituir José Vicente Barbosa du Bocage na pasta da Marinha e do Ultramar, transitando este para a pasta dos Negócios Estrangeiros.

Manter-se-ia naquela pasta até 16 de Fevereiro de 1886, data em que o ministério presidido por Fontes Pereira de Melo deu lugar a outro, agora presidido por José Luciano de Castro. Tratou-se de um período decisivo em que as rápidas movimentações das potências européias na frente diplomática, e na consolidação da sua ocupação do território em África, punham em crise a velha partilha de esferas de influência naquele continente, ameaçando a manutenção do controlo luso sobre boa parte dos territórios tradicionalmente reclamados como estando sob soberania ou protetorado português.

Pinheiro de Chagas e o seu colega dos Negócios Estrangeiros, José Vicente Barbosa du Bocage, tiveram de enfrentar difíceis negociações com o governo britânico sobre a soberania portuguesa na costa ocidental de África, com destaque para as questões relacionadas com o controle da foz do rio Zaire e com o escravagismo no Daomé, em especial em torno dos problemas levantados pelo presença portuguesa em São João Baptista de Ajudá. Nas eleições gerais realizadas 29 de Junho de 1884 foi eleito deputado pelas Caldas da Rainha.

Estas questões, associadas à contestação que a França, Alemanha e Bélgica fizeram ao acordo que havia sido laboriosamente negociado em princípios de 1884 sobre a navegação na foz do Zaire, levaram convocação da Conferência de Berlim, que decorreu de Novembro daquele ano a Fevereiro do ano seguinte. Todas estas difíceis negociações foram feitas num ambiente de grande exaltação patriótica em Portugal, em boa parte preparado pelas intervenções jornalísticas anteriores do próprio Pinheiro Chagas, que tornavam impopulares as posições do governo português, muitas vezes obrigado a transigir face à força dos interesses das grandes potências européias.

Foi neste contexto de tensão sobre as questões coloniais que Pinheiro Chagas se associou a um grupo de intelectuais e políticos para fundar, à imagem das sociedades de exploração britânicas, a Sociedade de Geografia de Lisboa. O objetivo era dar corpo a um conjunto de viagens de exploração em África que rivalizassem com as realizadas sob a égide britânica, francesa e belga.

Foi assim que nasceu o mapa cor-de-rosa e se realizaram as grandes viagens de exploração de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, Serpa Pinto, Augusto Cardoso, Henrique de Carvalho e Francisco Newton, quase todas entre 1884 e 1885. Nas eleições gerais de 1887, 1889 e 1890 foi eleito deputado pelo círculo de Viana do Castelo, mantendo sempre uma muito ativa presença parlamentar. Também a sua presença na imprensa não abrandou, para além de ser à época considerado como um dos mais conceituados escritores portugueses. Neste período, também a sua intervenção na Sociedade de Geografia de Lisboa e na Academia das Ciências merece nota.

Por decreto de 29 de Dezembro de 1892 foi nomeado par do Reino vitalício, tomando assento pela primeira vez na Câmara dos Pares na sessão de 30 de Janeiro de 1893. Em Agosto de 1893 foi nomeado presidente da Junta de Crédito Público, cargo que ocuparia até falecer. Manuel Joaquim Pinheiro Chagas faleceu em Lisboa a 8 de Abril de 1895. Foi um dos grandes vultos da história portuguesa, tendo sido vítima de uma odiosa agressão, mal esclarecida, da qual nunca se recuperou.

Vida familiar

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas casou com Maria da Piedade Maternidade da Silva, com quem teve seis filhos:
• Raúl Pinheiro Chagas, nascido em 1864;
• Alice Pinheiro Chagas, nascida em 1866;
• Mário da Silva Pinheiro Chagas, nascido em 1870, advogado, deputado e bastonário da Ordem dos Advogados;
• Álvaro da Silva Pinheiro Chagas, nascido em 1872, que foi jornalista e deputado monárquico, líder da resistência contra a República no Alto Minho;
• Frederico da Silva Pinheiro Chagas, nascido em 1882, segundo-tenente da Armada, monárquico convicto que se suicidou em 1910;
• Valentina Pinheiro Chagas, nascida em 1883.

Obras publicadas

A lista que se segue não é exaustiva, tendo-se procedido à atualização ortográfica de alguns dos títulos. Algumas das obras publicadas por Pinheiro Chagas não se encontram nela incluídas, particularmente as que foram publicadas em periódicos.

Obras poéticas:
• Anjo do Lar (1863)
• Poema da Mocidade (1865), prefaciado por António Feliciano de Castilho

Obras de ficção:
• Tristezas à Beira-Mar (1866)
• A Flor Seca (1866)
• Os Guerrilheiros da Morte (1872)
• A Corte de D. João V (1873)
• O terremoto de Lisboa (1874)
• As Duas Flores de Sangue (1875)
• A Mantilha de Beatriz (1878)
• A Jóia do Vice-Rei (1890)

Obras dramáticas:
• A Morgadinha de Valflor (1869)
• Deputado de Venhanós (1869)
• A Judia (1869)
• À Volta do Teatro (1868)
• Madalena e Helena (1875)
• Quem Desdenha (1875)

Obras de história e de crítica:
• Ensaios Críticos (1866)
• Novos Ensaios (1867)
• Portugueses Ilustres (1869)
• História de Portugal (8 volumes, 1869-1874)
• História Alegre de Portugal (1880)
• As negociações com a Inglaterra (1890)
• As colônias portuguesas no século XIX (1891)
• Migalhas da História de Portugal (1893)

Fonte:
Maria Filomena Mónica (coordenadora), Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910). vol. 1. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Assembleia da República, Lisboa, 2004. (Colecção Parlamento)

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Pinheiro Chagas (Astúcias de Namorada)

Namoro no Jardim (Cerâmica de Pombal)
PRÓLOGO

Este livro é um livro de verão. Fez-se para ser lido à sombra de uma árvore copada, à hora do meio dia, quando pode prestar-se apenas à leitura uma vaga atenção, e quando portanto se querem livros de enredo ligeiro e risonho, que nem resolvam problemas, nem arrepiem os nervos.

As Astúcias de Namorada estão escritas há largo tempo. As aventuras do seu manuscrito davam assunto a outro romance. Tem de curioso o ser o seu entrecho baseado sobre um fato sucedido realmente em Lisboa. Há de haver leitores que o taxem de inverossímil, pois saibam que é verdadeiro. Mais uma vez tem razão Boileau.

Le vrai peut quelquefois n’etre pas vraiseblable.

O romance que fecha o volume, e que se intitula Um melodrama em Santo Tirso, ponho-o aqui a título de curiosidade arqueológica. Foi a minha estréia no jornalismo. Fundara-se a Gazeta de Portugal. Eu tinha conhecimento pessoal do seu proprietário, Teixeira de Vasconcelos. Procurei-o para lhe ler o romance. Ele ia sair. -Deixe-me ver alguma coisa que lhe pareça melhor, disse-me ele. Li-lhe tremendo a cena em que Eduardo descreve as fisionomias dos literatos lisbonenses. Teixeira de Vasconcelos riu-se, e tirou-me das mãos o manuscrito.

-Il y a quelque chose lá, continuou ele, isto para estréia basta. O seu romance há de ser publicado.

E foi. Estava eu batizado folhetinista.

Hoje, relendo o romance, sorrio-me das ingenuidades do principiante, e, para conseguir desculpa do leitor, vejo que não tenho remédio senão dizer-lhe retrospectivamente com Alfredo de Musset.

Surtout considérez, illustres seigneuries

Comme l’auteur est jeune, et c’est son premier pas.

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ASTÚCIAS DE NAMORADA

Havia baile, ou antes sarau dançante, numa casa em Almada.

Num pequeno jardim, que se espraiava até a beira dos rochedos pendurados sobre o rio, vinham os grupos dos convidados descansar um pouco das polcas e das valsas, respirar, e relancear os olhos pelo delicioso panorama do Tejo, em cujas águas traçava a lua como que uma estrada argêntea. De quando em quando enchia-se o jardim de risos, de segredinhos; a lua iluminava por entre as folhas roupas alvejantes, que passavam flutuando como o véu dos silfos; depois pelas janelas abertas da sala saía uma bafagem de baronia, proveniente dos primeiros compassos duns lanceiros, os grupos dispersavam-se e engolfavam-se em turbilhão pelas portas de vidraças, e o jardim ficava de novo solitário, mas não silencioso; porque nele se escutava o rumorejar da brisa, o eco da música do baile, e o murmúrio do rio que gemia docemente em baixo nas fragas.

Num dos intervalos das polcas, e quando o jardim se povoava de novo com os fugitivos do baile, um par, mais fatigado talvez que os outros, veio sentar-se numa espécie de caramanchão, que ficava na extremidade do jardim, mais próximo da orla do rochedo, e por conseguinte quase suspenso, como um ninho de gaivotas, sobre as águas. Devo retificar o que disse; não foram ambas as pessoas indispensáveis para formarem um par, não foram ambas as pessoas que se sentaram; só o fez uma senhora de vinte e cinco anos talvez, alta, elegante, morena e viva, de olhos rasgados e cabelos negros, que cintilavam como o ébano à luz brilhante da lua cheia.

O cavalheiro ficou de pé, apesar de sua gentil companheira lhe ter visivelmente proporcionado um lugar junto de si, como se podia deduzir do modo como aconchegou o vestido, fazendo ocupar à crinoline o menos espaço possível; mas essas piedosas intenções foram perdidas, porque o seu braceiro não ousou percebê-las, e conservou-se, como dissemos, em pé, ainda que os seus olhos ardentes, cravados no rosto da sua companheira, quando esta o não podia ver, denunciavam que não era a indiferença que o impedia de aproveitar o favor que se lhe queria conceder.

E contudo esse tímido moço estava na idade em que esses favores se ambicionam com mais ardor do que aos trinta e cinco anos a pasta de ministro, estava na idade em que se devaneiam escadas de seda flutuando ao sopro das auras, serenatas interrompidas por um amante cioso, amores aventurosos, mil perigos a atravessar para se obter um sorriso, uma flor, uma palavra, na idade feliz em que se inveja Leandro só ao pensar quantas vezes se teria acendido o farol de Hero antes da terrível noite, em que a morte, envolta em horrendas vagas, segundo a admirável expressão de Bocage, arrojou um cadáver lívido aos pés da torre, em que ainda não expirara o eco dos beijos da antecedente noite.

E o tímido rapaz alisava a luva branca, e procurava com frenesi uma palavra qualquer, que lhe não ocorria em presença dessa formosa senhora, cujos pés desejava beijar; e pensava que imensa felicidade no seria a sua, se em vez de estar sem ânimo, embaraçado e vermelho, diante dela, estivesse na outra margem do Tejo, e tivesse que o atravessar a nado para cair ofegante e exânime junto desse adorado vulto. Então não seria necessário falar; a sua palidez, os seus olhos cheios de amor diriam tudo, e muito infeliz seria, se a nova Hero, vendo-o ensopado por causa dela, lhe não dissesse alguma coisa que lhe desembaraçasse a língua, e partisse o gelo, que se interpunha obstinadamente a dois corações, que ansiavam por se unir.

A gentil senhora esteve um instante olhando para ele com um sorriso meio despeitado, meio zombeteiro, e afinal, vendo que a malfadada luva branca ainda não parecia suficientemente alisada, meneou a cabeça com um gesto encantador, que fez ondular as suas tranças negras, e que espalhou na atmosfera um aroma inebriante, aspirado com delícias pelo tímido moço. Depois voltou os olhos para o rio, encostou a face à mão enluvada, e ficou-se a contemplar esse quadro magnífico.

A noite estava linda, uma destas noites de luar, como o cálido estio as envia aos países meridionais. No céu dum azul suavíssimo, algumas nuvens, volteando em torno da lua, recortadas em mil arabescos pela brisa noturna, embebidas todas no cândido fulgor do astro da noite, pareciam as maravilhosas ondas do véu luminoso que Febe arrasta pelo firmamento, em noites assim lânguidas e serenas. O Tejo desenrolava a sua imensa toalha líquida, prateada no centro pelo luar, e negra junto do cais, ou à sombra dos mastros dos navios imóveis nos ancoradouros. Ao longe Lisboa avultava, espraiando a sua casaria à beira do rio, e pelas faldas das suas sete colinas. As longas fileiras dos seus candeeiros de gás formavam à borda do Tejo como que uma fila de chamas. Alguns barcos de pescadores deslizavam silenciosamente, soltando ao sopro da brisa as suas velas brancas.

Este panorama, que só tem rivais na baía de Nápoles ou na enseada de Constantinopla, devia fascinar quem o contemplasse, como a gentil senhora em quem falamos, do caramanchão dum jardim, cheio de árvores, onde expiravam os últimos ecos duma valsa, onde o luar, coando-se por entre as folhas, lutava com os luminosos reflexos, que dimanavam dos lustres, cintilando nas salas.

Parecia ela efetivamente toda absorvida na sua contemplação, quando a voz trêmula e profundamente comovida do seu jovem companheiro a fez estremecer.

Essa voz, toda vibrante de paixão, dizia simplesmente estas palavras:

-Que… linda… noite! -Lindíssima, não é? respondeu ela, voltando para o seu interlocutor o rosto ainda encostado na mão, o que lhe permitiu erguer os olhos para ele sem levantar a face, dando assim às pupilas uma expressão voluptuosa, que encerra um encanto irresistível, um magnetismo fascinador… Como que parecem flutuar na atmosfera todos os sonhos dos poetas! Sabe no que eu pensava agora, vendo aquele bote, que resvala à flor das águas, como um cisne da noite? Pensava se seria esse o barco de Lamartine, e se levaria lambem dois amantes, que fossem murmurando um ao outro, com as mãos enlaçadas, as doces palavras que tanto nos encantam, quando o autor do Lago as traduz na melodiosa linguagem da sua poesia.

-Ah! bem sei, respondeu o desastrado: Ainsi toujours possés vers de nouveaux rivages…

-Oh! meu Deus, tornou a senhora visivelmente impacientada, conheço os versos, mas, como não quero privá-lo do prazer de os recitar, peço-lhe que me acompanhe à sala, e permito-lhe depois que venha de novo confiar à lua e ao Tejo as inspirações de Lamartine.

E a formosa menina, rubra de despeito levantou-se, e tomou o braço do seu interlocutor, que ficara fulminado por aquela inesperada apóstrofe, e que debalde tentava balbuciar umas palavras sem nexo.

Frederico era um moço esbelto de vinte e dois para vinte e três anos, duma gentileza verdadeiramente notável, dum espírito inteligente e cultivado, duma bondade proverbial, mas também duma timidez invencível. D. Lucinda, a gentil senhora que entra neste momento na sala, pudera apreciar as brilhantes qualidades de Frederico, ouvindo-o conversar desembaraçadamente em uma reunião íntima, onde o seu acanhamento não tivera motivo para se revelar. Deslumbrada por esse esplendido conjunto de predicados, Lucinda tentara fixar a atenção do gentil moço, e a coquete conseguira-o em breve, mas, quando se tratara de dar o passo decisivo, manifestara-se toda a timidez do espírito virginal de Frederico. Era o seu primeiro amor, e só os tolos conseguem atravessar afoitamente essas colunas d’Hercules. Lucinda, experimentada nessas questões, compreendera primeiramente o embaraço do mancebo, e, lisonjeando-se com isso, entendera também que o devia auxiliar. Mas o que animaria qualquer outro, acanhou ainda mais, se me permutem o termo, a timidez desconfiada de Frederico. Se Lucinda fosse uma tímida menina, que corasse como ele corava, que tremesse como ele tremia, os olhos de ambos falariam tanto, as pálpebras mesmo, abaixando-se a um tempo, teriam uma linguagem tão eloqüente, que afinal os lábios ver-se-iam obrigados a traduzir em palavras esse mudo idioma. Porém, como podia suceder semelhante coisa, se o olhar ardente de Lucinda deslumbrava aquele em quem se fitava, se a sua tranqüila superioridade assustava Frederico, e o fazia tremer a cada instante, com o receio de desempenhar o papel de criança ridícula diante dessa esplêndida mulher?!

O ridículo, que espera nos dois extremos da estrada da vida tanto os que avançam como fanfarrões, como os que recuam com demasiada fraqueza, assustando Frederico que temia vêlo diante de si, assaltava-o quando ele para lhe fugir retrogradava sem ter ânimo para obedecer ao fervido olhar, que lhe dizia: “Avante”. O pobre rapaz, vendo assim de súbito desfeitos em pó os seus planos estratégicos, preferiria um abismo abrindo-se-lhe debaixo dos pés a ouvir as palavras friamente zombeteiras de Lucinda.

Entretanto o baile findara, e os lisbonenses preparavam-se para atravessar o Tejo. Frederico e a família de Lucinda eram as únicas pessoas, que tinham de empreender essa excursão. Era pouco mais de uma hora quando Lucinda e sua mãe puseram as capas, e foram arrancar às delicias do whist o patriarca da tribo, que saiu furioso de ter de se embrulhar em dez mantas e de ter perdido dez rob consecutivos. Frederico, depois da cena do caramanchão, bem desejaria ficar, mas a mãe de Lucinda, sabendo que era ele o único dos cavalheiros presentes que regressava a Lisboa, reclamou sem cerimônia o auxílio do seu braço para descer a íngreme calçada. Assim, Frederico viu-se obrigado a pegar no chapéu, e a seguir, suportando o peso da sua volumosa braceira, o pai de Lucinda, que se apoderara desta para lhe explicar durante o caminho as infernais combinações que tinham dado em resultado a derrota memorável dessa noite, verdadeiro Waterloo nos seus anais de jogador de whist.

As circunstâncias conspiravam-se todas contra Frederico. Chegados ao cais de Cacilhas, notou-se que apenas um barco se balouçava nas águas negras, que batiam murmurando nos degraus da escadaria. Bradou-se pelos barqueiros, que dormiam no fundo do bote, e, quando estes se levantaram, reconheceu-se que eram os remadores de Frederico. Os venerandos progenitores de Lucinda protestaram, em alta voz, contra a insolência dos seus barqueiros, que os tinham posto inconsideradamente na dolorosa necessidade de atravessarem o Tejo a nado, ou de dormirem ao relento nas pedras úmidas do cais. Frederico ofereceu imediatamente o seu bote. Não era possível proceder de outro modo. Por infelicidade o barco era vasto bastante para que todos coubessem. Frederico viu-se obrigado a entrar e a sentar-se defronte de Lucinda. O pobre rapaz nem ousava levantar os olhos. Desfraldou-se a vela, e o barco resvalou silenciosamente à flor das águas.

Os dois velhos tinham-se sentado na popa do barco. O vento, sem ser forte, era suficiente para enfunar a vela e para dar ao bote um leve balanço, que foi suavemente acalentando os dois esposos. Estes principiaram a bocejar alternadamente; depois foram deixando pender as cabeças até que tocaram quase nos joelhos. Levantaram-se a um tempo, e olharam espantados. com os olhos meio abertos, para o céu azul. Depois os olhos fecharam-se de todo. e os cumprimentos recomeçaram. Pareciam dois mandarins d’étagére. Frederico e Lucinda a custo sofreavam o riso, e trocavam entre si olhares de inteligência, que pressagiavam uma reconciliação. Os dois velhos resmungavam palavras ininteligíveis, e recostavam a cabeça para trás, de forma que a cabeça, em vez de lhes descair de popa a proa, descaía-lhes de bombordo a estibordo, e de estibordo a bombordo, movimento bem combinado, que produziu um abalroamento, que os despertou a ambos.

-Senhor Azevedo, bradou a matrona indignada, não tem vergonha de vir a dormir no bote? Já me estragou as flores da cabeça.

– Senhora D. Leocádia, respondeu o velho com dignidade, veja se dorme com mais cautela para não amarrotar o chapéu das pessoas, que vão acordadas a cismar nos seus negócios. Estas apóstrofes promoveram a explosão das gargalhadas, já muito reprimidas, de Frederico e de Lucinda. O velho mirou-os com espanto, embrulhou-se mais na manta, encostou-se para trás e principiou a ressonar.

-Este Azevedo sempre foi assim, disse a velha esposa fazendo coro com os dois, dorme em toda a parte… Como ele ressona!

E dizendo isto, a boa senhora olhou com desprezo para seu marido, deixou descair a cabeça, e entrou no dueto ressonando igualmente.

A brisa refrescara, e, enfunando a vela, fazendo tombar o barco para um lado. Os marinheiros pediram a Frederico que se fosse sentar junto de Lucinda.

Já vêem que o acaso continuava a fazer das suas.

Foram calados um instante, com os olhos fitos na lua, que desdobrava a sua plácida luz pelo céu azulado e pelas águas do rio. A face formosa da antiga Diana refletia-se no espelho vacilante das ondas encrespadas pela vibração. Ouvia-se o chapinhar das águas batendo no costado de uma fragata imóvel; um bote de remos passou rente do barco onde iam os nossos heróis. Os remos, sulcando a água, erguendo-se e recaindo de novo, pareciam arrancar do seio do rio as palhetas luminosas com que o matizava a lua, e que depois lhe devolviam numa chuva de alvas pérolas. Um marinheiro, recostado ou antes deitado à popa, com os olhos vagamente embebidos no firmamento, dedilhava uma guitarra, e fazia-lhe vibrar nas cordas algumas dessas melancólicas toadas das nossas canções populares. Muito tempo a corda fremente da guitarra enviou de longe aos ouvidos de Frederico e de Lucinda, a sua melodia toda impregnada numa vaga tristeza, e expirou ao longe nuns quebros de indizível suavidade. Frederico suspirou.

-Pensa nos seus amores? perguntou Lucinda sorrindo.
-Amores, balbuciou ele, como, se os não tenho?
-Não os tem? Quem não tem amores aos vinte e dois anos?
-Eu que sou um deserdado da fortuna, eu para quem a natureza, mãe benéfica de todos, sempre se tem mostrado implacável madrasta, eu para quem as flores não tem aroma, nem luz brilhante o sol, nem suavidade melancólica o luar.

-Oh! meu Deus, exclamou Lucinda, quererá imitar esses Obermans da moda, que se declaram céticos, quando ainda não tiveram nem sequer uma ilusão, quanto mais as decepções que alardeiam?

-Não, minha senhora, tornou Frederico, tenho muitos ridículos, mas desse livrou-me Deus. Porém sou um destes entes malfadados, que nunca ousam levar aos lábios a taça que se lhes apresenta cheia a trasbordar; uma dessas abelhas, a quem as rosas mostram o cálice entre aberto, e que volteiam em torno delas, sem ousarem ir delibar o seu mel na redoma flagrante que se lhes apresenta. Sou como Rousseau, deitando as cerejas no avental de mademoiselle Galley, sem ousar ver os lábios mais vermelhos do que os frutos, convidando-o e atraindo-o. E o que fez mademoiselle Galley ao desastrado filósofo? Voltou-lhe as costas, e foi zombar dele com as suas companheiras, deixando esse Tântalo de amor a amaldiçoar a sua falta de audácia. Esse riso argentino, que Rousseau ouviu talvez trepado ainda na cerejeira, ouço-o eu a cada instante nos lábios, que poderiam matar com duas palavras meigas esta sede que me devora.

-E essas duas palavras ainda ninguém as proferiu?
-Ninguém, respondeu Frederico suspirando.
-E com tudo, tornou Lucinda, conheço eu uma pessoa em cujos lábios elas fremem.
-E quem é essa pessoa? perguntou ele ansioso.

Lucinda estacou. Decididamente o próprio selvagem Rousseau perceberia melhor.

-Alguém, cujo nome lhe não posso dizer.
-Oh! diga ao menos a primeira letra. Lucinda fez-se vermelha de cólera, e mordeu os lábios impaciente. Súbito uma idéia qualquer, travessa de certo, iluminou-lhe o espírito, porque os lábios, que mordera para ocultar o despeito, mordeu-os afinal para sufocar o riso. Depois respondeu com ar de misteriosa confidência:

-Diga-me; não passa freqüentes vezes pela rua de…?
-Por que? perguntou Frederico espantado
-E, levando os olhos baixos até ao meio do comprimento da rua, quando chega a este ponto não os levanta instintivamente, e não os crava numa varanda onde não há só flores nos vasos?

-Assevero-lhe, minha seu senhora… tornou Frederico estupefato a mais não poder ser.
-Oh! Eu sou discreta.
-Juro-lhe…
-Não jure, mas prometa-me apenas uma coisa.
-Qual é?
-Escolher-me para confidente dos seus primeiros amores.
-Mas, minha senhora… bradou Frederico, desesperado por ver fugir-lhe o momento que tanto ambicionara, e que julgara já tão próximo.

-Silêncio, respondeu Lucinda pondo-lhe a mão alva e tépida no braço, não vê que estamos em Lisboa?

Frederico não sabia se havia de beijar ou morder essa mão travessa, que lhe aproximava da boca a taça do filtro suave do amor, para lho furtar depois aos lábios calcinados. Afinal não fez nem uma nem outra cousa.

Mas efetivamente estavam em Lisboa. Nas águas negras do Tejo, aqui e ali ainda prateadas por um raio da lua, que se insinuava por entre a intrincada floresta dos mastros das embarcações, ondeava o reflexo trêmulo dos candeeiros do gás. Ao choque do barco parando de súbito, acordaram estremunhados os progenitores de Lucinda. Frederico ainda esperava ao menos poder sentir o doce peso da gentil menina, ajudando-a a saltar em terra. Mas a volumosa mamã ofereceu-lhe o braço, e em medos e tremores reteve-o tempo bastante, para que Lucinda, ligeira como uma gazela, saltasse para o cais, pousando apenas ao de leve os dedos finos e alvos no braço dum dos remeiros.

Frederico despediu-se pouco amavelmente dos seus companheiros de viagem, e teve vontade de mandar passear Lucinda, quando esta lhe disse ao ouvido:

-Não se esqueça do que prometeu.

É verdade que o pobre rapaz, voltando a cara com um gesto de amuo, não pode ver o longo olhar, apenas levemente malicioso, com que Lucinda o seguia.

Na véspera desse dia, em que se passara a cena que narramos recebera Lucinda duma sua amiga de colégio a seguinte carta:
———————————————–
Minha querida amiga

Que saudades eu tenho do nosso tempo de colégio! daqueles bons serões que passávamos juntas, quando todas já estavam adormecidas, enquanto nós deixávamos divagar a nossa imaginação por todos os assuntos, por todos os sonhos, por todas as fantasias deste mundo! como eu tenho impressa na memória a tua palavra eloqüente e colorida, e a audácia com que tu, com a superioridade da tua inteligência, julgavas tudo e te arrojavas aos devaneios mais longos, chegando a assustares-me a mim, pobre criança, tímida e frágil, que não ousava seguir-te nos teus vôos, e que ficava, pálida, vendo-te pairar por esses espaços desconhecidos, e contemplando na chama da tua pupila um reflexo do fogo íntimo, que te devorava.

Creio que foi mesmo essa diferença de gênio, que tornou mais forte a nossa ligação. Tu consagraste à pobre órfã a amizade protetora das mães, eu tive por ti a veneração e os extremos de filha. Eras o roble e eu o vime, ou antes a hera que me enroscava a ti.

Mais velha do que eu, saíste primeiro do colégio, e deixaste a pobre criança, isolada no meio de companheiras com as quais sempre me ligara pouco. Ah! como o colégio então me pareceu triste e sombrio, como a regente me pareceu insuportável, como olhei com raiva e frenesi para os altos muros do jardim, e que ódio tive à hora do recreio, outrora tão alegre, porque eu, fugindo às brincadeiras das meninas mais novas, tu às frívolas conversações das da tua idade, procuravam-nos uma à outra, e passávamos horas infinitas a contarmos as nossas impressões, e a explicarmos o sentido dos sonhos da nossa noite..

Depois, os meus dias de júbilo foram aqueles em que recebia as luas cartas: metia-as no seio, e esperava com impaciência a hora de descer ao jardim para as poder ler à vontade, longe do frívolo ruído dos jogos das educandas. Assim que ressoavam na pêndula as bem-aventuradas vibrações, aí descia eu toda jubilosa a escada, e ia esconder-me naquele caramanchão tão nosso favorito, que ficava junto daquela fresta gradeada por onde às vezes espreitávamos os raros passeantes que atravessavam a nossa rua solitária, tu achando sempre no teu espírito fértil um epigrama para arrojares aos pobres homens que passavam sem suspeitarem a rápida análise a que num dado instante ficavam sujeitos, eu rindo, como uma louca, das tuas chistosas malícias.

Aí lia pois, as tuas cartas, daí te seguia nesse mundo que me pintavas tão belo, como o espaço imenso assusta a avezinha apenas emplumada, que lança a cabeça fora do ninho, e que segue em parte com inveja, em parte com receio os graciosos vôos que a mãe descreve nos ares, para a convidar a segui-la. Mas a fascinação do teu espírito vencia, como sempre, os receios do meu, e ficava com a tua carta nas mãos, pensando nos bailes, de que tu eras rainha, nos amores, que voltejavam em torno de ti, como as borboletas em torno da luz, e a que ti, incorrigível coquete, te comprazias tanto em requeimar as asas.

Daí resultou que esperei ansiosa, bem que timidamente, a minha saída do colégio, e que os prismas das tuas cartas me fizeram sonhar um mundo cor de rosa, que está bem longe, devo confessá-lo, da realidade tal como ela se me tem mostrado nos quinze dias que já passei fora do ninho da nossa infância.

Efetivamente minha tia deu a minha educação por acabada, e levou-me para a sua companhia, muito contra vontade, segundo me parece. Não porque ela me não tenha afeto e pelo contrário; mas minha tia, ótima senhora no fundo, tem um terrível sestro; aos cinqüenta anos quer ainda inspirar amor, e combate, com uma energia desesperada, as asserções da sua certidão de batismo. Ora, uma sobrinha de dezenove anos, filha duma sua irmã mais nova, é um terrível documento, que protesta contra os cabelos dum ébano artificial, e contra a rebocada lisura do rosto de minha tia.

Ah! que vida vai ser a minha, se não acho jeito de diminuir a minha idade, e de usar de novo fato curto. Minha tia, que ainda aspira dançar com suficiente ligeireza, e que não deseja entrar no número das suplentes das contradanças, que só se convidam quando falta algum par para fazer a quadrilha completa, não me leva aos bailes, porque são, diz ela, perigosos para as meninas da minha idade, até contigo mesma, perdoa-lhe, minha boa amiga, se não quer relacionar, dando para isso razões frívolas, mas sendo o verdadeiro motivo os teus vinte e cinco anos que não podem ficar bem à amiga de colégio duma menina tão nova como eu devo ser, segundo os meus cálculos.

Aqui vivo, pois, nesta da rua de… mais triste do que no colégio, depois da tua partida, sem chegar uma única vez à janela lendo, bordando, desenhando, ou conversando com o meu piano, enquanto minha tia, preparada, enfeitada e auxiliada por todos os cosméticos imagináveis, passa o tempo à janela, travando cem namoros por dia, e apresentando, da altura do seu quarto no segundo andar, a cuja varanda se coloca de preferência, um rosto juvenil, que ilude um ou outro passeante ocioso, que anda procurando pelas janelas quem lhe aceite as homenagens.

O que me consola um pouco da minha vida insípida é um grande jardim, cheio de sombra e de mistério, de flores e de aromas, onde passo as tardes, e onde muitas vezes me esqueço e me esquecem à noite, ficando eu largas horas cismando ao luar, e deixando-me às vezes surpreender pelos primeiros clarões da alvorada.

Aí tens a vida que eu passo, minha querida Lucinda; não achas que tenho razão para me lembrar com saudades do colégio? Escreve-me tu ao menos, já que minha tia se obstina em me ter reclusa, e em não me permitir a doce consolação de te ver e de te abraçar; escreve-me, porque só as tuas cartas me ajudarão a suportar o fastio desta existência.

Tua boa amiga
Adelaide.
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Comparem os leitores o que nesta carta se diz com as indicações dadas a Frederico por Lucinda, e perceberão qual era a travessa idéia da maliciosa rapariga.

Renunciemos a descrever o despeito de Frederico, quando teve uma prova da completa indiferença de Lucinda no desprendimento com que ela se fazia intérprete dum outro amor. Depois folgou de ter encontrado um pretexto para desculpar consigo mesmo a sua desastrada timidez, e louvou-se de não ter avançado a ponto de se ver colocado numa posição ridícula com pessoa que a aproveitaria com tão boa vontade. A todos estes sentimentos, que primeiro lhe tumultuaram no cérebro, sucedeu o amor próprio ofendido. Pois que! dizia ele, é de mármore esta mulher? Está junto de mim naquela noite voluptuosa, toda impregnada de lânguidas emanações, de vagos murmúrios, de maviosíssimos fulgores, sente a minha respiração abrasada, crava os seus olhos nos meus, aperta as minhas mãos trementes, deixa-se embalar comigo, comigo como uma crioula na rede, pelo movimento lascivo das ondazinhas do Tejo, e nada disso a comove, e lhe faz perder por um instante ao menos, os seus hábitos de coquetterie? A própria Leonora Falconieri de Feuillet sentiria uma vaga impressão amorosa naquele bote que resvalava ao lume d’água, todo banhado de luar, abrindo no rio um sulco fosforescente e Lucinda, depois de me ter abrasado toda a noite com o fogo infernal das suas pupilas, acaba por me fazer friamente a confidência do amor duma das suas amigas? Oh! coquette.

Pois bem, continuava ele, hei de lhe fazer a vontade, hei de namorar essa mulher desconhecida, e será Lucinda a minha confidente? Oh! então, quando não tiver o receio do ridículo que acomete um pretendente desastrado, então serei audacioso, então falarei com eloqüência, então, far-lhe-ei sentir bem tudo o que ela perdeu, torturá-la-ei se não com os espinhos do ciúme, pelo menos com os da vaidade ferida, triunfarei… e talvez conseguirei dessa forma atraí-la e fasciná-la, como ela me fascinou a mim.”

E o modesto moço, acabando este longo monólogo, vestiu-se, alindou-se, e saiu com uns modos conquistadores, para passar pela rua de…

Logo no principio da rua ele ergueu a cabeça, e principiou a revistar as janelas; o coração pulsava-lhe com violência, mas animou-se com a idéia de que se não veria obrigado a dizer uma só palavra, e um olhar não era coisa que muito custasse à sua timidez rebelde.

Efetivamente no sitio designado estava uma senhora à janela. Frederico fitou os olhos nela, e achou-a linda, apesar da distância ou por causa dela; voltou a cabeça depois de passar; e encontrou de novo os olhos da galante menina, que logo os desviou o mais depressa que pode, mas sem que pudesse evitar o ter sido surpreendida em flagrante delito. Frederico afastou-se triunfantemente.

Uns poucos de dias se repetiu esta manobra, sem que Frederico ousasse passar dessas demonstrações visuais, mas continuando com intrepidez o seu passeio diário. Afinal chegou a ocasião de ir contar a Lucinda os seus novos amores. A Sra D. Leocádia d’Azevedo encontrou-o na rua, e convidou-o para jantar.

À tarde desceram todos ao jardim, que tinha muro para a rua, e um pequeno mirante cercado de madressilvas. Os convidados dispersaram-se em grupos, e Lucinda e Frederico acharam-se sós no mirante.

A vista que dali se gozava era linda; via se uma parte da cidade baixa, e do lado do Ocidente a vista estendia-se desassombrada sobre uma porção do rio, que se prolongava até ao extremo horizonte.

Era ao cair da tarde; o sol atufava-se nas águas, e iluminava com um resplendor de ouro e púrpura o horizonte, semeando de áureas palhetas o Tejo, rodeando com um nimbo luminoso o vulto distante da Ajuda, e mais além uma sombra tênue, uma espécie de vapor doirado, que, pela posição, devia ser vago perfil da torre de Belém.

A brisa fresca da tarde, ondeando os cabelos de Lucinda, e meneando brandamente os ramos e as folhas da madressilva, enchia os ares de perfumes. Frederico cismava.

-Esqueceu-se da sua promessa? perguntou Lucinda.
-Ainda se lembra dela? tornou Frederico amargamente.

Um relâmpago de alegria iluminou os olhos da gentil senhora.

-Se lembro, tornou ela, sou uma credora inflexível.
-Pois bem, respondeu Frederico, corando muito, e fazendo um esforço sobre si mesmo deixe-me agradecer-lhe o ter feito a felicidade da minha existência.
-Sim? tornou ela ironicamente. Então ama-a loucamente?
-Se a amo! tornou ele cravando os olhos ardentes na formosa menina que tinha diante de si, tanto que nem eu supunha que se podia amar assim. Oh! mas é que também é uma criatura celestial, tão bela que os anjos a invejam.

Lucinda mal podia sofrear o riso.

-E essa beleza, é provavelmente como a de Marília, tornou ela, para a pintarem não bastam as tintas da terra, são necessárias as do céu. Por conseguinte nem ouso pedir-lhe que ma
descreva.

-Por que? Não a conhece! perguntou Frederico espantado. Lucinda embaraçou-se, mas prontamente recuperou o sangue-frio.

-Somos amigas íntimas, como sabe; contudo não desgostaria de poder apreciar o seu talento de pintor.

Frederico fitou os olhos nos dela, como se tentasse prescrutar o seu pensamento. Lucinda desviou os seus.

Uma idéia, que ele julgou louca, passou pela mente de Frederico.

– Vou tentar, disse o tímido rapaz, com mais animação do que a que lhe era habitual, e cravando pela primeira vez com firmeza e ardor os seus olhos no rosto de Lucinda; e para me ser mais fácil a tarefa, permita-me que lhe narre como e onde me senti verdadeiramente deslumbrado pela sua rara beleza, e como ousei dizer-lhe com os meus olhos o amor imenso que me enchia a alma. Era à hora do sol posto; ela estava com a face encostada à mão e como V. Exa. neste momento. Nos seus olhos negros parecia flutuar a vaga tristeza do crepúsculo; os cabelos, arfando suavemente com a brisa, enquadravam-lhe uma fronte alva e límpida, tão límpida, que de vez em quando parecia que nessa testa inundada de luz se via passar a vaga sombra do pensamento. Rodeava-se de flores, que formavam ao seu doce vulto uma profunda moldura. Ao vê-la assim, melancólica como o anjo da tarde, suave e meiga, como a anjo dos celestes amores, pensei que a ventura suprema seria viver a seus pés, e enviando-lhe a minha alma num olhar, votei-lhe um afeto, profundo e ardente como os seus negros olhos. Lucinda ouvia-o arrebatada; fora isso mesmo o que ela desejara, fora isso mesmo o que ela tivera em vista acenando-lhe com essa miragem de amor da velha tia, amor nada perigoso, porque, da mesma forma que a miragem, de longe podia fascinar, mas de perto conhecia-se o areal… dos cinqüenta anos.

Se Frederico se deixasse arrastar pelo demônio da inspiração, e levantasse um pouco mais o véu de gaze com que encobrira a sua declaração, Lucinda poderia auxiliá-lo, confessando-lhe o seu ardil, e quebrando dessa forma o gelo. Mas infelizmente a maliciosa rapariga, um instante docemente perturbada pela eloqüência de Frederico, pensou de súbito, quando ele findou o seu trecho, na fictícia inspiradora desse memorável discurso, e deu aos seus lábios uma expressão de riso reprimido, que bastou para que o espírito sensitivo de Frederico logo se retraísse, e tremesse de ter avançado tanto.

Lucinda percebeu o erro, e quis remediá-lo. Já era tarde. Frederico retirou-se desgostoso. Ela, vendo-o partir, bateu o pé com despeito. A coquete ia-se enleando nas suas próprias redes.

– É necessário que esta comédia acabe, murmurou ela com as lágrimas nos olhos, ainda que eu tenha de me lançar nos seus braços, como uma doida; porque sinto agora essa comoção desconhecida, de que tanto me falavam, e de que eu tanto zombava. Amo. Não conhecem os leitores o caráter de Lucinda, se supuseram que ela se importasse um instante só com o desejo que a tia de Adelaide manifestara de não se relacionar com a amiga de colégio de sua sobrinha. Foi ela mesma que tomou a iniciativa; apresentou-se em casa da sua antiga companheira, não pareceu reparar na frieza da dona da casa, lisonjeou-a na sua mania de combater a velhice, declarou alto e bom som que Adelaide era no colégio uma criancinha, de que ela fora não a companheira, mas a protetora, a segunda mãe. Esteve quase dizendo que a sua amiguinha entrara para o colégio ainda de mama. Estas asserções iluminaram num momento o rosto da tia, dissiparam como por encanto a sua frieza, e deram a Lucinda o lugar de amiga intima. Esta, afetava sempre tratar D. Mariana com familiaridade, fazia-lhe confidencias imagináveis, e pedia-lhe igual franqueza. A boa senhora caiu no laço, e, corando pudicamente, principiou a narrar aventuras não menos supostas, porque os namoros que obtinha desfaziam-se sempre à luz traidora do dia, quando o desgraçado pretendente, fazendo sentinela à porta da casa, via a dois passos de distância os encantos que o haviam fascinado da altura dum segundo andar.

D. Mariana devia ter sido formosíssima; e dessa formosura extinta conservava olhos, onde ainda se não apagara de todo o sacro fogo. Eram eles o núcleo em torno do qual se agrupavam os feitiços artificiais. Notava, contudo, Lucinda, uma extraordinária tristeza em Adelaide. Preocupada e melancólica, a loira criança, em vez de procurar a companhia da sua amiga de colégio, evitava-a pelo contrário, e parecia estar cada vez mais afeiçoada à solidão do seu jardim. Debalde Lucinda tentava penetrar o segredo desta preocupação. Adelaide era impenetrável. Lucinda, devemos confessá-lo, não insistiu muito, e, pensando unicamente no meio de deslindar a comédia, cuja teia imprudentemente urdira, depois de cismar alguns instantes na extraordinária melancolia da sua amiga, não fez mais esforços para penetrar o mistério.

Os seus amores é que progrediam maravilhosamente. Frederico falava-lhe do seu amor tão fervidamente, acompanhava as suas confidências com tão ardentes olhares, que não se podia duvidar que, apesar de toda a sua timidez, um levíssimo impulso bastava para quebrar os cordões da máscara, e transformar numa declaração franca e discreta, as confissões que se trocavam enigmaticamente, por meio dessas bem aventuradas confidências e que se comentavam e explicavam pelo fogo das pupilas.

Contudo o momento decisivo aproximava-se, estava já por tal forma retesada a corda do arco, que por muito que Frederico hesitasse em despedir a flecha inflamada, ela partiria espontaneamente, num instante de exaltação. Vinte vezes Lucinda julgara que esse momento cobiçado era chegado enfim, vinte vezes vira Frederico apertar-lhe a mão convulso, e mover os lábios como se fosse a proferir a palavra que rasgaria o véu transparente, que encobria esses amores, e vinte vezes a mão lhe descaíra gélida, e vinte vezes os lábios se tinham cerrado sem balbuciarem um som. E contudo não era a timidez de Frederico o obstáculo; nesses instantes estava ele nesse estado de ebriedade doida, em que se não pensa, em que os sentidos, o espírito, a imaginação, tudo se acha exaltado a tal ponto que o mais tímido se arroja a audácias que depois o fazem estremecer. E como esse instante rápido, em que nas batalhas o fumo da pólvora, o troar da artilharia, os gritos de vitória, o clangor das trombetas exaltam os próprios covardes e os arrojam, momentaneamente intrépidos, ao centro das fileiras inimigas. Lucinda estava também demasiadamente comovida para que pudesse gelar esse entusiasmo fervente com um sorriso irônico, uma palavra mordaz. Mas parecia que uma voz desconhecida, uma sombra fatal vinha murmurar ao ouvido de Frederico algumas palavras sinistras, e, remorso ou receio, Frederico ficava melancólico e sombrio, como os convivas de Lucrecia Bórgia, ouvindo no meio dos seus cantos bachicos ressoarem as notas fúnebres do coro dos monges.

Lucinda não percebia esta hesitação de nova espécie, e receando vagamente um novo perigo, resolvera dar à comédia o seu desenlace.

Duas palavras de Frederico decidiram-na de todo.

Um dia, depois de terem feito mil floreados sobre o amor a propósito ou antes a despropósito de intangível, da vaporosa Laura daquele Petrarca inconstante, Frederico deixou pender a fronte melancólica, e murmurou:

-Pobre criança!

Lucinda ia desatando a rir; a frase “pobre criança” aplicada à qüinquagenária tia era dum efeito
cômico, ainda realçado pelo tom sentimental do romântico mancebo.

Mas, mesmo tempo, Lucinda sentiu um inexprimível júbilo. Essa frase queria dizer “Pobre vítima, que julgas ser o alvo dos meus pensamentos, e que não és mais do que o escudo, que me serve para conquistar, com mais resguardo, o amor da mulher a quem adoro”. Assim, essas suas palavras eram uma confissão explicita do que se passava na sua alma; encerravam em si a chave do enigma.

Porém, Lucinda não desejava que esse sentimento de compaixão soasse indefinidamente no
peito de Frederico Nunes; julgara que apesar da distância, o seu namorado chegasse a tomar a
sério o amor de D. Mariana. A pretensiosa ia podia parecer uma galante senhora, bem
conservada nunca uma formosa rapariga. Lucinda sempre julgara Frederico cúmplice do seu
amoroso artifício. Vira que ele precisava dum meio, por mais tênue que fosse, para falar sem
receio, proporcionar-lhe a ocasião de o obter. Se ele a aceitasse, é porque realmente a amava.
Assim sucedeu, e como, nos termos a que tinham chegado, o véu, além de ser inútil, era
também prejudicial, tratou de o dilacerar.

Para isso dirigiu-se a D. Mariana, e disse-lhe que um mancebo elegante que nutria por dia a
mais violenta paixão, que se julgava correspondido, se podia acreditar nos ternos olhares com
que da janela o favorecera, sabendo a amizade que as ligava, e sendo da intimidade de
Lucinda, se dirigira a esta para que obtivesse da sua amiga uma entrevista, em que lhe pudesse
declarar o seu afeto e o desejo que alimentava de o ver coroado por um feliz himeneu. D.
Mariana caiu das nuvens. Tinha distribuído os seus olhares ternos com tanta prodigalidade que
não sabia qual dos felizes mortais contemplados na distribuição, queria dar ao crepúsculo da
sua vida uma ventura raras vezes reservada para essa idade, a dum casamento por amor.

Escusamos de dizer que, depois da resistência pudica e indispensável, D. Mariana consentiu na
entrevista. Marcou-se dia, ou antes noite, porque D. Mariana, alegando a maledicência das
vizinhas, mas na realidade para não ter que afrontar senão a luz mentirosa das velas, exigiu
obstinadamente que fosse a essa hora. Convencionou-se que Lucinda daria a chave do jardim
ao aventuroso namorado, e que passaria aquela noite em sua casa para entreter Adelaide, e
velar assim para que não fosse perturbada a amorosa entrevista.

Combinado por este lado o plano estratégico, Lucinda dirigiu-se a Frederico. Disse-lhe que a
sua amiga desejava ardentemente falar-lhe, que o encarregava de lhe dizer que era tão urgente
a necessidade duma entrevista que a obrigava a por de parte a modéstia feminina, e a dirigir-se
a ele, fiando-se na sua honra de cavalheiro. Demais uma senhora respeitável assistirá à
entrevista. Concluiu dizendo-lhe que era na seguinte noite que devia realizar-se a entrevista,
ensinando-lhe a topografia da casa e dando-lhe a chave do jardim.

Lucinda dissera isto com voz artisticamente suspensa, como se debalde tentasse reprimir os soluços. Estava preparando uma explosão. Podia ser esse o instante supremo. Frederico devia talvez cair-lhe aos pés, e o susto que teria, ele o tímido moço, de ter uma entrevista com uma mulher, apressaria o desenlace. Teria nesse caso a coragem do medo.

Efetivamente era esse o caminho que ia tomando as coisas. No primeiro ímpeto Frederico ia arrojar-se aos pés de Lucinda, atirando para longe de si a chave do jardim. Mas a reflexão sobreveio, e o estranho rapaz apanhou a chave, e passando a mão pela testa, disse com voz firme:

-Irei. É um dever de honra.

Lucinda amaldiçoou os escrúpulos do seu namorado. O destino obstinava-se; a comédia tinha de se representar até ao fim.

Chegou finalmente o dia marcado e esperado com impaciência por D. Mariana. Lucinda andava perturbada, e tanto que nem deu por um redobramento de tristeza que se tornava bem visível no rosto da sua amiga Adelaide, de quem ela se esquecia tanto. Adelaide primeiro fugira a escolhe-la para confidente, porque bem conhecia a sua índole sarcástica, e não queria expor os pobres passarinhos dos seus sonhos a terem a asa magoada por algum epigrama de Lucinda.

Mas pouco a pouco Adelaide sentiu-se despeitada, por ver que à sua boa amiga era tão completamente indiferente o estado do seu espírito. Adelaide, vendo isto, julgou-se a pessoa mais infeliz deste mundo; tinha na vida, negro o presente, o passado, e o futuro; o presente ensombrava-lho a ciosa preocupação da sua vida, o passado, onde ela se engolfava com júbilo quando a realidade da existência a torturava, enegrecera também com a indiferença de Lucinda, o futuro, esse devaneara-o ela bem dourado, e bem cheio de luz, um sonho rápido e fragrante atravessara-lhe, e perfumara-lhe o viver… mas esvaíra-se bem ligeiro como sonho que era, tornando apenas com a sua luz fugitiva mais espessas as trevas, que voltaram de novo a enlutar-lhe a mocidade.

A amizade, que votava à sua companheira de colégio, e a profunda tristeza que a salteara, venceriam a resolução em que estava de conservar secreto tudo o que se passava no seu espírito, e o receio que tinha dos sarcasmos de Lucinda, se a indiferença desta não a ferisse mais do que todos os seus motejos. Mas Lucinda andava preocupada, Lucinda nem reparava na palidez da sua amiga. Vir ela passar um dia a sua casa, prometer ficar à noite; e não lhe dirigir durante esse tempo todo, mais de quatro ou cinco palavras, era uma coisa que a pobre Adelaidezinha não podia perceber, e ainda menos, a intimidade súbita que se estabelecera entre sua tia e a sua amiga.

Nesse dia andou aquela toda azafamada a enfeitar-se, a pintar-se, a lustrar o cabelo, a dispor coquetemente a sala de visitas; Lucinda ajudava-a neste trabalho, e trocava com ela em voz baixa palavras misteriosas. Perguntou Adelaide, espantada de ver tantos preparativos, se esperava alguém nessa noite, recebeu uma resposta seca das duas senhoras e a pobre menina, sufocada em soluços, e não podendo conter as lágrimas, refugiou-se, levando um livro, no seu caramanchão favorito. Aí desafogou, derramou prantos copiosos, nomeou-se, por decreto próprio, a mais infeliz de todas as mulheres, e pensou que estava abandonada por todos, e que, órfã desde a infância, era destino seu caminhar solitária no mundo.

Entretanto, descia a noite, e dia não pensava em voltar para casa. Lucinda, vagamente inquieta, não se tirava da janela. Apesar das palavras que Frederico dissera, ao receber a chave do jardim, Lucinda conhecia bastante a sua timidez orgânica (se assim podemos dizer) para supor que ele não ousaria nunca transpor o limiar da porta. Embebida nesses pensamentos, esquecera-se completamente de Adelaide, e do encargo que recebera de a entreter, enquanto durasse a entrevista. D. Mariana, enebriada por aquela inesperada aventura, colocava as velas de modo, que se conservasse na sala a tíbia luz, aconselhada por Garrett, a penumbra tão útil aos amantes, e duplamente útil, a quem só dispõe desse recurso para combater, com mais ou menos vantagem, os inconvenientes duma certidão de batismo, que já podia entrar na classe honrosa dos documentos históricos.

Lucinda, encostada à janela do seu quarto, cravava os olhos na escuridão, procurando distinguir o vulto elegante de Frederico. De vez em quando ia espreitar à porta da sala e ria-se. D. Mariana, sentada no canapé, vestida com o fato mais fresco e juvenil, esperava majestosamente a visita daquele a quem os seus encantos tinham rendido. Afinal, Lucinda viu um homem que se dirigia, envolto numa capa escura, para a porta do jardim. As pulsações febris do seu coração indicaram-lhe, mais depressa do que a vista que era esse o vulto de Frederico.

A noite estava negra; mas um candeeiro de gás, iluminando em cheio a porta do jardim, permitia a Lucinda seguir todos os movimentos de Frederico. Viu-o hesitar, meter a chave na fechadura, tirá-la e afastar-se. Lucinda sorriu-se.

-Deita-a por cima do muro, e foge, murmurou ela.

Mas enganava-se: Frederico pareceu tomar uma resolução definitiva, tornou rapidamente a meter a chave na fechadura, abriu a porta e entrou no jardim.

-Está predestinado, murmurou Lucinda afastando-se da janela. Os seus tolos escrúpulos obrigam-no a enterrar-se até à cintura no tremedal do ridículo. E depois quem sabe? Talvez depois de reconhecer a qüinquagenária formosura da Calipso que vai abandonar, o punge mais os remorsos.

E Lucinda desatou a rir. Mas a reflexão veio, e uma sombra de melancolia se lhe espalhou no semblante.

-Esta minha índole zombeteira, murmurou ela, há de ser sempre um obstáculo à minha felicidade. Devo fazer penitência. O ridículo, a que expus os dois atores da cena que se vai passar na sala, é enorme. Eu não o perdoava. Perdoá-lo-á Frederico? Perdoa de certo, perdoa e com que júbilo, em sabendo o motivo que me guiou! Mas não devo deixar passar uma noite sobre o seu ressentimento. Agora mesmo, agora ando esse D. Quixote de donzelas cinqüentonas estar mal-ferido da sua justa cortês, farei como Altisidora, ousarei pôr de parte o pudor feminino para lhe dizer “Amo-te” e para o consolar com essa palavra só do encantamento da nova Dulcinéia.

E a travessa rapariga, desatando a rir, desceu a escada que ia ter ao jardim.

Não havia ainda luar como dissemos, porém, enquanto não surgia a rainha da noite no seu carro triunfal de madre-pérola, as estrelas cintilavam com vivíssima luz no céu azul, e insinuavam os seus raios d’ouro pálido por entre a folhagem das árvores, que a brisa meneava.

Lucinda esteve alguns instantes cismando tristemente. A coquette lamentava talvez o ter-se enleado, para conseguir o seu fim, nesse tão complicado enredo, que afinal a nada remediara, porque se via obrigada a dar o primeiro passo, exatamente como se não tivesse ideado tantas combinações maquiavélicas para obrigar esse tímido César, que podia chegar, ver e vencer, a passar o Rubicão.

Nisto um vulto de homem apareceu, vindo do lado da habitação, cosendo-se com os troncos d’árvores, mas fugindo ligeiramente. Devia ser Frederico.

Lucinda avançou para ele, com o coração a pulsar-lhe violentamente.

-Frederico! balbuciou ela.

O homem parou.

Sou eu, sou Lucinda, continuou a ousada menina nesse momento mais tímida do que ele, eu que venho expiar a minha culpa, e fazer-lhe a confissão que me absolve. Sim di-lo-ei, sem temer que me acusem de imodesta: “Amo-o”.

E as suas mãos procuravam as de Frederico. Mas coisa notável, ou mãos deste se lhe esquivavam, ou D. Mariana, arranjando uma variante à mulher de Putifar, em vez de lhe arrancar a capa, lhe arrancara as mãos.

Mas quando Lucinda passava do espanto à cólera, recebeu um impulso violento que a fez ir, cambaleando, segurar-se a um ramo de jasmineiro, e ouviu uma voz grosseira e avinhada, que lhe dizia;

-Você, além de ser descarada, é ladra também? Dize-me ternuras, minha Filis, mas larga os tímidos voláteis.

Lucinda soltou um grito terrível, e fugiu como louca na direção de casa. A esse grito somaram-se passos precipitados, que vinham do fundo do jardim. Um outro homem lançou-se às goelas do interlocutor de Lucinda, e uma outra voz juvenil de senhora começou a bradar por socorro.

A este barulho correram os criados e destrancaram-se as portas, o jardim inundou-se de luz. D. Mariana apareceu com esplendida toilette à porta de casa, o causador deste tumulto fugiu por cima do muro, deixando os seus despojos nas mãos do seu contendor, e Lucinda, que ficara ofegante à sombra de uma alta figueira que se aferrava ao muro, pode ver, com doloroso espanto, a seguinte cena.

Frederico vitorioso, mas vermelho de cólera e vergonha, tinha nas mãos, como troféus da sua glória, duas galinhas. A pouca distância estava Adelaide escondendo o rosto nas mãos. D. Mariana ficara como que petrificada, os criados riam e segredavam.

Voltemos agora ao instante em que vimos Frederico desaparecer no jardim.

Os cálculos de Lucinda pecavam pela base. A autora deste enredo não podia acostumar-se a considerar Adelaide,que tinha menos seis anos do que ela, como uma mulher capaz de amar e de ser amada, não suspeitara que por baixo da varanda do segundo andar, onde estava Mariana, havia uma janela de peitos, que nessa janela, por maior que fosse a reclusão em que Adelaide vivesse, ia esta espairecer por alguns instantes, que seria exatamente numa dessas ocasiões que Frederico passaria, e que o vulto elegante e nobre deste moço não produziria menos impressão na criança de dezenove anos, do que produzira na mulher de vinte e cinco.

Frederico amava realmente Lucinda, e aproveitara com avidez a ocasião que se lhe oferecia de vencer a sua timidez, e da ter com a esplendida coquette essas longas conversações de amor, que nunca ousaria encetar se esse pretexto se lhe não proporcionasse. Mas a suave figura de Adelaide não deixara de lhe fazer impressão, e a tristeza que principiava a ver na fisionomia dela, à medida que os dias iam correndo, sem que essa troca de olhares tivesse resultados, causara-lhe um vago remorso.

Parecia-lhe que essa formosa menina merecia mais do que servir de pretexto à poesia, de que era outra o objeto verdadeiro; parecia-lhe que ele cometia um crime, povoando de sonhos de ouro aquela juvenil imaginação, para depois só os esmagar com a massa brutal do desdém.

Portanto aceitara a entrevista, como se aceita o cálice da amargura, que um dever nobre e elevado nos impõe a obrigação de bebermos. Queria falar com Adelaide, confessar-lhe tudo, mostrar-lhe uma franqueza tal, humilhar-se tanto, que, senão lhe pudesse amortecer a dor, lhe lisonjeasse pelo menos o amor próprio e o impedisse de se ferir no doloroso espinho, que lhe ia fazer brotar na tenra haste dessa namorada flor da fantasia. No mesmo dia da entrevista (era um domingo) entrava ele numa igreja. Acabava a missa, e no templo solitário estavam apenas duas mulheres, uma, elegante e airosa, parecia absorvida numa prece fervente, a outra, que era uma criada velha, mostrava impaciência visível de se retirar.

Finalmente a devota senhora ergueu-se, e os seus olhos encontraram os olhos de Frederico, que reconheceu com espanto a mulher, cuja imagem o perseguia como um remorso. Estava pálida, os olhos azuis lânguidos e tristes denunciavam lágrimas enxutas de pouco. Fitou um longo olhar em Frederico; este pálido e trêmulo curvou-se respeitosamente levando a mão ao coração, como se uma dor súbita o ferisse, e desviando os olhos dela, afastou-se rapidamente.

Nessa noite, como vimos, estava ele à porta do jardim. Entrou, e, apenas dera dez passos numa pequena alameda, encontrou um vulto feminino, que se dirigia vagarosamente para casa. À luz do candeeiro de gás, que iluminava uma pequena porção da alameda, os dois reconheceram-se. Adelaide recuou um passo, soltou um pequeno grito.

– O senhor aqui! bradou ela com voz que debalde procurava tornar firme e austera. Ah! percebo, continuou ela como que ferida por uma idéia, e desatando a chorar, julga talvez que sou uma dessas mulheres levianas, com as quais basta empregar a audácia…

Não pôde dizer mais. Os soluços sufocaram-na. Audácia! Era a primeira vez que Frederico ouvia uma mulher dirigir-lhe semelhante acusação.

-Oh! juro-lhe que se engana; exclamou ele caindo-lhe aos pés e não reparando até no incompreensível espanto dessa mulher, que, segundo ele julgava, fosse a primeira a conceder-lhe um rendez-vous, a ninguém neste mundo merece mais respeito. Sou culpado, bem o sei, mas tudo vou resgatar corri a minha franqueza extrema e sem limites.

Adelaide não o ouvia; pendia-lhe desfalecida nos braços; não ousamos dizer que fosse completamente involuntário esse desfalecimento.

Frederico, consternado, olhou em torno de si, e viu um banco ao fundo da alameda. Segurando com o braço na cintura de Adelaide, foi-a levando para esse lado.

Adelaide caiu sentada no banco, e escondeu o rosto entre as mãos.

Frederico ficou silencioso junto dela. Sentia dele uma desconhecida perturbação. Aquele encontro inesperado, a solidão e a noite, o perfume das flores, combinado com essas vagas e voluptuosas emanações das noites de estio, esse vulto flexível e airoso de mulher que lhe pendera nos braços, tudo isso, sobrevindo dum modo tão imprevisto, o enebriava e entontecia.

Vendo aquela mulher tão linda, com o rosto banhado de lágrimas, o ânimo desfaleceu-lhe; como havia ele de dizer a essa criatura do céu, quando estava ele mesmo sujeito ao indizível magnetismo, à fascinação do seu olhar, como havia ele de lhe dizer: “Iludi-a, sacrifiquei-a a uma coquette, fiz do seu vulto gracioso e angélico, anteparo, que me resguardasse do fogo duns olhos audazes, que me fascinavam e me queimavam?”

Impossível! Completamente impossível!

Por isso Frederico pôde apenas balbuciar:

-Perdoa-me?…

Ela abaixou para ele os olhos, em que através das lágrimas transparecia um amor imenso, e com voz suave, tremente, doce e suavíssima, como vibração longínqua d’harpa eólia, murmurou:

– Perdoar-lhe! Como lhe não hei de perdoar, se por este momento ansiava, se o meu desejo era vê-lo ali onde está, e ouvir a sua voz? Oh! Meu Deus bem sei que me vai julgar mal, bem sei que o devia repelir, que devia estranhar o seu proceder? Que quer? Não tenho ânimo. Há tanto tempo que a ventura me foge, que não posso fugir-lhe agora que ela me surge de súbito! Depois eu sei que é cavalheiro, sei que me ama, li-o no seu olhar, e esse livro misterioso para nós outras mulheres não tem segredos. Confio na sua honra, e sequiosa há tanto desta suprema felicidade, ouso dizer-lhe: “Obrigada por ter vindo, obrigada por ter prevenido o meu secreto desejo, obrigada por ter lido nas minhas faces pálidas, nos meus olhos amortecidos a ansiedade que me devorava, por ter adivinhado que morria longe de si, como a flor, a que falta o orvalho, como a árvore a que falta o sol.”

Frederico, arrastado por esta eloqüência ardente, fascinadora, auxiliada por uma indescritível melodia de voz, pelos murmúrios dulcíssimos do jardim, sentia abrasar-se-lhe a imaginação, e o vulto de Lucinda, que por momentos flutuava diante dele, esvaía-se ao longe como um sonho ao romper da alvorada, e as palavras dela, que primeiro se haviam interposto ao seu ouvido, e à voz d’Adelaide, pareciam-lhe agora tão frias e descoradas, comparando-as com essas frases veementes, que lhe iam ferir o coração, porque do coração partiam!…

-Minha senhora… balbuciou ele.
– Oh! chame-me Adelaide, tornou ela, apertando-lhe as mãos com ímpeto febril, e diga-me o seu nome para que os meus sonhos o saibam, e mo venham repetir à noite, depois de eu adormecer balbuciando-o.
-Adelaide, que me enlouquece, bradou o mancebo com a cabeça em fogo.
-O seu nome, o seu nome!
-Frederico! murmurou ele e tão próximo dela, que os lábios de Adelaide pareceram aspirar essa palavra, assim que saiu da boca do seu amado, como se temesse que a surpreendesse a brisa. As árvores meneavam as suas folhudas copas impelidas pelo sopro da viração; a luz das estrelas tremia no céu azul, e os seus pálidos raios, coando-se por entre os ramos, iluminavam frouxamente a alva fronte de Adelaide.

Súbito soou um grito de mulher ansioso e dilacerante. Frederico levantou-se dum ímpeto, e correu para o sitio donde partia o brado; na escuridão topou um homem que fugia, estendeu as mãos a aferrou-se-lhe ao pescoço.

O resto sabem-no os leitores.
……………………………………….

D. Mariana, que, sentada no sofá, vestida, enfeitada, e colocada na sombra, debalde esperava a prometida visita, correu ao jardim, ouvindo o grito, e já lá encontrou os criados. Viu então o ladrão das galinhas fugir por cima do muro, deixando os seus despojos no campo de batalha, Frederico empunhando os voláteis, e junto dele Adelaide.

A tia ficou fula de cólera, notando que sua sobrinha estava num rendez-vous, enquanto ela esperava debalde o seu. Era possível mesmo que os dois não fizessem senão um.

-O que é isto? bradou ela. A menina com um homem no quintal!
-Minha senhora, disse Frederico abandonando as galinhas, confesso que fomos culpados ocultando a V. Exa os nossos amores, mas estamos a tempo de reparar essa culpa, porque tenho a honra de pedir a V. Exa a mão de sua sobrinha.

-O lugar é impróprio bastante, respondeu secamente D. Mariana, queira portanto sair. E a menina recolha-se ao seu quarto e seja mais prudente.

Debalde a pobre tia pedia explicações a Lucinda. Esta furiosa declarou-lhe que nada percebia, e no dia seguinte retirou-se para sua casa.

Daí a quinze dias recebia uma carta de Adelaide, a qual, como podem supor, ignorava tudo o que se passara.

A carta dizia o seguinte:

Minha boa amiga.
Caso-me daqui a um mês. Não podes imaginar como sou feliz. Quero falar contigo muito, muito e muito
.”

Lucinda rasgou a carta, e pisou-a aos pés com lágrimas de raiva. Ao outro dia tanto instou com seu pai, tão doente disse que estava que o resolveu, apesar da extrema repugnância da Sra D. Leocádia em deixar Lisboa, a irem passar o resto do verão numa quinta que possuíam no Ribatejo.

Fontes:
Revista CD Rom 156. Biblioteca Eletrônica.
Ceramica = http://www.oficinaceramica.com

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Luis Kandjimbo (Breve História da Ficção Narrativa Angolana nos últimos 50 anos) Parte 4

Lobito – Angola (pintura de A. Magalhães)
Parte 1 em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/luis-kandjimbo-breve-histria-da-fico.html
Parte 2 em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/luis-kandjimbo-breve-histria-da-fico_12.html
Parte 3 em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/luis-kandjimbo-breve-histria-da-fico_14.html
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4. O Exercício diferencialista da linguagem, a sátira a ironia e a verdade histórica na geração de 60

Em fins da década de 50 e em toda a década de 60 a prosa de ficção conhece novos impulsos com a afirmação de uma geração constituída por escritores que se nutriam de ecos das vanguardas literárias européias e latino-americanas. A crônica, o conto e o romance são gêneros narrativos que encontram cultores inventivos. Revelam-se nomes como Ernesto Lara Filho cujas crônicas Roda Gigante são publicadas no jornal de Angola, Henrique Guerra (A bola e a panela de comida ), Mário Guerra ( A cubata solitária), Mário António (Farra no fim de semana, Gente para romance, Crônica da cidade estranha) e António Cardoso.

A publicação das obras destes autores deve-se ao esforço de pequenas editoras como as Coleção Imbondeiro do Lubango, animada por Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, a Casa dos Estudantes do Império com a coleção Autores Ultramarinos em Lisboa e os Cadernos Capricórnio de Orlando de Albuquerque no Lobito.

É com a geração de ficcionistas de 60 que se registram os mais profundos e intencionais exercícios diferencialistas da linguagem narrativa, além da introdução de um tipo de personagens que assinalam uma ruptura com as propostas de Assis Júnior e Óscar Ribas.

MANUEL DOS SANTOS LIMA

Manuel dos Santos Lima, nasceu em 1935 na província do Bié. Publica As Sementes da Liberdade (1965), As Lágrimas ao Vento (1976) e Os Anões e os Mendigos( 1984). Com As Lágrimas e o Vento, Manuel dos Santos Lima é o primeiro escritor a construir uma trama que gravita em redor da guerra colonial. A história do último romance decorre em África num país chamado Costa da Prata cujo presidente é Davi Demba. É uma virulenta sátira dos regimes africanos de partido único e do culto da personalidade que reduzem os homens e a sua dignidade humana a meros serventuários de apetites da libido dominandi de ditadores e elites inescrupulosas que ainda abundam em África. Dentre os três romances merece destaque As Lágrimas e o Vento, se realizarmos uma leitura que privilegie a artesania na construção da história. É um dos primeiros romances sobre a guerra colonial angolana.

LUANDINO VIEIRA

Luandino Vieira nasceu em Portugal no ano de 1935, numa localidade chamada Lagoa do Furadouro. Veio para Angola aos três anos de idade na companhia de seus pais que eram colonos portugueses.

Foi preso em 1959. Voltou a ser preso em 1961 e condenado a 14 anos de reclusão.

Aquela intencionalidade de produzir uma linguagem distinta viria ser posta à prova em 1965, quando a Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu o Prêmio de Novelística ao livro Luuanda de Luandino Vieira que já publicara A Cidade e a Infância ( 1957). João Gaspar Simões, um dos críticos portugueses mais categorizados e que integrava o júri, recusou o seu voto. E explica assim a sua posição: “ (…) uma coisa é ser-se autor português, outra ser-se autor angolano, embora de expressão portuguesa (…), o falar dos personagens e o falar regional, o falar de um povo que, como o brasileiro, mais tarde ou mais cedo, independentemente, atingirá diferenciação (…)” Toda a obra de Luandino Vieira posterior a Luuanda está profundamente marcada por essa inquietação. Ao nível da linguagem Luandino Vieira combina a estratégia de invenção da língua do narrador que é diferente da das personagens. Isto acontece pelo fato de o autor pretender transpor deliberadamente para o texto uma experiência lingüística observada,mas não vivida. É por isso que, no nosso entender grande parte dos textos posteriores à A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, sem prejuízo das finalidades estéticas prosseguidas, não são facilmente legíveis para o homem comum do meio luandense, em que é suposto decorrerem as ações.

ARNALDO SANTOS

É natural de Luanda onde nasceu em 14 de Março de 1935. Passou a infância e a adolescência no bairro do Kinaxixi, topônimo que ocupa um lugar privilegiado na sua produção narrativa. Aos vinte anos de idade publicou a sua primeira coletânea de contos Quinaxixi. Com o livro de crónicas Tempo do Munhungo, arrebatou em 1968 o Prêmio Mota Veiga, um dos poucos atribuídos em Luanda, na década de 60 e 70.

Arnaldo Santos situa-se ligeiramente num outro nível de tratamento da linguagem. É um preciosista na depuração do texto narrativo curto e de todos os seus recursos e elementos. Daí que a sua ficção narrativa não tenha conhecido até agora variações para além do conto (Kinaxixi), crónica (Tempo do Munhungo) e novela (A Boneca de Quilengues).

No dizer de Jorge Macedo, ele usa “ lexias-kimbundo no interior de um português de luzidia correção”. O seu nome é uma referência incontornável, associada àquele minimalismo narrativo que encontraremos igualmente em Boaventura Cardoso. É um dos poucos narradores que evidenciam elevado sentido de rigor na seleção dos tipos de personagens. Na sua obra inicial, reconhecemos traços característicos de uma perfeita articulação da psicologia das personagens a esse espaço urbano de Luanda que obedece à lógica e história predominantemente autóctones. Tal efeito é alcançado, por exemplo no conto A mulher do padeiro, através de uma conflituosa coabitação entre personagens portuguesas e luandenses. Embora o seu espaço físico e social de eleição seja o Kinaxixi, em Luanda, em A Boneca de Quilengues desloca essa minúcia para Benguela, realizando pela primeira vez a introdução de “lexias-umbundu”.

PEPETELA

Pepetela, pseudônimo de Artur Pestana, é natural de Benguela, onde nasceu em 1941. Realizou os estudos primários e secundários em Benguela e Lubango. Em Portugal frequentou o Instituto Superior Técnico de Lisboa. Após a sua fuga para o exílio, juntou-se ao Movimento de Libertação Nacional. Em Argel, formou-se em Sociologia e integrou a equipa que formou o Centro de Estudos Angolanos. Foi Vice-Ministro da Educação. Grande parte da sua produção foi publicada após a independência, como de resto se passa com uma boa parte dos ficcionistas angolanos.Publicou Muana Puó(1978); As aventuras de Ngunga(197..); Mayombe (1980); O Cão e os Calús(1985); Yaka (1985); Lueji,o Nascimento dum Império (1990); A Geração da Utopia (1992); O Desejo de Kianda (1995); Parábola do Cágado Velho(1996) A Gloriosa Família (1997). A tematização da história imediata, social ou política, e antiga constitui a trama de quase todos os seus romances como Mayombe, Yaka, Lueji,o Nascimento dum Império, A Geração da Utopia, Lueji, A Gloriosa Família.

É no cruzamento que a onomástica e as personagens estabelecem com a História onde vamos encontrar motivos de grandes interrogações sobre o labor ficcional de Pepetela. Em Yaka, um romance em que se conta a saga dos Semedo, uma família descendente de um antigo colono, este autor submete personagens da História de Angola como Mutu-ya-Kevela a um tratamento semântico que suscita alguma perplexidade para o leitor angolano avisado, numa trama que se traduz em inadequada superação das metáforas coloniais. Mutu-ya-Kevela, que é um herói da resistência ao colonialismo, não pode ser reduzido a “ monstro de dentes compridos” funcionando como um horror às crianças, tal como acontece em Yaka. A perplexidade atinge o apogeu, quando a incorporação de personagens-referenciais no romance deixam de satisfazer aquele fim, através do qual se deve reabilitar os heróis passado, da grande narrativa angolana que é a História de Angola. Em tudo isso reside uma inquietação com aquelas coisas que tocam as identidades coletivas e a legitimação do lugar que se ocupa na sociedade. Numa das suas entrevistas publicadas em livro, Pepetela revela as suas grandes preocupações com a formação da nação. E atribuía tal propensão e a recorrência do tema na sua obra ao fato de ter estudado Sociologia.

Com efeito, digno de destaque para aquilo que deve ser o cânone literário são Mayombe, A Geração da Utopia e Parábola do Cágado Velho. Aqui Pepetela revela-se um importante arquitecto para o imaginário angolano.

HENRIQUE ABRANCHES

Henrique Abranches nasceu em Lisboa em 1932. Foi para Angola em 1947 de que adotaria a nacionalidade. Com Pepetela fundou em Argel Centro de Estudos Angolanos onde trabalharam na redação de um manual de História de Angola. Publicou A Konkava de Feti, O Clã de Novembrino, Kissoko de Guerra,Titânia, Misericórdia para o Reino do Congo! e Senhores do Areal.

Três romances deste autor merecem a nossa atenção: A Konkava de Feti, O Clã de Novembrino e Misericórdia para o Reino do Congo!.

No primeiro socorre-se de materiais das tradições orais dos povos do sudoeste de Angola. O segundo narra a história de um naufrágio, gravitando à volta do velho tema da ilha. Os sobreviventes que, são colonos africanos cujo destino era o Brasil. Fundam uma nova comunidade no pedaço de terra para onde são lançados pelas ondas do Atlântico.Numa persistente luta contra as adversidades da natureza constroem uma sociedade cujas bases são constituídas pela cultura das diversas etnias do país de origem. Instituem regras e normas apropriadas à sua situação como, por exemplo, a que diz respeito à regulação das relações entre os homens e as mulheres, devido à escassez destas últimas.

Mas se tivermos em atenção a temática histórica, é sem dúvida o terceiro que melhor situa o autor no panorama ficção narrativa angolana.

Henrique Abranches vai à História de Angola e submete a um tratamento ficcional o chamado movimento messiânico dos antoninos que no século XVII é liderado por Cimpa Vita. O cenário é o reino do Congo, mais precisamente na região do Soyo.

MANUEL RUI MONTEIRO

Manuel Rui Monteiro nasceu na cidade do Huambo em 1941. Publicou O Regresso Adiado , Memória de Mar, Sim, Camarada!, Quem me Dera ser Onda, Crônica de um Mujimbo, 1 Morto & Os Vivos, Rio Seco, Da Palma da Mão.

A sua prosa ficção está profundamente marcada por preocupações estéticas de um realismo social que celebra o homem comum. Quando focaliza categorias de personagens da classe média, o faz para produzir caricaturas de comportamentos perversos. É aqui que este autor exibe a sua mestria no tratamento da sátira e da ironia. São recursos de grande eficácia no plano semântico-pragmático. O que pode ser provado pelo número de edições e tiragens de Quem me Dera ser Onda, título que suscitou grande empatia do público leitor. É a história de um porco que habita um apartamento na companhia de uma família cujo chefe é Faustino. Da hilaridade ao patético, a presença do animal vai provocando uma série de transtornos aos moradores do prédio, muitos dos quais pautam a sua conduta por regras e valores do mundo rural, como é este o da domesticação de animais no espaço residencial para a satisfação das necessidades de consumo de carne. É uma sátira mordaz a respeito de fenômenos de mobilidade social de determinadas categorias, do mimetismo dos novos ricos, e do populismo político.

O realismo social, a sátira e a ironia logram níveis de elaboração estética em Rioseco, um romance cuja história decorre numa ilha adjacente à parte continental de Luanda. Um casal de refugiados do sul e leste de Angola, em que o marido e a mulher pertencem a etnias diferentes, vai acoitar-se no mundo insular de pescadores pertencentes a uma outra etnia d norte . Tecem profundas relações sociais de solidariedade, e apesar das suas origens étnicas, acabam todos eles,por construir um mundo diferente em que procuram banir a violência que dilacera o continente. No plano da linguagem, Manuel Rui Monteiro experimenta o recurso à diglossia imprópria, através do qual os discursos das personagens são impregnados de estruturas frásicas e semânticas que vazam das línguas autóctones e de uma psicologia equivalente. Não sendo ainda de desprezar a semântica do antropônimo de uma personagem feminina que é Noíto. Aqui vemos Manuel Rui lançar mão da memória que debita materiais para a ficção, pois trata-se de uma personagem que viveu no Huambo, afamada por ser uma grande quimbanda, ou seja, terapeuta tradicional a quem eram reconhecidos poderes do mundo intangível. E no romance Noíto é, no essencial, uma mulher capaz de decifrar os segredos da natureza e pressagiar infortúnios.
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continua… 5. Boaventura Cardoso: A voz representativa da geração de 70
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Fontes:
http://www.nexus.ao/kandjimbo/breve_historia.htm
Pintura = http://amagalhaes.anda.ca

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Vinicius de Moraes (O exercício da crônica)

Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe de repente a crônica, provinda dos fatos e feitos de sua vida emocionalmente despertados pela concentração. Ou então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado.

Alguns fazem-no de maneira simples e direta, sem caprichar demais no estilo, mas enfeitando-o aqui e ali desses pequenos achados que são a sua marca registrada e constituem um tópico infalível nas conversas do alheio naquela noite. Outros, de modo lento e elaborado, que o leitor deixa para mais tarde como um convite ao sono: a estes se lê como quem mastiga com prazer grandes bolas de chicletes. Outros, ainda, e constituem a maioria, “tacam peito” na máquina e cumprem o dever cotidiano da crônica com uma espécie de desespero, numa atitude ou-vai-ou-racha. Há os eufóricos, cuja prosa procura sempre infundir vida e alegria em seus leitores e há os tristes, que escrevem com o fito exclusivo de desanimar o gentio não só quanto à vida, como quanto à condição humana e às razões de viver. Há também os modestos, que ocultam cuidadosamente a própria personalidade atrás do que dizem e, em contrapartida, os vaidosos, que castigam no pronome na primeira pessoa e colocam-se geralmente como a personagem principal de todas as situações. Como se diz que é preciso um pouco de tudo para fazer um mundo, todos estes “marginais da imprensa”, por assim dizer, têm o seu papel a cumprir. Uns afagam vaidades, outros, as espicaçam; este é lido por puro deleite, aquele por puro vício. Mas uma coisa é certa: o público não dispensa a crônica, e o cronista afirma-se cada vez mais como o cafezinho quente seguido de um bom cigarro, que tanto prazer dá depois que se come.

Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que, positivamente, a crônica “não baixa”. O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com impaciência, que o diretor do jornal está provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: “É… não há nada a fazer com Fulano…” Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz: “Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores!” E o negócio sai de qualquer maneira.

O ideal para um cronista é ter sempre uma os duas crônicas adiantadas. Mas eu conheço muito poucos que o façam. Alguns tentam, quando começam, no afã de dar uma boa impressão ao diretor e ao secretário do jornal. Mas se ele é um verdadeiro cronista, um cronista que se preza, ao fim de duas semanas estará gastando a metade do seu ordenado em mandar sua crônica de táxi – e a verdade é que, em sua inocente maldade, tem um certo prazer em imaginar o suspiro de alívio e a correria que ela causa, quando, tal uma filha desaparecida, chega de volta à casa paterna.

Fonte:
http://www.grandesautores.com.br/

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Projeto Ler é Bom, para Alunos a partir da 6a. Série

Projeto de leitura destinado a alunos do ensino fundamental, a partir da 6ª série, e do ensino médio.

Tem como objetivos incentivar o hábito da leitura e estimular a criatividade dos jovens.

Aprovado pelo Ministério da Cultura desde 2000, é desenvolvido com excelentes resultados em escolas estaduais e municipais em todo o Brasil.

A unidade escolar recebe, como doação, 38 exemplares de uma das obras de Laé de Souza.

Junto com os livros, a escola também recebe material didático (folhas pautadas para redação e questionários) para aplicação do projeto em sala de aula.

Após a leitura e o desenvolvimento de várias atividades sugeridas, os alunos respondem questionário sobre a obra e desenvolvem textos baseados nas crônicas ou nos personagens. Os autores dos três melhores trabalhos recebem como prêmio outra obra de Laé de Souza.

O Projeto enviará um exemplar da obra a ser utilizada e mais informações sobre as atividades que serão desenvolvidas pelo professor. Se após análise houver a confirmação do interesse, serão enviados todos os materiais para a aplicação do projeto.

A escola interessada em participar deverá preencher a ficha de inscrição no link abaixo.

A escola que já recebeu o material para análise e quer confirmar o interesse em participar do projeto, deverá preencher a ficha de confirmação de interesse em participar

Fonte:
http://www.projetosdeleitura.com.br/proj02.html

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Coletânea do 9º Concurso de Literatura de Canoas (RS) 2008

Coletânea do 9º Concurso de Literatura de Canoas (RS) 2008

Esta coletânea contém os trabalhos vencedores do 9º Concurso de Literatura / 2008, nas três categoria: Conto, Crônica e Poesia.

O Concurso de Literatura da FCC, nesta edição, recebeu 918 trabalhos de autores de 20 estados brasileiros e mais 5 países: México, Japão, Itália, Portugal e São Tomé e Príncipe.

O volume possui 120 páginas e as ilustrações da capa e internas são do artista plástico Darcy Morais.

O homenageado nesta edição foi O escritor Cícero Galeno Lopes.

A diagramação e formatação esteve a cargo da empresa TecnoArte e a impressão foi realizada pela Gráfica e Editora Tecnicópias.

DECLARAÇÃO DOS RESULTADOS

A Fundação Cultural de Canoas, através do Presidente de seu Conselho Diretor, divulga os resultados dos trabalhos inscritos no 9° Concurso de Literatura, coordenado por Clara Forell. A Comissão Julgadora foi composta por Antônio Mesquita Galvão, Valéria Brisolara, Luiz Gonzaga Lopes, Carmem Sílvia Machado Galvão e Nestor José Mayer, no gênero Conto; Isabella Vieira de Bem, Zilá Bernd e Luciana Volcato Panzarini Grimm, no gênero Crônica; Odiombar Rodrigues, José Édil de Lima Alves e Loreno Luiz Zambonin, no gênero Poesia.

GÊNERO CONTO

1° Lugar: “Carta encontrada em uma fresta”
Autor: ANÉSIO FERREIRA DOS REIS JÚNIOR (Anésio Júnior) – Embu das Artes/SP

2° Lugar: “O segredo do violinista”
Autora: LÍLIA DE OLIVEIRA ROSA (George Sand Brasil) – Campinas/SP

3° Lugar: “As laranjeiras de Sevilha”
Autora: LIS CLETO CEREJA (Lis) – São Paulo/SP

– Menções Honrosas –

“Rios de prata”
Autor: WILLIAN RABELO (O grande mentecapto) – Goiânia/GO

“Um conto de ônibus”
Autora: SOFIA KELLY GIAMBARBA FURMANSKI (Agnieska) – Velha Velha/ES

“Pequenos detalhes”
Autora: ANA CRISTINA DE S. L. DE MELO (Emma Assis) – Rio de Janeiro/RJ

– Melhor CONTO de autor canoense –

“O entrevero da barata no dia D de um colorado”
Autor: ADILAR SIGNORI ( Gaúcho)

GÊNERO CRÔNICA

1° Lugar: “O Sebo de Alexandria”
Autor: LUCAS JERZY PORTELA (Handel) – Salvador/BA

2° Lugar: “Recado”
Autor: TINÊ SOARES (Cataletra) – Caratinga/MG

3° Lugar: “Filha da Cadeia”
Autor: MARIA INÊS GUARDA TAFARELLO (Sentimento do Mundo) – Jundiaí/SP

– Menções Honrosas –

“Um anjo na internet”
Autor: MARIA ALEXANDRA MILITÃO RODRIGUES (Garça do Lago) – Brasília/DF

“Pés”
Autor: REGINA NADAES MARQUES (Beberibe Torres) – Milano/ITÁLIA

“Gestos Automáticos”
Autor: CORACY TEIXEIRA BESSA (Uiara) – Salvador/BA

– Melhor CRÔNICA de autor canoense –

“O tropeiro de Roca Sales”
Autor: ADILAR SIGNORI (Rocales)

GÊNERO POESIA

1° Lugar: “Os loucos é que vão pro céu”
Autor: RAPHAEL TRINDADE DOS SANTOS (Tamoio Graça) – Rio de Janeiro/RJ

2° Lugar: “Coração”
Autora: MARIANA OHLWEILER (América Vespúcio) – Ivoti/RS

3° Lugar: “A poesia”
Autor: LEONARDO DE LIMA DURVAL (Leo Durval) – Iputinga – Recife/PE

– Menções Honrosas –

“Receita para calar o rugido dos dedos enterrados uns entre os outros”
Autor: WHISNER FRAGA (Sunny Lane) – Ribeirão Preto/SP

“Ode ao ser passageiro”
Autora: KÁTIA CRISTINA MOTA (Kátia Mota) – Cerquilho/SP

“Pagu”
Autora: ANA CAROLINA EIRAS COELHO SOARES (Aurora) – Rio de Janeiro/RJ

– Melhor POESIA de autor canoense –

“Maria e as canoas”
Autor: JOSÉ LUÍS BIULCHI DE SOUZA (José Luiz)

Fonte:
http://www.fundacan.com.br/

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Cicero Galeno Lopes

Cícero Galeno Urroz Lopes é natural de Uruguaiana, RS, reside em Porto Alegre e desenvolve o seu trabalho em Canoas, desde 1994.

Possui Graduação em Letras (português-espanhol) pela Universidade Católica de Pelotas (1971), Especialização em Letras (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal de Santa Maria (1980), Mestrado em Letras (Teoria da Literatura) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991) e Doutorado em Letras (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996). Atualmente é professor titular e pesquisador no Centro Universitário La Salle.

Tem experiência na área de Letras em todos os níveis de ensino; em delegacia e secretaria de educação. Dedica-se especialmente à Literatura Brasileira; atua principalmente nos seguintes temas: literaturas gaúchas de línguas portuguesa e espanhola, teoria e crítica literárias, dialogismo, hibridação cultural interamericana.

É autor de crítica e teoria em livros próprios e coletivos e em periódicos especializados; de ficção (contos), com três obras editadas; de livro didático sobre compreensão e interpretação de textos.

É colaborador em jornais diários e outros, sobre cultura, comportamento e literatura. Integra o Conselho Consultivo da revista Métis (UCS), o Conselho Editorial do Unilasalle e da revista Colabor@ (UCB); integra também a Comissão Científica de Pesquisa do Unilasalle. Tem atuado também como organizador, coordenador e executor de eventos culturais em Porto Alegre e Canoas, junto à Câmara Rio-grandense do Livro e à Fundação Cultural de Canoas.

Foi responsável pelo planejamento, instalação, edição e consolidação (1996-2004) das revistas acadêmico-científicas La Salle e Diálogo e da série Cadernos La Salle (Unilasalle-RS).

Integrou o Conselho Estadual de Cultura do RS (2006-2007) como representante da Associação Gaúcha de Escritores; exerceu a presidência do Conselho de Cultura de Uruguaiana e (três vezes) a vice-presidência do Califórnia da Canção Nativa do RS.

Publicou:
“Conto e ponto”. Porto Alegre: Movimento, 1999;
“A curva da estrada”. Porto Alegre: Movimento, 2000;
“O resto é o resto”. In: KIEFER, Charles (org.); “O livro dos homens”. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000;
“A Viagem”. Porto Alegre: Movimento, 2005;
“Literatura e Poder”. Porto Alegre: UFRGS, 2005;
“Compreender e interpretar textos”. Porto Alegre: Sagra, 1977.

Colabora em periódicos acadêmicos-científicos e jornais do RGS e do país.

Patrono da 21ª Feira Municipal do Livro de Canoas, em 2005. Escritor homenageado na edição do 9º Concurso Internacional de Literatura da Fundação Cultural de Canoas, em 2008.

Fontes:
– Currículo Lattes
– Fundação Cultural de Canoas –
http://www.fundacan.com.br
Foto =
http://www.cicerogalenolopes.com/

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Cícero Galeno Lopes (Poemas)

A gaiola

Que coragem tens ou cruel brutalidade,
que incauto inocente, pelo alimento,
condenas à prisão pela vida inteira
e dele usufruis financeiros resultados?

Ainda ontem pelo verde e pelo azul voava,
o encanto da vida e o aconchego dos seus
podia usufruir em plena natureza…
hoje o tens mísero, pequeno e dominado.

A gaiola o prende em reclusão perpétua,
e há de cantar e olhar a luz e o verde,
fechado entre grades, ruídos e estranhos;

o silêncio e a cor da mata e dos seus o canto
serão torturas amargas daqui em frente
a quem duas asas tinham poder de céu
======================

A chuva

Flocos líquidos transparentes descem
pequenos, leves e inofensivos,
um, depois mais um, depois tantos crescem,
que a terra toda alagam, e os rios

se elevam, veias da natureza,
e levam a vida a todos os seres.
Ah, quem me dera ter essa firmeza:
de gota em gota construir saberes.
=======================

As rosas, Dafne

As rosas são belas, Dafne, e como,
A quem por deleite só as cultive,
Por prazer apenas!
A quem as cultive, que delas viva,
Não serão tão belas: quanto esforço
Por menores penas!

Sol mesmo ou água de um regato
Não se dão igual a folha e raiz:
Estão, não estão!
Mata uma por falta, outro por demasia;
O tempo se esvai no só cultivar,
E a rosa é pão!

De onde tempo, Dafne, onde o tempo
Para admirá-las brotar, colorir,
Se é mister fazê-las!
O homem, pois, que tem na rosa ofício,
Rosas não vê, senão o que delas tem:
Regá-las n’é tê-las!
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Cicero Galeno Lopes (Enrestando)

Se o senhor toma mate, sirva-se. Se fuma crioulo, sirva-se. Mas esses assuntos não são do meu dia, não há com quem conversar. A gente não pratica, se é que aprendeu algum dia. Até acho que certas falas doem. São como manga de chuva de enxurrada: são de bonança como de malença.

Nessas coisas sou como peixe fora d’água, na terra plana. Não tenho nem como nem que lhe responder. Minha vida é dos arredores. Me esforço no arrimo, como faz o que joga a bocha. Mal sei das coisas que posso e faço. A ciência do saber de tudo é coisa pra estudado. A sabedoria duns como eu é o que disse o Martín Fierro: Deve saber mui poco aquel que no aprendió nada. É ver um bicho, um cachorro. Que pode saber o cachorro senão o que já lhe vem na cabeça, o que lhe está nos instintos, o que a vida da busca faz aprender, por força? O cachorro olha a pessoa passando de calça comprida e pensa que aquilo que se mexe é o próprio que se move. Ele pensa, lá no pensar dele: esse aí é mole, os lados abanando. Ele vê a pessoa passar hoje, amanhã… O mesmo cheiro. Vai preparando a ação, a experiência. Num certo dia, por alguma razão que só cada um é que sabe, ele avança, pega a calça, rasga, tira um pedaço. Pensa: aqui vou eu com um pedaço dele. Era mole mesmo, até mais do que dava pra ver. Aquilo não tem firmeza nenhuma. Aqui vou eu com um pedaço.

A mim me parece – ainda que mal compare – que a gente no mundão é mais ou menos isso. Acha, pensa, examina, confirma. Acha e então proclama: tal coisa é isso, por isso e por aquilo outro. Quem demove? Quem explica que a parte não é o todo?

Senhor deve de pensar: mas é claro que a roupa não é a pessoa. Nós sabemos, mas o cão diz que é. Eu retoco: e por que não seria? Mude a roupa, mude o jeito. Examine. Vá primeiro num auto desses que parece que nem tocam no chão. Depois, pegue uma carrocinha velha, um cavalinho magro suado, ponha roupas de desalinho com remendos e manchas, use chapéu velho desabado ou uma boina ruça ensebada do uso. Experimente os dois modos. Vá ao povo, vá aonde estão as pessoas da cidade, bem vestidas, com tratos de fala, de bancos, de sociedade. Aí o senhor vai confirmar. Ou não? Senhor deve de estar pensando: Claro, você está fazendo como o cachorro da sua história. Eu lhe confirmo: é pelo mesmo conseguinte. Assim é que os homens vêem o mundo, assim escorregamos por esse mundão sem limites. O senhor acha que tem limites? Então o senhor vai me dizer que tem, por isso e por aquilo e outros mais. Eu, querendo ser de acordo com o senhor, vou lhe responder – Sim, senhor. Mas não será. Vou é ficar pensando como o senhor está enganado. Vou ficar com pena do senhor, pensando que acha rastro de pereá no meio das chircas. Aí os rastros são tantos e as marcas tão iguais, que o senhor acaba pensando de novo e se perguntando por que as coisas são tão diversas. Aí eu vou pensar que o senhor é um homem maduro, já combinado com nosso mundo.

Desse modo é que penso. Comadre Matilde, também conhecida por Mazinha, e comadre Zildinha, dita também Ildinha, que tiveram casa montada, aqui do lado, estão sempre, nas tardes, no seu mate. No verão, na sombra das árvores, onde bate vento fresco da lagoa. No inverno, ao lado do fogão a lenha, uma olhando pra outra, conversando das pessoas. Sabe o que dizem? Dizem sempre quase as mesmas coisas. Uma confirma a outra. O senhor desejando, vá ali. Elas recebem bem, são de bom trato, acostumadas. Antes tinham muitos fregueses, bom comércio de divertimentos, bons bailes. Era uma casa alegre, de tangos e boleros, Nélson Gonçalves do Livramento e outros na vitrola, bem alto, até a madrugada. O mundo delas foi quase sempre o mesmo, não dava tempo pra outros pensares. Então isso ficou sendo o mundo pra elas. A perna da calça na boca. O senhor deve agora de estar pensando: Claro, pois só viram isso. Eu lhe afianço: assim também fui eu. Até acho que é assim qualquer que seja. Vou lhe dizer: elas nem são daqui, vieram do Cacequi, ainda moças, quando o trem fazia parada longa pra sopa quente no inverno e pro passeio na estação, nos tempos quentes. Foi aqui que encontraram seu modo de vida. Viram o mundo se mexendo, pararam pra ver melhor como era. O outro mundo, de lá, de antes, não é mais mundo, é como um sonho sonhado, que não se tem onde pegar, por onde se chegar. Sonho se desmancha no tempo. Falar dele como, agora? Falar de que agora? Elas falam das pessoas que foram, das pessoas que passaram, mais perto. É a perna da calça na boca, a confirmação. Demais, ver o que mais, agora? O cachorrinho com o pedaço de pano da calça vai se deitar, ruminar suas certezas, envelhecer sabendo das coisas, sem esperança de outros passantes, porque são todos iguais, todos moles, sem firmeza. Coisas que não importam mais agora, porque o sabido fica guardado, quando se vê na altura das pernas das calças. Se fixe nisso. Que mais vou lhe dizer? Meus pensares se encerram nessas coisas que vejo nos bichos. Neste lugar as pessoas são poucas. Aqui ficam os velhos, as mães e alguns poucos pais, os defeituosos de nascença e do trabalho. Esse pontão de mundo é quase arrodeado de água. O olhar da gente fica enrestado pra um lado só, pra lá da lagoa que se perde de vista. Até os cachorros aqui são por demais de dorminhocos, quem sabe porque vêem sempre as mesmas pessoas passarem e sabem que todos são o que parecem, pra eles.

Fonte:
http://www.msmidia.com/cicero/

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Esquina do Haikai

Osiris Seiler Roriz Sobrinho
Músico, poeta, contista e cronista curitibano.

as sombras compridas
do altivo pinheiral
sob um sol poente

a peonada volta
a velha chaleira chia
a erva na cuia

a peonada apeia
uma chaleira no fogo
água fria no mate

por trás da vidraça
o vai e vem do balanço
a menina olha

café da manhã
fria chuva de inverno
lenha no fogão

vermelho-laranja
como nuvens coloridas
flamboyants em flor

céu todo azul
aragem branda e morna
tarde tropical

duplos arco-íris
num campo de girassóis
quer olhar agora ?

céu anoitecido
eram estrelas cadentes,
ou traços de luz ?

este arco-íris,
quando ainda chovia,
estava dormindo ?
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Sylvio von Söhsten Gama (1923)

Nascido em Maceió (AL), em 25 JUN. 1923. Filho de Arthur Peixoto de Carvalho Gama e Elsa von Söhsten Gama. Casado desde 24 JUN. 1944 com Alba Ramos Costa, que passou a se chamar Alba Costa Gama. Cursos: Escola Militar do Realengo (1943); Escola de Engenharia do Recife (1949). Eleito para a Academia Alagoana de Letras, cadeira 14, em 08 JUN. 2000. Livros publicados: Memória – Vida em história – Histórias da vida. Na Era dos Motorromes. A Fazenda Santa Helena. Eu Acuso. Acontecidos. Crônicas da Vida Militar. Crônicas da Vida Civil. O Bastardo. A Doida. O Revide. O Encontro. A Maquina. Poesias no Espelho. Divagações Poéticas. Poesia Somente. Poesias & Poemas. Poemas Eleitos. Pensamentos Versejados. Conjecturas Versificadas. Mergulhando no Tempo. Miscelânea – Do Hacai à Glosa.

As formigas
Qual seja o caminho!
Labor imposto a terror,
Vazio o ninho.

Longe
Não vejo um alguém.
Vejo a quem não almejo
Aquém do além.

Sabedoria
– Disseram. E era?
Oi! Disseram e inda não foi?
Espera, espera.

Caminhar
Um passo, outro passo!
Indo… Descendo e subindo…
– Demora o abraço.

Saudade
– De alegria? Pouca.
– De pranto carrega um espanto.
– Gostosamente louca.

Tempos
De tudo bem antes!
Do infinito ao finito.
Pequenos… Gigantes…

Flores
Iguais, deslumbrantes.
Quanto ao perfume, no entanto?
Entre si, distantes…

Pescar
Pescar é vitória.
Luta, artimanha, disputa.
Merecendo história.

A sombra
Jamais é perfeita.
Beira apenas ou inteira,
à cama se ajeita.

Fim
Na sala, um velório.
Passado mais que exaltado.
Presente inglório.
======================
Humberto Del Maestro

Nasceu a 27 de março em vitória (ES), onde cursou seus principais estudos. Poeta, contista, cronista, ensaísta, dedica-se também ao teatro e à crítica literária. Possui 32 livros publicados e vários outros em preparo para lançamento, tanto em prosa quanto em verso. participa de mais de duas dezenas de entidade literárias, é detentor de numerosos prêmios, dentro e fora do país. Mantém coluna semanal no jornal Correio Popular de Cariacica (ES), onde aborda autores e livros. É membro da Academia Espírito-santense de Letras.

Praia solitária —
sobre as ondas e a restinga,
vôos de gaivotas.

Seis horas da tarde.
Entre o calor e a penumbra,
bem-te-vis discutem.

Surpresa no bairro:
um bando de galinholas
cantando na rua.

Mangueira florida
ao brando frio da tarde…
Cachinhos de fada.

Apesar do frio,
as buganvílias da rua
permanecem lindas.

Pingente dourado
no colo azul do infinito —
Estrela cadente.

Festival de vida:
as borboletas se amando
no meio da estrada.

Na praia deserta,
uma canoa em ruínas…
Beijos do luar.

Passa o temporal.
Sobre os lírios da lagoa,
a lua resplende.

Carnaval de rua
dos meus tempos de menino —
saudade nos olhos.
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Paula Cury (1969)

Natural de São Paulo (SP), onde nasceu em 09.03.1969. Funcionária pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Trabalhos publicados no tablóide “Café Literário” que circula em São Paulo, Minas Gerais, Portugal e Inglaterra. Faz parte de diversas listas de discussão literária.

Piscam as estrelas
Enquanto dormem os bois
Madrugada fria.

No sertão cai chuva
Sem a semente da vida
Brotam flores secas.

Tão silencioso
Sob a lua esbranquiçada
Mar primaveril

Branca borboleta
Revoando tão baixinho
Sorri margaridas

A flor no chão caída
Cheira como margarida
Perfumando a vida.

Os trilhos do trem
Queimam no sol de abril
Um grilo perdido.

No céu o sol se põe
a lua ilumina o lago
…os sapos coaxam

Semente de trigo
que no solo faz raíz
amadura pão.

Flores no vaso
Toalha branca na mesa
borboletas voam.

Vaga-lumes negros
brincando de pega-pega
iluminam vilas
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Lena Jesus Ponte (1950)

Nasceu em Vitória (ES) em 1950. Reside no Rio de Janeiro (RJ) desde 1951. Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, já lecionou na rede municipal de ensino e no Colégio Pedro II. Atualmente, dinamiza a Oficina da Palavra Luiz Simões Jesus, com Wanderlino Teixeira Leite Netto. Tem 6 livros publicados (Meu Mundo; Revelação; O Corpo da Poesia; Estações Interiores (haicais); Na Trança do Tempo(haicais); e Paçoca: a Foca Que Sonhava em Ser Poeta (infantil), em parceria com o escritor Wanderlino Teixeira Leite Netto).Tem poemas, crônicas e artigos publicados em jornais, revistas, antologias e sites.

O Tempo cochila
em tardes quentes de sol
no banco da praça.

Verão. Praia cheia.
O mar acolhe as sereias
em seus braços verdes.

Inverno. Nas ruas
só fica brincando a chuva:
menina molhada.

De braços abertos
feito uma deusa indiana
a araucária reina.

Pousa a cor na flor.
Um leve ruflar de azul.
Estremecem pétalas.

Sol e girassol.
Contemplação a distância.
Diálogo mudo.

Vem, vai, volta o vento,
excita, arrepia a várzea
e foge fugaz.

Trêmula a paisagem.
As folhas sem agasalhos
tiritam de frio.

Bambuzais ao vento.
A Natureza plagia
telas japonesas.

Arde a caatinga.
Na paisagem desolada
um ninho vazio
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