Arquivo do mês: setembro 2013

José Feldman (Universo de Versos n. 118)

Uma Trova do Paraná

WALNEIDE F. S.GUEDES
 


Trova, essa doce magia,
faz o que o poeta quer,
levando sua alquimia
aonde o leitor estiver.
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Uma Trova sobre a Ecologia, de Belo Horizonte/MG

ARLINDO TADEU HAGEN


Pela imagem desolada
que, após o incêndio, nos resta,
as luzes de uma queimada
são as trevas da floresta!
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Uma Trova do Izo

IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS 1932 – 2013 São Paulo/SP


Perdoa, amor, o meu jeito
de te olhar quando te vejo,
teu olhar me diz… Respeito!,
meu olhar te diz… Desejo!…
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Uma Trova Lírica/ Filosófica de Porto Alegre/RS

DELCY CANALLES


 Há muita gente com fome
 e há tanta riqueza em mim!
 Amazônia   é  o  meu nome.
 Por favor, cuidem  de  mim!
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Uma Trova Humorística, de Juiz de Fora/MG

MESSIAS DA ROCHA


No boteco do Zé Galo
tanto a sujeira se agrupa
que servem bife à cavalo
com mosquito na garupa.
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Uma Trova do Ademar

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN 1951 – 2013 Natal/RN


Lágrimas, fuga das águas
por um riacho inclemente
que numa enchente de mágoas
inunda o rosto da gente!
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Uma Trova Hispânica, da Venezuela

HILDEBRANDO RODRÍGUEZ


Sigo llamando al amor
para que acabe su ausencia;
con su luz y resplandor
alumbrará mi presencia.
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Uma Trova sobre Respeito, de São Paulo/SP

         MARTA MARIA DE O. PAES DE BARROS

 –
Quem, gritando, impõe  respeito
e se julga um grão senhor,  
não vê  que impõe, deste jeito,
não respeito e sim, temor…
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Trovadores que deixaram Saudades

FAGUNDES VARELA
Rio Claro/RJ (1841 – 1875) Niterói/RJ


A mais tremenda das armas,
bem pior que a durindana,
atentai, meus bons amigos…
se apelida: – a língua humana!
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Uma Trova do Príncipe dos Trovadores

LUIZ OTÁVIO

(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ 1916 -1977 Santos/SP


Não digo não: “minha” Trova
quando faço um verso novo:
– não é minha e nem é nova
quando cai na alma do povo…
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Um Haicai de São Paulo/SP

JEFFERSON HENRIQUE MODESTO


Vovô na varanda
Só tem um pensamento –
Mais uma geada!
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Uma Trova da Rainha dos Trovadores

LILINHA FERNANDES
(Maria das Dores Fernandes Ribeiro da Silva)
Rio de Janeiro 1891 – 1981


Meu amor foi acabando …
Mas a saudade chegou:
chuva boa refrescando
o chão que o sol causticou.
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O Universo de Leminski

PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR (1944 – 1989)


madrugada     bar aberto
deve haver algum engano
por perto
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  O Universo das Glosas de Gislaine

GISLAINE CANALES
Porto Alegre/RS

Glosando Amália Max
   SE ME DEIXAS…

MOTE:
SE ME DEIXAS POR VONTADE…
SE VAIS PARA NÃO VOLTAR…
O QUE É QUE EU DIGO À SAUDADE
QUANDO AMANHÃ ACORDAR?

GLOSA
SE ME DEIXAS POR VONTADE…
se amar-me, não podes mais,
sofrerei muito, é verdade.
Não te perdoarei jamais!

Se vais pra longe de mim,
SE VAIS PARA NÃO VOLTAR…
eu já prevejo o meu fim:
chorar… chorar e chorar…

E nessa minha orfandade
de amor, carinho e ternura,
O QUE É QUE EU DIGO À SAUDADE
nesta minha desventura?

Poderei sobreviver
sem fitar teu lindo olhar,
ou sem ele vou morrer
QUANDO AMANHÃ ACORDAR?
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Uma Trova do Rei dos Trovadores

ADELMAR TAVARES
Recife/PE 1888 – 1963 Rio de Janeiro/RJ


A Ventura que hei buscado
pela Vida, sempre em vão,
que vezes não tem passado
à altura de minha mão! …
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O Universo do Haicai de Seabra

CARLOS SEABRA
(São Paulo/SP)


folhas no quintal
dançam ao vento
com as roupas do varal
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O Universo Poético de Emilio

EMÍLIO DE MENESES
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
Curitiba/PR (1816– 1918)

Matina


Noite! Cesse o teu ar imoto e quedo!
Quero manhã! todos os sons que vazas!
Fujam do ninho ao lépido segredo
Todas as bulhas de reflantes asas.

Sol! tu que a terra fecundando a abrasas.
Desce da aurora em raio doce e a medo,
Todas as luzes travessando o enredo
Diáfano e leve das nevoentas gazas.

Telas festivas deslumbrai-me a vista!
Cantos alegres desferi-me em roda
Em toda a luz, em todo o som que exista.

E a natureza toda em harmonia,
Iluminada a natureza toda,
Surja gloriosa no raiar do dia.
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O Universo Poético de Sardenberg

ANTONIO MANOEL ABREU SARDERNBERG
São Fidélis/RJ (1947)

Andarilho


Sou andarilho da vida!
Enfrentando chuva e vento,
Eu sempre estou de partida –
Não gosto de despedida,
Meu teto é o firmamento…

Minha bagagem é a esperança,
A paz o meu alimento,
No embornal levo a lembrança
Do meu tempo de criança
Que não sai do pensamento.

No peito levo a saudade
Daquele abraço apertado,
Daquele sonho dourado
Que virou realidade…

No coração a certeza
De ter trilhado o caminho
Que me ensinou a entender:
É só pisando em espinho
Que o homem aprende a viver.
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O Universo Poético de Cecília

CECÍLIA MEIRELES
(Cecília Benevides de Carvalho Meireles)
Rio de Janeiro/RJ (1901 – 1964) Rio de Janeiro/RJ

Retrato

 –
Eu não tinha este rosto de hoje,
                assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
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O Universo Melódico de Assumpção

MARCOS ASSUMPÇÃO
(Marcos André Caridade de Assumpção)
Niterói/RJ


Eu sou o rei da floresta ,
Tenho a coragem nas mãos
Não temo trovão, trovoada,
Injeção, confusão,
Nem estouro da manada
Eu sou o rei da floresta
Amigo presta atenção,
Eu sou o rei leão
Eu sou o rei da floresta
Não tenho medo nem de avião
Sou mais valente que qualquer
Mocinho, ou herói
De filme de caubói
Agora lá no meio da floresta
Tá na hora da festa
da coroação.

Coragem é o que não me falta
Eu sou o mais valente dos animais
Enfrento o inimigo, não conheço o que é perigo
Todos me temem, eu sou demais
Eu sou o rei da floresta
Tenho a coragem nas mãos
Agora lá no meio da floresta
Tá na hora da festa
da coroação
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O Universo Haicaista de Guilherme

GUILHERME DE ALMEIDA
(Guilherme de Andrade de Almeida)
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

Pacaembu


Chuva e sol. Repara
nas giestas atrás das frestas
das persianas claras.
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O Universo Sonetista de Alma

ALMA WELT
Novo Hamburgo/RS (1972 – 2007)

Viver, pensar


Viver é duro ao se pensar a Vida,
Melhor é não pensá-la e vivê-la.
Mas se não pensada é pura lida
É preciso parar para bem vê-la.

Mas se paramos começamos a pensar
E enxergamos pois o lado escuro
Que é a face da Morte a assombrar
Quanto mais do pensar se faz apuro.

Báh! Pensar e não pensar é impossível
Viver em plenitude é doloroso
Mas não querer sofrer é desprezível.

Pois se não vivemos, só pensamos,
Um gosto fica, assim, meio travoso
De não saber pra quê na Vida estamos…
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Uma Poesia de Belo Horizonte/MG

ANTONIO AGOSTINHO GOMES DE QUEIRÓS

Desenho


 Finda-se o dia.
 Linda! abre-se a noite estrelada.
 Brisa perfumada passeia pela prata;
 Profetisa a chegada da primavera.

 Homens jogam damas;
 Consomem o tempo desfiando tramas.
 Moles mulheres tricotam mazelas;
 Reles fiapos do dia.

 Vida tal qual tartaruga;
 Lida enfadonha, cansativa.
 Qual sentido tem essa vida;
 Tal não fosse acreditá -la?

 Cidade pequena… sem muitas ambições;
 Felicidade aqui ‚ um arco-íris.
 Desconhece as tramas dos grandes centros;
 Acontece, somente!
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O Universo de Francisca

FRANCISCA JÚLIA
1871, Xiririca (atual Eldorado Paulista)/SP – 1920, São Paulo/SP)

A um Artista

– 
Mergulha o teu olhar de fino colarista
No azul: medita um pouco, e escreve; um nada quase:
Um trecho só de prosa, uma estrofe, uma frase
Que patenteie a mão de um requintado artista.

Escreve! Molha a pena, o leve estilo enrista!
Pinta um canto do céu, uma nuvem de gaze
Solta, brilhante ao sol; e que a alma se te vaze
Na cópia dessa luz que nos deslumbra a vista.

Escreve!… Um céu ostenta o matiz da celagem
Onde erra o sol, moroso, entre vapores brancos,
Irisando, ao de leve, o verde da paisagem…

Uma ave banha ao sol o esplêndido plumacho…
Num recanto de bosque, a lamber os barrancos,
Espumeja em cachões uma cachoeira embaixo…
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Velhas Lengalengas e Rimas do Arco-da-Velha Portuguesas

À MORTE NINGUÉM ESCAPA

 –
 À morte ninguém escapa,
Nem o rei, nem o papa,
Mas escapo eu.

Compro uma panela,
Custa-me um vintém,
Meto-me dentro dela
E tapo-me muito bem,
Então a morte passa e diz:
– Truz, truz! Quem está ali?
– Aqui, aqui não está ninguém.
– Adeus meus senhores,
Passem muito bem

http://luso-livros.net/
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O Universo Poético de Quintana

MARIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994)

Alma errada


Há coisas que a minha alma, já mortificada não admite:
assistir novelas de TV
ouvir música Pop
um filme apenas de corridas de automóvel
uma corrida de automóvel num filme
um livro de páginas ligadas
porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo:
espátulas não há… e quem é que hoje faz questão de virgindades…
E quando minha alma estraçalhada a todo instante pelos telefones
fugir desesperada
me deixará aqui,
ouvindo o que todos ouvem, bebendo o que todos bebem,
comendo o que todos comem.
A estes, a falta de alma não incomoda.
(Desconfio até que minha pobre alma fora destinada
ao habitante de outro mundo).
E ligarei o rádio a todo o volume,
gritarei como um possesso nas partidas de futebol,
seguirei, irresistivelmente, o desfilar das grandes paradas do Exército.
E apenas sentirei, uma vez que outra,
a vaga nostalgia de não sei que mundo perdido…
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O Universo de Pessoa

FERNANDO PESSOA
(Fernando António Nogueira Pessoa)
Lisboa/Portugal   1888 – 1935


A terra é sem vida, e nada
Vive mais que o coração…
E envolve-te a terra fria
E a minha saudade não!
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O Universo Poético de Vinicius

VINICIUS DE MORAES
(Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes)
Rio de Janeiro (1913 – 1980)

Balada da Praia do Vidigal


A lua foi companheira
Na Praia do Vidigal
Não surgiu, mas mesmo oculta
Nos recordou seu luar
Teu ventre de maré cheia
Vinha em ondas me puxar
Eram-me os dedos de areia
Eram-te os lábios de sal.

Na sombra que ali se inclina
Do rochedo em miramar
Eu soube te amar, menina
Na praia do Vidigal…
Havia tanto silêncio
Que para o desencantar
Nem meus clamores de vento
Nem teus soluços de água.
Minhas mãos te confundiam
Com a fria areia molhada
Vencendo as mãos dos alísios
Nas ondas da tua saia.
Meus olhos baços de brumas
Junto aos teus olhos de alga
Viam-te envolta de espumas
Como a menina afogada.
E que doçura entregar-me
Àquela mole de peixes
Cegando-te o olhar vazio
Com meu cardume de beijos!
Muito lutamos, menina
Naquele pego selvagem
Entre areias assassinas
Junto ao rochedo da margem.
Três vezes submergiste
Três vezes voltaste à flor
E te afogaras não fossem
As redes do meu amor.
Quando voltamos, a noite
Parecia em tua face
Tinhas vento em teus cabelos
Gotas d’água em tua carne.
No verde lençol da areia
Um marco ficou cravado
Moldando a forma de um corpo
No meio da cruz de uns braços.
Talvez que o marco, criança
Já o tenha lavado o mar
Mas nunca leva a lembrança
Daquela noite de amores
Na Praia do Vidigal.
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Uma Poesia de Portugal

ANTERO DE QUENTAL

No turbilhão


A Jaime Batalha Reis
No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
arrebatado em vastos turbilhões…

Num espiral, de estranhas contorções,
E donde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições…

– Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!…
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O Universo de Auta

Auta de Souza
Macaíba/RN (1876 – 1901) Natal/RN

Prece


Ó Santa estremecida,
Formosa e Imaculada!
Estrela abençoada
Do Céu de minha vida!

Rainha casta e Santa
Das virgens do Senhor,
Eterno resplendor
Que o mundo inteiro encanta.

Tu és minha alegria.
Meu único sorriso,
Ó flor do Paraíso,
Angélica Maria!

Ai! quantas vezes, quantas!
A minha fronte inclina
Orando a ti divina,
Ó Santa entre as mais santas!

Ó virgem tão serena!
Tu és meu sonho doce,
Perfume que evolou-se
De um seio de Açucena!

Amada criatura,
Lança-me estremecido
O teu olhar ungido
De imaculada doçura!

Ó Arco da Aliança,
Celeste e branco lírio,
Salva-me do martírio,
Senhora da bonança!

Envolve no teu véu
A minha triste sorte,
E mostra-me na morte
A porta de teu Céu!
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O Universo Triverso de Millôr 

MILLÔR FERNANDES
(Milton Viola Fernandes)
Rio de Janeiro (1923 – 2012)


Passeio aflito;
Tantos amigos
Já granito.
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O Universo de J. G.

J.G. DE ARAÚJO JORGE
(Jorge Guilherme de Araújo Jorge)
Tarauacá/AC 1914 – 1987 Rio de Janeiro/RJ

Amor: Positivo


A gente sabe que é amor, quando de repente encontra
razões para perdoar o que nunca se perdoou,
quando os mais duros pensamentos são palavras de ternura
fora da boca
– a gente sente, sente
mas não pensa…

Que o diga o meu coração, que deseja ofender-te
e transforma em poesia a minha mágoa imensa.
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Um Soneto

HAROLDO SIQUEIRA

Sinto Saudade


 Sinto saudade de tomar-te aos braços
 E dizer-te palavras de carinho.
 Sinto saudade, agora que sozinho,
 Não tenho mais teus beijos, teus abraços.

 Sinto saudade de estar preso aos laços
 Dessa tua amizade e do “charminho”
 Com que mantinhas vivo o nosso ninho
 De amor… Do qual não restam nem os traços.

 Apesar de saber que não me amavas,
 O meu amor bastava: – Isso pensei…
 E, então mandei o pessimismo “às favas”

 E fui viver o sonho que sonhei.
 -Como redondamente me enganei !
 Era só a saudade, o que “plantavas”
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O Universo do Martelo Agalopado de Prof. Garcia

PROF. GARCIA
(Francisco Garcia de Araújo)
Caicó/RN (1946)


Quando escuto o bramido da procela
e os gemidos do mar, quando se alteia,
eu respeito o furor da maré cheia
e a bravura do mar que se encapela.
Fica mais perigoso o barco à vela
do que a nossa chalana pantaneira,
que é mais leve, mais dócil, mais faceira,
onde as ondas são todas pequeninas,
me lembrando as canoas nordestinas
sossegadas na paz da ribanceira!
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O Universo Poético de Lúcia Constantino

LÚCIA CONSTANTINO
(Maria Lúcia Siqueira)
Curitiba/PR

Quando Ainda Era Dia…


               (a minha mãe Hilda, in memoriam)

Quando ainda era dia
e as nuvens passeavam no céu,
eu ouvia tua palavra,
por mais cansada que estivesses.
Estavas ali com teu coração,
então minha angústia se calava
porque a tua palavra  era prece.

Quando ainda era dia
mas a chuva desmanchava meus sonhos
sempre estavas ali
carregando em teu colo não os teus,
mas os meus abandonos.

Quando ainda era dia
e meu olhar parava nas distâncias
fitando o nada do horizonte
inocentemente me perguntavas
– O que estás vendo tão longe?

Depois a noite desceu
sobre os nossos jardins,
sobre os teus canteiros,
as tuas hortaliças.
O galo não mais cantou.
Os  espinhos sorriram  pra  mim.
A alegria me perdeu de vista.

Aninhou-se  no mais alto da árvore
um pássaro chorando na tarde.
E os anjos te envolveram no ocaso
de tua própria luz
como Verônica envolveu em seu braços
o lenço que roçou o rosto de Jesus.
============================
Uma Poesia Além Fronteiras

EMILY DICKINSON
Estados Unidos (1830 – 1886)


A Dor Tem um Elemento de Vazio

A Dor – tem um Elemento de Vazio –
Não se consegue lembrar
De quando começou – ou se houve
Um tempo em que não existiu –

Não tem Futuro – para lá de si própria –
O seu Infinito contém
O seu Passado – iluminado para aperceber
Novas Épocas – de Dor.

(Tradução de Nuno Júdice)
============================
O Universo de Adélia

ADÉLIA PRADO
(Adélia Luzia Prado Freitas)
Divinópolis/MG (1935)

Explicação de Poesia Sem Ninguém Pedir


Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
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O Universo Poético de Bilac

Olavo Bilac
(Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac)
Rio de Janeiro/RJ (1865 – 1918)

Justiça


Chega à casa, chorando, o Oscar. Abraça
Em prantos a Mamãe.

“Que foi, meu filho?”

—“Sucedeu-me, Mamãe, uma desgraça!
Outros, no meu colégio, com mais brilho,
Tiveram prêmios, livros e medalhas…
Só eu não tive nada!”

—“Mas porque não trabalhas?

Porque é que, a uma existência dedicada
Ao trabalho e ao estudo,
Preferes os passeios ociosos?
Os outros, filho, mais estudiosos,
Pelas suas lições desprezam tudo…
Pois querias então que, vadiando,
Os outros humilhasses,
E que, os melhores prêmios conquistando,
Mais que os outros brilhasses?
Para outra vez, ao teu prazer prefere
O estudo! e o prêmio alcançarás sem custo:
E aprende: mesmo quando isso te fere,
É preciso ser justo!”
============================
O Universo de Carlos Drummond de Andrade

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG (1902 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Nomes


As bestas chamam-se Andorinha, Neblina
ou Baronesa, Marquesa, Princesa.
Esta é Sereia.
aquela. Pelintra,
e tem a bela Estrela.
Relógio, Soberbo e Lambari são burros.
O cavalo, simplesmente Majestade.
O boi Besouro.
outro. Beija-flor
e Pintassilgo, Camarão,
Tem mesmo o boi chamado Labirinto.
Ciganinha, esta vaca; outra. Redonda.
Assim pastam os nomes pelo campo,
ligados à criação. Todo animal
é mágico.
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UniVersos Melodicos

Alcir Pires Vermelho e Lamartine Babo

ALMA DOS VIOLINOS

(valsa, 1942)

Sinto n’alma um violino
Um violino que acompanha
O meu triste adeus
Que vai por trás de uma montanha
Montanha pequenina
Diante dos olhos meus
Meus olhos tão imensos
Oh! Perguntem aos lenços
Quando dizem adeus

Sinto n’alma um violino
Um violino tão sonoro
Que acompanha melodias
Quando eu canto e choro
Eu choro porque os risos
Dei ao meu amor
Meu grande amor
Nestas valsas que eu componho
Vive o meu sonho
============================
Uma Cantiga Infantil de Roda

ANDA À RODA


É uma roda de crianças e uma no meio. A menina do centro canta:

Anda à roda }
Porque quero }
Porque quero }
Me casar } bis

A roda responde:

Escolhei nesta roda
A quem mais vos agradar,
A quem mais vos agradar.

A criança do meio:

Não me serve, não me agrada,
Só a ti, a ti hei de querer,
Só a ti hei de querer.

A escolhida passa a ser a do centro na vez seguinte. E assim por diante.

Fonte:
Veríssimo de Melo. Rondas infantis brasileiras. São Paulo: Departamento de Cultura, 1953.

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O Universo Poético de Feitosa

SOARES FEITOSA
(Francisco José Soares Feitosa)
Ipu/CE (1944)

Adolescíamos


Esta névoa do chocolate
quente;
muito mais, Ela
do que a filha do circo,
bonita:

era um dia, domingo e suas vestes,
enquanto as nossas mães conversavam,
nós nos recostávamos à máquina de costura,

Singer, a velha máquina – se não tínhamos um piano;
quando me dei conta, suavemente eu lhe olhava os cabelos,
que também lhe olhava
rapidamente os olhos calmos.

Se algum gesto foi feito à tesoura
era apenas um disfarce:
nada haveria de nenhum corte.

E se confundem todas as luzes
numa névoa fina
de xícara e cálice:
Mirtes,
adolescíamos.
=====================================
O Universo Poético de Du Bois

PEDRO DU BOIS
Itapema/SC (1947)

Esgotar


Esgotado em gestos
na imobilidade da tela repintada
em cenas: o modelo
imobilizado no olho
do pintor
na mão do escultor
no obturador fotográfico.

O gesto desnecessário
do corpo em aceno de adeuses
e até logo.
==========================
O Universo Acróstico de Motta

SILVIA MOTTA
(Silvia de Lourdes Araujo Motta)
Belo Horizonte/MG (1951)

Quando o Amor Apaga a Chama

Acróstico sob encomenda Nº 5116

Q-Quantas vezes fiquei a observar pares…
U-Um casal fica sempre agarradinho
A-Aos olhares estranhos nos bares;
N-Não se intimidam com o risinho!
D-De outras vezes, no Restaurante
O-O casal calado lê o cardápio;
 –
O-O garçon entende o tom sussurante:
 –
A-Às vezes nem se olham nos olhos…
M-Muitos pagam a conta,sem nada falar!
O-Outros jovens, em grupo flutuante
R-Religam e ligam celulares, sem parar!
 –
P-Palavras não falam, mas bebem!
E-Entre os casais, clássicos amantes,
R-Retribuem beijos, dançam e riem…
D-Dia seguinte, trocam seus pares,
E-E novos amores querem provar!

A-A chama do AMOR quando
 –
C-Consegue ser apagada, não
A-Há fósforo, nem guindaste,
 –
C-Capaz de avivar o amor ardente
H-Humano, nem isqueiro ou pranto,
A-Angústia ou reclamação:
M-Morta a chama, torna-se cinza,
A-As brasas com água tornam-se carvão.
========================
O Universo Poético de Ordones

RAQUEL ORDONES
Uberlândia/MG

É fato
 

E quando aparece o sol, logo me esquento
E na pele acendo o que o coração já sente
Num deleite de vida quase não me agüento
Tapo-me a visão, mas tudo ela compreende.

Deito junto às lembranças de mim, reprises
Minh’alma se espreguiça: presente, passado
Vejo saudade que me chama sob marquises
Fazendo com que o meu céu seja estrelado.

E o ato triste entra em cena, não convidado
Pois é condimento que vem o belo aquilatar
Inda deitada sinto um Deus tudo “aquarelar”.

Abro os olhos… E tudo ao meu redor é fato
Vejo uma felicidade que sobressai a tristeza
As oportunidades me instigam sobre a mesa.
===================
O Universo Poético de Ialmar

IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

O Jogador de Bocha
 

Cancha do jogo de bocha
transformada em tradição,
onde encontro a diversão
para as horas de lazer,
eu não posso te esquecer
e te trago na lembrança
desde quando fui criança
e começava a entender.

Pois até sinto saudade
das façanhas que eu fazia,
quando no braço soerguia
uma bocha e arremessava
num estilo de tuxava
que desfere com certeza,
a boleadeira na presa
e uma clavada na tava.

E mesmo jogando a ponto
sempre fazia por mim,
pois colava no bolim
uma riga ou uma lisa
e como quem não precisa
de seguir por mão alheia,
não provocava peleia:
que briga não dá camisa.

Por estes pagos então,
neste jogo de campanha,
dono de muita façanha,
era muito respeitado,
porque dentro do tablado
que neste verso retrato
jogava até por barato,
nunca apostava fiado.

Outro princípio que trago
desde os tempos de piazote:
quem se atira de garrote
contra touro colmilhudo
e de chifre pontiagudo,
nunca consegue vantagem,
mesmo que tenha coragem
acaba perdendo tudo.

Mas até por passatempo
a bocha tem muita graça,
por um copo de cachaça
ou um maço de cigarro,
que o guasca feito de barro
nesta terra se apresilha
ao moirão de coronilha
do velho pago bizarro.

Hoje os recuerdos me trazem
grandes partidas de bocha
e como uma acesa tocha
certa doença me invade,
queimando barbaridade
no peito meu coração,
quero voltar ao rincão
onde me leva a saudade!

E numa sombra campeira
reviver meu jogo antigo;
e se outra coisa não digo
neste sentimento adverso,
para encerrar o meu verso
minh’alma xucra se plancha
junto ao mistério da cancha
que envolve todo o Universo!…

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Trova 264 – Roberto Pinheiro Acruche (São Francisco de Itabapoama/RJ)

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Clevane Pessoa de Araújo Lopes (Passagem)

A Gonçalves Dias

Poeta -saudoso, agônico, voltas à terra natal
Frágil, trêmulo, febricitante,
Mas com relembranças fortes
A plenificar-te a alma de energia
Embora estejam enfraquecidas as esperanças…
Queres chegar a São Luiz do Maranhão,
Chegar e andar pelas ruas estreitas,
Pelas calçadas de pedras,
Da ilha de praias singulares
Cujo areal extenso
É lambido pelo mar cor de rio,
Cuja extensão vai dar nas terras de Portugal…
Queres rever pessoas, ouvir os sons
Dos sinos das igrejas, da siringe dos sabiás festivos
Que não esqueceste em teu exílio.
A mulher amada acode-te em teu delírio,
a rememória faz-se musa e te inspira versos
que não mais escreverás…
Um piedoso anjo de cristal,que parece orvalho,
Cheirando a rosas e à maresia,
Faz com que olvides as razões de teu martírio
Pela separação cruel e indevida
Da mulher amada…
Que culpa tens por teu sangue a correr nas veias
Brasileiras, é mestiço,a gerar tantos preconceito .

Súbito, a vida se esvai, a breve vida

As águas em movimento, frias ao teu corpo ardente
Sereias de prata conduzem-te ao Absoluto,
O desconhecido –assustador, por ignoto,
Até que se chegue aos portais dessa outra dimensão.
Teu anjo Estelas, que tantas vezes desceu à Terra
para consolar-te e enxugar-te as lágrimas,
ampara-te, e tomando-te pela mão,
leva-te ao gênese de tua essência,,
pelo túnel pleno de magnífica luminescência…
As asas angelicais, energia em movimento,
Criam mil arco-íris deslumbrantes, o que te encanta na passagem…

Percebes que enfim, estás livre
De qualquer sofrimento e provação
Não tens cor-de pele que te torne um rechaçado,
Carne alguma, cuja carnação de mulato
Marque tua destinação!
Nada que te faça um auto-exilado…
Súbito, ouves risos e canções.
Outros poetas estão à tua espera, Gonçalves Dias.
Ajudam-te, dizem-te teus próprios versos e os deles,
Convincentes de que todos os bardos são iguais de alma
Abraçam-te, cordifraternalmente.
Nem em todas as tuas fantasias,
Te imaginaste assim, igual entre iguais,
diferente entre diferentes,
quais o são todas as criaturas de um mesmo Criador…
Percebes que nesse mundo , não há preconceitos
E que aqui, experimentarás um espaço de estar para ser…
Leve, em pianíssimo, , sentindo uma felicidade inusitada
À tua vida antes atribulada, tributada
de preços que não podias pagar,
deixas-te conduzir ,em agonia agora.
Seria o fim, mas é um recomeço
Afinal, poetas não devem morrer
-não se sua Poesia permanecer
Após sua délivrance ao contrário.
Para sempre, teus versos serão lembrados,
Enquanto houver sabiás, enquanto a serpente dormitar
Enroscada no contorno da Ilha .
Teus poemas são o retrato de teu talento,
De teu perfil, de tua história…
O mar foi o derradeiro abrigo de teu corpo.
A alma…continua em expansão!

Fonte:
A autora

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Aparecido Raimundo de Souza (Meu Anjo)

Eu tenho um anjo.

Um ente espiritual que me guarda os passos, que me guia dia e noite onde quer que vá ou esteja. Esse anjo é minha luz sempre acesa, a estrela maior no infinito, o sol mavioso que aquece o meu frio e a água pura e cristalina que mata a minha sede.

Eu tenho um anjo.

Não um desses comuns que se compram nessas lojinhas de R$ 1.99, espalhadas pela cidade, mas um anjo de verdade, com asinhas nas costas, vestida de azul (embora brigue com ela pedindo que use o branco), os cabelos à Jennifer Garner (aquela da série “Aliás”).  Esse meu anjo anda numa carruagem de cristal com dois bonitos cavalos brancos — tão alvos como as nuvens de um céu de brigadeiro. É ela, meu anjo encantado, que todas as manhãs me acorda e toma café ao meu lado. É ela que me faz ajoelhar antes de sair para o trabalho e pedir com a mão direita posta sobre a Bíblia, proteção ao Pai numa oração silenciosa endereçada ao Altíssimo.

Eu tenho um anjo.

Da falange de Jesus, da legião que presta serviços constantes a Deus. Um anjo que lembra Viviane Araújo por causa da sua meiguice, da sua ternura e do seu sorriso constante. Um anjo inteligente como a Carol Trentini que entende de moda e chega a arriscar alguns palpites nas roupas que devo usar. Eu tenho um anjo, tenho sim, um anjo autônomo, perfeito, incansável, senhora de si, cabeça feita. Vive a proteger minha vida, quer seja na rua, no trânsito, no carro, dentro da condução. Um anjo que caminha lado a lado, que marcha ombro a ombro, que segue comigo, de mãos dadas, um anjo que me desvia da estrada ruim evitando que siga em frente e caia num precipício sem volta.

Pois é: eu tenho um anjo.

Um anjo, eu tenho, acreditem. Um anjo de luz intensa. É ela que enfrenta, em meu lugar, as balas perdidas, que se põe à frente dos malfeitores e dos assaltantes que tentam cruzar meu caminho. É ela que, igualmente, me orienta, protege, vigia, aconselha, ensina, governa e dirige os meus passos. É também esse meu anjo bom, essa criatura com poderes divinos, que me ampara nas viagens longas e não me perde de vista um minuto sequer — mesmo quanto baixinho, lhe implore, que me espere, do lado de fora, no corredor. Meu anjo é bonito. Seu rosto não me parece com ninguém conhecido, embora diga a ela, de vez em quando, ter uma leve aparência com a Sabrina Petraglia.

Quando isso acontece, ela se limita a sorrir e ralhar com ares maternais, observando que deixe de lado as bobagens, que amadureça e encare com mais seriedade o viço que me cerca. Foi com esse anjo que aprendi a comer a fondue de carne em garfos compridos, mergulhados na panela de óleo quente. Com ela conheci o verdadeiro sentido da paz, pois o meu anjo é todo feito de Paz!

O meu anjo tem os traços de Jesus, age como Ele, e, como tal, caminha comigo em direção à felicidade que procuro a cada nova manhã, para mudar de uma vez para sempre os destinos da minha vida.

Eu tenho um anjo!

Fontes:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

Imagem = Gisele Santos da Silva

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Rita Rocha (À Chegada da Primavera)

Do ano, uma encantadora fração
no cenário nova vestimenta
a Primavera vem falar aos corações
e aos nossos sonhos… acalenta.

É o esvoaçar das aves, é a floração…
se estendendo em opulência.
É no milagre da renovação
alegrando a terra e nossa vivência.

É encantamento em profusão
no esbanjar d`um róseo colorido
num pôr-do-sol temos a sensação
de que o Pai está ali… refletido.

Primavera não é apenas mais uma estação
é o sentir da vida, é encanto, é magia,
é a natureza em perfeita comunhão
que ao ser humano só traz alegria.

Santo Antônio de Pádua, 24/09/2013


Fonte:
A autora

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Folclore dos Estados Unidos (Origem da Terra dos Haida)

O corvo saiu da Terra e escalou o céu, causando grande confusão entre o Povo Celestial. Por isso, eles acabaram jogando ele nas águas.

Antes dos dias de nossos avós não havia nada, além de água. Era tudo água, com exceção de um único recife. Lá viviam seres sobrenaturais.  Mas eles ficavam todos amontoados. O corvo voou tentando arrumar um lugar onde pudesse ficar de pé,  mas ele não podia imaginar aonde.

Então ele olhou para o céu. Era sólido. Era tão lindo e o corvo estava fascinado por ele. Ele disse: “vou até lá!”, então ele correu o bico pelo céu e o escalou.

Ele viu que a Cidade dos Céus era um lugar bem grande. O chefe vivia lá e na casa do chefe havia um bebê.  Quando a noite chegou,  o corvo pegou o bebê pelo calcanhar e balançou os ossos para fora. Então ele vestiu a pele e fingiu que era o bebê.  Porém, mais tarde ele saiu da pele do bebê e virou corvo novamente.  Ele voou de casa em casa e fez muita bagunça. Enfim uma mulher o viu e avisou para todos.

Então o chefe reuniu sua gente e eles cantaram uma canção para o corvo. Era uma canção mágica, e no meio da canção o corvo deixou de se segurar, e caiu do Cidade dos Céus até que atingiu as grandes águas;

Então o berço ficou a deriva nas águas por um bom tempo. O corvo chorou, então ele mandou a si mesmo que dormisse, mas quando o corvo dormiu, alguma coisa disse: “Seu poderoso pai manda você entrar”. O corvo se recobrou rápido. Ele olhou em direção ao som, mas não viu nada, não havia coisa alguma ali. Logo a voz repetiu as palavras.

Corvo olhou através do buraco em seu lençol de pele de marta. Então, através das águas veio um mergulhão dizendo, “Seu poderoso pai diz para você entrar!”.

O corvo desceu pelo totem até chegar a uma casa submersa, onde encontrou o Homem Gaivota, seu pai. Figura: Totem de uma casa Haida.

O corvo se levantou. Seu berço estava indo ao encontro de uma grande alga marinha. Ele caminhou sobre ela, e olhem! Na verdade era um totem de duas cabeças feito de pedra. Quando o corvo desceu, descobriu que ele podia respirar tão facilmente quando no ar acima.

Abaixo do totem havia uma  casa. Alguém disse, “venha, entre meu filho, eu ouvi falar que você quer emprestar algo de mim”. O corvo entrou. No fundo da casa estava sentado um velho Homem Gaivota (1). O ancião mandou ele até uma caixa que estava pendurada em um canto. O corvo a abriu e tirou de dentro dois grandes pedaços de alguma coisa. Uma era preta e a outra estava coberta com pontas brilhantes.

O Homem Gaivota pegou os dois pedaços e mostrou para o corvo. Ele disse. “coloque este pedra pontuda na água primeiro, e depois coloque a preta. Então tire um pedaço de cada e cuspa fora e os pedaços vão se reunir;” assim ele falou.

Quando o corvo saiu, ele colocou o pedaço preto na água primeiro. Quando ele bicou um pedaço da pedra com pontos brilhantes e jogou na água, as pontas se juntaram novamente. Ele não fez como tinha sido orientado. Então ele voltou para a pedra preta, bicou e cuspiu fora de novo. Os pedaços ficaram presos. Então eles começaram a se transformar em terra. Ele colocou isso na água, e isso se esticou até se tornar a terra dos Haida (2). Do outro pedaço ele fez o continente.
———————
Notas:
(1)
Para os haida, os animais são seres muito poderosos, que podem se transformar a seu bel-prazer, provavelmente o homem gaivota deveria ser uma gaivota que no momento estava assumindo a forma humana.

(2)
A tribo haida é um tribo norte-americana, cujos territórios se estendem desde os Estados Unidos até o Canadá. A nação é dividida em clã das Águias e clã dos Corvos. Eles são hábeis em construir canoas e outras tribos sempre tiveram medo de guerrear com eles no mar.
Fonte:
JUDSON, Katherine B. Myths and Legends of British America. 1917.
Texto em portugues obtido em http://casadecha.wordpress.com

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Ciranda da Primavera (Seleção por Simone Borba Pinheiro) Parte 3

DETH HAAK
Ao tempo …

 Chegando Lírica a Primavera
 Bordando de Flores os sonhos
 Tramando corrimões pra chegar
 Ao mar que remexe risonho…

 Cortejando a janela um lindo
 Quadro suponho…
 Nas velas que sopram a brisa
 O olor das Açucenas vindo.

 É mágico! O tempo de sonhar
 Estrelas ornamentadas
 Brilhando pro farol ofuscar
 No valsar das samambaias…

 A musica a se despedir do verão
 Que amarelou suas folhas,
 Que hoje destilam o verdejar
 No serenar da maresia o tom…

 Das Petúnias Cravíneas, a canção
 Que ao horizonte embala e matiza
 Dando vida as cores na emoção,
 Que esparge o Vento…

 As sementes que espocam ao ver
 O vergel enamorado a engalanar
 A Primavera que chega do mar
 Em guirlandas de conhas no SER;

 A arte pincela o terno entardecer
 Que abraça a noite saudando o dia
 Que explodirá em Flores ao amanhecer
 Orvalhado as pétalas da Poesia…
———————————
EFIGÊNIA COUTINHO
Festa das Flores

 Que alegria naquelas flores
 que perfume de juventude!
 Viva!…Viva!…Venha dançar
 nesta Festa das Flores…

 As Flores vêem anunciar a
 a ressurreição da natureza.
 E cantam a canção colorida
 e sorriem aos raios do astro sol.

 Cantam um dia, uma hora, e
 depois inclinam a cabeça,
 deixando que outras Flores
 se abrem á Luz da vida…

 Pra que nunca seja quebrada
 a grinalda das cores e dos
 Perfumes…Que Alegria nesta
 dança das Flores na vida!
————————–
ERMÍNIA (BEL-BA)
Primavera

 É quando a vida se abre como uma flor
 E em seus braços meu corpo inerte
 Deitado sobre a relva macia
 Numa manhã de setembro
 Vive sem pudor
 O amor….
————————
FAFFI (SÍLVIA GIOVATTO)
Amadurecer Florindo

 A maturidade no amor
 não é uma equação matemática,
 agindo racionalmente, ela chega… e
 fica no seu cantinho…
 Nem é preciso ser valente e forte,
 mas é bom tomar cuidado com o bichinho do ciúme,
 esquecer as desigualdades conjugais…
 e meter na cabeça que o amor não é só um sentimento,
 é uma escolha de vida a dois…
 Nunca confundir maturidade com comodidade,
 precisamos estar sempre investindo no amor..
 mudar hábitos, trocar carinhos,
 nunca deixar que o amor vire rotina…
 Só assim ele amadurece florindo,
 e fica durável por tempo indeterminado.
—————-
FAFFI (SÍLVIA GIOVATTO)
Primavera

 A estação do amor está chegando
 a primavera está no ar…
 No ar que passa
 No ar que respiro
 No ar que te vejo passar
 As árvores se enfeitam,
 as folhas ganham um verde de esperança,
 mais forte, mais brilhante, mais vibrante…
 A calmaria está no ar!
 é a primavera chegando,
 estação da paz, estação do amor,
 as flores vão começar a desabrochar a colorir a vida…
 O sol vai chegar mais cedo
 esquentando a terra, desabrochando a Rosa…
 é o amor chegando…
——————–
FERNANDO REIS COSTA
O Poeta e a Primavera

 Começa a Primavera… E que alegria!
 Abrem-se os corações, brotam as flores,
 E os poetas, nas canções da poesia,
 Mais inspirados estão com seus amores!…

 Cantam mais alto, em verso, os seus louvores!
 E aos seus amores, em grande apologia,
 Doam versos em forma de flores
 De toda a Primavera deste dia!

 Renasce a Primavera! E, na poesia,
 Os cânticos d’amor e de saudade!
 E quanta dor e pranto, e nostalgia…

 O poeta transforma em alegria
 Nos versos d’amor e d’amizade
 Da sua Primavera: – a Poesia!…
——————————
GISLAINE CANALES
 

Primavera
 Glosando P. de Petrus

 MOTE:
 A primavera vem vindo!…
 Há festas, risos e amores…
 é deus que chega sorrindo
 pelo sorriso das flores…

GLOSA:
 A primavera vem vindo,
 perfumada e colorida,
 e o inverno vai fugindo
 em sua louca corrida!

 Nessa gostosa estação,
 há festas, risos e amores,
 que servem de inspiração
 aos poetas trovadores!

 Tudo é mais que muito lindo
 na inigualável beleza…
 É Deus que chega sorrindo
 nas flores da natureza!

 A Primavera nos traz
 numa imensidão de cores,
 a felicidade e a paz
 pelo sorriso das flores…
——————–
GLADYS OVADILLA
Primavera

 La primavera sonriente
 Detrás de los árboles verdes,
 Mirando maravillada,
 La juventud para verte,
 Se acuesta con su hermosura,
 Llena de tules y flores,
 Danza como una diosa
 En el rincón de las rosas,
 El viento se envaneció
 Callo sus fuertes soplidos,
 Encontró la primavera
 Estaba sola en el camino,
 La miro muy suavemente,
 Ella no quiso confianza, y el
 Regreso por donde vino,
 Todos ocuparon sus lugares,
 El agua corrió por el rió,
 Los peces encandilaron el día,
 Se movía mi canoa de madera
 Sintiendo el perfume en el aire,
 Llego, llego, la primavera

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

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Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 3 – O passarinho-ninho

A resposta foi um “Aqui!” vindo do pomar. Correndo no rumo da voz, a menina encontrou Emília tão entretida com um passarinho que nem sequer a olhou. Estava afundando as costas dum tico-tico. Todos os passarinhos têm costas “convexas”, isto é, arredondadas para cima. Emília estava fazendo um passarinho de costas “côncavas”, isto é, com um afundamento redondo nas costas. A Rã ficou a olhar para aquilo sem entender coisa nenhuma, até que Emília explicou.

– Estou fazendo o passarinho-ninho. A boba da Natureza arruma as coisas às tontas, sem raciocinar.

Os passarinhos, por exemplo. Ela os ensina a fazer ninhos nas árvores. Haverá maior perigo? Os ovos e os filhotes ficam sujeitos à chuva, às cobras, às formigas, às ventanias. O ano passado deu por aqui um pé–de-vento que derrubou o ninho deste tico-tico, ali da minha pitangueira – e lá se foram três ovos tão bonitinhos, todos sardentinhos. E mais uma vez me convenci da “tortura” das coisas. Comecei a reforma da Natureza por este passarinho.

A Rã não entendeu que reforma era aquela e perguntou:

– Para que esse afundamento aí nas costas do tico-tico?

– Pois é o ninho – respondeu Emília. – Faço o ninho dele aqui nas costas e pronto. Para onde ele for, lá vão também os ovos ou os filhotes – e não há perigo de cobra, nem de ventania, nem de chuva.

– De chuva há – disse a Rãzinha. – Nos ninhos em árvores a fêmea está sempre em cima dos ovos.

Mas aí…

Emília fez um muxoxo de superioridade.

– Já previ todas as hipóteses – disse ela. – Faço a caudinha dele bem móvel, de modo que possa virar para trás e cobrir os ovos quando for preciso, como se fosse um telhadinho.

A Rã deu-se por satisfeita e com a maior atenção acompanhou o preparo do primeiro passarinho ninho do mundo.

– Pronto! – exclamou Emília por fim. – Passam só os ovos. Corra ali e me traga o tico-tico fêmea que está na gaiola.

A Rã foi e trouxe o passarinho. Emília pegou-o com muito jeito e espremeu-o de modo que saíssem três ovinhos sardentos, os quais depositou com muito cuidado no ninho de penas feito nas costas do tico-tico macho – e soltou os dois, pelo ar.

Emília estava radiante.

– Lá se foram! – exclamou. – Acabaram-se as inquietações, os medos de cobra, formiga ou vento. E também se acabou o desaforo de todo o trabalho de botar e chocar os ovos caber só à fêmea. Os homens sempre abusaram das mulheres. Dona Benta diz que nos tempos antigos, e mesmo hoje entre os selvagens, os marmanjos ficam no macio, pitando nas redes, ou só se ocupam dos divertimentos da caça e da guerra, enquanto as pobres mulheres fazem toda a trabalheira, e passam a vida lavando e cozinhando e varrendo e aturando os filhos. E se não andam muito direitinhas, levam pau no lombo. Os machos sempre abusaram das fêmeas, mas agora as coisas vão mudar. Este tico tico, por exemplo, tem que tomar conta dos ovos. A fêmea fica com o trabalho de botá-los, mas o macho tem que tomar conta deles.

– Mas assim os ovos não chocam – objetou a Rãzinha.

– Para que choquem é preciso que as fêmeas fiquem uma porção de dias sentadas sobre eles. As galinhas levam 21 dias no choco.

– Já “previ a hipótese” – disse Emília – e reformei esse ponto. No meu sistema de passarinho ninho quem choca não é a fêmea e sim o sol, como acontece com os ovos dos jacarés, tartarugas, lagartixas e cobras.

– E quando não houver sol? Às vezes passam-se dias sem o sol aparecer.

– Nesse caso os ovos que tenham paciência e esperem que o sol apareça. Para que pressa?

A Rã não teve mais nada a dizer. Estava certo. Só então é que Emília se lembrou de cumprimentá-la e saber como iam todos lá da casa. Também lhe examinou as mãos para ver se as unhas estavam de luto.

E fê-la voltar-se de perfil e de costas, e dar três pulos. Era a primeira vez que as duas se encontravam pessoalmente.

– Estou gostando do seu físico – disse Emília no fim do exame. – Tive medo de que não correspondesse à idéia que fiz. Muitas vezes a gente imagina uma pessoa e sai o contrário.
–––––––––––-
continua…

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3.º Concurso de Quadras Populares do Clube da Simpatia/2013 (Prazo: 30 de novembro)

Ao concurso podem concorrer com quadras inéditas e obrigatoriamente escritas em língua portuguesa, todos os cidadãos, maiores de 16 anos, sócios ou não do Clube da Simpatia e que respeitem o “caráter” proposto.

O concurso é quadrimestral e só serão válidas as quadras enviadas pela Internet.

Será enviada só (1) uma quadra a qual terá de ser em redondilha maior, (sete sílabas) de rima ABAB (lírica ou filosófica).

Para este 3.º concurso de 2013 é válida a letra – ( M ) –

A palavra é escolhida pelo concorrente, mas tem que começar por ( M ), pode estar escrita em qualquer lugar dos quatro versos da quadra e ter qualquer forma gramatical, no entanto, não pode haver a repetição da palavra escolhida, nem mais nenhuma começada por ( M ).

Haverá 5 vencedores aos quais serão enviados, através da Internet, os respectivos diplomas que levam a quadra inscrita.

Haverá ainda 10 menções honrosas cujos poetas vão também receber os respectivos diplomas.

A quadra, onde constará o nome do autor, e-mail e morada, será enviada, para:

clubedasimpatia-algarve@sapo.pt

O prazo para o envio das quadras termina no dia 30 de novembro de 2013.

Os resultados serão publicados no último dia do mês de dezembro de 2013 no Blogue do Clube da Simpatia:

http://clubedasimpatia.blogspot.com

Os vencedores serão avisados por e-mail.

Fonte:
Clube da Simpatia

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XIII Concurso Nacional PoeArt de Literatura – 2013 (Prazo: 20 de Outubro)

HOMENAGEM A UM RENOME DE NOSSA LITERATURA
 
Inscrições até o dia 20 de outubro de 2013

(Preferencialmente pela INTERNET ou pelos Correios)

A PoeArt Editora institui o XIII Concurso Nacional PoeArt de Literatura – 2013 (depois do sucesso dos primeiros, que resultaram nas Antologias Poéticas de Diversos Autores, Vozes de Aço, do volume I ao volume XIV e das Coletâneas Século XXI, volumes I, II, III e IV – que homenageia a grande poeta Olga Savary pelos seus 80 anos de vida), para premiar autores de ambos os sexos, maiores de dezoito anos, amadores ou profissionais, somente residentes no país, nas categorias: Poesia Verso Livre e Soneto, em língua portuguesa, tendo como objetivo principal a descoberta de novos autores e o intercâmbio cultural entre os participantes.

Ao efetuar a sua inscrição, o autor estará concordando com as regras do Concurso, e, se selecionado, autorizando a publicação dos trabalhos no livro Vozes de Aço – XV Antologia Poética de Diversos Autores – 2013. Em caso de cópia indevida e demais crimes previstos na Lei do Direito Autoral, será responsabilizado judicialmente.

Tema e Apresentação:

– O tema é livre em ambas as categorias.

– Cada autor poderá inscrever até três OBRAS por categoria, cada uma em uma página, inéditas ou não, máximo de até 30 versos cada – as que se excederem e tiverem erros serão desclassificadas -, fonte Times New Roman, corpo 12, digitadas somente em um dos lados da folha, onde deverá constar o título de cada poesia. Não é necessário pseudônimo. Se for enviar pelos correios:

– Uma via de cada trabalho, no mesmo envelope, mais um CD com as poesias gravadas e uma foto de perfil recente em alta resolução.

– Em anexo um envelope menor, lacrado, sem qualquer identificação do lado de fora, contendo:

– Nome completo, nº do RG, nome do concurso, títulos dos trabalhos, endereço completo, dados biográficos

(no máximo dez linhas), telefone e e-mail.

– As obras que chegarem sem esses dados não serão consideradas inscritas.

– Todos os trabalhos enviados (selecionados ou não) serão incinerados, após a divulgação do resultado.

Forma de Inscrição:

As obras deverão ser enviadas (preferencialmente pela INTERNET para: poearteditora@gmail.com) ou pelos correios, para: PoeArt Editora: Caixa Postal: 83967 – Cep: 27255-970 – Volta Redonda – RJ.

Premiação:

Os cinco melhores poemas de cada categoria serão publicados sem qualquer ônus no livro Vozes de Aço – XV Antologia Poética de Diversos Autores – 2013 e cada um dos cinco autores de cada categoria premiados receberão 3 exemplares da obra pelos direitos autorais, diploma e sua foto no livro.

Os demais autores concorrentes serão convidados a participar do livro pelo sistema de cooperativismo.

APOIADORES CULTURAIS: Grêmio Barramansense de Letras, Academias de História e Letras de BM, TEATRO GACEMSS, A imprensa escrita e virtual, Vitor Contabilidade, Gráfica Drumond, Colégio Garra Vestibulares, Câmara Municipal de Volta Redonda, Reprográfica Barrense DENTRE OUTROS…

Jean Carlos Gomes / Organizador e Editor Contatos: 24 – 9993-0615 | 33457252
SOMENTE à Noite

E-mail: poearteditora@gmail.com http://poearteditora.blogspot.com
http://www.olhovivoca.com.br/colunistas/jean-carlos-gomes/

Fonte:
Clevane Pessoa

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Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : Hino à Preguiça)

…     Viridi projectus in antro…
Virgilio

Meiga Preguiça, velha amiga minha,
Recebe-me em teus braços,
E para o quente, aconchegado leito
Vem dirigir meus passos.

Ou, se te apraz, na rede sonolenta,
À sombra do arvoredo,
Vamos dormir ao som d’água, que jorra
Do próximo rochedo.

Mas vamos perto; à orla solitária
De algum bosque vizinho,
Onde haja relva mole, e onde se chegue
Sempre por bom caminho.

Aí, vendo cair uma por uma
As folhas pelo chão,
Pensaremos conosco: — são as horas,
Que aos poucos lá se vão. —

Feita esta reflexão sublime e grave
De sã filosofia,
Em desleixada cisma deixaremos
Vogar a fantasia,

Até que ao doce e tépido mormaço
Do brando sol do outono
Em santa paz possamos quietamente
Conciliar o sono.

Para dormir à sesta às garras fujo
Do ímprobo trabalho,
E venho em teu regaço deleitoso
Buscar doce agasalho.

Caluniam-te muito, amiga minha,
Donzela inofensiva,
Dos pecados mortais te colocando
Na horrenda comitiva.
O que tens de comum com a soberba?…
E nem com a cobiça?…
Tu, que às honras e ao ouro dás as costas,
Lhana e santa Preguiça?

Com a pálida inveja macilenta
Em que é que te assemelhas,
Tu, que, sempre tranqüila, tens as faces
Tão nédias e vermelhas?

Jamais a feroz ira sanguinária
Terás por tua igual,
E é por isso, que aos festins da gula
Não tens ódio mortal.

Com a luxúria sempre dás uns visos,
Porém muito de longe,
Porque também não é do teu programa
Fazer vida de monge.

Quando volves os mal abertos olhos
Em frouxa sonolência,
Que feitiço não tens!… que eflúvios vertes
De mórbida indolência!…

És discreta e calada como a noite;
És carinhosa e meiga,
Como a luz do poente, que à tardinha
Se esbate pela veiga.

Quando apareces, coroada a fronte
De roxas dormideiras,
Longe espancas cuidados importunos,
E agitações fragueiras;

Emudece do ríspido trabalho
A atroadora lida;
Repousa o corpo, o espírito se acalma,
E corre em paz a vida.

Até dos claustros pelas celas reinas
Em ar de santidade,
E no gordo toutiço te entronizas
De rechonchudo abade.

Quem, senão tu, os sonhos alimenta
Da cândida donzela,
Quando sozinha vago amor delira
Cismando na janela?…

Não é também, ao descair da tarde,
Que o vate nos teus braços
Deixa à vontade a fantasia ardente
Vagar pelos espaços?…

Maldigam-te outros; eu, na minha lira
Mil hinos cantarei
Em honra tua, e ao pé de teus altares
Sempre cochilarei.

Nasceste outrora em plaga americana
À luz de ardente sesta,
Junto de um manso arroio, que corria
À sombra da floresta.

Gentil cabocla de fagueiro rosto,
De índole indolente,
Sem dor te concebeu entre as delícias
De um sonho inconsciente.

E nessa hora as auras nem buliam
Nas ramas do arvoredo,
E o rio a deslizar de vagaroso
Quase que estava quedo.

Calou-se o sabiá, deixando em meio
O canto harmonioso,
E para o ninho junto da consorte
Voou silencioso.

A águia, que, adejando sobre as nuvens,
Dos ares é princesa,
Sentiu frouxas as asas, e do bico
Deixou cair a presa.

De murmurar, manando entre pedrinhas
A fonte se esqueceu,
E nos imóveis cálices das flores
A brisa adormeceu.

Por todo o mundo o manto do repouso
Então se desdobrou,
E até dizem, que o sol naquele dia
Seu giro retardou.
+
E eu também já vou sentindo agora
A mágica influência
De teu condão; os membros se entorpecem
Em branda sonolência.

Tudo a dormir convida; a mente e o corpo
Nesta hora tão serena
Lânguidos vergam; dos inertes dedos
Sinto cair-me a pena.

Mas ai!… dos braços teus hoje me arranca
Fatal necessidade!…
Preguiça, é tempo de dizer-te adeus,
Ó céus!… com que saudade!

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Vocabulário de termos e expressões regionais e populares do Centro Oeste (Mato Grosso e Goiás) F, G, H, I e J

FAISQUEIRO — Garimpeiro de ouro; catador de faíscas de ouro em lavras velhas.

FASES-DA-LUA — O sertanejo anda pelas fases da lua. Os barreiros das olarias são sangrados na minguante. Extrai-se madeiras, para não carunchar ou apodrecer, na minguante. Na nova faz-se plantações e muda-se de casa (se fôr dia de sexta-feira). Quatro dias depois de lua-nova, castram-se porcos e bois. Até remédios e negócios aguardam as determinadas fases da lua. .

FIÚZA — Confiança pouco justificável em alguém, ou em algo.

FOBA — Ruim: precipitado.

FÔLHA-DE-COUVE — Nota de quinhentos cruzeiros.

FOLIA — Bando de ociosos devotos que percorrem as roças pedindo esmolas para festas de igreja, levando consigo bandeira “benta” e charanga. “Folia do Divino…”

FORNALHA — Fornalha é mais usado como termo industrial: boca de forno.

FRUITA — Jabuticaba.

FULMINANTE — Espingarda de carregar pela boca.

FUNDURA — Profundidade. Também se usa em sentido extensivo. “Não me meto em tais funduras…”

FUZIL — Pedaço de aço, com que se fere a pedra de isqueiro para tirar fogo.

G

GAMBIRAR — Barganhar; fazer trocas. No sertão faz-se mais gambiras que mesmo negócios a dinheiro.

GÁS — Querosene.

GÁSTURA — Mal estar; perturbação gástrica; opressão do peito.

GAZO — Olho branco. “Cavalo gazo…” de olhos brancos.

GERAIS — Vegetação homogênea.

GIRAU — Cama, mesa, prateleira de paus roliços.

GODERAR — Olhar gulosseimas, cobiçando-as.

GODÓ, GODO — Água viscosa, lamacenta, ou coisa que se lhe assemelhe.

GOIACA — Cinta larga de couro, com diversas divisões para documentos e dinheiro; capa do revólver e baleira. A côr preferida pelos boiadeiros é sempre a amarela. Var. Guaiaca.

GORGULHO — Cascalho; particularmente seixos de tapio-canga decomposta.

GORINO — Lugarejo de romaria.

GRAXA — Engraxar o encarregado do negócio: soltar dinheiro por fora.

GRITALHADA — Gritaria.

GUAMPO — Copo feito de chifre, usado em viagem.

GUANXUME — O mesmo que coivara ou emaranhado de mato.

GUARIROBA — Espécie de coqueiro que fornece um palmito amargoso, muito apreciado.

GUATAMBU — Pequeno arbusto de tronco reto, especial para cabos de ferramentas, como enxada, enxadão, foice etc.

GUMERIM, GUAMIRIM — Fruta roxa que dá nos barrancos dos rios, caindo, quando madura, dentro d’água, cevando pacus e piaus. Tem o diâmetro de uma cereja de café.

H

HO — Marca de revólver muito usado no sertão. O Schmidt é mais afamado, mas poucos podem ter um Schmidt.

I

INDACAS — “Procurar inda-cas”: pretexto para arengar ou brigar.

INGÁ — Fruto do ingàzeiro, de gosto adocicado e muito apreciado pelas crianças; vende-se nas feiras. Serve para iscar anzol para peixes de escamas.

INZONAR — Ser moroso no trabalho; procurar pretexto fútil para se esquivar do trabalho.

INZONEIRO — Malandro; mole; que perde tempo em futilidades.

ISCA — Acendalha de algodão queimado, de que se enche a binga.

J

JACUBA — Farnel de rapadura e farinha, socadas em pilão.

JARDINEIRA — Ônibus, diligência, auto para transporte de passageiros.

JAÚ-DE-CAMA — Um dos maiores peixes de couro de agua doce mora enlocado nas pedras, onde faz a sua cama (de pedras).

JIRISA — Ojerisa.

JUÇARA — Pêlos finos, duros e espinhosos que cobrem frutos, folhas ou caules. “Juçaras de gravatas”.

Fonte:
Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. . Ed. Literat. 1962

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José Feldman (Universo de Versos n. 117)


Uma Trova do Paraná

VANDA ALVES DA SILVA
Curitiba

Não se ata  pelas algemas,
mazelas ao cidadão,
que enfrenta  tantos dilemas
doando vida à  nação.
============================
Uma Trova sobre Saudade, do Rio de Janeiro

ANIS MURAD

Maria, só por maldade,    
deixou-me a casa vazia…  
Dentro da casa: saudade! 
E na saudade: Maria!       
============================
Uma Trova do Izo

IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS 1932 – 2013 São Paulo/SP

Partir  é quase morrer…
é deixar na despedida
um pouco do próprio ser
e muito da própria vida!
============================
Uma Trova Lírica/ Filosófica, de Juiz de Fora/MG

CEZÁRIO BRANDI FILHO

Se os elos de nossos braços,
não mais se unirem na vida,
seremos sempre pedaços
de uma corrente partida.
============================
Uma Trova Humorística, de São Paulo/SP

JAIME PINA DA SILVEIRA

Olha lá…não te machuques!
És rico, mas tens oitenta!
E…ela…vinte! Quais os truques?…
– Menti que tinha noventa!
============================
Uma Trova do Ademar

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN 1951 – 2013 Natal/RN

Lágrimas, águas em fugas,
que num trajeto indolente,
deixam escritos nas rugas,
os sofrimentos da gente…
============================
Uma Trova Hispânica, do México

CRISTINA OLIVEIRA CHÁVEZ

 No es no querer perdonar
la deserción de mi padre,
es que no puedo olvidar
las lágrimas de mi madre…
============================
Uma Trova sobre Respeito, de Ribeirão Preto/SP

RITA MARCIANO MOURÃO

      No lar que me fez honrado,
     ante os conceitos de espaço,
     o respeito era sagrado,
     mesmo que o pão fosse escasso!
============================
Trovadores que deixaram Saudades

ROBERTO FARIA DE MEDEIROS
Juiz de Fora/MG (1923 – 1995)

Não há criança vadia …
E as que esmolam a teus pés
são anjos que Deus envia
para saber quem tu és.
============================
Uma Trova do Príncipe dos Trovadores

LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ 1916 -1977 Santos/SP

Não desejo nem capela
nem mármore em minha cova…
Apenas escrevam nela
pequenina e humilde Trova…
============================
Um Haicai de São Paulo/SP

JOSUÉ ROODER SALOMÃO

Manhã de geada
Sob o banco da pracinha
Cão todo enrolado
============================
Uma Trova da Rainha dos Trovadores

LILINHA FERNANDES
(Maria das Dores Fernandes Ribeiro da Silva)
Rio de Janeiro 1891 – 1981

Para rimar com teu nome,
que é do céu a obra-prima,
mãe, não existe um vocábulo!
Nem mesmo Deus achou rima.
============================
O Universo de Leminski

PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR (1944 – 1989)

ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor

só doer
não é dor
delícia
============================
  O Universo das Glosas de Gislaine

GISLAINE CANALES
Balneário Camboriú/SC

Glosando Aloísio Alves da Costa
RELÓGIO DO MEU PEITO

MOTE:
NÃO VENS… E A MINHA ANSIEDADE,
NUM TIQUE-TAQUE PERFEITO,
MEDE AS HORAS DA SAUDADE
NO RELÓGIO DO MEU PEITO!

GLOSA:
NÃO VENS… E A MINHA ANSIEDADE,
vai se agigantando em mim.
Onde estás felicidade?
Essa espera não tem fim!

Eu sinto o passar das horas
NUM TIQUE-TAQUE PERFEITO,
contando as tuas demoras…
Fico triste e insatisfeito!

Na minha realidade,
o relógio da emoção
MEDE AS HORAS DA SAUDADE
dentro do meu coração!

Os ponteiros, ternamente,
tento adiantar, com meu jeito,
para unir, pra sempre, a gente,
NO RELÓGIO DO MEU PEITO!
============================
Uma Trova do Rei dos Trovadores

ADELMAR TAVARES
Recife/PE 1888 – 1963 Rio de Janeiro/RJ

Celeste amor que perdura
Atende a roteiro assim:
Ilimitada ternura
No entendimento sem fim.
============================
O Universo do Haicai de Seabra

CARLOS SEABRA
(São Paulo/SP)

trigo dourado
pelas mão do vento
é penteado
============================
O Universo Poético de Emilio

EMÍLIO DE MENESES
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
Curitiba/PR (1816– 1918)

Gota d’água

Olha a paisagem que enlevado estudo!…
Olha este céu no centro! olha esta mata
E este horizonte ao lado! olha este rudo
Aspecto da montanha e da cascata!…

E o teu perfil aqui sereno e mudo!
Todo este quadro que a alma me arrebata,
Todo o infinito que nos cerca, tudo!
D’água esta gota ao mínimo retrata!…

Chega-te mais! Deixa lá fora o mundo!
Vê o firmamento sobre nós baixando;
Vê de que luz suavíssima me inundo!…

Vai teus braços, aos meus, entrelaçando,
Beija-me assim! vê deste azul no fundo,
Os nossos olhos mudos nos olhando!…
============================
O Universo Poético de Sardenberg

ANTONIO MANOEL ABREU SARDERNBERG
São Fidélis/RJ (1947)

Andança

Na rua morta move-se o meu passo
Seguindo errante em busca de um amor
Sob esse luar tristonho que há no espaço
Também vagueia a esmo a minha dor.

E neste acaso eu ando solitário,
Por onde passo eu passo descontente,
E vem comigo a dor desse calvário
No frágil  som de um coração fremente.

Se o seu olhar eu já perdi de vista
  Nele não vi meu sonho desejado
Então por que buscar essa conquista?

Mas a esperança é a última a morrer…
E adiante vou no sonho tão sonhado,
Buscar o amor que tanto quero ter!
============================
O Universo Poético de Cecília

CECÍLIA MEIRELES
(Cecília Benevides de Carvalho Meireles)
Rio de Janeiro/RJ (1901 – 1964) Rio de Janeiro/RJ

Discurso

 E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada,
porque as ervas cresceram
e as serpentes andaram.

Também procurei no céu
a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar
que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar
que venha alguém gostar de mim?
============================
O Universo Melódico de Assumpção

MARCOS ASSUMPÇÃO
(Marcos André Caridade de Assumpção)
Niterói/RJ

A Coragem De Cada Um De Nós
(CD O Mágico de Oz)

 Quanta coragem precisamos ter
Pra enfrentar o medo que trazemos em nós ?
Pra cruzar a ponte e o escuro,
Pra vencer seu inimigo mais feroz ,
Basta despertar dentro da gente a coragem adormecida ,
Escondida agora em cada um de nós

Quanta coragem precisamos ter
Pra enfrentar o medo que trazemos em nós ?
A coragem é tudo aquilo que voce precisa,
Acredite, voce pode mais, acorde o grande rei
Que há em ti pra descobrir que na verdade,
A coragem dorme em cada um de nós
============================
O Universo Haicaista de Guilherme

GUILHERME DE ALMEIDA
(Guilherme de Andrade de Almeida)
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

Noroeste

Dilaceramentos…
Pois tem espinhos também
A rosa-dos-ventos.
============================
O Universo Sonetista de Alma

ALMA WELT
Novo Hamburgo/RS (1972 – 2007)

Ao Poeta em mim

Ingenuamente movido por certezas
Pensas abrir sendas neste mundo
Quando apenas seguir podes correntezas
Que levaram a tantos para o fundo.

Mas além dentro de ti, algures
Se encontra a chave do Mistério
Que talvez nem saibas que procures
Pois até uma criança brinca a sério…

Repara à tua volta, meu amigo,
A vida solene e atarefada
Que gira em torno ao teu umbigo!

E já que és o centro do universo,
Cuida da precisão do teu destino
Que é só caber inteiro num teu verso…
============================
Uma Poesia de Pato Branco/PR

ELIZABETH MARIA CHEMIN BODANESE

Encanto

 Ipês cor-de-rosa…
 Pinheiros bem verdes…
 Violetas e amores-perfeitos
 De todas as cores alegram a vida
 Dos verdadeiros amores.

 Um beija-flor poliniza a flor…
 Uma bola voa de um lado a outro
 Nas mãozinhas  ágeis dos pimpolhos!
 Um balanço faz sonhar,
 No espaço o menino brincar…
 A Primavera está  chegando…
 Advento do florescer…
 A vida pulsa numa eterna busca
 De quem quer aprender,
 Saber, conhecer
 Antes de a outra vida transcender…

 Os galhos secos e a neve
 Não assustam mais nas janelas
 Da casa no alto do morro…
 A chuva e o frio se rendem
 Ao sol e ao calor…
 Flores exalam perfumes
 Nesse tempo de amor
 Na cidade sem preconceitos
 Pato Branco dos amores-perfeitos…
 Terra de amor, amizade e respeito.
============================
O Universo de Francisca

FRANCISCA JÚLIA
1871, Xiririca (atual Eldorado Paulista)/SP – 1920, São Paulo/SP)

A um Velho

Por suas próprias mãos armado cavaleiro,
Na cruzada em que entrou, com fé e mão segura,
Fez um cerco tenaz ao redor do Dinheiro,
E o colheu, a cuidar que colhia a Ventura.

Moço, no seu viver errante e aventureiro,
O peito abroquelou dentro de uma armadura;
Velho, a paz vê chegar do dia derradeiro
Entre a abundância do ouro e o tédio da fartura.

No amor, de que é rodeado, adivinha e pressente
O interesse que o move, o anima e o faz ardente;
Foge por isso ao mundo e busca a solidão.

O passado feliz o presente lhe invade,
E vive de gozar a pungente saudade
Das noites sem abrigo e dos dias sem pão.
============================
Velhas Lengalengas e Rimas do Arco-da-Velha Portuguesas

A CASA DO JOÃO

Aqui está a casa
 Que fez o João.

Aqui está o saco do grão e feijão
Que estava na casa
 Que fez o João.

Aqui está o rato
Que furou o saco de grão e feijão
Que estava na casa
Que fez o João.

Aqui está o gato
Que comeu o rato
Que furou o saco de grão e feijão
Que estava na casa
Que fez o João.

Aqui está o cão
Que mordeu o gato
 Que comeu o rato
Que furou o saco de grão e feijão
Que estava na casa
Que fez o João.

(http://luso-livros.net/)
============================
O Universo de Pessoa

FERNANDO PESSOA
(Fernando António Nogueira Pessoa)
Lisboa/Portugal   1888 – 1935

Duas horas te esperei
Dois anos te esperaria.
Dize: devo esperar mais?
Ou não vens porque inda é dia? 


================
O Universo Poético de Quintana

MARIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994)

Ah! Os relógios

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia em for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais um necrológios…

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida – a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém – ao voltar a si da vida –
acaso lhes indaga que horas são…
============================
O Universo Poético de Vinicius

VINICIUS DE MORAES
(Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes)
Rio de Janeiro (1913 – 1980)

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei… tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
============================
Uma Poesia de Portugal

Sophia de Mello Breyner Andresen
Porto (1919 – 2004) Lisboa

Exílio

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
============================
O Universo de Auta

Auta de Souza
Macaíba/RN (1876 – 1901) Natal/RN

Ciúme

Não brinques ao sol, menina!
É tão preto o teu cabelo,
Que exposto ao sol que ilumina,
Jamais, jamais quero vê-lo.

Não sabes por que, Maria?…
Do sol o brilhante açoite
Só vem à terra de dia
Porque não gosta da noite.

E eu temo que ao ver formoso
O teu cabelo, um tesouro!
O sol, que é tão invejoso,
Não queira torná-lo louro.

Louro, Maria! o repouso
Onde vacilo com a cruz,
O doce abrigo onde pouso
Meus olhos fartos de luz?

Não quero, flor de minh’alma,
Linda esperança em botão…
O dia não é que acalma
As mágoas do coração.

Quando a dor em fúria brusca
Lhe vem magoar o seio,
A treva da noite busca
Para chorar sem receio.

E a minha noite mais pura
No teu cabelo é que eu vejo;
Esqueço toda a amargura
Se a tua cabeça beijo!

E agora, santa, avalia
Que pena teria eu
Se chegasse a ver um dia
O teu cabelo, Maria,
Da cor dos astros do céu!
============================
O Universo Triverso de Millôr

MILLÔR FERNANDES
(Milton Viola Fernandes)
Rio de Janeiro (1923 – 2012)

À nossa vida
A morte alheia
Dá outra partida.
============================
O Universo de J. G.

J.G. DE ARAÚJO JORGE
(Jorge Guilherme de Araújo Jorge)
Tarauacá/AC 1914 – 1987 Rio de Janeiro/RJ

Amor… e Morte…

    O amor
é como a morte
ato banal de todo dia…

Emoção forte
de tristeza ou de alegria,
ele sempre nos surpreende, e a ele nunca nos acostumamos
talvez…

O amor é como a morte:
quando amamos
é sempre a primeira vez.
============================
Um Soneto

LUIZ CARLOS DE OLIVEIRA

A Dor da Perda

 Num dos quartos do Pronto Atendimento
 Adentra a mãe com a filha prematura,
 Não desfeito o negror da noite impura
 E o galo nem cantava no momento…

 Nenhum repórter dava cobertura:
 Era só mais um rotineiro evento…
 Logo o médico atesta o passamento
 E manda agilizar a sepultura.

 Um nódulo instalou-se na garganta
 Da mãe, como invisível funeral
 Da filha morta… O olhar, naquele exato

 Momento de estupor, que se agiganta,
 Perde-se num vazio sem igual:
 A sua dor é o próprio anonimato!
============================
O Universo do Martelo Agalopado de Prof. Garcia

PROF. GARCIA
(Francisco Garcia de Araújo)
Caicó/RN (1946)

No repente, ninguém traça uma meta,
mas é bom que um roteiro a gente trace,
pois do nada, um improviso sempre nasce
e a beleza da vida se completa.
Não precisa que seja em linha reta,
pode ser por caminho tortuoso,
pois o verso sofrendo é mais famoso
aos primeiros suspiros da manhã,
quando o sol salpicando o morro e a chã
torna o verso mais belo e mais formoso!
============================
O Universo Poético de Lúcia Constantino

LÚCIA CONSTANTINO
(Maria Lúcia Siqueira)
Curitiba/PR

Tenho Saudades

Tenho saudades do meu amor que te amava
vestido de silêncios e conflitos tão sinceros.
Um amor que era sol –  um amor tão belo
que até aos anjos a sonhar  ele ensinava.

Tenho saudades do amor que eu sentia,
momentos manuscritos dentro do coração.
Tinha linhagem aquele sonho que eu vivia.
Era uma luz passando a limpo a escuridão.

E onde estás? Não te encontro mais
e nesses meus sonhos, o que buscais
ó anjos?  –  a esperança já vencida?

Não entendo mais essa linguagem.
Sei que a dor muda toda paisagem
do livro interior, onde se escreve a vida.
============================
Uma Poesia Além Fronteiras

JOHN DONNE
Inglaterra (1572 – 1631)

A Isca

Vem viver comigo, sê o meu amor
E alguns novos prazeres provaremos
De areias douradas e regatos de cristal
Com linhas de seda e anzóis de prata.

Aí o rio correrá murmurando, aquecido
Mais por teus olhos do que pelo sol;
E aí os peixes enamorados ficarão
Suplicando a si próprios poder trair.

Quando tu nadares nesse banho de vida
Cada peixe, dos que todos os canais possuem,
Nadará amorosamente para ti,
Mais feliz por te apanhar, que tu a ele.

Se, sendo vista assim, fores censurada
Pelo Sol, ou Lua, a ambos eclipsarás;
E se me for dada licença para olhar
Dispensarei as suas luzes, tendo-te a ti.

Deixa que outros gelem com canas de pesca
E cortem as suas pernas em conchas e algas;
Ou traiçoeiramente cerquem os pobres peixes
Com engodos sufocantes, ou redes de calado.

Deixa que rudes e ousadas mãos, do ninho limoso
Arranquem os cardumes acamados em baixios;
Ou que traidores curiosos, com moscas de seda
Enfeiticem os olhos perdidos dos pobres peixes,

Porque tu não precisas de tais enganos,
Pois que tu própria és a tua própria isca,
E o peixe que não seja por ti apanhado,
Ah!, é muito mais sensato do que eu.

(Tradução de Helena Barbas)
============================
O Universo de Adélia

ADÉLIA PRADO
(Adélia Luzia Prado Freitas)
Divinópolis/MG (1935)

Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
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O Universo Poético de Bilac

Olavo Bilac
(Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac)
Rio de Janeiro/RJ (1865 – 1918)

A Madrugada

Os pássaros, que dormiam
Nas árvores orvalhadas,
Já a alvorada anunciam
No silêncio das estradas.

As estrelas, apagando
A luz com que resplandecem,
Vão tímidas vacilando
Até que desaparecem.

Deste lado do horizonte,
Numa névoa luminosa,
O céu, por cima do monte,
Fica todo cor-de-rosa;

Daí a pouco, inflamado
Numa claridade intensa,
Se desdobra avermelhado,
Como uma fogueira imensa.

Os galos, batendo as asas,
Madrugadores, já cantam;
Já há barulho nas casas,
Já os homens se levantam,

O lavrador pega a enxada,
Mugem os bois à porfia;
— É a hora da madrugada
Saudai o nascer do dia!
============================
O Universo de Carlos Drummond de Andrade

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG (1902 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Lembrança do mundo antigo

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
============================
UniVersos Melodicos

Ataulfo Alves e Mário Lago

AI, QUE SAUDADES DA AMÉLIA
(samba, 1942)

“Ai Que Saudades da Amélia” tem três personagens: o protagonista, sua mulher e Amélia, a mulher que ele perdeu. O tema é um confronto dos defeitos da mulher atual com as qualidades da mulher anterior. A atual, a quem o protagonista se dirige, é exigente, egoísta, “Só pensa em luxo e riqueza”, enquanto a anterior é um exemplo de virtude e resignação – “Amélia não tinha a menor vaidade, (…) achava bonito não ter o que comer… ‘. Em suma, a primeira é o presente, a realidade incontestável; a segunda é o passado, uma saudade idealizada na figura da mulher perfeita, pelos padrões da época.

Este primoroso poema popular, coloquial espontâneo, escrito por Mário Lago , recebeu de Ataulfo Alves uma de suas melhores melodias, que expressa musicalmente o espírito da letra. E o paradoxal é que não sendo carnavalesco, este samba fez estrondoso sucesso no carnaval.

Segundo Mário Lago, “Amélia nasceu de uma brincadeira de Almeidinha, irmão de Araci de Almeida, que sempre que se falava em mulher costumava brincar – ‘Qual nada, Amélia é que era mulher de verdade. Lavava, passava, cozinhava…”‘. Então, Mário achou que aquilo dava samba e fez a letra inicial de “Ai Que Saudades da Amélia”. Brincadeiras à parte, a verdade é que a Amélia do Almeidinha existiu e, possivelmente, ainda vivia à época da canção. Era uma antiga lavadeira que serviu à sua família. Morava no subúrbio do Encantado (Zona Norte do Rio) e trabalhava para sustentar uma prole de nove ou dez crianças.

Com a letra pronta, Mário pediu a Ataulfo Alves para musicá-la. O compositor executou a tarefa, mas alterou algumas palavras e aumentou o número de versos de doze para quatorze. “Isso é natural” – comentava Ataulfo, em depoimento para o MIS do Rio de Janeiro, em 17.11.65 -, “as composições dos parceiros que são letristas sofrem influência minha, que sou autor de letra e música. Mas o Mário não gostou. E não adiantou dizer que a música me obrigara a fazer as modificações”. De qualquer maneira, como o samba estava bom, ficaram valendo as alterações.

Começou então a batalha da gravação. Ataulfo ofereceu “Amélia” em vão a vários cantores, inclusive a Orlando Silva. Como ninguém queria gravá-la, gravou-a ele mesmo na Odeon, no dia 27.11.41, acompanhado por um improvisado conjunto, batizado de Academia de Samba. Convidado na hora, Jacó do Bandolim participou dessa gravação, tocando cavaquinho, sendo sua a introdução.

Lançado no suplemento de janeiro de 1942, “Ai Que Saudades da Amélia” foi conquistando aos poucos a preferência do público, graças, principalmente, a uma intensa atuação de Ataulfo junto às rádios. Relembra Mário Lago que o locutor Júlio Louzada chegou a dedicar, na Rádio Educadora, uma tarde inteira de domingo a “Amélia”, com entrevistas e o disco tocando dezenas de vezes. O resultado é que às vésperas do carnaval, quando houve o concurso para escolher o melhor samba, “Ai Que Saudades da Amélia” dividia o favoritismo com “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo. Realizado no estádio do Fluminense, este concurso reuniu uma enorme platéia que, de acordo com o regulamento, elegeria por aplauso os vencedores.

Precedendo “Amélia”, apresentou-se “Praça Onze”, valorizada por um verdadeiro show, preparado por Herivelto. Primeiro foram mostrados os instrumentos, explicando-se as funções de cada um; em seguida, vieram as passistas, um grupo sensacional de mulatas rebolando; e, finalmente, cantou-se o samba, que levou a platéia ao delírio, dando a impressão de que o certame já estava decidido. Acontece, porém, que “Amélia” também tinha seus trunfos. Tim e Carreiro, amigos de Mário e craques do time do Fluminense, que acabara de ganhar o bicampeonato carioca de futebol, haviam feito um excelente trabalho junto à torcida tricolor.

Para completar, no momento da apresentação, Mário Lago subiu ao palco e, num rasgo de eloqüência e demagogia, fez um discurso emocionante, proclamando “Amélia” símbolo da mulher brasileira. Assim, quando Ataulfo e suas pastoras começaram a cantar o estádio veio abaixo, praticamente exigindo a vitória dos dois sambas. Sem a possibilidade de desempatar, o presidente do Fluminense, Marcos Carneiro de Mendonça – por coincidência, casado com uma “Amélia”, a poeta Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça – autorizou o pagamento em dobro do prêmio de campeão a “Ai Que Saudades da Amélia” e “Praça Onze”, cada um recebendo como se tivesse ganho sozinho.

Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê você quer
Ai, meu Deus, que saudades da Amélia
Aquilo sim é que era mulher

Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Mas quando me via contrariado
Dizia: meu filho, o que se há de fazer ?

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era a mulher de verdade

Fonte:
(http://www.cifrantiga3.blogspot.com
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Uma Cantiga Infantil de Roda

CAI, CAI, BALÃO

Cai, cai, balão
Cai, cai, balão,
Na rua do sabão

Não cai não,
Não cai não,
Não cai não,
Cai aqui na minha mão
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O Universo Poético de Feitosa

SOARES FEITOSA
(Francisco José Soares Feitosa)
Ipu/CE (1944)

À vista de ti

Nunca te vi, melhor que seja assim.
Teus cabelos seriam trinados ao vento?
Poderia eu dizer “treinados”, eles seriam – porque aí corre
o vento da tardinha – sempre me dizes
do vento.
Guardo teus papéis eu guardo.
Perco-os, justo que me percam!
Um cartãozinho…, teu, a te encontrar, azul…,
azul seria
a saia de sair?
Ou, haverias de preferir uma roupinha amarela
e os olhos vagos de nenhuma palavra?
O que poderei dizer quando te encontrar?…, se.
Nestes tempos modernos, teria lugar para um
silêncio?

Falarias? De que nos diríamos? Melhor que teus cabelos fiquem
ao vento.
Ah, vento doce, da noite, como me perfumas o hálito desta noite cedo!
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O Universo Poético de Du Bois

PEDRO DU BOIS
Itapema/SC (1947)

VÃO

Enquanto sonho esperanças vãs
desencontro o árduo caminho
além da curva derradeira

debruçado ao restante da paisagem
anoiteço sons desprestigiados

em sonhos determino o anárquico
senso dos encobrimentos.
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O Universo Acróstico de Motta

SILVIA MOTTA
(Silvia de Lourdes Araujo Motta)
Belo Horizonte/MG (1951)

VIDA DE EQUAÇÕES
Acróstico-filosófico nº 5354

V-Vida de soluções bem resolvidas
I-Inspiram alegrias alcançadas;
D-Das equações mal resolvidas
A-As decepções dão outras caminhadas;
 –
D-Dos vários quilômetros percorridos
E-Em estradas sem flores e perdões,
 –
E-Enfrentamentos dos pesos doloridos…
Q-Quedas pedem orações convincentes!
U-Um corpo que cai, precisa levantar!
A-As ferramentas próprias e eficientes,
Ç-Com vontade, fé e livre-arbítrio,
Õ-Oferecem o futuro, perto novamente;
E-Encontram lições nas feias lesões…
S-Sensações novas que dão força à mente.
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O Universo Poético de Ordones

RAQUEL ORDONES
Uberlândia/MG

  Queria ser sua música favorita

E eu apetecia ser aquela melodia
Que fluiu da alma na madrugada
Bateu a porta do peito em poesia

E se jogou entre notas; musicada.

Queria ser essa canção que te toca
E queria mil vezes que me ouvisse
Queria ser essa letra que te invoca

Que por todo sempre me repetisse.

Queria ser essa canção de saudade
Da grande ternura que em ti reside

Segundo em segundo em ti incide.

Enfim… Eu queria ser essa canção
Para saber de onde sua lágrima vem
Sinceramente só quero te fazer bem.

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A. A. de Assis (Poeminhas à moda de haicais) Parte 2, final

51.
Tão miudinha a avenca.
Ao lado um coqueiro enorme
súbito despenca.

52.
Fácil se define:
lá distante uma araponga
tine… tine… tine…

53.
Petit à petit,
pombinhos tecem seus ninhos.
Em Paris e aqui.

54.
Vós que, sobrevivos,
a mais que os demais amais,
uni-vos, uni-vos.

55.
Repicam os sinos.
Os mesmos de nós meninos,
na velha matriz.

56.
Colibri esvoaça.
Tem rosa nova, solteira,
no jardim da praça.

57.
Voa, voa, voa,
faz a cera, faz o mel,
abelhinha boa.

58.
Um cisco no chão.
Ah, não era cisco não.
Era uma esperança.

59.
Menino de rua.
Protege-o, Dindinha Lua,
dá-lhe colo, dá!

60.
Pião da saudade.
De uma era em que era franca
a felicidade.

61.
Um vaso de avenca.
Minimíssima floresta.
Mas é verde, é festa.

62
Chocados os ovos,
há o choque dos seres novos.
E a vida prossegue.

63.
Levantar cedinho.
Mens sana in corpore sano.
Ouvir passarinho.

64.
Curvam-se as roseiras.
Jogam as rosas, felizes,
beijos às raízes.

65.
Rola a Lua, rola.
Os mísseis zumbindo ao lado
e ela nem dá bola.

66.
De amor são seus uis.
As lágrimas que ela chora
devem ser azuis.

67.
Lua na montanha.
Me faz um favor, me faz:
sobe lá e apanha.

68.
Crianças na praça
cantando canções de roda.
Volta a paz à moda.

69.
Leio no jardim.
Idéias há e azaléias
em redor de mim.

70.
É um impasse e tanto:
trabalho, o canto atrapalho.
Nesse caso, canto.

71.
Olá, senhor Sol.
Bem-vindo ao nosso domingo.
Praia e futebol.

72.
Ah, havia o espaço.
Ave havia e havia ação.
Ave… avi…ão.

73.
Contam casos… súbito,
Negrinho do Pastoreio
passa bem no meio.

74.
Onda e sol… Floripa.
Tem lugar para mais a um.
Pega a prancha e… tchum!

75.
Trenzinho da serra…
Pa… Pa-ra-ná… Pa-ra-ná…
pra Paranaguá.

76.
De perder a voz.
Água, água, água, água.
Cataratas – Foz.

77.
Presépio do Sul.
Curitiba dos pinheiros
e da gralha azul.

78.
É chegar e amar.
Ri o Rio o ano inteiro.
Samba, sol e mar.

79.
Dim-dim-dão… dim-dão…
Os sinos de San-del-Rey
sempre em oração.

80
Bahia das festas.
De todos os sábios – tantos.
De todos os santos.

81
Aguinha de coco.
Areia, arara, caju.
Ah… é Aracaju.

82
Jangada ao luar.
Lagosta ao vinho depois.
Fortaleza a dois.

83.
Blem… Belém… blem-blem…
No Círio de Nazaré,
os sinos da fé.

84.
O tempo e a distância.
A festa de São Fidélis.
Transfusão de infância.

85
Armas e barões
muito além da Taprobana
ecoam Camões.

86.
Tela brasileira.
Um sabiá na palmeira
de Gonçalves Dias.

87.
Rosa, Rosa, Rosa,
ó Rosa das rosas ledas!
Dos sertões: veredas.

88.
Releio Pessoa.
Finjo tão completamente,
que a tristeza voa.

89.
Leoni, o poeta
da Petrópolis azul.
Alma azul. Raul.

90.
Luar no sertão.
Ah que falta faz Catulo
com seu violão!

91.
Bem-te-vi, Cecília,
nos ramos da madrugada.
Cantando, encantada.

92.
Mais do que Bandeira,
sobretudo Manuel.
Ou mais: man well.

93.
To you, tuiuiú.
Parabéns para você.
Happy bird are you.

94.
New York, New York,
make love, not work.
Ah, I love you!

95.
Passa a teoria
por debaixo do arco-íris.
Vira poesia.

96.
Pilhas de currículos.
Vencedor: o sabiá.
Sabia cantar.

97.
O sorriso é um dom.
Sorrindo você faz lindo
o seu lado bom.

98.
Aplainai as trilhas,
forrai-as de relva e flor.
Vai chegar o Amor.

99.
Brinquemos, irmãos.
Vamos dar as nossas mãos.
Brinquemos de paz.

100.
De braços abertos,
sobe o pinheiro. Subindo,
deixa o céu
m
a
i
s
l
i
n
d
o

Fonte:
A. A. de Assis. Poeminhas (à moda de haicais). Marinha Grande/Portugal: Biblioteca Virtual “Cá Estamos Nós”. Outubro de 2004

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Paulo Pellota (Paz na Terra aos homens de botequim)

Crônica premiada no “Concurso Grandes Escritores de São Paulo”, Litteris Editora, 1977.
–––––––––––––––––––––––––––
Beber bem e bater papo são duas artes com grandes afinidades entre si. E o melhor lugar para exercitá-las é o botequim.

Há um consenso entre os grandes praticantes de que o bar, feito exclusivamente para beber e conversar, é o ambiente onde essas artes evoluem com notável fluência. Fluência que é percebida nas mesas de profissionais, gente que leva a sério 0 supremo ofício de rir e conversar.

A função social do bar é justamente liberar os espíritos e fazer aflorar as identidades a fim de facilitar a conversa. Os temas vão surgindo naturalmente e vai-se falando de tudo um pouco. Importantes decisões sobre os destinos da humanidade são tomadas. Política, futebol, discos voa- dores, o melhor chopp da cidade, tudo é discutido. Meu amigo Pérsio, competente em matéria de botequim, afirma que há nessas mesas uma fantástica cornucópia de onde brotam os mais interessantes assuntos. Médicos falam sobre direito, advogados tratam de medicina, empresários palpitam sobre música, músicos discutem política, vagabundos pontuam sobre direito do trabalho, em desordem alternada, podendo mudar o ponto de vista a qualquer momento. A lógica, a coerência, podem perfeitamente ficar do lado de fora, já que o bom papo de boteco não tem censura nem admite cobranças posteriores.

Já os amadores, que vão ao bar de vez em quando para comemorar um aumento de salário ou para falar sobre a crise, são facilmente identificáveis ela monotonia notada em suas mesas.”Será que chove? Hoje está mais quente do que ontem.” são as mais acaloradas discussões. 0 papo não anda, estão sempre a olhar o relógio, como questionando se deveriam estar mesmo no bar ou poderiam estar gastando seu tempo na academia ou correndo em volta do quarteirão. Se forem realmente amadores, podem questionar à vontade, mas, se por algum motivo se tornaram aprendizes, é dever lembrá-los que os exercícios físicos, hoje tão comuns para cultuar o corpo, não passam de modismos. Como tal, apresentam-se como fenômeno passageiro e, mais dia menos dia, pelo perigo que representam, serão extirpados da sociedade.

Quantas entorses, quantas lesões musculares, fraturas, distensões. Quantos infartos esses esforços violentos têm causado. O negócio é tão perigoso que se pedem diversos exames médicos antes de iniciar qualquer atividade física.

No botequim nada disso acontece. Não há registros de mortes súbitas em mesas de bar. Muito menos se comete a indelicadeza de pedir atestado médico antes de um chopp bem tirado.

Claro que é preciso estar em forma. Tanto profissionais como aprendizes sabem que precisam eleger seus bares preferidos e frequentá-los com assiduidade. Perseverar. Como tudo que se queira fazer bem feito, frequentar botecos também demanda tempo, dedicação e treinamento. E no bar, é na prática do cotidiano que se aprende com frequentadores de outras mesas. E uma alegre tarefa do grupo melhorar a atuação individual e coletiva, com a abordagem de temas originais, com a capacidade de surpreender, usando com competência e humor a liberação dos espíritos proporcionada pela atmosfera do ambiente.

Se disciplina é fundamental, também é importante que o novato reconheça que muitas vezes poderá cometer pequenos deslizes, como dar uma caminhada mais longa ou até mesmo uma corrida. Isso não deve ser motivo para pânico , principalmente se não acontecer com frequência. No começo, isso é normal, porque o iniciante não tem o condicionamento necessário para evitar certos programas e talvez tenha dificuldade para dizer “não”. No fundo, o bom mesmo é rir dessa situação e no dia seguinte compensar esse tropeço tomando algumas doses a mais com os amigos.

Os mais assíduos frequentadores de bares têm plena consciência de que rir e conversar são importantíssimos para manter-se sempre rindo e conversando. Parece uma redundância, mas é muito mais profundo do que isso e, se houver dúvida, o tema poderá ser experimentado na próxima mesa.

0 aprendiz deve levar em conta a tradição. O hábito humano de reunir-se para conversar, beber, rir e comemorar faz parte da História do Mundo. A cerveja parece ter sido criada no antigo Egito, Noé carregou vinho na arca e produziu cerveja ao chegar no monte Ararat, Cristo consagrou o pão e o vinho como alimentos do corpo e do espírito, os vitoriosos unem-se e brindam.

*
Até na Santa Ceia todos sentaram-se à mesa e tomaram vinho — o único que não quis tomar nada e saiu mais cedo foi bem sóbrio receber os trinta dinheiros.

Não há, no entanto, menções históricas dando conta de que algum imperador, grande general, profeta ou o mais divino dos seres tenha dado uma corrida e voltado para o mesmo lugar, certo de que estava abafando.

Há que estar preparado, portanto, para a Novíssima Era que está chegando, em que homens e mulheres não discutirão se têm alguns quilos a mais ou alguns centímetros a menos na barriga. Estarão, sim, reunidos em torno de copos e garrafas, usufruindo do grande prazer de comer sem ter fome e de beber sem ter sede, de compartilhar experiências e de rir com os outros e de si mesmos.

Fonte:
PELLOTA, Paulo. Paz na Terra aos homens de botequim. SP: Clio Editores, 2003.

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Ciranda da Primavera (Seleção por Simone Borba Pinheiro) Parte 2

BILL SHALDERS
Primavera

 Tempos de belas cores
 Tempos de suaves luzes
 Voam coloridas borboletas
 Voam belas inspirações
 Cantam alegres pássaros
 Cantam o mar e o céu
 No fundo de minha alma

 Mostram-se explosões de flores
 Cores fortes se expandem
 Felicidades explicitam
 Em verdejantes plantas
 Abrigam-se todas as alegrias
 Na exuberante natureza
 Primavera no meu ser

CANDY SAAD
Primavera

 A estação mais linda é a primavera,
 quando há o romper das flores,
 num desabrochar inebriante de cores
 perfumes e seivas!
 Beija-flores e borboletas coloridas
 anunciam a transformação de cor em amor!
 Meus olhos ficam encantados com tanta beleza!
 Como é linda a obra que nos fez o Criador!
 Desperta as emoções,
 acordando sonhos de amor adormecidos.
 Nesse jardim de primavera
 meu amor por você espera…
 Debaixo da copa do Ipê amarelo
 estarei pronta para te dar meu amor
 diante de toda natureza bela,
 exalando perfume de flor!
 Juntos vamos ver o romper da primavera
 contemplando a natureza se emocionar
 com nosso amor.

CARLOS ROBERTO
Primavera

 A mais bela das estações do ANO.
 Onde o belo renasce.
 Renasce a vida das árvores e das flores.
 Toda a NATUREZA renasce.
 Nós os SERES HUMANOS, também devemos
 imitar a NATUREZA, tendo como
 exemplo a PRIMAVERA.
 Vamos procurar renascer os nossos
 sentimentos por uma vida mais bela,
 plena de AMOR, FELICIDADE,
 SAÚDE e muita
 PAZ

CARMO VASCONCELOS
Primavera

 Desabrochadas minhas rosas amarelas
 Segredam-me a esplendorosa alegoria
 De ternas noites orvalhadas de euforia
 E mansos adormeceres com as estrelas

 Ciciam-me brilhos de sol, alvas manhãs
 Em que dissimulados ecos de tambores
 Convidam à simbiose castos amores
 De seivas similares, pétalas irmãs

 Murmuram-me rumores de água perto
 Lembrando o marginar de um rio desperto
 A matar a sede da terra que o venera

 E mais sibilam minhas rosas amarelas
 Que divina inspiração se vestiu delas
 Para consagrar uma nova Primavera

CÁSSIA VICENTE
Primavera

 Primavera…
 prima por beleza, cores,
 perfumes encantadores…
 são flores que alegram
 perfumes que inebriam
 e a vida neste tempo fica
 mais cheia de fantasia…
 os pássaros misturam às árvores suas cores
 enriquecem a paisagem com seus cantos…
 os corações embalam com os cheiros
 os olhos dos amantes…que a todo instante
 refletem o arco-irís nos corações de suas Damas da Noite
 ou dos seus Amores Perfeitos…
 E as amantes que são delicadas ao toque
 exalam o cheiro das Não-me toques
 disfarçando seus desejos embaixo das Pitangueiras…

 Jataí.GO

CECÍLIA RODRIGUES
Primavera

 Da Primavera em flor
 Muito se há-de cantar
 Flor rima com amor
 Cantar rima com amar

 Assim as palavras unem
 Um sentir, um bem-estar
 Amor e flor, perfumam
 Toda a Terra, todo o ar

 Todo o ar que respiramos
 É vida, é flor, amor, e canto
 Da passarada p’los ramos
 No arvoredo sem pranto

 Só música em coro entoa
 Por entre arvore enfeitada
 Sons de orquestra nos soa
 Vindo daquela passarada

 Nascem amores nos roseirais
 Vivem delírios na madrugada
 Enquanto Primavera são leais
 Morrem no Outono á chegada

CORA MARIA
Estão voltando as flores!

 Abra seu coração para a nova estação!
 Beije como um beija flor,
 Estenda os braços para o sol, que nasce
 Observe a borboleta,
 Construa um verso e a alguém ofereça,
 Faça bolinhas de sabão,
 Cante um refrão!
 Abra a janela,
 Comemore a primavera!
 Ame como jamais,
 Jogue fora todos os seus ” ais”
 Perfume seus dias,
 Brinde a estação das flores,
 De alma colorida,
 Comemore a vida!

CRISTINA OLIVEIRA CHAVEZ – USA
Primavera

 A Primavera da alma é a vida!
 Esperanças, suas perfumadas flores
 quando o outono chega em fé perdida,
 e de saudade chora seus amores!

 Ela é maravilhosa, Fada Madrinha!
 converte do inverno, um paraíso,
 com suas cores de encanto azulzinha
 a vida eterniza como um sorriso!

 Já deixa-a entrar, é tão primorosa,
 está cheia de paz e de harmonia,
 o amor leva em seu pólen de rosa
 permite-lhe, te encha de alegria!

 Serenas são seus odes de ternura,
 viver com ela é uma grande euforia,
 passarinhos que cantam com doçura,
 A Primavera na alma…É a glória!

DENISE SEVERGNINI
Primavera

 Flores surgem
 em profusão
 Enchem meus olhos
 de emoção
 Desperta em meu olfato
 doce sensação

 Os pássaros entoam
 lindas canções
 Inflando de alegria
 nossos corações

 É a natureza que acelera
 Pois chega a primavera…

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

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Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 2 – Aparece a Rã

Essa ocasião havia chegado. Ao saber que Dona Benta recebera convite dos chefes da Europa para ir arrumar o pobre continente, Emília deu um pulo de gosto e, já com a ideia da reforma da Natureza na cabeça, declarou que não ia.

– Não vai, como, Emília? – disse Dona Benta. – Acha que posso deixar você sozinha aqui?

Emília disfarçou a verdadeira razão de ficar. Declarou que não ia para evitar escândalos na Conferência da Paz.

– Sim – disse ela – se eu for não é para ficar dormindo no hotel, não! Também hei de querer tomar parte na Conferência – e tenho umas tais verdades a dizer aos tais ditadores que a senhora nem imagina. E fatalmente sai “fecha”.  Vira escândalo. É isso que quero evitar.

Dona Benta ficou pensativa, e foi à cozinha consultar tia Nastácia.

Encontrou-a areando o tacho para fazer goiabada.

– Nastácia – disse ela – Emília encrencou. Quer ficar. Diz que se for à Conferência sai fecha com os ditadores e haverá um grande escândalo internacional – e estou com medo disso. Tenho horror a escândalos.

– E sai fecha mesmo, Sinhá. -Depois daquela história da Chave do Tamanho, Emília ficou prepotente demais. Não atura nada. Dá escândalo mesmo, Sinhá, e é até capaz de estragar o nosso trabalho por lá. Pedrinho me contou que aquilo nas Europas está pior que quarto de badulaque quando a gente procura
uma coisa e não acha. Tudo de perna para o ar, disse ele. Tudo sem cabeça, espandongado. A nossa serviceira vai ser grande, Sinhá, e com a Emília atrapalhando, então, é que não fazemos coisa que preste. Minha opinião é que ela fique.

– Mas ficar sozinha aqui, Nastácia?

– Fica com o Conselheiro e o Quindim – que mais a senhora quer? Juízo eles têm para dar e vender – e ainda sobra. Eu converso com o Conselheiro e explico tudo. .

Dona Benta pensou, pensou e afinal se convenceu de que tia Nastácia tinha razão. Controlada pelo Conselheiro e defendida pelo Quindim, que mal havia em Emília ficar?

E Emília ficou.

Narizinho, porém, que era a que mais conhecia a Emília, não deu crédito àquele pretexto de não ir para não dar escândalo.

– Isso é história dela, vovó! Emília até gosta de escândalo. Quer ficar sozinha eu sei para que é – para sapecar á vontade, fazer alguma coisa ainda mais maluca do que aquela da chave do tamanho. Eu, se fosse a senhora, não a deixava aqui sozinha.

Mas Dona Benta era a democracia em pessoa: jamais abusou da sua autoridade para oprimir alguém. Todos eram livres no sítio, e justamente por essa razão nadavam num verdadeiro mar de felicidade. Emília recusava-se a ir? Pois então que não fosse. Como forçá-la a ir? Com que direito? E que adiantaria ir a contragosto, emburrada? E Emília teve licença para ficar.

Isso foi na própria manhã da vinda do convite. Um mês depois chegava a comissão incumbida de levar Dona Benta.

Essa comissão veio no único navio ainda existente no mundo. Todos os outros estavam repousando no fundo dos mares, vítimas dos submarinos e torpedos aéreos. Dona Benta, arrumou as malas, vestiu o seu vestido de gorgorão amarelo do tempo de D. Pedro II, mandou que tia Nastácia pusesse a saia nova de pintinhas verdes e lá foram as duas para bordo do navio.

Pedrinho e Narizinho acompanhavam a ilustre vovó na qualidade de netos; e o Visconde, com uma gorda pasta de ciência debaixo do braço, seguia na qualidade de Consultor Científico.

Emília, o Conselheiro e Quindim estiveram presentes ao bota-fora na porteira, e ouviram as últimas recomendações de tia Nastácia sobre as galinhas, os porquinhos de ceva e uma ninhada de pintos que já estavam bicando.

– Não se ponham a ajudar os pintinhos a sair da casca senão eles morrem – disse ela. – Pinto sabe muito bem se arrumar sozinho. E não esqueçam de molhar as mudinhas de couve lá na horta.

Ouvindo aquelas recomendações tão sensatas, os homens da comissão entreolharam-se, como quem diz: – “Com pessoas de tão belo espírito prático, e tão cuidadosas de tudo, a Conferência vai ser um verdadeiro triunfo para a humanidade (e não erraram.)”

Assim que se pilhou sozinha, Emília correu ã máquina de escrever e bateu uma  carta para uma menina do Rio de Janeiro com a qual andava já de algum tempo se correspondendo e planejando “coisas.”

“Querida Rã:

Estou só – só-só-ró-só-só! Todos foram para a Europa arrumar aqueles países mais amarrotados do que latas velhas e agora preciso que você venha passar uma temporada aqui.

Você é das minhas: das que não concordam. Podemos realizar aquele nosso plano de reforma da Natureza. O Américo Pisca-Pisca era um bôbo alegre. Reformou a Natureza como o nariz dele, e foi pena que a abóbora do sonho não lhe esmagasse a cabeça de verdade.

Seria um bobo de menos no mundo. Nós faremos uma reforma muito melhor. Primeiro reformamos as coisas aqui do sítio. Se der certo, o mundo inteiro adotará as nossas reformas. Sua mãe não há de querer que você venha. É “adulta” e os tais adultos são uns Américos Pisca-Piscas. Mas você vem assim mesmo.

Cheire meia pitada desse pó que vai no saquinho de papel – só meia, se não em vez de parar aqui você vai parar não sei onde. Eles partiram esta manhã e eu já estou me sentindo muito “tênia…” (Depois que Emília soube que “solitária” era sinônimo de “tênia”, passou a empregar a palavra “tênia” em vez de “solitária.” “Não é gramatical” – dizia ela – “mas é mais curto.”)

A Rã, assim chamada por causa da sua magreza de menina de onze anos, era emilíssima, das que não concordam mesmo. Assim que leu a carta, deu dez pinotes e tratou de dividir o pó do saquinho em duas partes “bissolutamente” iguais. Por influência da Emília ela andava usando a palavra “absolutamente” dita dessa maneira.

Antes de reformar a Natureza, Emília já havia feito várias reformas na língua.

– Que está fazendo aí, menina? – perguntou a mãe da Rã, ao vê-la dividindo o misterioso pó.

– Estou “bi” o que leva e trás para que me leve e traga – respondeu ela em linguagem da pitonisa de Delfos (na língua emiliana “bi” queria dizer “dividir em dois.”)

A boa senhora está claro que não entendeu coisa nenhuma, mas como já estava acostumada às respostas enigmáticas da filha, deu um suspiro e foi cuidar de outra coisa.

A Rãzinha cheirou o pó, de acordo com as instruções da carta. Imediatamente seus olhos se fecharam e em seus ouvidos cantou o célebre fiunn! Instantes depois sentiu-se largada no chão. Abriu os olhos: um terreiro! Só podia ser o terreiro do sítio. Mas não viu ninguém. A casa, fechada. No ar, só dois sons; um ronco que devia ser do Quindim na soneca do costume e um barulho de mastigação com jeito de ser Rabicó. Ainda sentada e tonta, a menina gritou: – Emília! Emilinha! Emiloca! …
–––––––––––-
continua…

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Folclore dos Estados Unidos (Crenças dos Haida)

Aldeia Haida

Segundo a lenda, quando uma orca aparece em frente de uma aldeia Haida, ela está tentando dizer que ela já foi humana

O Mundo da Terra é plano, e acima há um céu sólido como uma grande bola. Em cima do topo do céu está o País dos Céus. O céu se levanta regularmente, e assim as nuvens se chocam contra as montanhas e fazem barulho.

O Mundo da Terra está suspenso, mas descansa sobre O Sagrado Que Pára e Se Move, e ele repousa sobre uma caixa de bronze. Sobre o peito dele está um poste que alcança os céus.  Quando o Sagrado Que Pára e Se Move está para se mover, uma marta escala o poste fazendo o barulho de trovão que é sempre ouvido antes do terremoto. Porque quando este Sagrado se move, causa um terremoto.

No País dos Céus, o poder maior é de Poder-do-Céu-Iluminado. Ele dá poder a todas as coisas.  As nuvens são seus lençóis. Nuvens de chuva são o disfarce do Pássaro Trovão(1). Quando as penas do Pássaro Trovão farfalham fazem um barulho muito alto.

O Vento Sudeste vive debaixo do mar. O Vento Nordeste permanece ao longo das montanhas do norte.

Há muitas tribos do Povo do Oceano. Agora, na terra dos Haida, que são as ilhas Queen Charlotte a terra e o mar são emaranhadas de uma extraordinária maneira.

Assim é com a terra do Povo do Oceano – o Povo Octopus (2), o Povo Golfinho, o Povo Orca, e o povo Cachalote. De todos os povos do oceano, o povo Orca é o mais poderoso. Eles tem cidades dispersas ao longo da costa, debaixo da água, assim como os índios tem suas aldeias acima, ao longo da costa.

Quando um homem morre na terra dos Haida, ele segue uma trilha até que ele alcança a praia de uma baía. No outro lado da baía está a Terra Fantasma. Então ele chama, e logo aparece do lado oposto uma pessoa empurrando uma balsa. Essa balsa é feita de cascas de cedro de qualidade, como aquelas usadas nos anéis da sociedade secreta. Então a balsa vem de onde estava para o lugar onde o homem está de pé, e carrega ele.

Lá na Terra Fantasma existem inúmeras aldeias, e muitas cabanas em cada uma. Assim, se um homem procura por sua mulher lá, vai levar um longo tempo fazendo isso. Essas aldeias estão em inúmeras enseadas, perto da água, assim como estão as aldeias dos Haida na terra.

Quando comida ou gordura é colocada na fogueira de uma família de uma homem que acabou de morrer, essa comida aparece para ele de imediato, por isso ele não fica com fome. E, se sua família canta canções bem alto quando ele morre, então ele entra orgulhoso na Terra Fantasma, com sua cabeça erguida. É dado a ele um bom nome nessa terra. Mas se os parente não fazem isso, ele entra cabisbaixo na Terra Fantasma, e as pessoas não vêem importância nele. Quando um homem entra na Terra Fantasma há sempre uma dança em sua homenagem.

Pessoas que são afogados vão para a Terra das Orcas.  Nas primeiro eles vão para o Supremo-do-Mar que dá a eles suas barbatanas e então eles vão para as casas de outras orcas. Quando as orcas se reúnem na frente de uma aldeia, se deduz que eles são seres humanos que morreram afogados e agem desse modo para informar às pessoas.

Um homem que foi para a Terra Fantasma, após ter estado lá por um certo tempo, põem todos os seus pertences numa canoa e vai para Xada, que é a segunda Terra Fantasma. Então ele vai para uma terceira, e depois para uma quarta, e então volta para a terra na forma de uma mosca azul. Portanto, quando uma mosca azul esbarra em um homem na terra, ele diz: “este é meu amigo, que me diz dessa maneira que ele me reconhece.”

Em um lugar além da Terra Fantasma, e apenas visível de lá, vive um chefe chamado Grande Nuvem Andarilha.  Ele possui todo o salmão (3 ). Quando um jogador morre, ele vai até Grande Nuvem e joga com ele. Os prêmios são o salmão e fantasmas. Quando Grande Nuvem Andarilha ganha, muitos fantasmas entravam na Terra Fantasma. Quando o jogador ganha, há uma grande migração de salmão.
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Notas:

(1)
Na mitologia indígena norte-americana, um poderoso espírito em forma de pássaro. Pela sua obra, a terra se encheu de água e vegetação. Se crê que o raio é uma faísca de seu bico, e o bater de suas asas produz o trovão. Muitas vezes é representado com uma cabeça extra em seu peito. Ele é frequentemente acompanhado de pássaros espíritos menores, muitas vezes em forma de águias ou falcões. Embora sua lenda seja muito conhecido na América do Norte, muitas figuras similares são encontradas na mitologia da África, Ásia e Europa (onde é associado com o pica-pau).

(2)
O nome devilfish se aplica tanto à manta (arraia gigante), quanto à uma espécie de polvo.

(3)
O salmão chum, Oncorhynchus keta, é uma espécie de  peixe anadromo da família do salmão. É um salmão do pacífico, e também é conhecido como salmão cachorro e salmão Keta , and is often marketed under the name  salmão Silverbrite. O nome salmão chun vem do dialeto Chinook que se originou como uma gíria de comerciantes da pacífico nordeste e que espalhava desde o rio Columbia até o Alaska.  O chum significa “localizado” ou “marcado”, enquanto “Keta” vem dos evenkis da Sibéria oriental.

Fonte:
UDSON, Katherine B. Myths and Legends of British America. 1917.
Texto em portugues obtido em http://casadecha.wordpress.com

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Leon Eliachar (O Drama de Cada Dois)

Num país onde o divórcio é uma perspectiva e o casamento uma falta de perspectiva, a maioria dos casais sofre problemas os mais disparatados que nem eles próprios conseguem resolver. Daí apelarem para o bom senso (ou falta de) dos colunistas especializados em pôr em ordem os distúrbios neurovegetativos de cada um. Como se vê, o desespero e a falta de preparo emocional para a convivência em comum, levam os pares humanos a pedir conselhos a pessoas estranhas ao serviço. Essas receitas apressadas, nem sempre decidem um destino apoiado na insensatez. No meu caso, sempre achei útil levar minha experiência e o meu profundo conhecimento dos enguiços da alma até aqueles que precisam de um bisturi moral. Respondo a essa gente em “curto-circuito”, certo de que encontrarão em minhas palavras um fusível para os seus casos.

CARTA:
Gostaria muito de conhecê-lo pessoalmente, é possível? (Paula, ou Paulo – Gávea)

RESPOSTA:
Levei sua carta à farmácia, pra saber se o seu nome termina com “a” ou com “o”.  Não pude saber: deram-me um remédio e me mandaram tomar de duas em duas horas.

——

CARTA:
Meu marido nunca usou aliança, desde que nos casamos. (Vladmira — Florianópolis)

RESPOSTA:
0 importante no casamento, Vladmira, não é que o homem use a aliança — é que use a mulher.

——

CARTA:
Sempre que vou à praia, meu marido exige que eu fique deitada de costas. Resultado: estou com a frente preta e as costas completamente brancas. O senhor acha isso normal? (Sandrinha – Guarujá)

RESPOSTA:
Gosto não se discute, Sandrinha. Vai ver, seu marido gosta de mulher de banda branca.

——

CARTA:

Meu marido deu pra ver televisão de cabeça pra baixo, preciso tomar uma providência. (Jupira Nilópolis)

RESPOSTA:
Isso não é tão grave. Procure ver se a sua tevê está na posição certa. Se não estiver, chame um técnico pra examinar o aparelho; se estiver, peça ao técnico pra examinar seu marido. Há maridos que andam com a cabeça virada, às vezes é só trocar uma válvula. Mas não deixe, em hipótese alguma, levarem seu marido pra oficina: ele voltará pior do que estava.

——

CARTA:
Minha mulher costuma receber flores quase diariamente e sempre rasga o cartãozinho sem deixar eu ver de quem é e coloca as flores numa jarra com todo o carinho. (Augusto – Magé).

RESPOSTA:
Seja sensato: pior seria se ela rasgasse as flores e colocasse os cartõezinhos na jarra, com carinho.

——

CARTA:
Acordei sobressaltado com os gritos da minha mulher gritando “fogo! fogo”. Quando abri os olhos, havia um homem saindo pela janela. (Adalberto Barbacena)

RESPOSTA:
Então, meu caro, é fogo mesmo.

——

CARTA:
Gravei o sonho do meu marido e gostaria que o senhor ouvisse. (Iracema – Santos)

RESPOSTA:
Com todo prazer. Mas de preferência quando ele estiver dormindo.

——

CARTA:
Minha mulher tem ido demais ao dentista e só chega em casa de noite. Resolvi segui-la e de fato ela estava no dentista. (Mauro – Sorocaba)

RESPOSTA:
Agora experimente seguir o dentista.

——

CARTA:
Depois que meu marido comprou um automóvel nunca mais saiu de casa. (Raquel – Salvador)

RESPOSTA:
Você devia ficar feliz com isso. Pior se ele comprasse uma casa e nunca mais saísse do automóvel.

——

CARTA:
Contratei um detetive pra seguir meu marido e comecei a seguir o detetive para ver se de fato ele seguia meu marido. Um dia encontrei o detetive batendo 0 maior papo com meu marido. Devo contratar outro detetive? (Mabel – Petrópolis)

RESPOSTA:
0 mais prudente é contratar outro marido.

——

CARTA:
Tenho sido insistentemente pedida em casamento, mas não sei se devo aceitar por causa da diferença de idades: ele tem 42 e eu 18. (Ofélia – São João Del Rei)

RESPOSTA:
A diferença de um homem para uma mulher não é idade, Ofélia. Medite bem nisso.

——

CARTA:
Minha mulher passa horas no telefone e nunca me diz com quem está falando. (Fernando – Piracicaba)

RESPOSTA:
Seja homem e tome uma atitude. Chegue perto de sua mulher e lhe diga frontalmente: “você sabe com quem está falando?” Depois, prepare-se.

——

CARTA:
Em frente à minha casa, todas as noites, fica um homem de terno cinza acenando para a minha mulher. Ela insiste em dizer que se trata de uma estátua e não posso conferir, pois sou paralítico e ela não me leva até lá. (Zé Eduardo – Volta Redonda)

RESPOSTA:
Sua mulher é muito sensata. Já imaginou se ela o leva até lá e a estátua sai correndo? Além de paralítico, você acabaria débil mental.

——

CARTA:
Tenho medo de dormir sozinha e meu marido trabalha de noite. (Maria Clara – Copacabana)

RESPOSTA:
Ligue para uma dessas agências de empregados e peça um acompanhante. Eles têm de tudo. Se um dia o seu marido passar a trabalhar de dia, vai ser o diabo pra se livrar do acompanhante.

——

CARTA:
Peguei um trem e só quando cheguei em casa foi que reparei que dentro da minha capa havia um homem. (Arnalda – Engenho de Dentro)

RESPOSTA:
E o que foi que você fez: botou a capa no armário, com homem e tudo, ou guardou só a capa? Esse detalhe, embora não pareça, é muito importante para ajudá-la.

——

CARTA:
Durante o noivado, minha noiva fazia questão de levar um primo para todos as nossos programas. Agora, que nos casamos, ela faz questão que ele venha morar conosco, pois o coitadinho é órfão. Que acha disso? (Orfeu – Taubaté)

RESPOSTA:
Depende do tamanho do primo. Se for pequenininho, acho que vai dar muito trabalho a ela. Se for grandinho, vai dar muito trabalho a você.

——

CARTA:
Há vários anos que meu marido não me dá um par de sapatos, no entanto troca de carro todos os anos. (Ariana – Teresópolis).

RESPOSTA:
Há maridos que custam a se decidir, minha cara. A mulher deve ter paciência. Agüente a mão, ou melhor, agüente o pé.

——

CARTA:
Minha mulher deu pra desconfiar de mim, logo agora que vamos completar cinqüenta e seis anos de casados. (Luis Jorge – Encantado)

RESPOSTA:
Já desconfia tarde.

——

CARTA:
Meu psicanalista está doido, disse que eu precisava me casar com um psicanalista e acontece que já sou casada com um psicanalista, que é justamente ele. (Beatriz – Niterói)

RESPOSTA:
Então ele demonstrou ser um ótimo psicanalista e um péssimo fisionomista.

——

CARTA:
Meu farmacêutico é anão e toda vez que vem me dar injeção, meu marido proíbe. Acha que eu seria capaz de simpatizar com um anão? (Florilda – Recife)

RESPOSTA:
Não acredito que seu marido tenha alguma coisa contra o anão. Talvez seja porque ele, ao aplicar a injeção, não alcance o seu braço.

——

CARTA:
Todas as manhãs, quando abro o armário, meu terno marrom sai andando e pega o elevador. (Alcinó – Espírito Santo)

RESPOSTA:
Por enquanto, não há perigo. Chato vai ser quando seu terno marrom sair e voltar azul.

——

CARTA:
Passei três meses viajando pra esquecer um homem e agora não me lembro mais quem é ele. (Harilda – Pelotas)

RESPOSTA:
Faça outra viagem pra ver se se lembra.

——

CARTA:
Os vestidos de minha mulher encolheram e ela não manda fazer outros, fica com o busto de fora e não pode sentar sem mostrar os joelhos. E quer me convencer que está na moda. (Pedrinho – Brasília)

RESPOSTA:
De uma certa forma, sua mulher está com a razão: busto e joelho de mulher não caem nunca da moda, pelo menos enquanto não completam cinqüenta anos.
——

CARTA:
Sempre que vou ao cinema com minha mulher, ela senta em cima e eu embaixo. O senhor acha isso normal? (Alfredo – São Paulo)

RESPOSTA:
Absolutamente, acho isso ridículo. E os vaga-lumes, não dizem nada? Se sua mulher é muita pesada, o lógico seria você sentar em cima.
——

CARTA:
Meu marido passa as noites escrevendo o seu diário. Mas isso é o de menos, o pior é que costuma escrever com um garfo. (Ira – Rio)

RESPOSTA:
Consulte um garfologista.

Fonte:
ELIACHAR, Leon. O Homem ao Cubo. RJ: Álvaro Editor, 1964.

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Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : Mote Estrambótico)

Mote

Das costelas de Sansão
Fez Ferrabrás um ponteiro,
Só para coser um cueiro
Do filho de Salomão.

Glosa
Gema embora a humanidade,
Caiam coriscos e raios,
Chovam chouriços e paios
Das asas da tempestade,
— Triunfa sempre a verdade,
Com quatro tochas na mão.
O mesmo Napoleão,
Empunhando um raio aceso,
Suportar não pode o peso
Das costelas de Sansão.

Nos tempos da Moura-Torta,
Viu-se um sapo de espadim,
Que perguntava em latim
A casa da Môsca-Morta.
Andava, de porta em porta,
Dizendo, muito lampeiro,
Que, p’ra matar um carneiro,
Em vez de pegar no mastro,
Do nariz do Zoroastro
Fez Ferrabrás um ponteiro.

Diz a folha de Marselha
Que a imperatriz da Mourama,
Ao levantar-se da cama,
Tinha quebrado uma orelha,
Ficando manca a parelha.
É isto mui corriqueiro
Numa terra, onde o guerreiro,
Se tem medo de patrulhas,
Gasta trinta-mil agulhas,
Só para coser um cueiro.

Quando Horácio foi à China
Vender sardinhas de Nantes,
Viu trezentos estudantes
Reunidos numa tina.
Mas sua pior mofina,
Que mais causou-lhe aflição,
Foi ver de rojo no chão
Noé virando cambotas
E Moisés calçando as botas
Do filho de Salomão.

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Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 47 , final

CAPÍTULO XXVIII

Dadas as providências para o enterro do velho Caetano, Teobaldo tomou algumas colheres de caldo e meteu–se na cama, recomendando que não o chamassem.

Passou o dia inteiro na modorra da febre e à noite foi necessário buscar o médico, porque o seu incomodo recrudescia. O médico examinou-o e declarou que havia uma congestão de fígado. Era, pois, indispensável para o doente evitar todo e qualquer abalo moral e submeter-se a um rigoroso tratamento, sem o que podia sobrevir a hemoptise, e a coisa tornar-se então muito mais séria. Acudiu logo muita gente com a notícia da moléstia de S. Exa.; como, porém, o doutor havia proibido ao enfermo falar a alguém, contentavam-se todos com deixar o cartão de visita; só o Coruja não levou lá o seu nome, porque nunca passava do portão do jardim e entendia-se com os criados inferiores.

Hipólito e D. Geminiana achavam-se então na fazenda e por isso não deram sinal de si.
Todavia, e apesar dos afetados desvelos de tanta gente, a hepatite do senhor conselheiro progredia, agravada agora por uma lesão pulmonar, cujos sintomas já se denunciavam. Ele, muito abatido, o rosto cor-de-oca, a barba de quatro dias, os olhos fundos e tingidos de amarelo, mostrava-se muito desanimado e com um grande medo de morrer.

O médico ia vê-lo três vezes ao dia e de todas lhe recomendava a mais completa tranqüilidade de espírito. O doente sorria ao ouvir estas palavras. Uma noite mandou chamar a mulher. Ela não se fez esperar e correu ao quarto do marido. A enorme transformação, que lhe notara logo ao primeiro golpe de vista, impressionou-a vivamente; contudo quedou-se fria e contrafeita à porta da alcova, como se estivesse defronte de um estranho.

— Branca!… Murmurou ele, volvendo para a esposa os olhos já despidos do primitivo encanto.

— O médico recomendou que lhe não deixassem falar… Respondeu ela, sem sair do ponto em que se achava.

— Venha para junto de mim, pediu o infeliz; preciso do seu perdão.

Branca aproximou-se dele, recomendando de novo que se calasse. Teobaldo, quando a sentiu ao alcance de suas mãos, quis abraçá-la. Branca retraiu-se com um movimento espontâneo, no qual só transparecia repugnância. Ele fechou os olhos e deixou cair a cabeça sobre os travesseiros. Ela então adiantou-se, arrependida talvez de o haver contrariado, mas soltou logo um grito, porque o marido sentindo congestionar-se-lhe o sangue no pulmão, erguera-se de súbito, sufocado por uma golfada de sangue. Era a hemoptise.

O quarto encheu-se de estranhos; uma balbúrdia formou-se em torno de Teobaldo; todos queriam socorrê-lo, mas ninguém o conseguia; o sangue lhe golpejava pelas ventas e pela boca.

O médico, quando entrou daí a nada, declarou-o morto.

CAPÍTULO XXIX

O fato, mal caiu em circulação, abalou deveras o público. Desde as nove horas da manhã notou-se na cidade um movimento anormal de ordenanças a cavalo e de tílburis, que subiam e desciam a todo o trote a praia de Botafogo.

No dia subsequente cada folha das diárias, trouxe na sua parte editorial um artigo de fundo a propósito do ilustre morto. Tudo que se pode dizer sobre um político e sobre um homem de talento publicou-se a respeito de Teobaldo; publicou-se em tipo grande, entrelinhado e guarnecido das melhores flores de retórica de que dispunham as redações; mas, no que pareciam ajustadas, era em glorificar o falecido como um peregrino exemplo de honestidade e retidão.

“Ainda há bem pouco tempo, dizia um dos jornais mais acreditados, tinha o insubstituível cidadão que a morte acaba de arrebatar-nos, a seu cargo uma das pastas mais rendosas, do ministério, e talvez, afora a da Fazenda, a que melhor se presta a certos manejos de especulação e, no entanto bem ao contrário do que é de costume entre nós, ele morreu pobre, paupérrimo, a ponto de se lhe encontrar em casa apenas um pouco de dinheiro em papel e quase nenhum objeto de valor. Só este fato, pela sua raridade, é mais que o bastante para dar idéia de quem foi Teobaldo Henrique de Albuquerque colocar o seu nome entre os daqueles que figuram no Panteão da História, cercado de glória, abençoado pela sua geração e eternamente benquisto pela humanidade.”

Toda a imprensa se mostrou empenhada em que o governo estabelecesse imediatamente uma pensão à viúva de festejado defunto, e tal foi o entusiasmo que semelhante morte encontrou no público e até entre os colegas do morto que na câmara chegaram a falar em erigir-lhe uma estátua. Em uma subscrição para este fim aberta, figurava em primeiro lugar a assinatura de Afonso de Aguiar com a quantia de quinhentos mil réis.

Poucos, muito poucos dos enterros que têm havido no Brasil, poderiam rivalizar com o que ele teve. Parecia que se tratava da morte de um príncipe, tal era o acerto do gosto, a boa disposição artística; tal era a distinção, o luxo aristocrático daquelas cerimonias, que a gente tinha vontade de acreditar, que por ali andava o dedo do próprio Teobaldo e que tudo aquilo era obra dele. Dir-se-ia que de dentro do seu rico caixão, coberto de crepe e engenhosamente entretecido de fúnebres coroas, Teobaldo dirigia o solene préstito que o acompanhava à sepultura. Esperava-se ver a cada momento surgir entre as abas do caixão a cabeça do grande homem de gosto, exclamando para algum soldado que saíra da fileira:

— Mais para a direita! Para a direita! Em linha!

E, todo aquele reluzir de dragonas e comendas, e todo aquele deslumbramento de fardas bordadas, aquele cintilar de armas em funeral, e mais aquela marcha cadenciada da tropa; tudo se casava admiravelmente com a impressão gloriosa que Teobaldo deixava gravada na alma do povo, desse mesmo povo que ele dominou com a sua encantadora figura de fidalgo revolucionário e com o seu fino espírito de diplomata apaixonado pelas multidões.

Coruja estava na rua, quando lhe deram a notícia da morte do amigo. Ao contrário do que esperavam todos, ele a ouviu sem soltar uma palavra de dor ou derramar uma lágrima; apenas lhe notaram certa contração no rosto e um quase imperceptível sorriso de desdém. Contudo, atirou-se logo para Botafogo e, quando deu por si, estava defronte da casa do falecido, sem aliás sentir ânimo de levar àquelas magníficas salas em luto o seu pobre tipo farandolesco e miserável.

Acompanhou o enterro de longe, a pé, coxeando como um cão ferido que segue a carruagem do dono. Ao chegar ao cemitério já as formalidades do estilo estavam cumpridas. Um coveiro em mangas de camisas socava a sepultura de Teobaldo, e a multidão, que o acompanhara até aí, punha-se em retirada, com pressa, como quem volta de fazer uma obrigação e quer aproveitar ainda o resto do tempo.

Coruja parou cansado e encostou-se numa sepultura, a olhar estranhamente para tudo aquilo. O cemitério recaía aos poucos na sua pesada sonolência, enquanto os últimos clarões do dia descambavam no horizonte em um rico transbordamento de cores siderais. Já as montanhas ao fundo se cobriam de azul escuro e os ciprestes rumorejavam as primeiras horas da noite.

Ouviam-se rolar ao longo da rua as derradeiras carruagens que se retiravam e, de espaço a espaço, uma pancada surda e desdobrada pelo eco. Era a maceta do coveiro que socava a terra,

Coruja seguiu, coxeando, a direção dessas pancadas e, chegando à sepultura do amigo, ficou a contemplá-la em silêncio.

— Quer alguma coisa? Perguntou-lhe o coveiro.

— Nada, não senhor, respondeu André.

— Pois então é andar, meu caro, que são horas de fechar o cemitério!

Com efeito, quando os dois chegaram ao portão, já o guarda os esperava sacudindo as suas chaves.

Coruja, logo que se viu só, encostou-se ao muro do cemitério e começou a soluçar.

Chorou muito, até que um fundo cansaço se apoderou dele voluptuosamente. Sentia-se como que arrebatado por um sono delicioso; mas caiu logo em si, lembrando-se de que já se fazia tarde e naquele dia, distraído com a morte do amigo, descuidara-se da gente que tinha à sua conta.

E manquejando, a limpar os olhos com a manga do casaco, lá se foi, rua abaixo, perguntando a si mesmo “Onde diabo iria, àquelas horas, arranjar dinheiro para dar de comer ao seu povo?…”

FIM

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Vocabulário de termos e expressões regionais e populares do Centro Oeste (Mato Grosso e Goiás) C, D e E

CABANO — Bovino de chifres inclinados para baixo.

CABRITO — Homem de côr parda; mulato.

CACHAÇO — Porco reprodutor; varão.

CADIQUINHO — Um pouquinho; um bocadinho.

CAITITU — Porco do mato, menor que o queixada e que eriça o pêlo quando enraivecido.

CALABOUÇO — Poço de monjolo, onde cai a água que se escoa do cocho.

CALHAU — Pedregulho grande.

CAMARADA — Assalariado: jornaleiro de serviço rural; guia de viagem; auxiliar de tropa.

CAMBÃO — Tirante que vai da canga ao cabeçalho da mesa do carro de bois; leva de madeira. Diz-se que a mulher pulou o cambão: praticou adultério.

CANDANGO — Trabalhador deslocado. Em Brasília a expressão é extensível a todos os assalariados. Antigamente os africanos designavam assim os portugueses.

CANDIEIRO — Aquele que guia os bois do carro; vai sempre com uma vara às costas, mas não chucha. O carreiro é o que segue a boiada do carro, ao lado e chuça.

CANELA-DE-EMA — Planta de tronco pilroso, característica dos altos chapadões. O caule sustenta o fogo aceso e é muito útil nas estivas de estradas. Predomina nas cercanias de Brasília. Com o caule, faz-se uma brocha para caiação de casa.

CANGA — Peça de madeira que vai aos pescoços dos bois. É pela canga que se faz a tração do carro.

CANGUÇU — A maior onça brasileira. Pintada.

CANZIL — Fueiro que enfia na canga, dois para cada boi, ao pescoço. Dança de macho com macho.

CAPA (pop.) — Cápsula medicamentosa.

CAPANGUEIRO — Comprador de diamante nos garimpos.

CARCUNDA, CACUNDA — Costas, dorso do corpo humano.

CARGA-DE-FUMO — Dois rolos de fumo que se conduz um de cada lado do animal. O fumo enrolado mede 32 metros de comprimento. Meia carga: um rolo com 16 metros.

CARMO DA BAGAGEM — Cidade mineira famosa pelas pedras de grande valor, encontradas nos seus garimpos. O seu nome atual é Estrela do Sul. Foi lá que encontraram o diamante Getúlio Vargas.

CATA — Abertura no solo para pronta do garimpar.

CATANA — Parte do jacaré que fica entre rabo e o corpo; é a melhor porção para se comer.

CATINGUEIRO — Capim melado, capim gordura; veado da catinga (mato baixo e seco).

CATIRA — Cateretê; dança de roceiros.

CHAMPRÃO (corrupt.) — Prancha, pranchão.

CHIFRAINA — Depreciativo, reles banda de música da roça.

CINCHA — Correia ‘com que se afirma a cangalha e a carga ao corpo do animal.

CINCHAR — Apertar a chincha.

CHUPE — Abelha agressiva, que constrói grandes colmeias em troncos de árvores altas, etc.

CIGARRO DE CORDA — Cigarro de palha de milho e fumo de rolo.

CIPÓ — Faca fina e comprida.

COCA — Galinha-de-angola.

COIVARA — Amontoado de paus e galhadas, no roçado, não queimados.

COIVARAR — Juntar galhos e madeiras não queimadas, na roça, para nova queima.

COMETA — Mascate ou viajante, carregando consigo amostras ou mesmo mercadorias. Os cometas eram famosos. Levavam uma boa tropa, inclusive a madrinha, que puxava a tropa e era sempre ou uma besta muito boa ou uma . eguinha branca, muito bonitinha. Trazia os cincerros e mais enfeites guardados e tirava-os perto do comércio. A madrinha era enfeitada, cheia de sedas, reluzentes cincerros, penacho na cabeça e muita pompa. O cometa enchia o balcão do comerciante de tudo quanto era amostra. O comerciante antigo do interior não comprava por conversa. Queria ver e palpar o artigo para mandar vir tantos metros disto, tantas enxadas, tantas foices e machados, tantos pares de sapatos, enfim, de tudo.

CORNIMBOQUE — Binga de isqueiro, feito de ponta de chifre.

CORÓ — Verme; larva que se desenvolve em madeira podre.

CORRUMAÇA — Carga de doenças venéreas. “O libertino apanhou uma corrumaca…”

CORRUTELA — Aldeiamento provisório de garimpeiros.

COXINILHO — Tecido peludo de lã ou algodão que se coloca sobre o arreio do animal ou na boléia dos carros.

CUERA (é) — Ruim, ordinário

CURUMI — Menino índio.

D

DE GRITO — Expressão usada pelos sertanejos para indicar distância perto. Eles usam espichar o beiço inferior e dizer: “é ali mesmo; é bem ali…” (vai andar pra ver).

DERRADEIRO — Último. Expressão muito usada. “Chegou por derradeiro…”

DESENFURNAR — Pôr para fora; desentocar; tirar da furna (os cachorros desenfurnaram a onça).

DESGUARITAR — Desgarrar; arribar; fugir.

DESMASELO (pop.) — Alfinete de pressão.

DILATAR — Demorar.

DIVINO PAI ETERNO — Interjeição em Goiás. É o “meu Deus” dos goianos.

DOCE — Açúcar.

E

EITO — Tarefa de serviço rural: eito de capina, de roçado etc.

EMBURRADO — Calhau enorme: bloco de pedra que contém minério.

EMPACHAR — Constipar; ter endurecimento do ventre…

EMPACHO — Prisão de ventre; dureza de intestinos; comida parada no estômago…

EMPATAR — Atrapalhar; estorvar… “Não desejo empatar os seus negócios…”

EMPREITEIRO — Palavra de cangaço que significa aquele que pega um “serviço” ou um “trabalho” para fazer.
Dizem que certa vez um fazendeiro se indispôs com um seu vizinho que lhe havia soltado o gado na roça. Este, no auge da raiva, procurou um “empreiteiro” para matar o tal vizinho. Ofereceu–lhe quatro contos de réis mais uma mula muito boa e ainda uma carabina não menos boa. Este assassino profissional residia na cidade. Ficou assentado o “serviço” para o dia tal. Na noite, véspera do crime, o fazendeiro fêz um exame de consciência e não pôde. dormir. Arrependeu-se do negócio, pois ele não era disso. Madrugou na casa do “empreiteiro”. A mulher disse que ele estava na igreja. O fazendeiro alegrou-se com aquilo e dirigiu-se para lá. Entrou. O homem lá estava ajoelhado. O fazendeiro acercou-se cauteloso: — Ainda bem que o encontrei. Vim lhe dizer que pode ficar com os quatro contos, com a besta e a carabina, conquanto que não conte a ninguém, mas o “serviço” não quero mais não. Que fica para outra ocasião. Matar um homem por tão pouco não convém, não assenta em mim. — Tarde demais, meu coronel: um “trabalhador” como eu, “faz o “serviço” é bem cedo: já estou aqui de velho, rezando pela alma do finado…

ENCAFUAR — Esconder; guardar.

ENCOIVARAR — O mesmo que coivarar.

ENTOJADO — Pretensioso, enfatuado.

ENTOJAR-SE — Enf atuar-se; tornar-se soberbo; ter mania de superioridade.

ERADO — Adulto; “Boi erado”.

ESCANCHELADO — Relaxado; Desmontado.

ESCARAFUNCHAR — Procurar com reboliço, remexer objetos; não deixar lugar algum sem busca.

ESCORVAR — Pôr um tico de pólvora no ouvido da arma.

ESPINHELO — Espinel: uma corda que atravessa o rio com várias pindas. Há espinel com mais de duzentos anzóis.

ESTAFERMO: Bobo; Sujeito maltrapilho.

ESTALEIRO — Latada; estaleiro para chuchus, parreira; etc.

ESTIVA — Secagem de um atoleiro por meio de paus, bagaços e saibro.

ESTIVAR — Secar uma passagem pantanosa.

ESTORVO — Impedimento. Estorvar; impedir; atrapalhar.

ESTRADA REAL — Estrada principal.

ESTRUDIA (corrup) — no outro dia.

ESTUGAR — Mandar para a frente (animais).

ESTUMAR — Atiçar. “Estumar o cão”.

ESTUQUE (pop.) Forro de casa (em geral).

ESTÚRDIO — Extravagante; esquisito; tonto.

ESTURRAR — Urro da onça pintada, canguçu. A pintada não só esturra como dá grandes estalos com as orelhas, parecendo a quebra de um pequeno galho seco; depois dá outro; no terceiro, já está em cima da presa.

ÊTA! — Exclamação que indica admiração; muito comum em Goiás.

Fonte:
Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. . Ed. Literat. 1962

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Varal de Trovas n 44 – Elbea Priscilla Souza e Silva (Caçapava/SP) e Maria Nascimento Santos Carvalho (Rio de Janeiro/RJ)

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A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas “Trovia” – n. 166 – outubro de 2013)


No portão, os namorados
são como barcos no cais:
pelos beijos amarrados,
querem ir e ficam mais.
Cleonice Rainho

Juntamos nossos farrapos
naquele rancho sem flor:
era a miséria dos trapos
numa fartura de amor.
J. Guedes

Saudade quase se explica
nesta trova que te dou:
saudade é tudo que fica
daquilo que não ficou.
 Luiz Otávio

Na blusa prendes a rosa
à altura do coração.
Como pode ser viçosa
uma flor sobre um vulcão?!
Miguel Russowsky

No amor é bom ter cuidados
para evitar dissabor…
Nem sempre em beijos trocados
trocam-se beijos de amor.
Milton Nunes Loureiro

Eu faço agora um reparo,
embora você não faça:
– Se o nosso amor é tão caro,
por que brigamos de graça?
Roberto Medeiros

 
Se o teu beijo, que inebria,
deixasse os lábios doendo,
o bairro não dormiria,
com tanta gente gemendo!…
Edmar Japiassú Maia – RJ

De surpresa, muitas vezes,
vinha o noivo da vizinha…
E, depois de nove meses,
nasceu uma surpresinha…
Flávio Stefani – RS

A morena, quando passa,
no molejo das cadeiras,
deixa nos olhos a graça;
no pensamento, besteiras!…
J. J. Germano – RJ

Mulher de marido forte,
dando sopa a moço guapo,
se o moço não for de sorte,
a “sopa” acaba em so-papo!
José Ouverney – SP

Sou louco quando preciso
e o remorso não me assalta;
eu nunca tive juízo
e ele nunca me fez falta…
Milton S. de Souza – RS

Nas capelas, a candura
das esposas nas novenas.
Fora delas, a aventura
dos maridos “noutras” cenas…
Olga Agulhon – PR

Uma avestruz comilona
engoliu meu ioiô novo,
e faz dias que a glutona
vem botando o mesmo ovo!
Renata Paccola – SP

Com a bagunça rolando,
sem ter mais o que falar,
chilique, de vez em quando,
bota tudo no lugar!
Selma Patti Spinelli – SP


 
Vai, riozinho, sem pressa…
lembra ao mar, sem raiva ou mágoa,
que ele é grande, mas começa
num modesto olhinho d’água!
A. A. de Assis – PR

Quem espera sempre alcança…
Mas eu em lutas me ponho:
sou guerreira da esperança,
vivo em busca do meu sonho…
Adélia Woellner – PR

O meu humilde barquinho
à praia fiz aportar.
Vim procurar o carinho
que teimas em me negar!
Alberto Paco – PR

Sei que  a vida é muito dura
e por isso não me iludo,
mas sonhar não se segura
e em sonhos alcanço tudo.
Almir Pinto de Azevedo – RJ

Não desgastes, noutros leitos,
o ardor dos abraços teus,
pois teus braços foram feitos
para refúgio dos meus.
Almira Rebelo – MG

Não acredites em quem
te promete amor e paz
sem explicar de onde vem,
o que quer nem o que faz.
Amaryllis Schloenbach –SP

Xícaras postas na mesa
e o café sobre o fogão…
Só não aguento a incerteza
se você virá ou não.
Antonio Seixas – RJ

O amor, para muita gente,
é diversão perigosa.
Quem não sabe ser prudente
transforma em espinho a rosa.
Arlene Lima – PR

Conquista espaços, direitos,
mas, escrava da emoção,
a mulher pinta conceitos
com tintas do coração!
Carolina Ramos – SP

Há na tragédia da fome
este mistério profundo:
É Cristo quem se consome
em cada pobre do mundo.
Clevane Pessoa – MG

Velhas fotos! Que saudade!
Imagens bem conhecidas
dos tempos da mocidade,
dos fatos das nossas vidas…
Colavite Filho – SP

Teu grande amor, que ironia,
é hoje coisa esquecida…
– Foi luz que por um só dia
iluminou minha vida.
Conceição Assis – MG

Quanto mais a idade avança,
no longo tempo a correr,
eu tenho mais esperança
e mais prazer em viver…
Cônego Telles – PR

Gracias a los sembradores
que han tomado conciencia,
pues serán consechadores
de las mies por su prudência,
Cristina Oliveira Chávez – USA

Do vale emergi ao topo,
da relva virei madeira,
do poço fui ao escopo
e em tudo fui verdadeira.
Dáguima Verônica – MG

Cem vezes tu repetiste
que me amavas loucamente…
Cem vezes tu me mentiste
e cem vezes eu fui crente!
Delcy Canalles – RS

Trovador!  Que trova fazes?
– Amigo, nem sei dizer!
Com ela, já fiz as pazes,
casados até morrer!
Diamantino Ferreira – RJ

Agora, que tu partiste,
sinto a força da verdade
do grito de dor que existe
no silêncio da saudade.
Domitilla B. Beltrame – SP

Do que agitou nossas almas
restam sonhos calcinados,
cingindo as crateras calmas
de dois vulcões apagados.
Dorothy Jansson Moretti – SP

Cantarão céu, terra e mar
em harmonia festiva,
quando o mundo se tornar
a Grande Cooperativa.
Élbea Priscila – SP

Aplauso é luz de dois gumes…
Cuidado… avisa o teu ego…
O excesso, às vezes, de lumes,
transforma o sábio num cego…
Eliana Dagmar – SP

Criança muito levada,
que corre, chuta e sacode…
Que disciplina, que nada:
— Casa da vó tudo pode!
Eliana Jimenez – SC

Não culpe a mãe por problemas
que você sofre hoje em dia;
ela teve os seus dilemas
tentando dar-lhe alegria!
Eliana Palma – PR

No tear da solidão,
rendeiro em dias tristonhos,
basta um fio de ilusão
para tecer os meus sonhos!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Este orgulho que carregas,
insano, dentro do peito,
foge tão logo te entregas
de corpo e alma em meu leito.
Ester Figueiredo – RJ

Este silêncio, tão mudo,
que o nosso olhar escondia…
nos fez sentir quase tudo
de tudo o que eu já sentia!
Eva Yanni Garcia – RN

Pão, alimento completo.
Foi, por Deus, abençoado
e, pelo Filho Dileto,
com seu corpo comparado.
Evandro Sarmento – RJ

Nesses conflitos da Terra,
a minha fé se refaz,
vendo que a bomba da guerra,
não vence a pomba da paz!
Francisco Garcia – RN

Quem não tem família sente
a triste ausência dos seus,
porque a família presente
faz-se um presente de Deus.
Gabriel Bicalho – MG

Qual fosse uma exímia artista,
a formiguinha (em verdade),
com dotes de equilibrista
desafia a gravidade!
Gasparini Filho – SP

O progresso traz mudanças,
cria fábricas e usinas,
mas se esquece das crianças
que dormem pelas esquinas!
Gerson César Souza – PR

Sou tão triste e tão sozinha,
que o eco do meu lamento,
desta saudade tão minha,
escuto na voz do vento!
Gislaine Canales – SC

Quando o inverno se despede,
dá lugar à primavera;
de pronto o perfume excede,
anunciando a nova era.
Hulda Ramos – PR

Saudoso comprei passagem
de retorno a minha infância.
Mas como seguir viagem
se eu nem mais sei a distância?
Humberto Del  Maestro – ES

Vou perdendo todo o encanto
e a mais saudosa lembrança,
mas guardo ainda, num canto,
um restinho de esperança…
Istela Marina – PR

Não há dor mais dolorida
do que a tristonha aparência
de quem matou pela vida
a sua própria inocência.
J.B. Xavier – SP

Se palavras são em vão
ao amigo, no fracasso,
externo a minha emoção
no silêncio de um abraço.
J.B.X. Oliveira – SP

O Almanaque Santo Antônio e a Folhinha do Sagrado Coração de
Jesus (Editora Vozes) – 2014 trazem numerosas de trovas. Confira.


Fizeste tanto mistério
sobre o que por mim sentias,
que, quando falaste a sério,
já não cri no que dizias.
Jaime Pina da Silveira – SP

Dei-te o melhor dos abraços,
do mais profundo querer…
Mas a força dos meus braços
não conseguiu te prender!
Janske Schlenker – PR

Não sei se é pecado ou vício,
bobeira… sei lá mais quê
este agridoce suplício
de só pensar em você!
Jeanette De Cnop – PR

Quando estás a caminhar
na praia, invejo as marés,
que são desculpas do mar
para beijar os teus pés!
José Fabiano – MG

Vivo em busca de carinho,
em castelos de ilusão…
Tanto tempo estou sozinho,
quem me aquece é a solidão.
José Feldman – PR

Se a vida, nos rios, nada;
nos galhos, brinca e balança,
podemos plantar na estrada
um novo pé de esperança.
José Lucas de Barros – RN

O mundo virou uma bola
desde o velho Galileu;
também nele tudo rola,
se parte é luz, outra é breu.
José Marins – PR

Minha vida é tão vazia…
e ronda tanto a incerteza,
que, mesmo tendo alegria,
aperto a mão da tristeza!
José Messias Braz – MG

Tuas cartas, minha linda,
contêm uns dons estranhos:
transmitem ternura infinda
paz em pequenos tamanhos!
Laérson Quaresma – SP

Humor exige tempero, / porém na exata medida. /
Se na pimenta há exagero, / a graça resulta ardida… (aaa)


Eu fui deixando um a um
meus vícios e compulsões…
E feliz, hoje, em jejum
me alimento de emoções
Lisete Johnson – RS

Nessa vereda que é a vida,
vou de tropeço em tropeço,
pois cada nova subida
é sempre um novo começo.
Luiz Carlos Abritta – MG

Qual o filho mais querido,
aquele que a mãe mais gosta?
Se existe algum preferido,
nem ela sabe a resposta!
Luiz Hélio Friedrich – PR
 –

Imortal não sou agora,
mas eu tenho uma alegria:
– Sou poeta e ao “ir-me embora”…
deixo um rastro de poesia!
Ma. Lúcia Daloce – PR

A imensidão desse amor,
que me transcende o presente,
faz suportar minha dor
quando o seu corpo está ausente.
Mª Luíza Walendowsky – SC

Sabedoria… só cabe
a quem tem por diretriz
não dizer tudo o que sabe,
mas… saber tudo o que diz.
Ma. Madalena Ferreira – RJ

Saibam todos que o trabalho
ao homem bom enobrece;
mas quem não pega no malho,
seu espírito empobrece!
Maurício Friedrich – PR

Uma flor a florescer,
nunca vi coisa mais bela,
parece o amor renascer,
entrando pela janela.
Neiva Fernandes – RJ

O planeta está fadado
a sumir completamente,
pois a força do machado
já supera a da semente.
Nélio Bessant – SP


Mais fraternidade. Mais criatividade. Menos competição.
A beleza maior da trova é fazer do amigo um irmão.

 –

Nossa união, fortes elos,
mostra ao mundo seu valor;
traça ao vivo paralelos
do que restou desse amor.
Olga Ferreira – RS

Tento esconder como estou,
mas saudade não tem jeito:
– Tua ausência faz um gol
e rasga a rede em meu peito…
Pedro Melo – SP 

Carícia mais eloquente
que meu coração aprova
é te dar um beijo ardente
nos versos da minha trova!
Renato Alves – RJ

Encontrei com a saudade
solitária, mas tão bela,
e sem medo, sem vaidade…
Eu beijei as tranças dela.
Sarah Rodrigues – PA

Entre todos os recantos
é aqui que me sinto bem:
– o meu lar tem tais encantos
que outros lugares não têm!
Sônia Ditzel Martelo – PR

Sei que viver é lutar,
mas luto em desigualdade.
Eu sou concha e a vida é o mar
em noite  de tempestade.
Therezinha Brisolla – SP

Tendo um bom livro na mão,
viajo o mundo… crio asa.
Mando embora a solidão…
sem sair da min  ha casa!
Vânia Ennes – PR

Não teme a seca inclemente
quem confia em seu labor;
planta a pequena semente
sentindo o cheiro da flor.
Wandira F. Queiroz – PR

Que bom seria um enlace
entre a mente e o coração:
o que a gente desejasse
também quisesse a razão!
Wanda Mourthé – MG

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Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 46

CAPÍTULO XXVI

Foi em tal estado que ele, atravessando certa noite uma das ruas menos frequentadas da cidade velha, sentiu, da rótula de uma casinha de porta e janela, baterem-lhe no ombro.

— Abrigue-se da chuva, disse uma voz de mulher.

Teobaldo afastou-se, mas não tão depressa que não chegasse a reconhecer quem o provocara.

Era Leonília.

Uma rápida nuvem de desgosto tingiu-lhe logo o coração. Parou. Ela não o tinha reconhecido, graças à circunstância de que Teobaldo levava o sobretudo com a gola levantada e o guarda-chuva aberto. Sua primeira intenção foi dar-lhe dinheiro e seguir caminho sem lhe falar; mas tomado de súbito por uma outra ideia, olhou em torno de si, fechou o guarda-chuva e transpôs a porta que Leonília havia já aberto.

Ah! Que terrível impressão experimentou S. Exa. ao achar-se em meio daquela pequena sala, sistematicamente preparada para o vício barato! Que doloroso efeito lhe causaram aquelas pobres cortinas de renda, aquelas cadeiras encapotadas de musselina branca, para fingir mobília de luxo; aqueles dois consolos cobertos de crochê e guarnecidos por um par de bonecos de gesso colorido; aquela mesinha de centro, onde havia um candeeiro de querosene e ao lado deste um maço de cigarros Birds’s eye!

Teobaldo, sem tirar o chapéu, considerava entristecido tudo isto, enquanto a dona da casa passava para uma alcova que havia ao lado da sala, deixando correr atrás de si uma cortina de lá vermelha.

— Que transformação, pensava. ele. — Que transformação.

E, a despeito de tudo, sua memória o transpunha ao passado reconstruindo os extintos aposentos da cortesã, outrora tão luxuosos, e nos quais ele tantas vezes viu palpitar de amor nos seus braços aquela mesma mulher, quando era moça. Então, a beleza de Leonília, a mocidade de ambos, o luxo que os cercava, punham-lhe no amor um lânguido reflexo de romantismo, um picante sabor orgíaco, um quer que seja, que agradava à vaidade dele e satisfazia em segredo ao temperamento dos dois. Então, atiravam-se um contra o outro, sem se envergonharem da sua loucura; bebiam pela mesma taça o vinho de sua mocidade, e os beijos estalavam entre seus lábios como o estribilho de uma canção de amor.

Oh! Mas a prostituição é contristadora, ainda mais quando precisa trocar a túnica de seda pelos andrajos da mísera; a prostituição é pavorosa quando não gira sobre diamantes e não tem a seu serviço a beleza e a mocidade.

— E quanto ela era bela dantes! Que partido não sabia tirar de todos os seus tesouros! Com que graça não se embriagava, mostrando o colo e deixando-se cair em gargalhadas nos braços dos seus amantes! E agora… Uma velhusca, muito gorda, o rosto coberto de rugas mal disfarçadas pelo alvaiade, os olhos cansados, os olhos descaídos, os dentes sem brilho, o cabelo reles, o hálito mau. Que diferença!

Quando Leonília tomou da alcova e viu Teobaldo já com a cabeça desafrontada, soltou um grito e voltou-se para o lado contrário, escondendo o rosto.

— Entrei, porque a reconheci… Disse ele, tirando dinheiro do bolso. Tome, e se quiser deixar esta vida, eu lhe darei o necessário para não morrer de fome.

Ela soluçava, sem descobrir os olhos.

— Então? Perguntou o ministro ao fim de algum silêncio, eu não vim aqui para a fazer chorar! Vamos, recolha este dinheiro e creia que não me esquecerei de sua pessoa. Adeus.

— Não, não! Disse afinal a cortesã, não preciso; prefiro nunca mais ter noticias suas! O senhor fez mal em entrar aqui! Devia fazer que não me reconhecia e ir seguindo o seu caminho! Vá, vá-se embora e nunca mais se lembre de mim!

— Se entrei, foi porque a minha consciência me obrigou a entrar. Cumpro um dever.

— Não! É muito tarde para isso. Vá-se embora! Deixe-me!

— Desejo ser-lhe útil naquilo que puder.

— Fez mal em entrar; eu não lhe merecia ainda mais esta maldade! Basta o muito que já sofri por sua causa, quando este corpo valia alguma coisa! O que o senhor acaba de fazer é uma profanação! Para que mexer nas sepulturas? Por que não me deixou apodrecer sossegada neste meu aviltamento, nesta antecâmara do hospital? O senhor foi o homem que eu mais amei e também o que eu mais odiei; agora já não, lhe tenho nenhuma dessas coisas; estamos quites; já não lhe devo nada, nem o senhor a mim; contudo preferia nunca mais lhe por a vista em cima! Vá embora! Vá.

— Mas, recolha ao menos esse dinheiro.

— Não, não quero; protestei que de suas mãos nunca mais aceitaria o menor obséquio!

— Lembre-se de que precisa.

— Deixe-me em paz! Não vê que a sua presença me faz mal? Não vê que fico neste estado?

E Leonília soluçava, não com a mesma graça dos outros tempos, mas com uma sinceridade que seria capaz de comover o diabo.

— Mas, filha, aceite, é um favor que me faz! Insistia o conselheiro.

— De suas mãos — Nada! O senhor é um homem mau! É um egoísta, é um fátuo! Prefiro morrer de fome, prefiro ir acabar em um hospital, mas deixe-me, deixe-me, por amor de Deus!

CAPÍTULO XXVII

Teobaldo abandonou a casa de Leonília e, depois de vagar ainda pelas ruas, recolheu-se mais aborrecido do que nunca.

Uma indomável necessidade de companhia, mas de companhia amiga e consoladora, o assoberbava a ponto de irritá-lo. Foi com o coração desconfortado e o espírito oprimido que ele atravessou as salas desertas de sua casa. Dir-se-ia que ali não morava viva alma; um silêncio quase completo parecia imobilizar o próprio ar que se respirava; os quadros, as estatuetas e as faianças nunca para ele haviam sido tão mudos, tão frios e tão imperturbáveis.

Meteu-se no gabinete, disposto a trabalhar qualquer coisa, para ver se conseguia distrair-se; mas aquela solidão tirava-lhe o gosto para tudo; aquela solidão o aterrava, porque o desgraçado já não podia, como dantes, fazer companhia a si mesmo; já não podia entreter-se a pensar em si horas e horas esquecidas, e também já não tinha ilusões, porque o principal objeto de suas ilusões era ele próprio, e ele estava desiludido a seu respeito.

Seu ideal era como um espelho, onde só a sua imagem se refletia; quebrado esse espelho, ele não tinha coragem de encarar os pedaços, porque em cada um via ainda, e só, a sua figura, mas tão reduzida e tão mesquinha que, em vez de lhe causar orgulho como outrora, causava-lhe agora terríveis dissabores.

Como a vida é horrível! Pensou ele; como tudo que ambicionamos nada vale, uma vez alcançado! Como eu me sinto farto e desprendido de tudo aquilo que até hoje me interessava e me comprazia! Afinal, do que serve existir? Para que viver? Que lucramos em atravessar estes longos anos que atravessei? Onde estão os meus gozos? As minhas regalias? Que espero fazer amanhã melhor do que fiz hoje? Que há em torno de mim que possa me dar um instante de ventura? Ah! Se eu não tivera sido tão mau! Tão mau para mim, pensando que o era para os outros!.

E ouviu bater três horas.

— Três horas da madrugada! E não trabalhei, nem li, nem fiz coisa alguma. E nem posso dormir, e tenho de suportar a mim mesmo, sabe Deus até quando! E sinto-me doente! A febre escalda-me o sangue!

Levantou-se do lugar onde estava e, cambaleando, fez algumas voltas pelo quarto.

— Oh! Este isolamento me aterra!

Pensou então na mulher: — Ela nessa ocasião dormia, com certeza…

Naquele momento daria tudo para a ter junto de si. Mas ele a queria, não como ela era ultimamente, porém, como dantes, quando o amava, quando vinha recebê-lo à porta da rua e não o abandonava senão quando ele tornava a sair de casa.

Assim é que a queria — Companheira, amiga, unida e inseparável.

— Ah! Se eu não tivesse me incompatibilizado com ela!… Se pudesse ir buscá-la, traze-la aqui para o meu gabinete, desfrutar a sua companhia, gozar o seu coração!… Oh! Mais tudo isto já não pode ser! Está tudo perdido! Ela continua a ver em mim um vaidoso, um fátuo, um homem ainda menor que o mais vulgar! Nunca mais poderei ser para Branca o que fui, o que ela me julgou na cegueira do seu primeiro amor!

E Teobaldo deixou-se cair de novo na cadeira, com o rosto escondido entre as mãos, a respiração convulsa, os olhos ardendo como se fossem duas chagas.

— Se eu não tivesse sido para ela o que fui, talvez, quem sabe? tivéssemos agora um filhinho?

Esta idéia lhe trouxe uma golfada de soluços. E, no seu desespero, ele via esse filho imaginário; esse ente que nunca existira e de quem ele tinha saudades, porque entre os vivos não encontrava um coração que o recebesse.

Chorou muito ainda, depois ergueu-se e saiu do gabinete.

Atravessou como um sonâmbulo os aposentos da casa, ate chegar ao corredor por onde se ia ao quarto de Branca.

A porta estava fechada.

— Se ela soubesse quanto eu sofro!… Ela, que é tão boa, tão compassiva e tão casta, talvez, tivesse compaixão de mim!…

Mas não se animou a bater. Havia tanto tempo que não se falavam senão em público!… Ele tantas vezes desdenhara dos seus carinhos; tantas vezes fingira não compreender as lágrimas dela!…

Abandonou de novo o corredor, na intenção firme de recolher-se à cama. Chamou o criado, pediu conhaque, bebeu, despiu-se e deitou-se. Não conseguiu dormir. Tocou de novo a campainha.

— Meu amo chamou?

— Sim. Vê roupa. Torno a sair.

— Mas V. Exa. parece incomodado; creio que faria melhor em…

— Vê roupa! Não ouves?!

E, quando o criado ia de novo a sair, depois de cumprida aquela ordem:

— Olha!

— Senhor!

— Chama o Caetano.

Era uma idéia que lhe acudira com vislumbres de inspiração.

— O Caetano… Repetiu o criado, saiba V. Exa. que o Caetano está de cama.

— De cama?… Que tem ele?

Amanheceu há quatro dias com muita febre e ainda não melhorou.

— Achava-se nesse estado, e nada me diziam! Canalha!

— Peço perdão, mas devo notar que o senhor conselheiro há muito tempo que não aparece a ninguém.

— Cala-te. Sou capaz de apostar que deixaram sozinho o pobre do velho!…

— Saiba V. Exa. que a Sra. D. Branca, que o tem ido ver muitas vezes todos os dias, deu ordem ao Sabino para não sair do lado dele.

— Bem. Previne ao Sabino que eu quero ir ver o Caetano.

O criado, surpreso com estas palavras, mas sem o dar a perceber, afastou-se  imediatamente; ao passo que o amo, vestindo-se às pressas e, contra o seu costume, em desalinho, abandonou ainda uma vez o gabinete e ganhou em direitura ao quarto do enfermo.

Não era, como ele próprio supunha na sua necessidade de fazer bem, o interesse pelo velho servo de seu avô e companheiro de seu pai o que o impelia àquele ato de piedade, mas simplesmente a urgência de falar com alguém que ainda o estimasse; alguém que lhe arrancasse o coração do lastimável estado em que se achava naquele instante.

Recebeu um logro. O pobre velho não dava mais acordo de si e só dizia palavras desnorteadas pelo delírio da febre.

— Não me reconheces, amigo velho? Perguntou-lhe o conselheiro, amparando-se-lhe das mãos hirtas e nodosas.

— Sim, Nho Miló? Meta a espora no cavalo, que os Saquaremas, embicando por este lado, hão de encontrar homem pela proa!

E os olhos do velho torciam-se nas órbitas com um aceso de cólera senil.

— Sonha com meu pai e com as revoluções de Minas!… Pensou Teobaldo entristecido. Ah! O Barão do Palmar foi ao menos um homem! É justo que este desgraçado lhe dedique os seus últimos pensamentos em vez de os dedicar a mim, que nem isto mereço. É justo! É justo!

E saiu dali para esconder o seu desespero contra aquele maldito velho, que, no delírio da morte, não achava uma palavra de consolação para lhe dar. Atravessou a chácara sem levantar a cabeça, o ar muito sombrio e pesado, os olhos fundos e cheios de sangue. Quando chegou à rua, estacou e pôs-se a olhar para as águas da baía que se douravam aos primeiros raios de sol. Pôs-se a andar pela praia, vagarosamente, quase que sem consciência do que fazia. E o dia, que apontava, um dia triste e cheio de névoas, um dia sem horizonte, como o próprio espírito de Teobaldo, ainda mais lhe agravava o mal-estar.

Ele sentia frio e dores por todo o corpo.

Caminhou assim durante uma hora; cabeça baixa, mãos nas algibeiras do sobretudo e uma secura enorme a lhe escaldar a garganta. Três vezes tentou fumar e de todas lançou fora o charuto, porque não podia suportar o cheiro do fumo. Afinal viu um carro de praça, chamou-o, meteu-se dentro dele e mandou tocar para a casa do Coruja. Todavia, depois mesmo de estar em caminho, hesitava em lá ir. O seu procedimento para com o pobre amigo não podia ser pior e mais ingrato do que fora, ultimamente.

Nada fizera do que lhe prometera; não lhe dera o tal emprego, nem mandara publicar a célebre história do Brasil.

— E havia tanto tempo que já não se viam!… Em que disposição estaria André a respeito dele?… Qual teria sido nessa ausência a sua vida, com uma família às costas e sem meios de ganhar dinheiro?… Quem sabe até se ele tivera estado doente?… Quem sabe se já não teria morrido?…

Davam sete horas quando Teobaldo entrava em casa do Coruja.

O aspecto do corredor, o silêncio que aí reinava, entristeceram-no, pondo-lhe  no coração um vago sentimento de remorso.

— Com um bocadinho de esforço, pensou a sua consciência, ter-se-ia restituído a esta pobre gente a primitiva felicidade!…

Foi Inês que veio recebê-lo, e, posto que surpresa com a visita, ela deixava transparecer no semblante as contrariedades de sua vida.

— Como está a senhora sua mãe? Perguntou Teobaldo.

— Mal, Sr. conselheiro; há mais de um mês que ela não faz outra coisa senão gemer. Está cada vez pior. Agora tudo lhe dói: são as pernas, os braços, a caixa do peito, as costas, o pescoço e a cabeça! Coitada, chega a fazer dó!

— E o André? Como vai?

— Não sei, não senhor, mas também não anda bom! Ultimamente quase que não dá uma palavra a pessoa alguma; entra da rua e sai de casa, sem tugir nem mugir; às vezes mete-se no quarto às seis da tarde e só dá sinal de si no dia seguinte.

— E como vão os negócios dele? Sabe?

— Sei cá! Se ele não fala com pessoa alguma! Não dá uma palavra!

— Tem trabalhado muito?

— Trabalhado?

— Pergunto se tem escrito.

— É natural; pelo menos leva um tempo infinito metido no quarto.

— Ele está aí?

— Está, sim, senhor; faz favor de entrar.

Teobaldo foi bater à porta do Coruja e ficou gelado defronte do ar frio que este o recebeu.

— Como vais tu? Disse.

André sacudiu os ombros e resmungou alguns sons que não lhe passaram da garganta.

— Que diabo tens hoje? Acho-te mudado.

— Nada.

— Não! Tens alguma coisa que te aflige!

— Aborrecimento. Entra. Já tomaste café?

— Ainda não, e quero, porque não me sinto bem.

— Estás doente? Nunca te vi tão amarelo e tão abatido.

— É! Efetivamente não tenho passado bem! Apoquentações… Agora mesmo creio que sinto febre! Não imaginas a vida que levo! Um martírio!

Coruja afastou-se para ir buscar café e o outro então o considerou melhor. O desgraçado estava muito mais acabado e mais feio: caía-lhe agora, todo o cabelo sobre os olhos, que se sumiam debaixo das pálpebras; a boca envergava-se para baixo em uma expressão constante de desgosto e ressentimento; as costas arqueavam-se-lhe como as de um patético, e o peito afundava-se-lhe cavernosamente, tornando-o mais encolhido, mais mesquinho e mais reles.

— Pois, meu amigo, confesso-te, disse Teobaldo, quando ele voltou com as xícaras, que te procurei, porque preciso de ti, como de pão para a boca. Preciso da tua companhia. Aqui onde me vês, sou uma vítima do isolamento e do tédio!

André não respondeu e foi assentar-se a um canto do quarto, sobre um caixão vazio.

— Ah! Meu bom Coruja, prosseguiu S. Exa., não calculas como ando! Um inferno! Sinto-me farto, inteiramente farto da vida! Sinto-me devastado! Preciso de ti! Quero-te ao meu lado! Venho buscar-te, e não volto para casa sem te levar comigo!

— Impossível! Respondeu o outro seca mente.

— Impossível?! Repetiu o ministro, fulminado por esta palavra. Como impossível?! Pois tu não queres vir comigo?

— Não posso.

— E por quê?

— Porque me sinto inutilizado! Já não presto para nada! Já não posso suportar a companhia de ninguém!

— Ora essa! Então tu também estás desgostoso?

— Mais do que podes supor. E peço-te que mudemos de assunto.

Fez-se um grande silêncio entre os dois; cada um fitava o seu ponto, sem ânimo de trocarem um olhar entre si.

Teobaldo perguntou afinal, erguendo-se:

— Não devo então contar contigo?

— Não, não posso ir. Desculpa-me.

— Está bom! Paciência!

E, depois de dar em silêncio uma volta pelo quarto, disse meio hesitante:

— É verdade! E a tua história do Brasil? Terminaste-a?

O Coruja, sem desviar os olhos do lugar em que estavam presos, apontou para um grande montão de papéis rotos, acumulados ao fundo do quarto.

— Que é isto? Interrogou o conselheiro.

— Desisti.

— Como assim?

— Abandonei por uma vez!

— Não concluíste o trabalho?

— Não.

— Mas foi loucura de tua parte.

Coruja sacudiu os ombros, indiferentemente, e pousou os cotovelos sobre os joelhos, ficando com as duas mãos abertas contra o queixo, sem dar mais uma palavra. Causava estranha e viva impressão aquela figura tétrica e sofredora, que parecia agora mergulhada nesse estado comatoso que às vezes acomete os loucos.

Embalde tentou o outro puxar por ele e, vendo o egoísta que, em vez de consolações, encontrara ali ainda maior desânimo que o seu, despediu-se e saiu arrastando até à casa a negra túnica das suas aflições.

— Até este! Pensava ele já na rua, até o Coruja me vira as costas! Só o público, essa besta insuportável e estúpida, só o público me abre os braços! E do que me serve o público, se não tenho a quem amar? Do que me serve o público, se vivo neste isolamento pior que tudo? Do que me servem admiradores, se não tenho amigos?

Durante o caminho, Teobaldo, justamente ao contrário do que sucedia com André, encontrou mil pessoas que corriam a saudá-lo, apertar-lhe a mão, que o abraçavam, que o felicitavam “mais uma vez” por tais e tais gloriosos feitos. Mas em todas essas fisionomias só viu e percebeu: — em umas, a adulação; em outras o fingimento; em outras a má vontade invejosa e sem ânimo para se patentear; e em nenhuma encontrou o que ele procurava com tamanho empenho, aquilo que ele dantes descobria em quantos o amavam e a quem afastou de si, para sempre; isto é, a dedicação, o desinteresse, a verdadeira amizade.

— Ah! Não valia a pena sacrificar àquela besta esse inestimável tesouro, que agora lhe fazia tanta falta!

E era tarde! O egoísta já não podia encontrar em torno de si senão a sombra de si mesmo. E todos que o idolatravam com tanto desinteresse e aos quais ele só respondeu com a ingratidão, perpassavam agora em torno de seu espírito como espetros de remorso que se erguiam para o fazer mais infeliz, mais inconsolável e mais revoltado contra o seu isolamento.

Ainda como o Coruja, ele desejava fugir do público e ao mesmo tempo sentia medo de meter-se em casa. A rua e o lar eram para ambos um tormento de gênero diverso, mas de iguais efeitos.

Foi, pois, completamente aniquilado, que ele chegou ao portão da sua chácara.

Um criado veio dizer-lhe logo, que o velho Caetano estava agonizante. Teobaldo apressou-se a ir ter com ele, apesar da prostração, em que se achava. O quarto do moribundo parecia agora ainda mais sombrio do que à noite. Um quarto estreito, enterrado no porão da casa, mas dignamente arranjado e limpo. Era tudo de uma simplicidade austera e pobre. Na parede via-se um retrato do Barão do Palmar, sobre o qual dependurava-se uma grinalda de rosas murchas, contrastando com uma espada enferrujada e um jogo de pistolas antigas, que guarneciam a parte inferior do quadro; por cima deste, em um intervalo talvez de dois palmos, havia ainda um pequeno crucifixo de metal branco.

Dir-se-ia que aquilo era a célula de algum fidalgo vitimado pela revolução. Ao fundo do quarto, sobre uma cama estreita e sem cortinas, destacava-se a longa figura de Caetano. Parecia agora muito mais comprido e mais magro; sentiam-se-lhe os ângulos do corpo por detrás do lençol.

O amo, se demora um pouco mais, já não o encontrava com vida. Assentou-se ao lado da cama e ajudou o moribundo a segurar uma vela de cera, que lhe haviam posto entre as mãos extensas e descarnadas. Entretanto, o velho agonizava, quase sem o menor movimento de corpo ou a menor contração de rosto. Era uma figura imóvel, hirta, com os membros duros, os olhos cravados no ar, fixos e já turvados pela morte.

O conselheiro debruçou-se sobre ele, disse-lhe em voz baixa algumas palavras de consolação, que não foram ouvidas, e afinal quando a morte chegou de todo, retirou-se para o seu gabinete, sem conseguir resolver em lágrimas o peso enorme que se lhe fora acumulando por dentro.
–––––––––
continua…final

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A. A. de Assis (Poeminhas à moda de haicais) Parte 1

01.
O haicai o que é?
Três passinhos de balé.
Leve, leve, leve.

02.
Repousa a lagoa.
Atira-lhe um beijo a Lua.
O poeta voa.

03.
Já não posso vê-la.
Some a gaivota no céu.
Foi virar estrela.

04.
Aguinha da bica.
Pousa o melro, beberica.
Louva a vida – canta.

05.
Florzinha caipira.
Até o girassol, tão nobre,
ao vê-la suspira.

06.
Pombinha no fio.
Horas e horas, de graça,
vigiando a praça.

07.
Lançada a semente,
tem sequência a permanente
criação do mundo.

08.
Se tivesse apoio,
quem sabe algum dia o joio
fosse pão também.

09.
A pombinha desce
numa imagem de Jesus.
Pousa a paz na luz.

10.
Mão de jardineiro.
Num leve toque de amor,
faz do esterco a flor.

11.
Beija o beija-flor.
Beija inteirinho o jardim.
Por ele e por mim.

12.
Tão miudinha a fonte.
E desce, e quanto mais desce,
mais serve e mais cresce.

13.
Velhinhos na grama
jogando conversa fora.
Também jogam dama.

14.
A pomba e a rolinha.
Uma é grande, outra é pequena.
Mas de paz é a cena.

15.
Cheirosa manhã.
Já de longe se adivinha.
Safra da maçã.

16.
Palmeiras solenes.
Guardais nas velhas cidades
saudades perenes.

17.
Ilhazinha branca.
A paineira na floresta
em traje de festa.

18.
Me desperta a neta:
– Olha, vô… é a do poeta.
Borboleta azul.

19.
Toda prosa e airosa,
brinca de vitória-régia
numa poça a rosa.

20.
Um ato de fé.
Lavrador, olhando o céu,
abana o café.

21.
No meu sonho vives.
Na pracinha um cavaquinho
trina o Autumn leaves.

22.
Um pingo… dois pingos…
não parou mais de pingar.
E se fez o mar.

23.
Acorda a esperança.
Nos quintais da vizinhança
dá a notícia o galo.

24.
Pari passu venho.
Paro. Com ternura abraço
o meu par e passo.

25.
Sujaram meu rio.
Ele, que lavava as gentes,
não lavou as mentes.

26.
Um pulo, medalha.
Milhões de cabeças boas
tão longe das loas.

27.
Livros à mão-cheia.
Saúde, alegria e pão.
Que revolução!

28.
Apress

a-se o mar.
No capricho, porque a noite
será de luar.

29.
Gostosa estação.
Teu beijo, fondue de queijo,
pipoca, pinhão.

30.
Cerração na serra.
Súbito some no espaço
o planeta Terra.

31.
La nieve en la noche.
Vino tinto, un viejo tango.
Sueño em Bariloche.

32.
O orvalho, na relva,
Nem nota que o rio enorme
vai rasgando a selva.

33.
A roda-gigante
roda, roda, roda, roda.
Me refaz infante.

34.
A Lua passeia
boêmia no cio e cheia.
Namorando o mar.

35.
Sempre assim supus.
Pirilampo ou vaga-lume,
tanto faz: é luz.

36.
Relampeja e… trooom!,
ronca forte a trovoada.
Estoura a boiada.

37.
A sibipiruna
seus fartos cachos derrama.
Deixa o asfalto em chama.

38.
Um pingo de chuva
brincando em cima da uva.
Rola e rega o chão.

39.
O tempo se foi.
Distante passa cantante
um carro de boi.

40.
Vento sobre o trigo.
Louro oceano ondulando.
O pão madurando.

41.
Levanta o avestruz
o pescoço. Periscópio
procurando luz.

42.
A semente grá-
vida leva a vida impá-
vida para a frente.

43.
Delicadas, belas,
rosas brancas, amarelas…
Que poeta é Deus!

44.
Cai, haicai, balão.
Traz o céu, o azul, a luz:
põe na minha mão.

45.
Desce o rio a serra.
Leva as lágrimas da terra
pra fazer o mar.

46.
Chocadeira elétrica.
Fornadas de pintainhos
sem colo, tadinhos.

47.
Quero-quero-quero.
A bem-querida aparece.
O amor acontece.

48.
Lua nova e meia.
Tão crescente, logo casa,
vira lua cheia.

49.
O boi e o arado.
Joga veneno o avião
por sobre o passado.

50.
Rude perobeira.
Dá-lhe a orquídea um leve toque
de namoradeira.

Fonte:
A. A. de Assis. Poeminhas (à moda de haicais). Marinha Grande/Portugal: Biblioteca Virtual “Cá Estamos Nós”. Outubro de 2004

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Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 1 – A Reforma da Natureza

Quando a guerra da Europa terminou, os ditadores, reis e presidentes cuidaram da discussão da paz. Reuniram-se num campo aberto, sob uma grande barraca de pano, porque já não havia cidades: todas haviam sido arrasadas pelos bombardeios aéreos. E puseram-se a discutir, mas por mais que discutissem não saía paz nenhuma. Parecia a continuação da guerra, com palavrões em vez de granadas e perdigotos em vez de balas de fuzil.

Foi então que o Rei Carol da Romênia se levantou e disse:

– Meus senhores, a paz não sai porque somos todos aqui representantes de países e cada um de nós puxa a brasa para a sua sardinha. Ora a brasa é uma só e as sardinhas são muitas. Ainda que discutamos durante um século, não haverá acordo possível. O meio de arrumarmos a situação é convidarmos para esta conferência alguns representantes da humanidade. Só essas criaturas poderão propor uma paz que satisfazendo a toda a humanidade também satisfaça aos povos, porque a humanidade é um todo do qual os povos são as partes. Ou melhor: a humanidade é uma laranja da qual os povos são os gomos.

Essas palavras profundamente sábias muito impressionaram àqueles homens. Mas onde encontrar criaturas que representassem a humanidade e não viessem com as mesquinharias das que só representam povos, isto é, gomos da humanidade?

O Rei Carol, depois de cochichar com o General de Gaulle, prosseguiu no seu discurso.

– Só conheço – disse ele – duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas. A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

Mussolini, enciumado, levantou o queixo.

– Quem são essas maravilhas?

– Dona Benta e tia Nastácia – respondeu o Rei Coral – as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Pica-pau Amarelo, lá na América do Sul. Proponho que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.

– Muito bem! – aprovou o Duque de Windsor, que era o representante dos ingleses. – A Duquesa me leu a história desse maravilhoso pequeno país, um verdadeiro paraíso na terra, e também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom-senso de tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade.

Os grandes ditadores e os outros chefes da Europa nada sabiam do sítio. Admiraram-se daquelas palavras e pediram informações. O Duque de Windsor começou a contar, desde o começo, as famosas brincadeiras de Narizinho, Pedrinho e Emília no Pica-pau Amarelo. O interesse foi tanto que pouco depois
todos aqueles homens estavam sentados no chão, em redor do Duque, ouvindo as histórias e lembrando-se com saudades do bom tempo em que haviam sido crianças e, em vez de matar gente com canhões e bombas, brincavam na maior alegria de “esconde-esconde” e ” chicote-queimado.”

Comoveram-se e aprovaram a proposta do Rei Carol.

Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom-Senso na Conferência da Paz de 1945.

Com grande naturalidade Dona Benta aceitou o convite e deliberou seguir com todo o seu pessoalzinho – menos a Emília. Emília recusou-se a partir porque estava com a idéia que lhe veio pela primeira vez quando ouviu a fábula do Reformador da Natureza. Fazia já meses que Dona Benta havia contado essa fábula assim:

O Reformador da Natureza Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de botar defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia tolices.

– Tolices, Américo?

– Pois então?!… Aqui neste pomar você tem a prova disso. Lá está aquela jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas e mais adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas – punha as jabuticabas na aboboreira e as abóboras na jabuticabeira. Não acha que tenho razão?

E assim discorrendo Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

– Mas o melhor – concluiu – é não pensar nisso e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Américo Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, inteirinho reformado pelas suas mãos. Que beleza!

De repente, porém, no melhor do sonho, plaf! uma jabuticaba cai do galho bem em cima do seu nariz.

Américo despertou de um pulo. Piscou, piscou. Meditou sobre o caso e afinal reconheceu que o mundo não estava tão mal feito como ele dizia. E lá se foi para casa, refletindo:

– Que espiga! …     Pois não é que se o mundo tivesse sido reformado por mim a primeira vítima teria sido eu mesmo? Eu, Américo Pisca- Pisca, morto pela abóbora por mim posta em lugar da jabuticaba? Hum! …     Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está que está tudo muito bom.

E Pisca-Pisca lá continuou a piscar pela vida em fora, mas desde então perdeu a cisma de corrigir a Natureza.

Ao ouvirem Dona Benta contar essa fábula todos concordaram com a moralidade, menos Emília.

– Sempre achei a Natureza errada – disse ela – e depois de ouvir a história do Américo Pisca-Pisca, acho-a mais errada ainda. Pois não é um erro fazer um sujeito pisca-piscar? Para que tanto “pisco”? Tudo que é demais está errado. E quanto mais eu “estudo a Natureza” mais vejo erros. Para que tanto beiço em tia Nastácia? Por que dois chifres na frente das vacas e nenhum atrás? Os inimigos atacam mais por trás do que pela frente. E é tudo assim. Erradíssimo. Eu, se fosse reformar o mundo, deixava tudo um encanto, e começava reformando essa fábula e esse Américo Pisca-Pisca.

A discussão foi longe naquele dia; todos se puseram contra a reforma, mas a teimosa criaturinha não cedeu. Berrou que tudo estava errado e que ela havia de reformar a Natureza.

– Quando, Marquesa? – perguntou ironicamente Narizinho.

– Da primeira vez em que me pilhar aqui sozinha.
———

continua…

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Folclore dos Estados Unidos (A Banshee dos Sertões)

A Banshee aparece com os cabelos esvoaçantes no alto do planalto, parece querer dizer algo, mas se alguém pergunta o que ela quer, ela grita e foge.

“O inferno, com suas chamas”, é assim que os sertões de Dakota sempre foram chamados. A nomenclatura  se encaixa no lugar. É um local onde antes era o fundo do mar, com suas camadas de barro moldadas pelas geadas e inundações em formas como pagodes, pirâmides e cidades geminadas. Cânions em forma de labirinto varridos pelo vento aparecem entre esses picos fantásticos, que são brilhantes na cor, mas sombrios, selvagens, e opressivos.  Cursos traiçoeiros sobre as colinas acasteladas, cascavéis se aquecem nas bordas das cratera que ficam acima de jazidas de carvão, e os homens selvagens estavam aqui, desesperados tentando se esconder contra o avanço da civilização.

A banshee (1) que aqui habita, pode ter sido alguma mulher branca vítima do ciúme de um pele vermelha e agora assombra a região da chapada chamada de “Watch Dog”, ou ela pode ter sido uma mulher índia que foi morta por lá. De qualquer forma,  há uma banshee no deserto cujos gritos têm congelado o sangue daqueles que não temeriam a visão de um urso ou uma pantera.  Ao luar, quando o cenário é mais sugestivo e sobrenatural, e os ruídos de lobos e corujas inspiram sentimentos desconfortáveis, o fantasma é visto em uma colina uma milha a sul de Watch Dog, os cabelos soprando ao vento, lançando os braços em gestos estranhos e desconexos.

Se o grupos de guerreiros,  emigrantes,  vaqueiros, caçadores, qualquer um que bem ou mal estiver passando por este lugar, acabar passar pelo chapadão assombrado durante a noite, as rochas são iluminados por flashes de fósforo e a banshee corre para cima delas.  Como se quisesse dizer, ou como se espera de uma pergunta que tenha ocorrido a ninguém a pedir, ela fica ao lado deles, em atitude de apelo, mas se perguntam o que ela quer ela arremessa os braços no ar e com um grito que ecoa através das ravinas amaldiçoadas por um quilômetro, ela desaparece e um instante depois se vê torcendo as mãos no topo da colina. Gado não pasta perto dessa colina assombrada e os vaqueiros mantém distância dela, pois até agora não foi dita a palavra que vai resolver o mistério da região ou acalmar a infeliz banshee.

A criatura às vezes tem um companheiro, às vezes, que é um esqueleto desencarnado que cambaleia sobre as cinzas e argila e assombra os acampamentos em busca de música. Se ele ouvir alguma melodia ele vai sentar-se à sua porta e fica acenando a cabeça para ela um tempo, se um violino é deixado ao seu alcance, é avidamente pego e será tocado até o meio da noite. A música é maravilhosa:  tão suave como a agitação do vento nas árvores,  mas tão dura como o grito de um lobo ou surpreendente como o agitar de uma cascavel. Quando o leste começa a clarear a música vai ficando fraca, e fica leve até que cessa completamente.  Mas quem a escuta não deve  seguir o violinista, porque o esqueleto se afasta, é vai levá-lo para uma  armadilha rochosa, de onde é impossível escapar, e a música vai te intoxicar, enlouquecer, e finalmente arrancar a alma de seu corpo.
==================
Nota:
(1) Um espírito feminino do folclore gaélico que se acredita, que ao uivar, está pressagiando a morte de alguém na família.  Origem do termo: gaélico irlandês bean sídhe, mulher das fadas; banshee: bean, mulher (do irlandês arcaico ben) + sídhe, fada (do irlandês arcaico síde)

Fonte:
Myths And Legends Of Our Own Land, Charles M. Skinner.
http://www.gutenberg.org/files/6615/6615-h/6615-h.htm#2H_4_0205

Texto em portugues, disponivel em http://www.casadecha.wordpress.com

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Ciranda da Primavera (Parte 1)

ANGELA TUDISCO
Primavera de Angela

 Numa linda manhã de primavera,
 o céu estava azul, azul.
 O Sol brilhava como nunca,
 as borboletas pousavam nas flores
 e um arco-íris com as sete cores.

 Era tudo numa paisagem,
 tudo num só verde.

 Mas ainda bem que existe ela,
 a mais bela,
 a Primavera.

 É linda como uma rosa,
 bela como a margarida.
 Cheirosa e muito gostosa,
 que até parece infinita!

 O importante é cuidar,
 é preservar.

 Para mais tarde, tê-la como a vida.

 Angela Tudisco – 12 anos – São Paulo – SP
 essa poesia, eu fiz com 8 anos… foi a minha primeira!!!

————
SIMONE BORBA PINHEIRO
Encantos da Primavera

 Hoje, acordei com meu amor me chamando,
 para ouvir os pássaros cantando e
 o sol alto convidando para
 dar as boas vindas à primavera.
 Primavera de alegrias,
 estampada em cada rosto sorridente
 que passa e diz: bom dia!
 Primavera de sonhos
 de amores até então escondidos
 na caixinha da timidez,
 e na magia da primavera se revelam,
 assim como a vontade de cantar,
 fazer planos, comprar roupas novas,
 redecorar a casa, ser feliz!
 Primavera de Vivaldi,
 convidando para dançar
 aos sons da natureza
 que elevam a alma
 num cântico de paz.
 Primavera de muitas flores
 desabrochando em todas as cores
 perfumando o ar, enfeitando a vida
 de muitos amores.
 È a estação mais linda do ano,
 é a primavera de flores,
 antes, sementes frágeis e perseverantes
 que romperam a rigidez do solo
 e a aridez do tempo para
 transformarem-se em lindas
 flores primaverís.
 È a primavera chegando,
 è a primavera à cantar!

ADELIA MATEUS
Chegando a Primavera

 Está chegando a primavera
 com seu manto colorido
 exalando o perfume no ar.

 A vida se torna mais alegre
 Os corações transbordam amor
 Em sonhos amorosos e coloridos.

 Ah! Primavera que me seduz…
 quando caminho pelos jardins
 feitos em aroma de felicidade.

 A natureza renasce em multicolores
 Nas lindas manhãs convidativas…
 a vida se transforma em novo sonho.

ALE OVIEDO
Primavera

 No quiero que mi vista pierda
 semejante paisaje que se abre a la tierra
 con verdes nacientes y luces de hechizos
 …hoy vienes primavera regalando a mis años…
 tiernas pasiones en brotes mágicos.
 Añoro nutrir esta piel cautiva
 surcada por marcas que deja la vida
 tildando destellos con sabor a esperanza
 renaciendo sueños, borrando nostalgias.
 Sentimientos puros con colores nuevos
 me pide mi cuerpo atravesando el deseo
 de crear de la nada una historia latiente
 colmada de soles inmensos… perennes.
 No quiero que mi vista pierda
 la estampa vibrante de la primavera…

ANA MARIA BRASILIENSE
Primavera Chegando

 Com ela trazendo lembranças tuas.
 No amanhecer um convite…
 Sentir na brisa teu perfume.
 Caminho em campos floridos de lembranças,
 onde posso em cada flor sentir teu toque.
 No sol aquecendo meu corpo,
 sinto teu sorriso iluminando meu dia.
 No canto dos pássaros ouço teu sussurrar
 falando de amor…
 Sinto saudades de teus beijos
 quando vejo o colibri beijando a flor…
 Nesse perfumado campo florido,
 com as borboletas multicoloridas
 sinto saudades do colorido que davas aos meus dias…
 Solitária caminho entre flores,
 pássaros,borboletas e lembranças tuas.
 A primavera esta chegando
 e eu ainda
 TE AMO MEU AMOR

ANA MARIA ZACAGNINO
Primavera

 Primavera es Amor,
 Amor que abre las Flores
 y alumbra el corazón,
 del Ser que ama la Vida.
 Del Hombre que ama a Dios,
 llega cual golondrina,
 al nido que anheló.

 Eso es Primavera,
 Amar, Nacer, Amor,
 que palabra tan bella
 que Dios nos concedió.
 ¡Pues con una sonrisa,
 ya nace nuestro Amor!

ANNA MÜLLER
Minha Primavera

 A primavera a chegar me faz recordar,
 o colorido sorriso que deixastes;
 e nessas flores que estão a desabrochar,
 com tua saudade ainda me invades.

 Noutras primaveras só havia tristezas,
 de um cravo orgulhoso plantado a finco;
 pois tú, fostes dos cravos a pura beleza,
 que fazes crescer o calor que ainda sinto.

 Misturam-se brisa com aroma de flores,
 do orvalho ao jasmim, um sabor diferente,
 seus olhos saudosos se mostram em cores…

 E mesmo que ainda te sintas ausente,
 não quero plantar no jardim outros amores;
 apenas um cravo, que és tu, quero presente.

ANTONIO CÍCERO DA SILVA
Linda Primavera

 Como você é linda
 É a primavera
 No jardim da Bem Vinda
 Há flores lindas e belas.

 Na primavera
 Surgem as rosas e os cravos
 A natureza impera
 No sítio do Rosalvo.

 O ar fica cheiroso
 Faz bem para as narinas
 Tudo se torna formoso
 Paraíso das meninas.

 Linda primavera
 Com pétalas a abrir
 A coisa mais singela
 Que podemos assistir.

 Época de alegria
 Que transmite muita calma
 Nada disso existiria
 Se não houvesse a alma.

 Desabrocham lindas flores
 E cheirosas também
 De onde surgem os frutos
 E excelentes ares contêm.

ANTÓNIO ZUMAIA
Primavera

 Primavera é renascer…
 Vida, que é tal como a flor,
 o perfume de viver;
 Desabrochando em amor.

 Nos campos nasce a beleza,
 nos seus dias sempre iguais.
 Vamos esquecer a tristeza,
 Primavera é muito mais.

 É a vida de mil cores.
 Há alegria no ar.
 O homem sonha amores,
 na passarada a cantar.

 No meu jardim nasce a rosa,
 que te vou oferecer…
 Porque esta flor tão formosa,
 é minha razão de ser.

 É nesse ar que respiro,
 que eu sinto a Primavera.
 Por ela… sempre suspiro.
 Viver nela… quem me dera.

 Sines – Portugal

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

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Machado de Assis (Pílades e Orestes)

Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dois juntos, não que se parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Acresce que eram quase da mesma idade. A idéia da paternidade nascia das maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em carinhos, cautelas e pensamentos.

Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram bacharéis do mesmo ano. Quintanilha não seguiu advocacia nem magistratura, meteu-se na política; mas, eleito deputado provincial em 187…, cumpriu o prazo da legislatura e abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves, que advogava no Rio de Janeiro.

Posto que abastado, moço, amigo do seu único amigo, não se pode dizer que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais ver. Ponho de lado o desgosto que lhe trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi que ele esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o amigo Gonçalves, que lhe dava idéias e conselhos, o convenceu de que semelhante ato seria rematada loucura.

– Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros parentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto como os outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou melhor que eles; fique-se com a fortuna, que é a vontade do morto, e não seja tolo.

Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se com ele, mas o amigo mostrou-lhe a intenção recôndita dos tais, e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por toda a parte:

– Aí está, deixa os parentes para se meter com estranhos; há de ver o fim que leva.

Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado. Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena irritar-se por ditinhos.

– Uma só coisa desejo, continuou, é que nos separemos, para que se não diga…

– Que se não diga o quê? É boa! Tinha que ver, se eu passava a escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem-vergonha!

– Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes.

– Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pessoas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que o que querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser, menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está… está aborrecido de mim?

– Eu? Tinha graça.

– Pois então?

– Mas é…

– Não é tal!

A vida que viviam os dois, era a mais unida do mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava os livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta, sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. Às vezes, na rua do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixara no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.

– São estes?

– São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá.

– Deixa, eu levo.

A princípio, Gonçalves suspirava:

– Que maçada que dei a você!

Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não o molestar, não se acusou de mais nada; concordou em receber os obséquios. Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro ofício. Gonçalves dizia ao outro: “Você hoje há de lembrar-me isto e aquilo.” E o outro decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios ao amigo. E levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas, esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já não tinha liberdade de falar de um livro novo, ou somente caro, que não achasse um exemplar em casa.

– Você é um perdulário – dizia-lhe em tom repreensivo.

– Então gastar com letras e ciências é botar fora? É boa! – concluía o outro.

No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou aceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis. Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e mandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pôde deixar de lhe dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz.

– É uma porcaria, insistiu Gonçalves.

– Pois o pintor disse-me…

– Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este braço torto?

– Que ladrão!

– Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se redondamente. A intenção foi boa, creio…

– Sim, a intenção foi boa.

– E aposto que já pagou?

– Já.

Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. A vida tem muitas de tais pagas.

Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e que este não pôde pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diversão. Quase brigaram; a idéia de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o endossante, entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um conto e quinhentos), ele emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe pagasse quando pudesse. Gonçalves não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao fim dela, a situação se repetiu, o mais que este admitiu foi aceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro.

– Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de receber juro de você…?

– Ou recebe, ou não fazemos nada.

– Mas, meu querido…

Teve que concordar. A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes os “casadinhos de fresco”, e um letrado, “Pílades e Orestes”. Eles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma coisa parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. Outra diferença é que o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de entusiasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se inventa. É claro que o segundo era mais capaz de inspirá-lo ao primeiro do que este a ele. Em verdade, Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava o gesto e as circunstâncias durante dois e três dias.

A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia do vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas resolveu ir jantar a algum arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à reforma. Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O primeiro gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o guardasse, podia precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou.

Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves.

– Você por que não se casa? – perguntou-lhe um dia; um advogado precisa casar.

Gonçalves respondia rindo:

– Agora só me resta você.

Quintanilha um dia acordou com a idéia de fazer testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro universal.

– Guarde-me este papel, Gonçalves – disse-lhe entregando o testamento. – Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e não quero confiar a qualquer pessoa as minhas últimas vontades.

Foi por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar.

Quintanilha tinha uma prima-segunda, Camila, moça de vinte e dois anos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pai, João Bastos, era guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este ato de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes crus que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que fosse jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos louvou as raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe.

– Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É modesta, e, se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuía.

Quando Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la ao piano; ela respondeu, cheia de melancolia:

– Ainda não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar mais tempo. Demais, eu toco mal.

– Mal?

– Muito mal.

Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça que a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo do luto, lembrou uma composição elegíaca. Camila abanou a cabeça.

– Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de inventar que eu toquei uma polca.

Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os três meses fossem passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as três últimas visitas mais próximas e longas. Enfim, pôde ouvi-la tocar piano, e gostou. O pai confessou que, ao princípio, não gostava muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-lhes sabor. Chamava à filha “a minha alemãzinha”, apelido que foi adotado por Quintanilha, apenas modificado para o plural: “a nossa alemãzinha”. Pronomes possessivos dão intimidade; dentro em pouco, ela existia entre os três, – ou quatro, se contarmos Gonçalves, que ali foi apresentado pelo amigo. Mas fiquemos nos três…

Que ele é coisa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou gostando da moça. Como não, se Camila tinha uns longos olhos mortais? Não é que os pousasse muita vez nele, e, se o fazia, era com tal ou qual constrangimento, a princípio, como as crianças que obedecem sem vontade às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram tais que, ainda sem intenção, feriam de morte. Também sorria com freqüência e falava com graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila não faria obra de impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado. Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi-lo nas folhas públicas. Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório deste. A afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor. Quase a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo nesse dia nem no outro.

Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.

– Você aprova, Gonçalves?

Gonçalves empalideceu, – ou, pelo menos, ficou sério; nele a seriedade confundia-se com a palidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pálido.

– Aprova? – repetiu Quintanilha.

Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder, mas fechou-a de novo, e fitou os olhos “em ontem”, como ele mesmo dizia de si, quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era asneira.

– Não me pergunte nada; faça o que quiser.

– Gonçalves, que é isso? – perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado.

Gonçalves soltou um grande suspiro que, se tinha asas, ainda agora estará voando. Tal foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de Quintanilha. O relógio da sala de jantar bateu oito horas, Gonçalves alegou que ia visitar um desembargador, e o outro despediu-se.

Na rua, Quintanilha parou atordoado. Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e não ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma coisa que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que pudesse tê-lo ofendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado.

– Mas, não pode ser – pensava ele. – O que é que Camila tem que não possa ser boa esposa?

Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu então que Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada. Quis entrar outra vez, abraçá-lo, interrogá-lo… Não teve forças; enfiou pela rua fora, desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu Camila; tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é preciso explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares da moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance não podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara com o amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai. Era uma consolação no meio daquela agonia, o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu da casa, pior do que entrara. Recolheu-se à sua.

Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso, senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surgir debaixo um vulto e fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. “Infame, disse este com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva de meu coração, a mulher que eu amo e é minha?” Afinal o amigo ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que ele vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos olhos duas imensas lágrimas, que encheram o vale de água, atirou-se abaixo e desapareceu. Quintanilha acordou sufocado.

A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para arrancar de lá o coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os olhos e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si de todo, compreendeu e novamente se deitou, para outra insônia, menor que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.

De dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele, era talvez amado por ela… Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas cruéis. Afinal pegou em si e foi ao escritório de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse verdade…

Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-lo um instante, erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador.

– Que é isto?

– Você vai mudar de estado, não vai? – respondeu Gonçalves, sentando-se à mesa.

Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu depositário natural. Instou muito; só lhe respondia o som áspero da pena correndo no papel.

– Entendo – disse Quintanilha subitamente, – ela será tua.

– Ela quem? – quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava, escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de embargo.

Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à prima, com a condição de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas ficou tão contente, quando o primo lhe falou das lágrimas de Gonçalves, que aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor remédio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo.

O final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha ao noivo, e de padrinho aos dois primeiros filhos.

Um dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a Praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a sepulbeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a sepultura é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com esta pia frase: “Orai por ele!”

É também o fecho da minha história. Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo grego. Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele!

 Fonte:
Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

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Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 45

CAPÍTULO XXIV

Teobaldo, durante o pouco tempo em que esteve no ministério, granjeou as simpatias de toda a nação. Parecia ser querido e apreciado desde pelo seu monarca, até pelos últimos serventes de secretaria; os empregados das repartições sujeitas ao seu mando
adoravam-no.

A todos conquistara ele com aquela proverbial afabilidade e com aquela sua irresistível sedução de maneiras; os velhos chamavam-lhe colega na prudência e na reflexão; os moços no entusiasmo e no modernismo das ideias; a uns e outros cegara o seu inestimável talento de adoção, que era toda a sua força e a sua principal arma de conquista. Sem fazer nada, parecia fazer tudo, porque nas câmaras a sua palavra era sempre a mais destacável entre os colegas.

Além de que, afetava uma grande atividade espetaculosa; não havia inauguração de estrada de ferro, ou de qualquer fábrica industrial ou coisa deste gênero, que ele não acompanhasse de corpo presente, fingindo ligar a isso grande atenção e derramando-se em longos discursos talhados ao sabor do auditório que encontrava.

E ainda uma circunstância, independente de sua vontade, veio completar o prestígio dele e solidificar a simpatia que o público lhe dedicava, acrescentando-lhe à fama, já não pequena, uma glória que lhe faltava ainda e que, pela raridade, seria talvez a melhor e mais desejada — A glória de ser um ministro notoriamente honrado. Até aí era aclamado como bom patriota, ministro de talento progressista e ativo; de então em diante ficou tendo, além de tudo isso, o prestígio de homem de bem.

Foi o caso que um inglês, representante de certa companhia, desejava obter do governo concessão para uma empresa, da qual Teobaldo fruiria lucros de sócio, ou quando não, uma recompensa de trezentos contos de réis.  Depois de várias negadas de parte a parte, o ministro convidou o inglês e mais outros interessados no negócio para um pequeno jantar em sua casa.

Antes da sobremesa quase ou nada se conversou a respeito do único assunto que os reuniu ali; apenas alguma frase destacada fazia desconfiar que entre eles havia qualquer intenção escondida; mas, quando Branca, que presidia ao jantar, erguera-se da sua cadeira, pedindo licença para deixá-los em liberdade, o inglês entrou abertamente na questão e declarou que estava disposto a não se separar de Teobaldo sem levar consigo uma resposta definitiva.

— O Sr. ministro, concluiu ele na sua meia língua, se proteger o negócio só pode com isso fazer bem, tanto a si como aos outros.

Teobaldo lembrou que ia expor o seu nome; talvez desmoralizar-se para sempre.

— Sim, talvez, volveu o inglês, mas com certeza V. Exa. fica com a vida segura e garantida. Além de que, semelhante particularidade jamais cairá no domínio público! Oh! A política do Brasil está cheia de exemplos muito mais escandalosos, e não me consta que nenhum dos seus autores ficasse desmoralizado; ao contrário criam novo e maior prestígio quando enriquecem!

Afinal, Teobaldo prometeu dar no dia seguinte uma decisão. O inglês que o procurasse na secretaria à hora da audiência.

E, ao despedir-se, acrescentou no ouvido do pretendente:

— Vá descansado, que tudo se há de arranjar pelo modo mais conveniente a todos nós.

Logo, porém que as visitas saíram, Branca apareceu na porta do seu quarto.

— Ouvi, disse ela, toda a conversa que tiveram depois que eu me levantei da mesa.

— Ah! Ouviu?

— Ou, melhor, escutei; escutei por detrás daquela cortina.

— E então?

— Então, é que amanhã o senhor dirá a esse especulador que não se acha disposto a mercadejar com a sua posição. Dir-lhe-á que não é ministro para proteger velhacadas, mediante uma gratificação de dinheiro, e que, se ele insistir nos seus planos, o senhor o denunciará perante a nação…

Teobaldo posto estivesse já habituado ao gênio seco e orgulhoso da mulher, estranhou-a mais ainda desta vez e tentou justificar-se aos olhos dela.

— Convença-se, disse-lhe ele, de que a senhora ouviu mal ou não compreendeu o que ouviu.

— Mal ou bem ouvido, juro que, se o senhor não fizer o que acabo de ordenar, terá em mim o mais terrível de seus inimigos.

— Mas não posso compreender esta solicitude por mim, à última hora…

— Engana-se: não é de sua pessoa que se trata, mas de seu nome, que desgraçadamente também é o meu. Não quero ser a esposa de um traficante!

— Faz muito bem.

— Isto quanto ao lado moral, porque pelo lado prático acho que o senhor faz um mau negócio. Que poderá aproveitar uma soma tão desonestamente adquirida? Do que lhe servirão esses miseráveis contos de réis senão para fazer a mortalha com que o senhor cairá na vala comum dos patoleiros? O senhor, que já é ministro nulo, quer ser agora um político desmoralizado? Ou quem sabe se o senhor teve a pretensão de acreditar um instante que com o seu suposto talento havia de escapar ao anátema dos homens de bem?… Se o senhor não arranjar prestígio pelo lado do caráter, por quê lado então conta arranjá-lo? Acaso fez o senhor alguma coisa tão grande, tão útil, tão genial, que com ela possa esconder as falhas da sua honra? Esquece-se porventura, de que neste fato casual da sua entrada para o ministério foi o senhor o único afortunado? Esquece-se de que o chamaram, não porque o senhor fora singularmente necessário, mas sim porque era o mais à mão entre todos aqueles de quem podiam dispor?

— Pois bem! E daí? Perguntou Teobaldo, ardendo de impaciência.

— Daí, continuou Branca, sem se alterar, é que o senhor faria mau negócio cedendo a troco de dinheiro esta boa ocasião, boa e única, que a fortuna lhe proporciona para se distinguir de qualquer modo entre seus colegas.

— Distinguir-me?

— Sim, na qualidade de homem verdadeiramente honrado. Acho que o senhor, mesmo por interesse prático, não deve inutilizar os meios de que dispõe agora como ministro para por em relevo as suas qualidades morais; qualidades que ficariam eternamente ignoradas, se o senhor não estivesse no poder.

Teobaldo pôs-se a meditar.

A esposa disse ainda:

— E é semelhante homem, que se julga ambicioso; um homem capaz de vender-se a um especulador vulgar! Um homem que não percebe que seu nome amanhã seria muito maior e respeitado, quando dissessem que um ministro preferiu continuar pobre a ter de transigir com os princípios da sua honra!

Teobaldo ergueu a cabeça, olhou por algum tempo a esposa e, estendendo-lhe a mão, disse:

— Obrigado.

— Não tem que me agradecer, respondeu ela; já lhe expliquei que não é pelo senhor que levanto esta luta, é por mim mesma; não quero, ser esposa de um traficante! E, agora, é despachar o cavalheiro de indústria, e ter de hoje em diante um pouco mais de escrúpulos nos seus atos e em suas palavras!

Teobaldo não se contentou com repelir energicamente a proposta do inglês, mas explorou o fato quanto pode, metendo-o logo em circulação pela imprensa e transformando-o no melhor ornamento das suas glórias políticas.

Daí há poucos meses, não tinha já a seu cargo a pasta da Agricultura, mas seu nome era apontado na lista tríplice para a primeira eleição de senador.

CAPÍTULO XXV

Que mais podia desejar?

Aos quarenta e tantos anos havia já percorrido a enorme gama das classes sociais e experimentado, uma por urna, toda a impressão capaz de fazer vibrar o coração humano. Desde os seus primeiros tempos de colégio até aquela elevada posição a que chegara, sua vida fora uma série de conquistas fáceis, uma interminável cadeia de bons acasos.

Mas agora justamente que mais nada lhe faltava a conquistar; agora que ele, dispondo ainda de uns restos de mocidade para ser amado como homem, era já celebrizado como medalhão; agora que ele possuía tudo; agora que todas as classes do seu país haviam já lhe tributado a melhor parte do seu entusiasmo; agora é que ele se sentia menos satisfeito, porque, à medida que se alargavam os horizontes da sua ambição tanto mais a consciência da sua mediocridade o estreitava em um terrível círculo de inconsoláveis desgostos.

Pouco a pouco foi-se tornando invejoso. Afinal já não podia ouvir falar dos homens verdadeiramente grandes, sem ficar com o coração apertado por um punho de ferro que o estrangulava. As grandes e legitimas reputações, os nomes universais, fossem de artistas, de poetas, de descobridores, de filósofos ou de guerreiros, o irritavam acerbamente e enchiam-no de um ódio surdo, inconfessável e assassino.

Principalmente ao voltar dos seus relativos triunfos, quando no círculo mesquinho das suas glórias ouvia o próprio nome aclamado e coberto de ovações, é que mais desabrida lhe roncavam por dentro a dor da inveja e a consciência da sua incapacidade.

— Oh antes nunca chegasse a ser nada, nem tivesse pensado em ser alguma coisa!

Ser tão pouco, quando tanto se ambiciona; ambicionar tanto e ter certeza de nunca ir além da própria pequenez, é muito mais doloroso, é muito mais cruel do que ficar eternamente sucumbido ao peso da primeira desilusão! Era isto que agora o fazia mau de todo; era isto o que agora o tornava infeliz, desconsolado e triste.

Nunca houvera penetrado dentro de si mesmo e, quando, graças à franqueza da esposa, o fizera pela primeira vez, achou-se tão vazio e tão ridículo aos próprios olhos, achou-se tão de gesso, que sentiu ímpetos de reduzir-se a pó. E, com o correr de mais algum tempo e com a percepção da sua inferioridade, veio-lhe o tédio, o desprezo próprio, a grande moléstia dos que sobem na convicção e sem causa; veio-lhe o desfalecimento dos que vencem sem ter lutado, dos que olham para trás e não encontram no passado sequer uma boa recordação, à sombra da qual repousem o espírito fatigado e o coração desiludido; veio-lhe o fastio e o cansaço dos que nunca amaram, dos que nunca sofreram nem se sacrificaram por ninguém; veio-lhe enfim o desespero dos egoístas, o desespero dos que se vêem isolados no meio do público que os aclama vitoriosos, mas que, está pronto a virar-lhes as costas logo que o menor interesse particular chama a sua atenção para outro lado.

E, da mesma forma que o Coruja sentia-se cansado de ser tão bom, tão dos outros e precisava cometer uma ação má para repousar; assim Teobaldo, reconhecendo o seu egoísmo e a sua indiferença pelos que o amaram, desejou pela primeira vez em sua vida praticar o bem.

Mas, se àquele era impossível cometer uma ação má, a este não seria mais fácil praticar um rasgo de abnegação e de heroísmo.

Os extremos encontraram-se de novo; as duas criaturas, que o isolamento unira no colégio, fugiam agora dos homens, homens tão caprichosos, tão ruins e tão pequenos como os seus condiscípulos de outrora. E, ainda como o Coruja, Teobaldo pensou na morte, não como ele por não conseguir abominar seus semelhantes, mas por não conseguir amá-los. E fez-se cada vez mais sombrio, mais concentrado e mais doente.

Agora passava horas e horas esquecidas no seu gabinete, sozinho, fechado por dentro, a cismar; ou enterrado sombriamente no fundo de uma poltrona, ou passeando de um lado para outro, com as mãos nas algibeiras e os olhos postos no chão. E a sua figura, ainda elegante e altiva, mas prematuramente envelhecida e gasta, havia de impressionar a quem o surpreendera pelas horas silenciosas da madrugada nessas profundas meditações.

— Afinal que fiz eu?… Interrogava ele a si mesmo em um desses momentos; sim, qual foi a minha obra?… Qualquer homem, por mais pequeno, por mais obscuro, tem sempre um ideal na sua vida: uns dedicam-se à família, e cada filho é um poema, bom ou mau que eles deixam à pátria; outros trabalham para enriquecer, e depois da morte, ainda são lembrados pelos seus herdeiros; outros nos legam um livro de suas memórias, ou uma casa comercial, ou uma empresa que criaram, ou uma idéia a que se sacrificaram por toda a vida! Todos deixam alguma coisa atrás de si: um nome ou uma recordação, só eu não deixarei nada, por que todo o meu ideal durante a minha vida inteira fui eu próprio! Nunca fiz nada aos outros; nunca amei pessoa alguma que não fosse eu mesmo. E, de tudo que apresentei durante a vida como produto do meu esforço, e de tudo que me engendrou este nome transitório que possuo, nada foi obra minha Eu nada fiz!

Depois pensou nos entes que mais o estremeceram e, defronte da memória de cada um, seu coração sentiu-se envergonhado e arrependido. E, dai em diante, quem o visse, apesar de tão profundamente abatido pelos seus padecimentos morais, ainda assim não podia calcular os desgostos que iam por aquela pobre alma.

A sua larga fronte, já despojada de cabelos até ao meio do crânio, raiara-se de longas rugas paralelas, como um horizonte no crepúsculo que se enfaixa de nuvens sombrias; seus grandes olhos, dantes tão insinuativos e lisonjeiros, amorteciam agora em uma profunda expressão de mágoa sem esperanças de consolo; seus lábios pareciam cansados de tanto sorrir vara todo o mundo e como já não tinham forças para fingir, quedavam-se em uma imobilidade cheio de tédio e desdém; e todo o seu aspecto, ao contrário do que fora, servia agora muito mais para fazer pena do que para seduzir.

E daí principiaram todos a notar a sua ausência nos lugares em que ele era dantes mais freqüente; afinal já nunca o encontravam em parte alguma onde houvesse um pouco de alegria ou um pouco de prazer; agora o riso lhe fazia mal, ao passo que ao cair da tarde viam no sempre nos arrabaldes mais solitários, passeando a pé, vagarosamente; as mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, o ar todo preocupado como de um mísero pai de família que vai sentindo faltar-lhe a vida e treme defronte da morte, não por si, mas pelos entes que lhe são caros e que aí ficam no mundo abandonados.

Todavia era justamente o inverso o que se dava com Teobaldo; sucumbia à falta da família; sucumbia à falta de afeições sinceras e à falta de carinhos legítimos. E quanto mais, com o correr do tempo, a falta de tudo isto lhe apertava o coração e lhe ensombrava os dias, tanto mais insuportáveis se lhe faziam as tredas amizades da rua, as falsas relações políticas, os frívolos protestos dos seus admiradores e o palavreado venal daqueles que mendigavam a sua proteção.
–––––––––––––
continua…

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´Vocabulário de termos e expressões regionais e populares do Centro Oeste (Mato Grosso e Goiás) A e B

ABISCOITAR — Receber dinheiro, herdar, apropriar-se de…

ACAUÃ — Ave inimiga das cobras, tida como agourenta.

ACEIRO — Terreno debastado ao redor dos postes de cerca a fim de evitar que o fogo os queime.

ACERAR — Vedar o pasto com a capina em torno.

ACERO — Capina ao redor do pasto, ou da roça, para vedar a passagem do fogo.

ADJITÓRIO (corruptela) — Adjutório, auxílio.

AFOGADO — Refogado (expressão culinária).

AGACHAR-SE — Rebaixar–se, humilhar-se. Viver agachado: hábito de servilismo.

AGRAVAR — Ofender, desagradar. “Não gosto de agravar ninguém”.

ÁGUAS — Tempo das águas: tempo das chuvas.

ANEIXAR, ANEIXO (popular) — Anexar, anexo.

ANIMAL — Equino ou muar.

APÁ — Pá. Dizem: “o apá”.

ARAPUÁ — Abelha mansa, de cor preta, que faz colmeia no oco das árvores.

AROEIRA — Madeira de construção, muito usada no Brasil antigo, pesada e incorruptível. As casas antigas não usavam cantos de tijolos ou adobes e sim esteios de aroeira.
Diz-se que a casa começa pelos alicerces, mas antigamente e ainda hoje no sertão, faz-se a armação da casa toda de aroeira, cobre-se-a, depois é que se fazem as paredes. Em Mineiros, cidade do sudoeste goiano, a primeira casa construída sem esteios e de cantos de tijolos, fêz muita gente ficar com receio de entrar.

ARREADO — Incivil, grosseiro, ignorante. “Indivíduo arreado”.

ARREPARAR (corrupt.) — Reparar.

ARRIBABA — Desgarrada do rebanho; desguaritada.

ARTIFÍCIO — O conjunto do aparelho de tirar fogo: binga, pedra e fuzil.

ASSUCEDER — Acontecer, acontecido.

ASSUNGAR — O mesmo que sungar, levantar. “Sungar os braços…”

ASSUNTAR — Pôr sentido em uma conversa; refletir.

AULA — Escola.

AVEXAR — Apertar. Estou avexado pra ir embora.

AZAGAIA — Arma de caçar onça, como uma forca. O caçador entra na grota com um facho aceso de canela-de-ema que, além de clarear, protege-o, pois onça não gosta de fogo: perturba-a e mete-lhe a azagaia no pescoço, espetando-a.

AZANGAR — Estragar-se; deteriorar-se.

B

BACURI — Palmeira de fruto oval de mais de dez centímetros; produz fibras que servem para a calafetação; o caule produz boa madeira e com as folhas cobrem-se os ranchos.

BADULACOS — Utensílios pobres de casa.

BAFUME — Abafamento, aflição, opressão do peito.

BAGERÊ — Parte superior e estéril do cascalho aurífero ou diamantífero.

BAGUÁ — Baguá é pessoa arredia, de pouco trato; potro ou outro animal recém-domado, meio arisco ainda.

BAIXEIRO — Saco de aniagem que vai no lombo do animal, ao arreá-lo.

BALANGAR — Balançar.

BAMBURRAR — Quando o garimpeiro encontra o que procura: uma gema compensadora.

BANDA — Lado; de banda; de lado.

BANDEIRA — Monte de milho na roça.

BANGÜÊ — Defunto enrolado em um cobertor e amarrado num pau roliço, conduzido em ombros dos companheiros.

BARBEIRAR, BARBEIRO — Inexperiente; agir sem o necessário conhecimento.

BARRADÃO, BARRADO — Bulcão; grossas nuvens de chuva, no horizonte.

BERÊM — Mingau sólido de maizena com leite e açúcar.

BESTUNTO — Burrice; cabeça oca; falta de reflexão.

BEBA — Pequena lagartixa de cor acastanhada, pele lisa e brilhante, mui vivaz, que se aninha em fendas de esteios.

BILRO — Peça para fiar renda; consta de um coco macaúba ou tucum espetado num palito, que vem a ser a agulha. As mulheres rendeiras manejam vários bilros, ao mesmo tempo.

BINGA — Isqueiro, “cornim-boque”, parte do “artifício” em que se coloca a isca.

BISCOITO DE GOMA — É o biscoito de polvilho paulista ou a pipoca mineira.

BITELO — Grande; enorme.

BOCAINA — Passagem estreita e funda entre duas serras.

BOIOTA (ó) — Tolo, imbecil.

BOQUEIRÃO — Passagem entre barrancos altos, ou em corte na mata.

BOTINA TESTA-DE-TOURO — Botina ringideira, mateira; de elástico e sempre amarela.

BRAÇA — Medida de 2,20 m..

BRIQUITAR — Labutar; teimar em um labor. “Estou briquitando para ver se acerto”.

BROCHA — Tira de couro cru que une as pontas dos caízis, por baixo da barbela do boi.

BUCHA PAULISTA — Pelota de bucha que serve para separar a pólvora do chumbo no carregamento das armas de fogo

BUGRADA — Ação própria de bugre; selvageria.

BUGRE — índio, tapuia, selvagem.

BURITI — O buriti é uma palmeira linda, abundantíssima nos altiplanos do Brasil Central.

Fonte:
Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. . Ed. Literat. 1962

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José Feldman (Universo de Versos n. 116)

Uma Trova do Paraná

CAMILA MICHELE DE ALMEIDA
Bandeirantes

Não basta mudar o mundo,
tentar vencer todo o mal,
o importante , lá no fundo,
é tornar o amor imortal!
============================
Uma Trova sobre Esperança, do Rio de Janeiro

ESTHER DOS SANTOS

Saudade… uma velha estrada…     
um rancho que o mato invade…  
uma porteira quebrada…            
um lar sem fogo… Saudade…     
============================
Uma Trova do Izo

IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS 1932 – 2013 São Paulo/SP


– ” O trabalho  é que enobrece!”
Dizem todos ao Raul.
E ele responde: – “Acontece,
que eu detesto sangue azul!”
============================
Uma Trova Lírica/ Filosófica, de Juiz de Fora/MG

SINVAL CRUZ


A mentira é sonho lindo
neste meu mundo encantado.
Sonhando, minto dormindo,
mentindo, sonho acordado.
============================
Uma Trova Humorística, de Magé/RJ

MARIA MADALENA FERREIRA


“Sem uma “prova de amor”
sumo de vez e te esqueço!”
-“Pois some logo: – É um favor,
porque esse truque … eu conheço!!!“
============================
Uma Trova do Ademar

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN 1951 – 2013 Natal/RN


Já quase louco de amor,
envolto num triste enlevo
ponho toda a minha dor
no papel…quando eu escrevo!
============================
Uma Trova Hispânica, da Argentina

RAMÓN ROJAS MOREL


Sé que haremos  un mañana
con la vida y el amor…
y tú serás la artesana
de este fuego abrasador…
============================
Uma Trova sobre Respeito, de Santos/SP

CAROLINA RAMOS


       Cada um para o seu lado…
      ninguém entende ninguém…
     Quando o respeito é quebrado,
     o amor se quebra também!
============================
Trovadores que deixaram Saudades

MÁRIO LUIZ PEIXOTO DE CASTRO
Rio de Janeiro/RJ 1926 – 1991


A mais longa travessia
é a mudez do telefone;
o caos da cama vazia
e o tédio da noite insone!
============================
Uma Trova do Príncipe dos Trovadores

LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ 1916 -1977 Santos/SP


Não paras quase ao meu lado …
e em cada tua partida,
eu sinto que sou roubado
num pouco da minha vida …
============================
Um Haicai de Santos/SP

FRANCISCO ASSIS DOS SANTOS


Caminhos da infância…
As patas do cavalo
Na geada do campo.
============================
Uma Trova da Rainha dos Trovadores

LILINHA FERNANDES
(Maria das Dores Fernandes Ribeiro da Silva)
Rio de Janeiro 1891 – 1981


Eu canto quando a saudade
me fere com seu desdém.
O canto é a modalidade
mais bela que o pranto tem.
============================
O Universo de Leminski

PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR (1944 – 1989)


as flores
são mesmo
ingratas
a gente colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós
nunca tivesse
havido vênus
============================
  O Universo das Glosas de Gislaine

GISLAINE CANALES
Balneário Camboriú/SC

Glosando Luiz Otávio
Amor na Areia

MOTE:
NAS NOITES DE LUA CHEIA
COMO É BOM A GENTE AMAR…
-AS ONDAS BEIJANDO A AREIA…
E EU, NA AREIA, A TE BEIJAR…

GLOSA:
NAS NOITES DE LUA CHEIA
tudo fica mais bonito…
a luz da lua prateia
a imensidão do infinito!

Sob essa luz que embeleza
COMO É BOM A GENTE AMAR…
Sussurros parecem reza
e o céu, parece um altar!

O orvalho em gotas pranteia
as flores… e o verde… enfim:
-AS ONDAS BEIJANDO A AREIA…
e você beijando a mim!

E, assim, num eterno amor,
num gostoso e belo arfar
fica o mar em seu torpor,
E EU, NA AREIA, A TE BEIJAR…
============================
Uma Trova do Rei dos Trovadores

ADELMAR TAVARES
Recife/PE 1888 – 1963 Rio de Janeiro/RJ


Amar com ciúme… Quem ama?!…
Quem ama assim, desconfia…
– Mas quem tais coisas proclama,
se amasse, não nas diria.
============================
O Universo do Haicai de Seabra

CARLOS SEABRA
(São Paulo/SP)


o vento afaga
o cabelo das velas
que apaga
============================
O Universo Poético de Emilio

EMÍLIO DE MENESES
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
Curitiba/PR (1816– 1918)

Da minha janela

Desta janela aberta aos eflúvios de Abril,
Vendo os que vão e vêm, a alma sonha e medita:
– “Pela vida- a lutar nesta faina febril,
Este e aquele, onde vão? de onde vêm nesta grita?”

O que se ama ou se odeia ou se busca ou se evita,
Tudo se cruza aqui numa trama sutil.
– Quantos a morte leva ou seja nobre ou vil,
Enquanto em pleno sol o vivente se agita?

– E penso então que desde o tempo mais distante
A rua vê correr a humana vaga, e nela,
Nada mudar da vida o drama palpitante.

E que outras ondas sempre aqui virão rolar…
Sempre as mesmas! porém, desta minha janela,
Outros – não eu! – virão vê-las ir e voltar…
============================
O Universo Poético de Sardenberg

ANTONIO MANOEL ABREU SARDERNBERG
São Fidélis/RJ (1947)

Amor Perdido


A vida minha já não é mais minha
E nem mais meu este coração,
Você levou tudo de bom que eu tinha,
Só me restou esta solidão.

Água que passa não retorna mais,
Amor desfeito não se recupera,
É só passado que ficou pra trás,
Não se refaz… e agora já era!

O sentimento, quando é pequeno,
Só traz tristeza para o coração.
É bem pior que o pior veneno,
É prato feito pra desilusão.

E desse jeito vou levando a vida,
Segue à deriva minha embarcação…
Assim eu volto ao ponto de partida
E parto em busca de outra paixão.
============================
O Universo Poético de Cecília

CECÍLIA MEIRELES
(Cecília Benevides de Carvalho Meireles)
Rio de Janeiro/RJ (1901 – 1964) Rio de Janeiro/RJ

4o. Motivo da Rosa

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
============================
O Universo Melódico de Assumpção

MARCOS ASSUMPÇÃO
(Marcos André Caridade de Assumpção)
Niterói/RJ

Quando se tem um Coração

(CD O Mágico de Oz)

 Se eu pudesse ter um coração
Que batesse forte em meu peito
Eu poderia descobrir
Verdadeiramente o amor
E sentir a pureza da emoção
Que vem lá de dentro da gente
Quando se tem um coração
Se  eu pudesse ter um coração

Que me fizesse enfim suspirar
Eu poderia então sorrir
Simplesmente por  amar
E sentir a pureza da emoção
Que vem lá de dentro da gente
Quando se tem um coração
============================
O Universo Haicaista de Guilherme 

GUILHERME DE ALMEIDA
(Guilherme de Andrade de Almeida)
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

O Haikai

Lava, escorre, agita
A areia. E, enfim, na bateia
Fica uma pepita.
============================
O Universo Sonetista de Alma 

ALMA WELT
Novo Hamburgo/RS (1972 – 2007)

De vida, fastios e domingos

Tenho pudor de ficar enfastiada
Ou de repente ter um certo horror
Desta vida terminar numa maçada
Que é essa de morrer, suprema dor…

Mas é isso que faz de mim humana,
Eu suponho, embora nada saiba
Da razão de ser de uma semana
E o quanto da vida nela caiba.

Mas o fato de ter sempre um domingo
Como para descansar da própria vida
Ou para conferir o nosso bingo

É mais uma evidência do nonsense
Desse viver que tão mais me põe perdida
Quanto mais profundo eu nele pense…
============================
Uma Poesia de Porto Alegre/RS

VITOR ALIBIO

Pensamento Confuso

 Como trabalhar
 se ideias confusas
 invadiram meus pensamentos
 e não me deixam trabalhar?
 
 Sem dúvida, antes de dar continuidade
 ao meu trabalho,
 devo cuidar de alguns fatos
 que precisam ser ajustados.
 
 Estou cansado
 de engolir coisas ruins.
 Muitas pessoas são maldosas
 e não pensam antes de agirem.
 
 De vez em quando,
 fico pensando se fiz tudo certo ou não.
 O outro pode, eu não.
 Qual é a forma correta?
 
 O tempo passa.
 Os pensamentos já não estão tão confusos.
 E Eu? Ah, estou ficando mais esperto
 para as situações
 que a cada dia estão mais perto.
============================
O Universo de Francisca

FRANCISCA JÚLIA
1871, Xiririca (atual Eldorado Paulista)/SP – 1920, São Paulo/SP)

A uma Santa

Foge, sem ódio, ao mal; o bem pratica;
Se a dor lhe dói, cuida-a gostosa e boa,
Ou faz então com que ela lhe não doa;
Na pobreza em que está julga-se rica;

O mal, sabe que passa, o bem, que fica;
Por isso o bem acolhe e o mal perdoa.
Quanto mais vive, mais se aperfeiçoa,
Quanto mais sofre, mais se glorifica.

Por essa alta moral os atos regra;
Em nenhum outro esforço em vão se cansa,
Por nenhum outro ideal se bate em vão.

E é feliz, mais feliz porque se alegra
Não com o muito que a sua mão alcança,
Porém com o pouco que já tem na mão.
============================
Velhas Lengalengas e Rimas do Arco-da-Velha Portuguesas

O QUE ESTÁ NA GAVETA?

 O que está na gaveta?
Uma fita preta.
O que está na varanda?
Uma fita de ganga
O que está na panela?
Uma fita amarela
O que está no poço?
Uma casca de tremoço
O que está no telhado?
Um gato malhado
O que está na chaminé?
Uma caixa de rapé
O que está na rua?
Uma espada nua
O que está atrás da porta?
 Uma vara torta

O que está no ninho?
Um passarinho
Deixa-o no morno
 Dá-lhe pãozinho.
Vamos ver se ele pia?
Piuuuuuuuuuuuuuu!

Fonte:
E-book da equipa do Luso-Livros
http://luso-livros.net/

============================
O Universo de Pessoa

FERNANDO PESSOA
(Fernando António Nogueira Pessoa)
Lisboa/Portugal   1888 – 1935

Tudo quanto penso

Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.
============================
O Universo Poético de Vinicius

VINICIUS DE MORAES
(Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes)
Rio de Janeiro (1913 – 1980)

Ária para assovio

Inelutavelmente tu
Rosa sobre o passeio
Branca! e a melancolia
Na tarde do seio

As cássias escorrem
Seu ouro a teus pés
Conheço o soneto
Porém tu quem és?

O madrigal se escreve:
Se é do teu costume
Deixa que eu te leve

(Sê… mínima e breve
A música do perfume
Não guarda ciúme)
============================
Uma Poesia de Portugal

ARY DOS SANTOS

Na Mesa do Santo Ofício

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.
Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.
Que viemos, amámos, pecámos e partimos
Como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam
E que a nossa aventura,
É no vento que passa que a ouvimos,
É no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos
E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.
Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,
Que nos espreguiçaremos na fogueira.
============================
O Universo de Auta

Auta de Souza
Macaíba/RN (1876 – 1901) Natal/RN

Página Triste

Há muita dor por este mundo a fora
Muita lágrima à toa derramada;
Muito pranto de mãe angustiada
Que vem saudar o despontar da aurora!

Alma inocente só de amor cercada
A criancinha a soluçar descora,
Talvez no berço onde o menino chora
Também, oh Dor, tu queiras, desolada.

Erguer um trono, procurar guarida…
Foge do berço! Não magoes a vida
D’esta ave implume, lirial botão…

Queres um ninho, um carinhoso abrigo?
Pois bem! Procura-o neste seio amigo,
Dentro em minh’alma, aqui no coração!
============================
O Universo Triverso de Millôr 

MILLÔR FERNANDES
(Milton Viola Fernandes)
Rio de Janeiro (1923 – 2012)


É meu conforto
Da vida só me tiram
Morto.
============================
O Universo de J. G.

J.G. DE ARAÚJO JORGE
(Jorge Guilherme de Araújo Jorge)
Tarauacá/AC 1914 – 1987 Rio de Janeiro/RJ

Amor  Fora do Tempo

   
O tempo – esponja e inverno,
tédio e rotina,
epitáfio e adeus,
irremediável partida sem partidas,
destilação de ausência -,

para nós, é teia e amarra
– fusão.

O tempo é que se ausenta
e à margem dele, restamos eternos,
dois a viverem
num coração.
============================
Um Soneto de Caucaia/CE

JOSÉ RIOMAR DE MELO

Meu verso

 Se meu verso te agrada, te conforta,
 Faz lembrar-te emoções que já viveste,
 Com algum deles talvez te comoveste,
 Ativando a esperança quase morta!

 É sinal que choveu na minha horta,
 Na emoção que a mim tu concedeste,
 Ao sentir que no verso que tu leste
 De euforia e de paz teu peito aborta;

 Entretanto se um deles não ressoa,
 Na fiel sintonia e te magoa,
 Na palavra ou na frase te feriu…

 Eu te peço perdão em tom profundo,
 Porque mesmo agradar a todo mundo,
 Jesus Cristo também não conseguiu…
============================
O Universo do Martelo Agalopado de Prof. Garcia

PROF. GARCIA
(Francisco Garcia de Araújo)
Caicó/RN (1946)


Nosso velho rojão é tão dolente
que as estrelas marejam no infinito,
chora a imagem pintada no granito
nos instantes finais do sol morrente;
as estrelas fulguram no nascente
e a montanha se cobre de beleza,
para ouvir a canção da singeleza
que o poeta verseja e não vacila,
cada verso é uma estrela que cintila
no universo da santa natureza!
============================
O Universo Poético de Lúcia Constantino

LÚCIA CONSTANTINO
(Maria Lúcia Siqueira)
Curitiba/PR

Chegada

Este dia que te chega
mais veloz que ontem,
quando  havia um prato à mesa
e o teu nome.

Ah, escolha entre as rosas
a única que te cabe na alma,
a única que é canto e salmo
para que não tenhas mais medo
de caminhar.

De noite as estrelas te falam
do cantar dos galos
à chegada
dessa presença na alma,
quando até os deuses
vão acordar.
============================
Uma Poesia Além Fronteiras

EDWARD ESTLIN CUMMINGS
Estados Unidos (1894 – 1962)


O Primeiro de Todos os Meus Sonhos

o primeiro de todos os meus sonhos era sobre
um amante e o seu único amor,
caminhando devagar (pensamento no pensamento)
por alguma verde misteriosa terra

até o meu segundo sonho começar—
o céu é agreste de folhas; que dançam
e dançando arrebatam (e arrebatando rodopiam
sobre um rapaz e uma rapariga que se assustam)

mas essa mera fúria cedo se tornou
silêncio: em mais vasto sempre quem
dois pequeninos seres dormem (bonecas lado a lado)
imóveis sob a mágica

para sempre caindo neve.
E então este sonhador chorou: e então
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera
—onde tu e eu estamos a florescer

(Tradução de Cecília Rego Pinheiro)
============================
O Universo de Adélia

ADÉLIA PRADO
(Adélia Luzia Prado Freitas)
Divinópolis/MG (1935)

Exausto

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
============================
O Universo Poético de Bilac

Olavo Bilac
(Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac)
Rio de Janeiro/RJ (1865 – 1918)

Meio-dia

Meio-dia. Sol a pino.
Corre de manso o regato.
Na igreja repica o sino;
Cheiram as ervas do mato.

Na árvore canta a cigarra;
Há recreio nas escolas:
Tira-se, numa algazarra,
A merenda das sacolas.

O lavrador pousa a enxada
No chão, descansa um momento,
E enxuga a fronte suada,
Contemplando o firmamento.

Nas casas ferve a panela
Sobre o fogão, nas cozinhas;
A mulher chega à janela,
Atira milho às galinhas.

Meio-dia! O sol escalda,
E brilha, em toda a pureza,
Nos campos cor de esmeralda,
E no céu cor de turquesa…

E a voz do sino, ecoando
Longe, de atalho em atalho,
Vai pelos campos, cantando
A Vida, a Luz, o Trabalho.
============================
O Universo de Drummond 


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG (1902 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Importância da Escova

 
Gente grande não sai à rua,
menino não sai à rua
sem escovar bem a roupa.
Ninguém fora se escandalize
descobrindo farrapo vil
em nossa calça ou paletó.

Questão de honra, de brasão.
Ninguém sussurre:
A família está decadente?
A escova perdeu os pêlos?
A fortuna do Coronel
não dá pra comprar escova?

Toda invisível poeirinha
ameaça-nos a reputação.
Por isso a mãe, sábia, serena,
sabendo que sempre esqueço
ou mesmo escondo, impaciente,
esse objeto sem fascínio,
me inspeciona, me declara
mal preparado para o encontro
com o olho crítico da cidade.

E firme, religiosamente,
vai-me passando, repassando
nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas
na alma talvez (bem que precisava)
a escova purificadora.
============================
UniVersos Melodicos

Haroldo Lobo e Mílton de Oliveira

A MULHER DO LEITEIRO
(marcha/carnaval, 1942)

Todo mundo diz que sofre
Sofre, sofre neste mundo
Mas a mulher do leiteiro sofre mais;
Ela passa, lava e cose
E controla a freguesia
E ainda lava as garrafas vazias.

E o leiteiro, coitado!
Não conhece feriado
Se encontra satisfeito
Toda noite é sereno
E a mulher dele
Que trabalha até demais
Diz que tudo que ela faz
Ainda é café pequeno.
============================
Uma Cantiga Infantil de Roda

BELA PASTORA

É uma roda de meninas, com uma do lado de fora. Cantam as da roda:

Lá em cima daquela montanha
Avistei uma bela pastora
Que dizia em sua linguagem
Que queria se casar

Quando as da roda cantam o quarteto seguinte, a pastora vem para o meio, a fim de aprender a brincar:

Bela pastora entra na roda
Para ver como se brinca
Uma roda, roda e meia
Abraçais quem vós quereis

A garota que for abraçada, será então a pastora seguinte

Fonte:
Veríssimo de Melo. Rondas infantis brasileiras. São Paulo: Departamento de Cultura, 1953.

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Varal de Trovas n 43 – Miguel Russowski (Joaçaba/SC) e Prof. Garcia (Caicó/RN)

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Arquivado em Rio Grande do Norte, Santa Catarina, varal de trovas

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Pablo Neruda)

nascimento do poeta em 12.7.1904

Li seus Poemas e a Canção Desesperada,
há quantos anos, quando enfrentei a paixão
que invadiu minh´alma e não fiz quase nada,
porque não contrariei a voz do coração…

E fui andando… andando e a vida abandonada,
às vezes me deixou na dor da solidão,
pensando na mulher que fora minha amada
e que só me causou uma desilusão…

Quem pôde cantar, ainda sendo moço,
em plena juventude os cânticos de amor
que senti produzir o maior alvoroço

no peito varonil onde o sonho não muda?!
O Poeta Genial, de saudades e dor
produzindo poesia… O irmão Pablo Neruda !

Fonte:
O Autor

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Arquivado em homenagem, Poesias

Pedro Bial (Morrer é ridículo)

A morte, por si só, é uma piada pronta.

Você combinou de jantar com a namorada, está em pleno tratamento dentário, tem planos pra semana que vem, precisa autenticar um documento em cartório, colocar gasolina no carro e no meio da tarde morre.

Como assim? E os e-mails que você ainda não abriu, o livro que ficou pela metade, o telefonema que você prometeu dar à tardinha para um cliente?

Não sei de onde tiraram esta ideia: MORRER!!!

A troco?

Você passou mais de 10 anos da sua vida dentro de um colégio estudando fórmulas químicas que não serviriam pra nada, mas se manteve lá, fez as provas, foi em frente. Praticou muita educação física, quase perdeu o fôlego, mas não desistiu. Passou madrugadas sem dormir para estudar pro vestibular mesmo sem ter certeza do que gostaria de fazer da vida, cheio de dúvidas quanto à profissão escolhida, mas era hora de decidir, então decidiu, e mais uma vez foi em frente…

De uma hora pra outra, tudo isso termina numa colisão na freeway, numa artéria entupida, num disparo feito por um delinquente que gostou do seu tênis.

Qual é?

Morrer é um chiste.

Obriga você a sair no melhor da festa sem se despedir de ninguém, sem ter dançado com a garota mais linda, sem ter tido tempo de ouvir outra vez sua música preferida.

Você deixou em casa suas camisas penduradas nos cabides, sua toalha úmida no varal, e penduradas também algumas contas.

Os outros vão ser obrigados a arrumar suas tralhas, a mexer nas suas gavetas, a apagar as pistas que você deixou durante uma vida inteira.

Logo você, que sempre dizia: das minhas coisas cuido eu.

Que pegadinha macabra: você sai sem tomar café e talvez não almoce, caminha por uma rua e talvez não chegue na próxima esquina, começa a falar e talvez não conclua o que pretende dizer.

Não faz exames médicos, fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas e mulheres magras e morre num sábado de manhã!

Isso é para ser levado a sério? Tendo mais de cem anos de idade, vá lá, o sono eterno pode ser bem-vindo. Já não há mesmo muito a fazer, o corpo não acompanha a mente, e a mente também já rateia, sem falar que há quase nada guardado nas gavetas.

Ok, hora de descansar em paz.

Mas antes de viver tudo? Morrer cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas. Morrer é um exagero.

E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das piadas. Só que esta não tem graça.

Por isso viva tudo que há para viver.

Não se apegue as coisas pequenas e inúteis da Vida… Perdoe… Sempre!!!

Adiar… Adiar… Adiar… será sempre o melhor dos caminhos?

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Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : O Nariz Perante os Poetas)

Cantem outros os olhos, os cabelos
E mil cousas gentis
Das belas suas: eu de minha amada
Cantar quero o nariz.

Não sei que fado mísero e mesquinho
É este do nariz,
Que poeta nenhum em prosa ou verso
Cantá-lo jamais quis.

Os dentes são pérolas,
Os lábios rubis,
As tranças lustrosas
São laços sutis
Que prendem, que enleiam
Amante feliz;
É colo de garça
A nívea cerviz;
Porém ninguém diz
O que é o nariz.

(As faces são tintas
De rosa e de liz,
Ou já têm de jambo
Mimoso matiz;
São cor de safira
Os olhos gentis
E a cor do nariz
Ninguém vo-la diz.)ii

Beija-se os cabelos,
E os olhos belos,
E a boca mimosa,
E a face de rosa
De fresco matiz;
E nem um só beijo
Fica de sobejo
P’ro pobre nariz;
Ai! pobre nariz,
És bem infeliz!

Entretanto, — notai a sem-razão
Do mundo, injusto e vão: —
Entretanto o nariz é do semblante
O ponto culminante;
No meio das demais feições do rosto
Erguido é o seu posto,
Bem como um trono, e acima dessa gente
Eleva-se eminente.

Trabalham sempre os olhos; mais ainda
A boca, o queixo, os dentes;
E — míseros plebeus — vão exercendo
Ofícios diferentes.

Mas o nariz, fidalgo de bom gosto,
Desliza brandamente
Vida voluptuosa entre as delícias
De um doce far-niente.

Sultão feliz, em seu divã sentado
A respirar perfumes,
De bem-aventurado ócio gozando,
Não tem inveja aos numes.

Para ele produz o rico Oriente
O cedro, a mirra, o incenso;
Para ele meiga Flora de seus cofres
Verte o tesouro imenso.

Amante fiel sua, a mansa aragem
As asas meneando
Anda p’ra ele nos vergéis vizinhos
Aromas apanhando.

E tu, pobre nariz, sofres o injusto
Silêncio dos poetas?
Sofres calado? não tocaste ainda
Da paciência as metas?

Nariz, nariz, já é tempo
De ecoar o teu queixume;
Pois, se não há poesia
Que não tenha o seu perfume,
Em que o poeta às mãos cheias
Os aromas não arrume,
Por que razão os poetas,
Por que do nariz não falam,
Do nariz, p’ra quem somente
Esses perfumes se exalam?

Onde, pois, ingratos vates,
Acharíeis as fragrâncias,
Os balsâmicos odores,
De que encheis vossas estâncias,
Os eflúvios, os aromas
Que nos versos espargis;
Onde acharíeis perfume,
Se não houvesse nariz?
Ó vós, que ao nariz negais
Os foros de fidalguia,
Sabei, que se por um erro
Não há nariz na poesia,
É por seu fado infeliz,
Mas não é porque não haja
Poesia no nariz.

Atenção pois aos sons de minha lira,
Vós todos, que me ouvis,
De minha bem-amada em versos d’ouro
Cantar quero o nariz.

O nariz de meu bem é como… oh! céus!…
É como o quê? por mais que lide e sue,
Nem uma só asneira!…
Que esta musa está hoje uma toupeira.

Nem uma idéia
Me sai do casco!…
Ó miserando,
Triste fiasco!!

Se bem me lembra, a Bíblia em qualquer parte
Certo nariz ao Líbano compara;iii
Se tal era o nariz,
De que tamanho não seria a cara?!…

E ai de mim! desgraçado,
Se o meu doce bem-amado
Vê seu nariz comparado
A uma erguida montanha:
Com razão e sem tardança,
Com rigores e esquivança,
Tomará cruel vingança
Por essa injúria tamanha.

Pois bem!… Vou arrojar-me pelo vago
Dessas comparações que a trouxe-mouxe
Do romantismo o gênio cá nos trouxe,
Que p’ra todas as cousas vão servindo;
E à fantasia as rédeas sacudindo,
Irei, bem como um cego,
Nas ondas me atirar do vasto pego,
Que as românticas musas desenvoltas
Costumam navegar a velas soltas.

E assim como o coração,
Sem ter corda, nem cravelha,
Na linguagem dos poetas
A uma harpa se assemelha;

Como as mãos de alva donzela
Parecem cestos de rosas,
E as roupas as mais espessas
São em verso vaporosas;

E o corpo de esbelta virgem
Tem feitio de coqueiro,
E só com um beijo se quebra
De tão franzino e ligeiro;

E como os olhos são flechas,
Que os corações vão varando;
E outras vezes são flautas
Que de noite vão cantando;

P’ra rematar tanta peta
O nariz será trombeta…

Trombeta o meu nariz?!! (ouço-a bradando)
Pois meu nariz é trombeta?…
Oh! não mais, Sr. poeta,
Com meu nariz s’intrometa.

Perdão por esta vez, perdão, senhora!
Eis nova inspiração me assalta agora,
E em honra ao teu nariz
Dos lábios me arrebenta em chafariz:

O teu nariz, doce amada,
É um castelo de amor,
Pelas mãos das próprias graças
Fabricado com primor.

As suas ventas estreitas
São como duas seteiras,
Donde ele oculto dispara
Agudas flechas certeiras.

Em que sítios te pus, amor, coitado!
Meu Deus, em que perigo?
Se a ninfa espirra, pelos ares saltas,
E em terra dás contigo.

Estou já cansado, desisto da empresa,
Em versos mimosos cantar-te bem quis;
Mas não o consente destino perverso,
Que fez-te infeliz;
Está decidido, — não cabes em verso,
Rebelde nariz.

E hoje tu deves
Te dar por feliz
Se estes versinhos
Brincando te fiz.

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Giselda Laporta (Livro: Pássaro contra a Vidraça)

Igor era um jovem que tinha quase tudo exceto o amor. Seus pais eram ricos e davam a ele tudo do mais caro mais que não preenchia o vazio no seu coração, sua mãe muito vaidosa mal olhava  para cara do seu filho, o seu pai  só trabalha e mal ficava em casa..

    Em um certo dia quando seus pais estavam viajando desesperado ele discou um número qualquer de sua imaginação, em busca de alguém que se dispusesse a ouví-lo. Pois ele estava na busca por algo ou alguém que lhe preenchesse o enorme vazio de sua alma, ele havia escolhido o caminho para as  drogas que era um caminho prazeroso no começo mais não no final. Essa Foi uma trágica e perigosa escolha da qual Igor já não poderia se livrar sozinho. Estava praticamente á mercê das drogas, chegando ao fundo do poço, de onde talvez não pudesse mais sair sozinho. Depois da alegria vinha o desespero e tudo poderia ser como um passo para a morte.

   Encontrou na moça que atendeu o telefone chamada  Juliana um conforto como se ela fosse sua segunda mãe e amiga que lhe ouvia sem  fazer criticas alguma ela simplesmente lhe abria os olhos pra que ele não se perdesse de uma vez, com jeito talvez ela tenha conseguido apenas acalmar o pobre jovem que lhe pedirá ajuda, mas é certo de que daquele dia em diante Igor seria ou tentaria ser uma nova pessoa, certamente uma pessoa bem melhor. Bastava-lhe apenas acreditar em si mesmo. Afinal, ainda tinha uma vida toda pela frente e depois de ter conversado com Juliana ao telefone, sentia-se mais confiante. Juliana também sentiu-se muito mais leve e calma por ter lhe aconselhado a um recomeço de vida. Juliana ficou muito feliz pois ela tinha um filho da idade de Igor, que poderia estar passando pela mesma situação, sem uma mãe para lhe aconselhar. Ela se sente muito bem por ajudar um jovem que tanto precisa de alguém para lhe ajudar a viver de novo.

Fonte:
http://clickdoscolegas.blogspot.com.br/2012/11/livropassaro-contra-vidraca.html

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Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 44

CAPÍTULO XXII

Meses depois, quando as câmaras já se achavam fechadas e o ministério em crise, a rua do Ouvidor regurgitava de povo que vinha de todos os pontos da cidade saber as novidades políticas. Falava-se muito em dissolução das câmaras; falava-se em subir de novo o partido liberal; citavam-se conselheiros que Sua Majestade o imperador mandara chamar a S. Cristóvão.

Mas, de repente, tudo serenou; porque um grande letreiro acabava de ser fixado à porta de um jornal: “Organização do novo gabinete conservador”. E entre os sete nomes que aí se liam, achava-se também o de Teobaldo Henrique de Albuquerque. O organizador do novo ministério chamara-o na véspera para lhe dar a pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Estava ministro.

O Coruja, logo ao saber da grande nova, não se pode conter e atirou-se para a casa do amigo.

— Teobaldo ministro! Oh! Que belo! Que belo! Ia ele a pensar pelo caminho. Quem o havia de supor? Deputado apenas nesta última candidatura e já hoje no poder! Isto é o que se chama andar aos pulos!

E foi com imensa dificuldade que o Coruja conseguiu chegar até à porta de S. Exa., tal era a multidão que aí se reunia, para saudar o novo ministro. A rua, a chácara tudo estava cheio de gente, uma banda de música tocava o hino nacional em frente da casa, e dentre o povo partiam repetidos vivas ao herói daquela festa e ao partido conservador.

André deteve-se um pouco entre a multidão, empenhado em escutar os originais e desencontrados comentários que se faziam a respeito do amigo.

— Não há dúvida que ele é uma grande cabeça! Dizia um sujeito em meio de uns quatro ou cinco.

— Ora qual! Opunha um destes, não passa de um felizardo! Entrou na câmara dos deputados por um acaso e ainda por outro acaso conseguiu pilhar uma pasta.

— Como por acaso?

— Pois então há quem ignore que este tino foi chamado às pressas para substituir o Rosas, que não aceitava o programa do Paranhos? Entrou para fazer número e, uma vez passada a lei, mandam-no passear de novo.

Em outro grupo se afirmava que Teobaldo era no Brasil o homem talvez de maior ilustração e com certeza o de idéias mais adiantadas.

— Hão de ver o que vai sair dai!

— É um portento, não há dúvida!

Um desses dera a sua palavra de honra em como o partido conservador jamais tivera um ministro tão teso, tão ativo e tão reto. E jurava que as repartições públicas sujeitas à alçada dele iam agora ver o bom e o bonito.

— Ah! Já foi contando com isso que o chamaram para o poder, acrescentou o outro. E afianço que certos empregadinhos vão pedir demissão de seus lugares, antes que Teobaldo lha dê.

— É um farofa! Dizia entretanto um tipo de outro magote, um retórico! Não enxerga um palmo adiante do nariz, nada sabe, nada! Um verdadeiro pulha!

Mais adiante se dizia que a principal qualidade de Teobaldo era a pureza de caráter e, logo ao pé, proclamavam-no um velhaco de marca maior.

— Hipócrita só como ele! Segredava-se aqui.

— Homem sincero! Considerava-se ali.

— Ele o que é, dizia alguém, é um grande pândego! Foi eleito deputado pelo escrutínio secreto das damas e chegou até ao poder subindo por uma trança de cabelos louros.

Mas a opinião geral e mais corrente a respeito do marido de Branca era-lhe de todo o ponto favorável. Davam-lhe grande talento, vasta erudição, caráter firme e sentimentos patrióticos; quer dizer: quase todos atribuíam-lhe justamente aquilo que lhe faltava, e ninguém, menos a esposa, as duas únicas qualidades intelectuais que ele tinha deveras desenvolvidas — Habilidade e bom gosto. E foi só com a sua habilidade e com o seu bom gosto que o pândego chegava àquela altura.

Todavia, o Coruja, meio atordoado pela confusão do povo e pelo desacordo das opiniões que ouvira a respeito do amigo, atravessou a chácara e subiu a escada que ia dar à sala.

— Ainda não pode entrar! Gritou-lhe asperamente um ordenança que aí se achava.

— Oh, senhor! Mas não era preciso dizer isso deste modo.

O ordenança mediu-o de alto a baixo com um gesto de superioridade e virou-lhe as costas desdenhosamente.

— Olha que impostor! Disse consigo o Coruja, e perguntou quando seria possível falar a Teobaldo.

— A quem?!

— Ao ministro.

— Ah! Logo mais! Daqui a pouco franqueia-se a casa ao povo.

— Está bom; eu espero.

— Lá embaixo! Espere lá embaixo!

Ouvia-se vir de dentro da casa um rumor alegre e quente de vozes de homens e risos de senhoras; alguma coisa que dava logo a idéia de uma existência aristocraticamente feliz. Pelo rumor daquelas vozes, pelo tilintar daquela alegria bem educada, pelo aspecto exterior da casa, com as suas cortinas muito claras, com a sua chácara e as suas escadas de pedra branca imaginava-se logo uma boa mesa servida com porcelanas e cristais de primeira ordem; imaginava-se a confortável mobília, as largas cadeiras estofadas, a voluptuosa cama de molas de aço, o banho perfumado, as roupas de linho puro.

E o Coruja, sem que aliás a menor sombra de inveja lhe entrasse no coração com a idéia de tudo isso, nunca se sentiu tão desamparado, tão só no mundo, como naquele momento.

Uma agonia surda e duvidosa apoderou-se dele. E foi com a garganta cerrada por um punho de ferro que o mísero desceu lentamente a escada, arrastando de degrau em degrau o seu pé aleijado pelo tiro.

Ao chegar embaixo reparou que um grito de aclamação partia de todos os lados; voltou-se e notou que Teobaldo acabava de assomar ao balcão da janela seguido pela esposa. E o Coruja notou igualmente que o amigo não parecia um simples ministro, mas um príncipe. Estava belo com o seu porte altivo e dominador; com o seu grande ar de fidalgo que exerce a delicadeza, não em honra da pessoa a quem se dirige, mas em sua própria honra. Iam-lhe muito bem os fios de cabelo branco que agora lhe prateavam a cabeça e a barba, dando-lhe à fisionomia uma expressão ainda mais distinta e mais nobre.

Abriram-se as portas da casa ao povo que ia cumprimentá-lo, e as salas foram invadidas, enquanto a banda de música continuava a tocar. Havia um grande número de senhoras lá dentro e, Branca, ao lado de D. Geminiana e mais do velho Hipólito, que se tinham apresentado de véspera, fazia as honras da festa, sem alterar, no meio daquela tempestade de louvor e adulação que cercava o marido, o seu frio riso de estátua. Só ela parecia não tomar parte moral no grande entusiasmo de toda aquela gente.

Coruja ouviu de fora os hurras dos brindes e os vivas levantados a Teobaldo, ao partido conservador e ao monarca; não se sentiu, porém, com ânimo de entrar e resolveu ir-se embora.

Saiu triste, profundamente triste, sem contudo saber a razão dessa tristeza. Um vago desgosto pela vida o acabrunhava e consumia; um tédio enorme, uma espécie de cansaço de ser bom, levava-o sombriamente a pensar na morte.

É que em torno de seus passos havia encontrado sempre e sempre a mesma ingratidão ou a mesma antipatia por parte de todos, ou a mesma maldade por parte de cada um. Agora daria tudo para poder cometer uma ação má, como se por essa forma o seu coração pretendesse repousar um instante. E, por todo o caminho, notou pela primeira vez os encontrões que lhe davam, as caras más que lhe faziam os transeuntes, a falta de consideração que todos lhe patenteavam.

Observou que ninguém lhe cedia a passagem na escada. Um homem em mangas de camisa dera-lhe um empurrão e, ainda por cima, lhe gritara: — “Que diabo Está bêbado?!” Um padre, querendo passar ao mesmo tempo que ele, dissera-lhe: “Arrede-se!” E um menino de jaquetinha e calça curta chegara a obrigá-lo a ceder-lhe o passo. Ao atravessar a rua, quando ia chegar à casa, uma carruagem que passava a todo trote, levantou com as rodas um jato de lama, que se foi estampar na cara dele.

Era o Afonso de Aguiar quem ia dentro desse carro. Voltara, afinal, ao Brasil. E, só aquele fato de ver o Aguiar, sempre feliz, rico, rejuvenescido com o passeio à Europa, ainda mais o fez entristecer.

Coruja recolheu-se, finalmente, foi para o seu quarto, que era o pior da casa de D. Margarida, fechou-se por dentro e deixou-se cair em uma cadeira, a soluçar como uma criança que não tem pai nem mãe.

CAPÍTULO XXIII

E de então em diante ia ficando cada vez mais triste, mais concentrado e mais esquivo de tudo e de todos. Não tinha afinal um canto seguro, no qual, fugindo aos desgostos da rua, pudesse refugiar-se com o seu tédio, porque na própria casa onde morava é que a má vontade mais se assanhava contra ele; o infeliz em troca de toda a sua dedicação pelas duas desgraçadas senhoras que tomara à sua conta, só recebia constantes e inequívocas provas de ressentimentos e até de ódio.

Ah! O Coruja estava bem convencido de que aquela gente, se não precisasse dele para não morrer de fome, também o enxotaria de junto de si, como se enxota um cão impertinente. E, pois, sem carinhos de espécie alguma, sem o menor consolo, lá ia vegetando entre aquela família, que não era sua senão no peso, e entre aquela mesquinha e perversa humanidade, que o apupava, que o insultava e que nunca lhe estendera a mão com outro fim que não fora pedir uma esmola ou dar uma bofetada.

Isto, além de o tornar mais sóbrio, afrouxava-lhe a coragem, enfraquecia-lhe o caráter, a ponto de lhe trazer um mal, que ele até ai não conhecia: a revolta contra a própria sorte e o desamor à vida. Dera para resmungão: falava só, gesticulando zangado; afetava contra seus semelhantes uma grande raiva toda de palavras, desesperando-se ainda mais por não poder deixar de ser bom, por não poder dominar o seu irresistível vício de socorrer os desgraçados e despir-se de tudo para suavizar as necessidades alheias; sofrendo por não conseguir ser mau como qualquer homem e procurando esconder da vista de todos as boas ações que praticava, como se procurasse esconder uma falta vergonhosa e humilhante.

E tal era agora o seu empenho em disfarçar a bondade que, um dia, depois de muito discutir com um taverneiro, a quem ele não pagara no prazo marcado uma velha conta de vinho, feita pelo marido de Inês, viram-no por-se a rir, estranhamente satisfeito, porque o credor lhe gritara em tom de descompostura:

— Mas eu não devia esperar outra coisa de quem aproveita a moléstia de um desgraçado para se meter com a mulher dele!

Este modo de explicar a residência de André na casa da velha Margarida não pertencia exclusivamente ao taverneiro, mas à rua inteira, e ninguém perdoava àquele a suposta concubinagem. Mas também se ele, em vez de defender-se de tais acusações, rejubilava-se com elas, mostrando-se pelos homens e seus juízos de uma indiferença de cínico!…

Agora, só um nome tinha o poder de o despertar ainda: o nome de Teobaldo. Era, porém, tão difícil chegar até Sua Excelência!… Havia sempre durante o dia na antecâmara do Sr. ministro tanta gente à espera de chegar a sua ocasião de falar com este!… E durante a noite a casa de Teobaldo tinha um tal aspecto de festa, um tal movimento de casacas e vestidos de seda, que o Coruja muito poucas vezes se animou a procurar o amigo depois da mudança.

— Mas para que iludir-se? Teobaldo não podia gostar de semelhantes visitas! E, com efeito, a presença de André o constrangia bastante.

Não que já não o estimasse de todo; ao contrário sentia prazer em vê-lo, de vez em quando, apertar-lhe a mão e trocar com ele idéias que não trocaria com ninguém; gostava ainda de arrepiar os arminhos do seu espírito roçando a lixa daquele caráter de ferro; gostava de ouvir-lhe aquelas meias palavras, sinceras e ásperas; preferia ainda um gesto de aprovação feito pelo Coruja a quantos elogios lhe fizessem os outros; gostava muito de tudo isso, mas não ali, em presença de tantas testemunhas e exposto ao ridículo.

Estimava-o, não havia dúvida que o estimava, porém sentia-se mal à vontade e aborrecido, quando o pressentia chegar pelo barulho da sua grossa bengala de coxo.

Tanto que uma ocasião, vencendo todos os escrúpulos, disse-lhe abertamente:

— Queres saber de uma coisa, André? Desconfio que estas visitas que me fazes são para ti um verdadeiro sacrifício! Acho que o melhor é procurar-te eu em tua casa, de vez em quando, hein? Que achas?!

— É! Resmungou o Coruja, abaixando a cabeça.

— Não te parece melhor?… Bem sabes que sou o mesmo; sou teu amigo e no meu conceito estás acima de todos, mas é que aqui não conseguimos nunca ficar à vontade; não podemos. conversar livremente, e deves concordar que isto para mim é nada menos que um martírio! Que diabo! Prefiro não te ver senão quando estivermos a sós, completamente a nosso gosto! Não és da mesma opinião?

Coruja mastigou algumas palavras em resposta, sem levantar os olhos, muito vermelho, e depois retirou-se, todo atrapalhado à procura do chapéu que ele aliás conservara debaixo do braço durante a visita.

E foi quase a correr que atravessou a chácara e ganhou a rua, como um criminoso que foge do lugar do delito.

Notaram em casa que ele esse dia falou e gesticulou sozinho mais do que era de costume, com a diferença que desta vez os seus solilóquios acabavam sempre em lágrimas.

Dois meses depois, em um domingo, Teobaldo fora surpreendê-lo em casa às nove horas da manhã. Ia de chapéu baixo, fato leve e bengalinha de junco. Em vez do cupê, que costumava usar com duas ordenanças, vinha de tílburi.

Entrou gritando desde a porta da rua pelo Coruja:

— Onde estava aquele malandro! Talvez ainda metido na cama!? Pois que não fosse tão epicurista e viesse cá para fora receber os amigos!

André, que trabalhava fechado no quarto, largou de mão do serviço e correu ao encontro dele; ao passo que Inês fugia para junto da mãe, muito sobressaltada por aquela voz argentina e cheia de vida, que espantava a miserável tristeza da casa com a sua risonha expressão de estroinice fidalga.

— Ora venha de lá esse abraço, mestre Coruja!

E assentando-se com desembaraço em uma cadeira da sala de jantar:

— Sabes! Vim disposto a almoçar contigo. Hoje estou perfeitamente livre; minha própria mulher supõe-me fora da cidade. Ninguém desconfia de que eu estou aqui. Ah! Eu precisava passar algumas horas completamente despreocupado, precisava descansar e então lembrei-me de fazer-te esta surpresa; cá estou!

Ergueu-se, foi até ao parapeito do quintal; esteve a olhar por algum tempo para um tanque cheio de roupa que lhe ficava defronte dos olhos e disse depois suspirando:

— Como tudo isto é bom e consolador! É como se eu voltasse ao meu passado; estou vendo o momento em que entra por aquela porta, com a sua lata na cabeça, aquele velho que nos levava todos os dias o almoço e o jantar. Como se chamava, lembras-te?

— Sebastião.

— Era isso mesmo. Sebastião. Muito fiz eu sofrer o pobre diabo! Recordar-te de uma vez em que o obriguei a improvisar um bestialógico encarapitado sobre a mesa e com uma garrafa equilibrada na cabeça? Bom tempo!

Coruja erguera-se para ir à cozinha ver o que havia para almoçar, mas o outro, percebendo-lhe a intenção, gritara:

— Olha! Vão chegar aí umas coisas que mandei vir do hotel.

— Bom, disse André, risonho como havia muito tempo não o viam, porque o nosso almoço, força é confessar, não vale dois caracóis!

— Com certeza já tivemos outros piores! Replicou Teobaldo, encaminhando-se  também para a cozinha. Deixa estar que ainda havemos de fazer aqui um jantar. Nós dois!

— Quando quiseres!

— Nós dois é um modo de dizer! Tu não entendes patavina a respeito de cozinha!

— Mas posso servir de teu ajudante.

Pouco depois chegou a encomenda do hotel. Teobaldo foi por suas próprias mãos abrir a caixa da comida e, para cada prato que tirava de dentro dela, tinha uma exclamação de afetado entusiasmo:

— Bravo! Bravo! Bolinhos de bacalhau! Costeletas de porco! Maionese de camarões! Peixe recheado! Pato assado!

E, tão à vontade se mostrava na pobre casa de D. Margarida, que ninguém diria estar ali o ministro mais amigo da etiqueta, mais apaixonado pela sua farda e pelas suas bordaduras de ouro, como por tudo aquilo que fosse brilhante, luxuoso e ofuscador.

— Como vai a velha? perguntou ele.

— Assim, respondeu Coruja. Pouco melhor.

— Ah! Está doente?…

-— Ora! Pois então não sabes? Eu já te falei nisso por mais de uma vez.

— É exato, agora me lembro.

— E a filha?

— Essa esta boa. Vou chamá-la.

— Não, deixa-a lá por ora. Virá depois. Olha. Recomenda-lhe que nos arranje o almoço, enquanto conversamos no teu quarto. Onde é?

— Aqui. Entra.

No quarto, o ministro, sem se mostrar nem de leve impressionado pelo aspecto de miséria que o cercava, tirou fora o paletó e pôs-se a examinar o que havia sobre a mesa do Coruja. O grande maço de anotações históricas, já suas conhecidas, era a coisa mais saliente entre todo aquele oceano de papéis e alfarrábios.

— Está muito adiantado? perguntou, batendo com o dedo sobre as notas.

— Pouco mais. Ultimamente não tenho podido fazer quase nada. Ainda me falta muito para concluir a obra.

— Pois é tratares de concluir, que eu te arranjarei a publicação dela à custa do governo.

— Prometes!

— Ora!

— Ah! Só assim tenho esperanças de não perder o meu trabalho, porque juro-te que já ia-me fugindo o gosto…

— Podes ficar certo que a tua história será impressa.

— Não calculas o alegrão que me dás com essas palavras!

— E então digo-te mais: a obra será adotada na Instrução Pública e transformar-se-á para ti em uma mina de ouro!

— Que felicidade!

— Hás de ver!

E na sua febre de fazer promessas agradáveis, Teobaldo perguntou a razão por que o amigo não se metia aí em qualquer repartição do Estado.

— Ora, que pergunta! Bem sabes que não é por falta de esforços da minha parte…

— Pois digo-te que agora também serás empregado. É verdade que a época não é das melhores para isso: os bons lugares estão todos preenchidos, mas.

— Não! Qualquer coisa me serve… Declarou André. Tu bem me conheces; desde que não haja necessidade de concurso…

— Que diabo! Se eu pensasse nisto há mais tempo, já podias até estar com o teu emprego.
— Olha! Vê se me arranjas alguma coisa na Biblioteca. Isso é que seria magnífico!

— Homem! E é bem lembrado. Havemos de ver.

Assim conversaram até a ocasião de irem para a mesa.

O almoço foi alegre e comido com bastante apetite. Inezinha preparou-se antes de aparecer ao senhor ministro, mas, apesar das insistências deste, não tomou lugar à mesa, para ficar servindo.

Dona Margarida, lá mesmo da cama onde continuava amarrada pelo reumatismo, dirigia o serviço, lembrando de quando em quando à filha tudo aquilo que podia ser esquecido.

— Areaste o paliteiro? Perguntava ela do quarto. Se não areaste é melhor por o outro de louça, que está na gaveta do armário.

— Já pus, sim senhora.

— Não te esqueças dos guardanapos. Os melhores são os de debrum encarnados.

— Eu sei, mamãe.

— Olha que o café esteja pronto quando eles acabarem! Mas o Sr. Teobaldo talvez prefira o chá. Pergunta-lhe.

— Café! Café! Respondeu o próprio Teobaldo, de modos a ser ouvido pela velha.

E então uma conversa de gritos se entabulou entre os dois.

—S. Exa. nos desculpe, pedia a dona da casa, bem sabe quais são as nossas circunstâncias!

— Ora, por amor de Deus, D. Margarida! Acredite que há muito tempo que eu não almoço tão bem ou pelo menos com tamanho prazer.

— Que diria se eu não estivesse presa a esta cama! Não acredito que Inês tenha dado conta do recado!

— É uma injustiça que faz á sua filha. Está tudo muito bom.

E dirigindo-se a Inês:

— Tenha a bondade de levar este cálice de vinho à senhora sua mãe que eu vou beber à saúde dela.

— Não sei se não me fará mal! Gritou logo a velha.

— Este só lhe pode fazer bem, respondeu Teobaldo, é uva pura!

Depois do café, Teobaldo esteve alguns instantes no quarto da velha, pediu-lhe licença para lhe deixar sobre a cômoda uma nota de cinqüenta mil réis, dinheiro que ele depositou ao pé de um velho oratório, dizendo:

— É para a cera dos seus santos.

A velha agradeceu muito comovida e teria contado pelo miúdo da sua história, se a visita não arranjasse meios de afastar-se, declarando que ia para o quarto do Coruja encostar um pouco a cabeça.

E Teobaldo, tendo ainda conversado com o amigo enquanto dava cabo de um charuto, estirou-se melhor no trôpego capanê em que estava e adormeceu profundamente.

Coruja veio na ponta dos pés até à sala de jantar e, concheando a mão contra a boca, disse em voz baixa:

— Agora, nada de barulho, que Teobaldo está dormindo!
–––––––––––-
continua…

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José Feldman (Trova Brasil n.13) Therezinha Dieguez Brisolla

Lançado mais um número da Trova Brasil. Agora homenageando a magnífica trovadora paulista, Therezinha Dieguez Brisolla.

São 50 páginas, com 267 trovas de sua autoria.

Faça o download AQUI

Abaixo algumas trovas desta grande trovadora.

A cabine é o seu reduto
e ao votar, nesta eleição,
você tem por um minuto
o futuro em sua mão!

Antes que feche o envelope
da carta onde eu digo: “Não”
meu coração, a galope,
já foi lhe dar meu perdão!

Ao atender meu apelo,
se a vida se faz ingrata,
chego a sentir o desvelo
com que Deus sempre me trata!

Ao ver que estava em perigo
fechou, a Jane, a matraca…
É que o Tarzã, sempre amigo,
hoje “tava com a macaca”!

Ao vir “de fogo” recua
gritando, após a topada:
– Que faz um poste na rua
às duas da madrugada?!

À pergunta: – Qual andar?
Responde o pinguço, a esmo:
– Onde quiser me levar;
já errei de prédio mesmo!

À solidão eu me oponho,
venço a velhice e a saudade,
se fecho os olhos e sonho…
Minha alma não tem idade!

– Canta mal, essa “coroa”…
– Pois saiba que é minha tia.
– Se a música fosse boa…
– Pois é de minha autoria!

Chega a cantora, que é mestra
no gingado da cintura
e os integrantes da orquestra
nem olham… pra partitura!

Chora de fome o povão!!!
Pro aperto, depois dos censos,
dá o governo a solução:
Distribui milhões… de lenços!

Coitado do homem moderno,
que na terra já reinou…
Hoje é escravo e subalterno
às coisas que ele inventou!

Constrói o amor que se aquieta
nas tramas que a vida tece,
uma passagem secreta
que só quem ama…conhece!

Com teu amor me procuras
e a luz do teu meigo olhar,
estando a casa às escuras,
tem o clarão do luar!

Depois de ti, não me atrevo
as outras, dar camafeus,
pois a figura, em relevo,
sempre tem os traços teus!

“Depois do jantar, o mate”,
diz, ao filho, o anfitrião.
Foge, ao perigo, o mascate.
Foi… sem tomar chimarrão!…

Deu, à sua esposa mística,
que finge chilique e ataque,
uma viagem turística…
E ela já embarcou … pro Iraque!

Diz ao dançar, enfadonha:
– Você sua !!! … O Zebedeu,
Bem caipira e com vergonha,
Diz baixinho : vô sê seu !!!

Diz, já caduco: – Que tédio!…
E a esposa, sempre calminha:
“- Quer jogar dama?” E, do prédio,
ele jogou a velhinha!

Diz “Não” à sogra e à cunhada.
– é astuto e não cai na rede –
“Família, aqui, só a Sagrada
e pregada na parede!”

É a rua da minha infância!
Revejo a casa… ouço o trem…
E cismo, em sonho e à distância,
que ela envelheceu… também!

É mãe de um casal!… e é duro
olhar a cena espantosa:
a filha em pijama escuro!
– O filho… em baby-doll rosa!

Enquanto a floresta queima
pondo a fauna em burburinho,
o passarinho ainda teima
e procura, em vão, seu ninho!

Esposa… Mãe… Professora…
Não se espante se eu disser
que, da Mulher Trovadora,
Deus fez um Anjo Mulher!

Errata: No e-livreto, este quarto verso está escrito Deuz, leia-se Deus.
 
Eu olho a rua e, se o vejo,
a razão já sai de perto.
Fecho a janela… e o desejo
esquece o cadeado aberto!

Eu rezo ao beijar meu santo
mas minha oração, de fato,
não chega ao céu… (não me espanto!).
O meu santo… é o teu retrato!

Gera corrida e surpresa,
notícia mal pontuada:
“A Mulata Globeleza
visita a Serra Pelada”!

Na “guerra” pela conquista
de um bom salário, valentes,
a manicure e o dentista
lutam “com unhas e dentes”!

Nossa memória é um diário
em um cofre… e, na verdade,
do secreto relicário
quem tem a chave é a saudade!

O marido sai a “campo”
-e o pipoqueiro é estourado!…
vendo a esposa com sarampo
e o vizinho empipocado!!!

Pergunta o “maitre”, polido:
(no prato a vespa… tostada!)
– E qual foi o seu pedido?
– O prato da vez passada!

Por meu pranto… por meus ais…
por meu viver infeliz…
sei que saudade é bem mais
do que o dicionário diz!

Que, “da vida ele anda farto”
diz o velho, em ais tristonhos…
No refúgio do seu quarto
mal cabem seus velhos sonhos!

“Se é do próximo, eu já disse
que é pecado”, explica o monge.
“Pecado? Mas, que tolice!
O esposo dela… está longe!”

Suas cartas, quase em tiras,
leio em segredo e me fere,
procurar entre as mentiras,
aquela que diz: – Me espere!

Um banhista, ante os apelos,
tenta salvar o Manduca
agarrando os seus cabelos.
Só que ele usava peruca!

Vendo a fera, fica  “um gelo”…
retira a cruz do pescoço.
Mas, o leão, ante o apelo:
“Só rezo… depois do almoço!”

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Trova 263 – Dorothy Jansson Moretti (Sorocaba/SP)

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21 de setembro de 2013 · 21:05

José Marins e Sérgio Pichorim (Fieira de Haicais) 651 a 700

ímpares: josé marins (jm)
pares: sérgio pichorim (sp)

651
sábado tem feira –
da gleba do lavrador
fartura de milho
jm-23-3-13

652
final do trabalho.
na montanha de sabugo
o gato descansa.
sp-25-3-13

653
um paiol antigo –
junto com a sacaria
o canto do grilo
jm-26-3-13

654
tarde de outono.
os pensamentos vagueiam
em pagos distantes.
sp-26-3-13

655
chuvisco outonal
andam rápidos meus pés
que apenas vagavam
jm-26-3-13

656
os meus passos lentos
na manhã ensolarada.
manacá-da-serra.
sp-2-4-13

657
já na cor de vinho
a fila de árvores de ácer
na longa avenida
jm-9-4-13

658
só na memória
o vermelho liquidâmbar.
a rua mais larga.
sp-10-4-13

659
ronco de motores –
o nevoeiro da rua
tem luzes vermelhas
jm-12-4-13

660
antes que o sol.
as tirivas barulhentas
atrás dos pinhões.
sp-15-4-13

661
o baque no chão –
lá de cima do pinheiro
a pinha madura
jm-14-4-13

662
preciso comprar
outro batom de cacau.
vento de outono.
sp-17-4-13

663
noitinha outonal –
para o pássaro sem nome
tento assoviar
jm-18-4-13

664
os dias se encurtam…
de repente eu me vejo
um ano mais velho.
sp-23-4-13

665
vinte e dois de abril
alguém se lembra também –
um brinde ao Brasil
jm-22-4-13

666
meia, meia, meia!
que São Jorge nos proteja
em nossa fieira.
sp-23-4-13

667
a tarde se vai –
também já foge o dragão
da nuvem de outono
jm-27-4-13

668
parece dormir
a cidade encoberta.
manhã de neblina.
sp-29-4-13

669
as fotos perdidas
sem uma câmera à mão
entre o nevoeiro
jm-29-4-13

670
Dia do trabalho
e um jardim pra limpar.
Dia de trabalho.
sp-1-5-13

671
Primeiro de maio –
esqueceram de tocar
o sino da igreja
jm-1-5-13

672
no altar lateral
vasos com flores de maio.
tudo em silêncio.
sp-8-5-13

673
acima da bruma –
a cruz de dois mil anos
lá no alto da torre
jm-8-5-13

674
Manhã especial
As filhas fazem o café
E levam pra ela
sp-12-5-13

675
Dia da Abolição –
alguém comenta notícias
de escravidão
jm-13-5-13

676
cinzenta manhã.
a leitura do jornal
e o poncho de lã.
sp-17-5-13

677
chuvinha de outono –
o sorvo de mate quente
ao bancar o dia
jm-17-5-13

678
depois do amargo
um forte café tropeiro.
o dia se encurta.
sp-17-5-13

679
um frio de outono –
o aroma de pão caseiro
tostado na chapa
jm-18-5-13

680
preciso tirar
os meus óculos de leitura.
pôr do sol de outono.
sp-6-6-13

681
prenúncio de inverno
com azulíssimo céu
sem passarinhos
jm-6-6-13

682
balanço do mar.
a lua segue e flutua
no meu balançar.
sp-7-6-13

683
noite de friúme –
na palmeira vibram palmas
juntas ao pretume
jm-8-6-13

684
o fim do outono.
no último entardecer
lembranças da vó.
sp-20-6-13

685
manifestações
esquentam mais uma noite
o inverno começa
jm-21-6-13

686
seis dias nublados.
neste solstício de inverno
sairá o sol?
sp-21-6-13

687
noite de fogueiras –
entre nuvens cinzentas
a lua crescente
jm-21-6-13

688
super lua cheia.
a brancura prediz a
primeira geada.
sp-23-6-13

689
Dia de São João –
amarelinho o pedaço
de bolo da infância
jm-24-6-13

690
a chuva encharcou
a lenha para a fogueira.
santo óleo diesel!
sp-24-6-13

691
enfim uma tarde
aquecendo-se de luz
solzinho de inverno
jm-4-7-13

692
a primeira vez!
cerejeira-de-okinawa
e o céu azul.
sp-4-7-13

693
as folhas rasgadas
da bananeira de inverno
afinal se dobram
jm-4-7-13

694
abrem-se os frutos.
o vento espalhou no parque
as painas branquinhas.
sp-5-7-13

695
relógio da XV
flores de pata-de-vaca
a quem o consulta
jm-5-7-13

696
o meu Hanami:
rua deserta de gente
Sakura florida.
sp-6-7-13

697
contemplar as pedras
também nuas do jardim
ah, visão de inverno
jm-7-7-13

698
circundar a Pedra
em um dia de jejum.
chega o Ramadã.
sp-11-7-13

699
noite de invernia –
a meia lua do oriente
contemplo em paz
jm-11-7-13

700
floquinhos de neve
nem se quer chegam ao chão.
janela embaçada.
sp-23-7-13

Fonte:
MARINS, José; PICHORIM, Sérgio. Fieira de Haicais. Disponível em: http://fieiradehaicais.blogspot.com/, Acesso em 17 setembro 2013.

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O Que é Haicai? (Parte I)

O haiku, traduzido para o português como haicai, é a forma de poesia mais tradicional da cultura japonesa. Autores ocidentais tendem a definir o haicai como um poema de 17 sílabas dispostas em três linhas de 5, 7 e 5 sílabas métricas. O haicai deve oferecer um momento de reflexão, de forma que cause no leitor, uma sensação de descoberta. Esse momento está para o haicai, assim como o satori está para o zen e o nirvana está para o budismo. O haicai também deve conter um kigo, palavra que se refere a uma das estações do ano, que indica quando foi escrito. O tema do haicai é principalmente observações de cenas que acontecem na natureza. À medida que o haicai ganhava a simpatia dos ocidentais, algumas de suas características foram sendo deixadas de lado, enquanto que outras foram sendo incorporadas à sua forma. Isto fez com que o haicai fosse moldado ao gosto de seu praticante, conforme as influências literárias de sua cultura.

Há muito mais para dizer sobre o haicai. Por que praticamos o haicai? Será que o número de sílabas realmente importa, ou as letras maiúsculas usadas no início de seus versos garantem maior fidelidade à forma? Qual a importância da pontuação em um haicai? Qual a relação entre haicai e zen? Por que é preferível não usar a personificação em um haicai? Quanto que podemos confiar nas traduções feitas sobre haicais? Tentaremos responder a essas questões nos textos seguintes, com base na literatura disponível.

Origem

O termo haicai é brasileiro. No dicionário Aurélio, além de haicai, constam os termos haicu, haikai e haiku e todos nos remetem ao haicai. Mas quem traduziu haiku como haicai e com base em que? Pode ser que a resposta a essa pergunta esteja em algum texto escondido, mas por enquanto tem permanecido sem explicação, pelo menos para mim. O interessante é que as demais formas, tais como a renga, a tanka, o senryu e o haibun, foram incorporados ao vocabulário do escritor de haicai por empréstimo direto de seu nome original. Suponho que foi o termo haikai que deu o nome ao nosso haicai, já que a pronúncia é a mesma, mudando apenas o k para o c, pois o k não pertence oficialmente ao alfabeto português. Mas por que não se chamou de haicu, como consta no dicionário Aurélio? Há ainda uma controvérsia sobre a pronúncia de haicai com o h mudo, mas após 15 anos de convivência com escritores brasileiros, a pronúncia do h como r é a única que tenho escutado. E já que haicai significa haiku…

Assim como a história da literatura brasileira, a história da literatura japonesa está dividida em vários períodos. No período inicial, Nara, que durou aproximadamente de 710 a 794 depois de Cristo (d.C.), os poetas japoneses, influenciados pela poesia chinesa, praticavam o uta, que significa canção, levemente adaptada do quarteto chinês para um poema de cinco partes, em japonês. O uta passou a ser chamado de waka, e finalmente, tanka (poesia curta e elegante), um poema composto por duas estrofes, sendo a primeira de 5-7-5 sílabas e a segunda de 7-7 sílabas, escrito por uma pessoa e praticada nos seis séculos seguintes. Quando a tanka passou a ser escrita por duas pessoas, ou seja, uma escrevia a primeira estrofe e outra a segunda, recebia o nome tan renga. Sobre a influência da tan renga, os poetas passaram a adicionar novas estrofes, criando assim um poema mais longo, que passou a ser chamado simplesmente de renga. É nesse período que surge o grande mestre Matsuo Basho (1644-1694), que na verdade não foi um mestre do haicai, mas sim, um mestre da renga.

A renga, que tinha um caráter humorístico, era a forma poética preferida por Basho, que a praticava com seus discípulos durante suas viagens. Basho chamou de hokku a estrofe de três linhas que iniciava a renga e de haikai as demais estrofes. Foi Basho que transformou o hokku, dando-lhe as características da natureza, de seriedade e eliminando o kireji, como um elemento mandatório (ver seção sobre Pontuação). O hokku passou a ter maior profundidade e a enfocar também o momento do haicai, ou seja, aquela sensação ou emoção de que falamos tanto e que um bom haicai deve possuir.

No final do século XIX, Basho já era considerado um mito, mas quem despontava na época era o quarto mestre mais importante do haicai, Masaoka Shiki, que, segundo Reichhold (2002), achava essa adulação à Basho repugnante. O hokku então, ganhou nova roupagem, quando Shiki passou a chamar o hokku de haiku, combinando hai de haikai e ku de hokku. Depois de algum tempo, o termo haiku se popularizou e se tornou uma forma independente da renga. Veremos em maior detalhe sobre tanka e renga, e os quatro mais importantes mestres do haiku, em outras seções desse trabalho.

Por Que Praticá-lo?

Assim como outros hábitos culturais introduzidos no Brasil, o haicai também conquistou admiradores, embora de uma forma mais discreta. Por que nós, os ocidentais, decidimos praticar o haicai? Na opinião de Jane Reichhold (com. pes.) “a medida que a poesia se tornava mais longa e sem forma, encontrar algo breve, direto ao assunto e de forte contraste foi uma mudança maravilhosa”. De fato, a brevidade do haicai pode estimular o surgimento de novos escritores logo que eles entram em contato com a forma. Alguns podem ser seduzidos pelo haicai ao pensar que um poema de três linhas se escreve em um piscar de olhos. Mas não é bem assim.

Escrever um haicai tem um próposito de ir além de descrição de imagens, e, portanto, nem todo terceto pode ser chamado de haicai. Também alguns praticantes vêem o conjunto de regras sugeridas pela forma como um desafio. Outros preferem dar seu toque pessoal, modificando essas regras ou ainda inovando-as. Há ainda aqueles que vêem o haicai como uma forma carregada de misticismo e espiritualismo que leva ao transcendental. O haicai, no entanto, é mais simples do que se imagina, e ao mesmo tempo exige do autor a criatividade e habilidade para descrever uma cena da natureza e um desejo de compartilhar com o leitor a emoção ou sensação abstraída desse momento. Em realidade, essa atração simplesmente acontece e não tem uma explicação maior do que uma relação de afinidade. Quando essa relação é estabelecida, desperta no escritor uma maior curiosidade e consequentemente um desejo de por em prática o que ele aprendeu. Não é bastante apenas gostar de haicai, mas também é preciso ter disciplina e persistência e querer maravilhar-se com a simplicidade dos momentos.

O Número de Sílabas

Ao que se percebe, a definição de haicai como um poema de 5-7-5 sílabas está tão fortalecida pelas muitas definições publicadas no ocidente, que muitos escritores, especialmente os iniciantes, não vão se libertar dessas regras facilmente. Higginson (1985) comenta que, em realidade, não são sílabas que são contadas pelos poetas japoneses, mas sim onji, que significa “sons de símbolos”, e se refere a um dos caracteres fonéticos da escrita japonesa. De acordo com Bruce Ross (1993), o haicai tradicional japonês é escrito em 5-7-5 onji, na vertical, curto o bastante para ser recitado de um só vez. Ainda segundo Ross, uma sílaba média da língua inglesa é muito mais longa do que um onji e pode corresponder a um tipo de unidade sílábica de uma vogal ou de uma consoante e uma vogal. Talvez por essa razão, os haicais escritos em inglês frequentemente possuem de 12 a 14 sílabas. Um haicai com 5-7-5 sílabas em português, que muitas vezes possui palavras mais longas do que suas equivalentes em inglês, pode demorar mais tempo para ser recitado e, portanto, 17 sílabas pode até ser um excesso.

Ao fixar um número exato de 5-7-5 sílabas, criamos uma estrutura mais rígida para o nosso haicai. Essa preocupação silábica é frequentemente notada no haicai brasileiro, como se essa fosse uma garantia a mais de se estar escrevendo um haicai. Às vezes, encontramos haicais que, para completar o número de sílabas tradicional, usam de artifícios, como inclusão de adjetivos ou artigos, que se fossem retirados não fariam falta. Mas esse é um tema que será tratado em um outro tópico.

Poucos são aqueles que se sentem confortáveis em escrever um haicai contendo um número menor que 17 sílabas, atualmente chamado de forma livre. Na maioria das vezes, nossa língua portuguesa nos permite acomodar o número de sílabas inicialmente estabelecidos (5-7-5) com uma certa facilidade, e se, ao escrevermos um haicai, conseguirmos preencher essas sílabas de forma natural, está bem. Caso contrário, é preferível manter somente as palavras necessárias.

O Uso de Letras Maiúsculas

Até o período do Simbolismo/Parnasianismo, qualquer forma poética tinha seus versos iniciados por letras maiúsculas. Com o surgimento das correntes modernistas no Século XX, essa prática sofreu mudanças radicais, e os versos não só se libertaram das letras maiúsculas, como também dos sinais de pontuação. Como sabemos, nem todos os poetas seguiram essa tendência e preferiram manter a tradição do que antes era considerado boa forma de poesia. Assim, os poemas ora continham maiúsculas e pontuações, ora eram escritos em letras minúsculas e sem pontuação.

O haicai brasileiro parece ter herdado a tendência tradicional, pois é comum encontrá-lo com letras maiúsculas iniciando os fragmentos de sentenças. Talvez essa prática seja uma herança deixada por nossos poetas Afrânio Peixoto e Guilherme de Almeida, os primeiros a pôr em evidência a forma no Brasil. Esta história será discutida em um outro tópico.

O que fazer? É necessário ou não usar letras maiúsculas no haicai? Se não é, por que encontramos tantos haicais onde os versos iniciam com letras maiúsculas? De onde vem essa prática? Outra vez, as regras do haicai parecem depender de quem o escreve e a convenção adotada parece sofrer influência de nossa cultura literária, de nosso próprio gosto ou da tendência adotada por um pequeno grupo de escritores.

Segundo nossa gramática, as letras maiúsculas são obrigatórias apenas no início de uma sentença e em nomes próprios. Já que o haicai geralmente é composto por fragmentos de sentenças, o uso da letra maiúscula não é relevante. Reichhold (2002) comenta que a medida que os escritores adquirem mais experiência com o haicai eles abandonam a letra maíuscula que geralmente inicia um verso. Segundo a autora, “o uso contínuo de letras capitais é uma indicação de que ou se trata de haicaista iniciante que mantém a prática da escrita de poesia anterior ou de alguém que se recusa a repensar as mudanças que a forma tem feito.”

Pontuação

Escritores japoneses não usam sinais de pontuação no haicai como os ocidentais, mas empregam o kireji, traduzido como “palavras que cortam”. Como informa Reichhold (2002):

Palavras como ka ou kana seriam equivalentes ao nosso travessão ou à nossa vírgula. Algumas desses kireji, sendo verbos ou adjetivos, são também usados para dar ênfase ou transmitir uma mensagem de emoção. O uso dessas palavras no haicai japonês ocupa uma ou duas unidades de sons, reduzindo o número de unidades em 6 a 12%“.

Conforme a informação acima, o uso de pontuação em um haicai é outra dificuldade que tentamos resolver para atender às nossas necessidades linguísticas. De acordo com Reichhold (2002), considerando-se que o haicai não é uma sentença, o uso de pontuação parece forçá-lo a ser o que não é. Em nossa convivência com o haicai, frequentemente encontramos aqueles que usam um excesso de pontuação ou nenhuma. Há os que usam dois pontos, ponto e vírgula ou travessão no final de um fragmento, ou ainda um ponto para fechar o poema. Qual seria o correto?

Alguns escritores usam esses recursos para dar a pausa necessária entre os fragmentos de sentenças. No entanto, o uso de um ponto não é necessário, porque o haicai não é uma sentença e, portanto, não deveria ser fechado desta forma. Reichhold (2002) afirma que todo haicai que possui um recurso de pausa, como os acima mencionados, pode ser reescrito de forma que a pausa seja naturalmente identificada. Para a autora, um haicai que usa pontuação é um haicai que falhou em preencher sua forma mais básica.

O Momento do Haicai

Por que um poema com até 17 sílabas é chamado de haicai? O fato é que para se tornar um haicai, esse conjunto de palavras precisa produzir um efeito em seu leitor. Quando se diz que um haicai é bom, é porque esse efeito, que chamaremos aqui de momento do haicai, está presente e, portanto, pode-se dizer que o autor atingiu seu objetivo. Consequentemente, a presença ou falta desse momento pode indicar o grau de compreensão que o autor possui sobre o assunto. Esse discutido momento pode vir sob outros nomes tais como insight, flash, essência, “ponto”, como se refere o Prof. Paulo Franchetti, da UNICAMP, ou aha!, como prefere a estudiosa americana de haicai, Jane Reichhold. Enquanto que insight é um termo que em nossa língua significa discernimento, introspecção, compreensão, o flash, tal como o flash fotográfico, dá a idéia de que o autor captou um momento muito breve de inspiração ao observar uma cena. É uma outra maneira de dizer a mesma idéia. Quando o Prof. Franchetti diz que um certo haicai “não tem ponto”, ou Jane Reichhold diz aha! para um haicai, é porque eles estão se referindo à ausência e presença desse momento, respectivamente.

O momento do haicai não deve ser forçado ou fabricado, mas surgir espontaneamente, como explica Susumu Takiguchi em seu artigo A Haiku Moment of Truth (Um Momento de Verdade no Haiku). Tampouco deve ser a exposição de um fato lógico ou conclusivo, mas a habilidade com que o escritor elabora uma imagem de forma que permita ao leitor discenir, se imbuir de uma sensação nova que está implicita no haicai, ou seja, nas entrelinhas. Uma crítica que ouvimos com frequência é que um certo haicai é muito lógico. Isso significa que sua justaposição versus imagem se completam apenas para estabelecer um fato meramente conclusivo, esperado, conhecido, racional. Esse tipo de haicai não mostra nada de novo e não afeta de nenhum modo a introspecção do leitor. É apenas a descrição de uma cena cujo efeito já é previamente conhecido e por ser racional, nada deixa para o leitor refletir. Toda informação que armazenamos de nosso conhecimento de mundo é apenas racional e não precisa ser repetida em um haicai.

Há quem considere que é muito fácil escrever um haicai, enquanto outros entendem que não é tão fácil assim, e não é mesmo. Nem todos os haicais escritos pelos velhos ou modernos mestres são grandes haicais ou mostram um momento claramente, tanto que lemos alguns deles e não compreendemos por que tal poema é chamado de haicai. Devido a tantas incertezas sobre esse tão questionável momento, muitos escritores sentem-se inseguros ao exporem seus haicais, preferindo chamá-los de tercetos, poemetos, poeminhas, haiquases, arremedos, tentativas e assim por diante. Apesar da crescente literatura sobre a forma, vários são os autores com livros de haicai publicados que parecem demonstrar uma outra compreensão desse momento.

Como captar esse momento requer persistência. Muitas vezes, vemos uma cena maravilhosa para compor um haicai, mas falta o momento, a justaposição, e a idéia fica tamborilando em nossas mentes esperando para ser transformada em um haicai que pode ser concretizado ou nunca existir. Outras vezes, basta uma olhar mais demorado e o haicai desabrocha sem muito esforço.

O momento do haicai pode até ser diferente de leitor para leitor. O mais famoso haicai de Basho é um exemplo:

a velha poça–
um sapo pula dentro:
o som da água

Higginson (1985) explica que esse haicai de Basho ganhou fama principalmente por enfatizar o som da água, já que o usual era incluir o som dos sapos na poesia japonesa. Para Bruce Ross, no entanto, autor de “Haiku Moment” (Momento do Haicai, 2000), o momento desse haicai, que ele chama de “realização”, ocorre quando a água passa de quietitude para a produção de som causado pelo breve pulo do sapo. De acordo com o autor, toda essa sequência de acontecimentos pode despertar o espírito zen.

Outro exemplo que permite identificar o momento é esse belo haicai de Issa, mestre japonês do século XIX:

Que coisa estranha!
Estar vivo
sob flores de cerejeira.

Podemos perceber nesse haicai que o autor está quieto sob o pé da cerejeira, talvez deitado, sentindo as flores caírem sobre ele, tal como acontece com um morto que os vivos cobrem de flores. Ele passa essa sensação de desconforto e ao mesmo tempo de beleza para o leitor. Esse é o momento a que nos referimos desde o início dessa seção. Além da beleza do haicai como poema, há o inesperado, o súbito, e tudo descrito de forma simples, sem o auxílio de figuras de linguagem.

Fonte:
http://www.sumauma.net/haicai/haicai-teoria.html

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Folclore dos Estados Unidos (Lenda Wyandot: A Criação do Mundo)

Haviam pessoas que viviam além do céu.  Eles eram os Wyandots. Um dia, o pajé disse para o povo a cavar em volta das raízes da macieira selvagem perto da cabana do chefe e os índios começaram a cavar. A filha do chefe estava deitada próximo.  Assim que os homens cavaram,  um barulho repentino os assustou.  Eles pularam para trás.  Eles haviam quebrado o piso do País dos Céus, e a árvore e a filha do chefe caíram através do buraco.

Nessa época o mundo não era nada mais do que um grande lençol de água. Não havia nenhuma terra em lugar nenhum.  Alguns cisnes nadando sobre a água no ouvido um estrondo de trovão. Foi a primeira vez que se ouviu um trovão no mundo.  Quando olharam para cima, eles viram a árvore e uma mulher estranha caindo da a mulher estranha cair do País dos Céus. Um deles disse: “Que coisa estranha está caindo?”  Então, ele acrescentou, “a água não vai sustentá-la. Vamos nadar em conjunto para que ela possa cair sobre nossas costas. “Então, a filha do chefe caiu sobre suas costas, e se deitou.

Depois de algum um tempo um cisne disse: “Que faremos com ela? Não podemos nadar desse jeito por muito tempo. Os outros disseram: ” Vamos para perguntar à Grande Tartaruga.  Ele provavelmente vai convocar um Conselho.  Então saberemos o que fazer.

Eles nadaram em torno da Grande Tartaruga e perguntaram-lhe o que fazer com a mulher em suas costas. Grande Tartaruga rapidamente enviou um mensageiro com um mocassim para os animais, então eles vieram de uma só vez para um grande Conselho. O Conselho se reuniu por um bom tempo. Então alguém se levantou e perguntou sobre a árvore. Ele disse que talvez os mergulhadores pudessem descer e ficar um pouco de terra de suas raízes, se eles descobrissem onde a árvore havia afundado. Grande Tartaruga disse: “Sim.  Se conseguirmos pegar terra, talvez possamos fazer um ilha para esta mulher. Então, os cisnes levaram todos para o local onde a árvore havia caído no fundo das águas.

Grande Tartaruga convocou mergulhadores. Primeiro foi a lontra, o melhor de todos eles.  Ele afundou de uma só vez para longe da visão.  Ele passou um longo, longo tempo.  Finalmente ele apareceu, mas ele engasgou e estava morto.  Então o rato almiscarado foi enviado. Ele também passou um longo, longo tempo. Muskrat também morreu.  Em seguida o castor foi mandado para baixo para obter a terra das raízes da árvore.  O castor também se afogou. Muitos animais morreram afogados.

Grande Tartaruga bradou:  “Quem vai se oferecer para ir para baixo para buscar a terra?” Ninguém quis se oferecer, até que no último minuto uma velha rã disse que iria tentar.  Todos os animais riram. A velho rã era muito pequena e feia.  Grande Tartaruga observou ela atentamente, mas enfim ele disse: “Bem, você tenta então.”

Para baixo nadou a velha rã.  Enfim ninguém podia mais vê-la, apesar dela descer muito lentamente. Então eles esperaram que ela voltasse. Eles esperaram e esperaram e esperaram.  Eles começaram a dizer: “Ela nunca vai voltar.”  Então eles viram uma pequena bolha na água. Grande Tartaruga disse: “Vamos nadar até lá. Lá é onde a velha rã está vindo. Assim foi feito. Então a velha rã veio lentamente à superfície, perto de Grande Tartaruga. Ela abriu a boca e cuspiu alguns grãos de terra que caíram no casco de Grande Tartaruga. A velha rã morreu também.

Pequena Tartaruga logo começou a esfregar a terra ao redor das bordas do casco de Grande Tartaruga.  A terra começou a crescer e virou uma ilha. Os animais olhavam à medida que crescia.  Em seguida, a ilha se tornou grande o suficiente para a mulher para viver, assim ela pisou na terra.  A ilha cresceu mais e mais,  até que se tornou tão grande quanto o mundo é hoje.

Quando um terremoto acontece, é porque grande tartaruga moveu seu pé. Às vezes ele fica cansado de carregar o mundo.(1)
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Nota:

(1)
Nos mitos cosmológicos de muitas culturas uma tartaruga sustenta o muno nas costas ou até mesmo sustenta os céus.

Fonte:
UDSON, Katherine B. Myths and Legends of British America. 1917.

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Ignácio de Loyola Brandão (Sem ? é impossível perguntar)

Serginho olhou para o teclado e apertou a tecla 2.

Em seguida, digitou o shift e apertou 2.

Apareceu o símbolo @ .O que será isso?

Depois,ele apertou o shift e o símbolo + surgiu no monitor. Serginho ria, divertia-se com a novidade.

Se não apertasse a tecla shift, em lugar do + apareceria o sinal =.

O que será que queria dizer?

Que o + e o = são iguais, dependendo da tecla shift?

Se quisesse o 5,bastava apertar a tecla 5.

No entanto, ao apertar o shift junto com o 5,o que apareceu na tela foi um símbolo engraçado,%.

Perguntou e o pai explicou que era porcentagem.

– O que quer dizer porcentagem?

O pai ficou calado uns minutos.

– Veja! Você tem o número 100 .Mas deseja apenas 10% de 100. Ou seja, você deseja apenas 10.

– Por que vou querer 10% de 100?

Era uma boa pergunta, o pai ficou de responder no dia seguinte, estava atrasado para o trabalho.

Serginho teve certeza de que o pai não sabia o que era porcentagem e ficou alegre. Tão bom descobrir que o pai da gente não sabe todas as coisas do mundo. Assim fica igual à gente. Havia meninos cujos pais sabiam tudo, faziam tudo, podiam tudo. Eram meninos chatos, pentelhos, pareciam os pais. Ou será que eram mentirosos?

Todavia, Serginho não estava preocupado com nada disso. Tinha descoberto as mágicas do teclado, as estranhezas que podia fazer com ele.

Ao apertar o shift e o 3, surgia uma gradinha. Assim:#.

O que seria? Para que serve? para fazer uma jaula? Para prender mosquito? A questão era : para que servem as coisas, os sinais diferentes que a gente pode produzir no teclado de um computador?

Serginho gostou do 8 misturado ao shift. Ele produzia uma estrelinha simpática *.

Aproveitou, fez um monte, uma linha inteira

******************************************

Já o 6 com shift fazia surgir um chapeuzinho ^. Serginho não teve dúvidas. ‘’Vou ter uma chapelaria” pensou.

^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^

Havia uma maçãzinha, ele apertou, nada aconteceu.

Ficou desapontado. Imaginou que sairiam maçãs, igual a máquina de refrigerantes que havia na lanchonete da esquina.

Apertou o 1 sozinho. Nada se passou. Quando apertou o 1 com o shift, viu o sinal!.

Quando o pai chegou, ele perguntou o que era.

– Isso é uma exclamação.

– E o que é uma exclamação?

Como explicar uma exclamação?

-Olhe, vou exclamar! Assim você saberá o que é a exclamação.

Então, disse, bem alto:

– Puxa! Meu deus! Ora! Nem me diga! Tudo com ênfase, firmeza, exclamativo.
– entendeu?

– Não!

O pai aproveitou:

– Viu? Esse não que você disse foi uma exclamação! Deu para sacar?
 

– Ah, uma exclamação é um não bem forte?

– A exclamação é o contrário da interrogação.

– E o que é interrogação?

– É uma pergunta.

– Quer dizer que a exclamação é uma não-pergunta?

O pai disse que precisava ir trabalhar.

Serginho apertou a tecla que ficava perto do shift e parecia um tracinho caindo, bêbado. Saiu no monitor um?.

O que é esse pauzinho torto?, pensou. Parece um corcunda!

O irmão mais velho, de 17 anos, passou com o skate nas mãos.

– Sabe o que é isso, Ciro?

– Sei, uma interrogação!

Apesar de brigar muito com o irmão, Serginho gostava dele, admirava. Ficou feliz. Ia saber o que é uma interrogação.

– O que é interrogação ?

– Sabe, é a coisa que você precisa quando vai fazer uma pergunta. Sem ela você não pode perguntar, ninguém vai saber que é pergunta.

– E a exclamação?

– É quando você exclama.

– E quando exclamo?

– Quando você diz puuuuuxxxxaaaaa!

– Puuuuuuuuuuuuxxxxxxxxaaaaaaaa, tão fácil!

Serginho tremeu. Que maravilha! Coisa mais incrível. Se não existisse o ? ninguém poderia perguntar. Como viver sem perguntar? Todo mundo sabe que para ter o sinal ? é preciso apertar o shift e o tracinho caindo? Ciro saiu, estava atrasado, deixando Serginho intrigado. Que coisa engraçada. Quer dizer que se eu não tiver um ? não posso fazer uma pergunta? E se não existisse o shift no teclado, não poderíamos perguntar? Estava achando tudo fascinante. O pai tinha trazido o computador, presente para os filhos, os mais velhos começavam a precisar para trabalhos da escola, para a internet, a irmã queria namorar por meio dele, a mãe desejava planejar o orçamento familiar, era uma família organizada.

    O computador tinha chegado na noite anterior e Serginho desde manhã estava tentando decifrar mistérios. Era divertido, complicado. Acima de tudo, mágico. Ele podia digitar uma letra (ainda que não soubesse que a palavra era digitar) e colocá-la fechada dentro de duas cercas (8),podia criar um mundo de estrelas *,de +,de chapéus ^.,

Não sabia ainda o que fazer com tudo, mas descobriria. Teria de ser sozinho, o pai mostrava não ter paciência. Ou talvez não soubesse. Porque o computador parecia remeter a coisas da vida que não tinham explicações fáceis.

O que é vida?

Por que não se vê o ar ?

Quando nasceram as letras?

Por que a água molha?

Por que o número 7 é o 7 e não o 8,e o 9 é não o 2?

Como a voz vem pelo telefone?

Serginho estava descobrindo que a vida e o computador abrigam coisas que os adultos não sabem, não conhecem, não explicam. Que a vida e o computador têm perguntas sem respostas. Mas que respostas existem e estão dentro do computador e das pessoas.

Disposto a descobrir, ele começou a apertar todas as teclas: Caps Lock, return, shift, tab, clear, help, home, Page up, Page down, control, option.

Estranhas palavras.     Quem fala assim? Língua de computador. Encheu o monitor de números, símbolos, signos, letras.

E ai viu uma tecla delete.

Apertou. Tudo sumiu, ficou branco.

O computador tinha engolido suas coisas de volta, mas estava pronto a devolver.

Devolver seus mistérios, sua mágica, o encantamento do shift, essa tecla solitária que produz tanta diferença.
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Nota:
CIRO=relativo aos ciros, antigo povo germânico que combateu juntamente com os hunos.

Fonte:
Deixa que eu conto. SP: Ática, 2008.

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Rachel de Queiroz (Seca)

Era hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro de mais um mês estaria virada de lama. Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos. O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava:

– Cidadão, vim lhe vender este couro de bode.

Aquele “cidadão”, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em terreno alheio sem dar bom-dia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira e foi-se pondo de pé.

– O quê? Que é que você quer?

O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio pelo cal da parede:

– Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto – não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a carne para comer. Agora, o couro – o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá farinha.

– E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar?

O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha:

– Ninguém perguntou a ela o nome do dono…

Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara:

– Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor?

Nesse meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. Aí o velho se vendo garantido, começou a gritar:

– Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem é o sinal dessa criação.

O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando graça para um dos companheiros:

– Era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal… 

O Augusto veio olhar também e ficou danado:

– Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava de cabrito novo!

Mas o olho do homem escuro era feio, se ele se assustara vendo-se cercado pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão . Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom coração; e gritou para o corredor:

– Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha!

Depois, retornando ao homem:

– Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças. Leve essa farinha, comam e tratem de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem ir!

O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo do companheiro. O velho reclamava, em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marcavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta ali no terreiro.

Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para trás da casa. Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga.

MORALIDADE:
Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito.

Fonte:
QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras São Paulo: Ática, 1997.

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Ezequiel Theodoro da Silva (A Formação do Leitor no Brasil: o novo/velho desafio)

Ainda que as diferentes motivações para as práticas de leitura estejam vinculadas a condições super e infra-estruturais de uma sociedade, não há como negar que a escola, enquanto instituição encarregada pela formação educacional das novas gerações, exerce um papel de máxima importância no processo de preparação de leitores. Nestes termos, pode ser afirmado que a um ensino de qualidade, atendendo a critérios de excelência, segue-se a formação de leitores maduros, com competência suficiente para caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da escrita.

No Brasil, a leitura vai mal porque a escola está muito mal, vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo. Tais carências, por sinal já reveladas e amplamente conhecidas, não vêm sendo enfrentadas com o devido grau de seriedade e responsabilidade pelos governos; o resultado no agora é um cenário desolador, cuja transformação depende de volumosos investimentos no sentido de recuperar o “tempo perdido”. Sabe-se, por exemplo, que a biblioteca escolar é uma estrutura imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor; entretanto, a sua viabilização concreta sempre fica
para depois, fazendo com que o “provisório” ou, pior, o “inexistente” seja reproduzido ao longo dos anos. As boas intenções e as grandes metas, visíveis em todas as políticas de leitura de início de governo, terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na corrente da história.

A contradição maior é esta: o ensino brasileiro é livresco dentro de uma escola sem livros.’ De fato, a pedagogia que orienta o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu sustentáculo maior, senão exclusivo. A voz e a autoridade do professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de informações. Nestes termos, a convivência prazerosa e produtiva com uma diversidade de obras é, na maior parte das vezes, substituída por um esquema redutor de leitura e, por isso mesmo, destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores durante a fase da escolarização.

No que se refere ao condutor do processo de ensino, o professor, fala-se em baixa quantidade de leitura. E poderia ser de outra maneira? A corrosão da dignidade desse profissional, revelada principalmente por salários vergonhosos, vem acontecendo no país desde o início da década de 70. A sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos empregos e/ou várias funções concomitantes. Não lhes sobra tempo e muito menos energia para ler. Não há dinheiro para aquisições freqüentes de livros. Não existem programas regulares de atualização via leitura e estudo de obras escritas. Dessa forma, ou seja, imerso num oceano de condições adversas, o professor – esse espectro do “espelho quebrado” – raramente pode dar o seu testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem pela frente. Daí a improvisação, a fragmentação, a rarefação do ensino da leitura na escola, o que engendra práticas de leitura em moldes mecanicistas e, no mais das vezes, sem nenhuma significação para os estudantes.

Quando um desafio social permanece no tempo e se esclerosa por falta de ações superadoras, ele aumenta em volume e em potência, tornando a necessidade de base ainda maior. A “crise da leitura” no seio da sociedade brasileira assinala um quadro de necessidades diversificadas, que vem se repetindo e se avolumando há bastante tempo.

As políticas de enfrentamento, visando a minimização e/ou superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas, revelaram-se, até aqui, totalmente inócuas porque operaram apenas no nível do discurso, porque foram descontínuas e/ou porque não receberam verbas suficientes para a sua implementação. Dessa forma, as velhas tradições relacionadas ao encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam inabaladas, configurando um círculo vicioso de dificil combate. O provisório se eterniza; o inexistente se cristaliza ao longo dos anos.

No quadro das velhas – e perniciosas – tradições deve ser também colocada a esfera da indústria editorial, de onde nascem os livros didáticos, privilegiando muito mais os critérios mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais do mundo educacional. Boa parte das editoras brasileiras fatura em cima das desgraças escolares, entre elas a ignorância e as opressões vividas pelos professores. Os sofisticados aparatos para o jogo contínuo do marketing, os lobbies para pressionar a aquisição anual de livros pelas agências governamentais, as manobras exercidas em direção ao livro didático “descartável”, a “disneylândia pedagógica”, etc… – tudo isso revela uma ação vesga ou caolha, ainda que extremamente lucrativa, frente a uma escola com baixa qualidade de ensino. Se os livros didáticos (por si só) resolvessem as complexas relações do ensino-aprendizagem, o Brasil teria, sem dúvida, o melhor sistema educacional do mundo. Triste panorama de contrastes: indústria editorial viçosa dentro de um terreno escolar bombardeado!

Tão bombardeado, tão carregado de necessidades que se toma dificil, neste momento, saber por onde começar os projetos e programas de transformação. Por exemplo, se é verdadeira a afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do indivíduo, cabe pensar nos altos contingentes populacionais que nem sequer chegam às portas da escola, permanecendo na escuridão do analfabetismo da palavra escrita. Cabe pensar nos altos índices de evasão e repetência escolar, levando os jovens a abandonarem a escola. Se é verdadeiro o pressuposto de que a formação do leitor depende de uma convivência constante com uma diversidade de obras, cabe pensar na ausência de infra-estrutura (biblioteca, bibliotecário, sistema regular para o abastecimento de livros, etc…) nas escolas. Se é verdadeiro o fato de que a formação do leitor depende de professores-leitores, cabe pensar na débil dignidade salarial desses profissionais. Cabe pensar também os aspectos de sua formação e atualização profissional. E ainda cabe saber quando, afinal, o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura, juntos e unidos, vão começar um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas.

A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal… e a sociedade está pior ainda: desemprego, dependência, criminalidade crescente, corrupção, miséria e fome. Nestes termos, a promoção da leitura, com infra-estrutura coerente, e a formação de leitores, com pedagogias adequadas, são apenas grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em expansão a cada ano que passa. O redemoinho da esperança de alguns continua a varrer esse deserto, porém apenas deslocando a areia, sem alterações significativas ou duradouras do árido cenário.

O sofrimento maior, para aqueles que refletem sobre as práticas de leitura no território nacional, é ter que gritar nesse deserto. Continuamente. Dolorosamente. E ter consciência, por exemplo, de que “Pensar a leitura como formação implica pensá-la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor: não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo que ele é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos deforma ou nos transforma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão frente àquilo que somos (…) como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos.” ?
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NOTAS

(1) A expressão “O livro é livresco, mas sem livros” é de João Wanderley Geraldi, servindo como título do prefácio do meu livro Elementos de Pedagogia da Leitura (SP: Martins Fontes, 1988, p.IX-XIII). Ele assim a caracteriza: “Sem livros, pratica-se no Brasil um ensino livresco. (…) o ensino livresco é autoritário, mistificador da palavra escrita, a que se atribui uma só leitura, obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins em si mesmos. A ausência do livro é compensada pelas máquinas de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e pelos livros didáticos. Produtos de consumo rápido, disponíveis, descartáveis; nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudá-lo para extrair dele o que se busca: não há busca, engolem-se informações pré-fixadas como conteúdos; não se degustam conquistas, as sopas pré-silábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar, mastigar, degustar – a papa está pronta “.

(2) A questão relacionada aos aspectos provisórios (não-permanentes) para a promoção da leitura nas escolas foi amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia, no livro Biblioteca Escolar. Estrutura e Funcionamento. Pelo fim do provisório eterno (RJ: Paulinas, 1991). Luis Augusto Milanesi, através de vários estudos, também revela as nossas carências de infra-estrutura para a promoção da leitura em sociedade, incluindo a escola.

(3) cf. Jorge LARROSA, La Experiência de La Lectura. Studios sobre Literatura y Formación. Barcelona: Editora Laertes, 1996, p. 16.

Fonte:
Jason Prado e Paulo Condini. A Formação do Leitor: pontos de vista. RJ: Argus, 1999.

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Vera Carvalho Assumpção (A Dama Imortal)

Como já disse diversas vezes nas minhas crônicas, sempre fui apaixonada pelas damas do crime, especialmente as inglesas. Também minha primeira crônica sobre o gênero policial fala sobre o final feliz das histórias. As pessoas gostam e se viciam nas histórias policiais porque sabem que, no final, o assassino será apontado e, diferentemente da realidade, de alguma forma a paz e a ordem serão restabelecidas e a justiça será feita. O que significa um final feliz.

São muitas as escritoras que se sobressaíram no gênero policial. No entanto, Agatha Christie continua sendo sucesso no mundo todo e, aqui no Brasil, as reedições se sucedem. Quem investiga o fenômeno começa sempre com a matemática de suas conquistas: só a Bíblia e Shakespeare venderam mais do que ela. Claro que a Bíblia é comprada e nem sempre lida! Shakespeare, não sei.

A questão permanece: como essa mulher conseguiu tanto sucesso e por tanto tempo? Talvez sua força tenha sido usar o próprio talento para fazer bem feito o que sabia fazer. Durante mais de cinquenta anos, Agatha produziu assassinatos e seus misteriosos desfechos, que continuam a surpreender e encantar seus leitores.

Com certeza o apelo universal de Agatha Christie não repousa em sangue ou violência, não nos corpos crivados de balas nas ruas perigosas dos “hard-boiled” americanos, não na selva de pedra do detetive sardônico, rápido no gatilho e gozador, nem na cuidadosa análise psicológica da depravação humana. Embora seus dois detetives, Poirot e Miss Marple, de vez em quando, investiguem assassinatos no exterior (Morte no Rio Nilo etc.), seu mundo é, na maioria das vezes, uma aconchegante e romantizada cidadezinha inglesa, enraizada em nostalgia, com sua hierarquia bem ordenada: o elegante cavalheiro rico (muitas vezes com uma jovem esposa de antecedentes misteriosos), o coronel poderoso e irascível, o médico da aldeia e sua enfermeira, o farmacêutico (útil para a compra e fabricação de venenos), as solteironas fofoqueiras atrás das cortinas de renda, o pároco local. Todos se movimentando previsivelmente em sua hierarquia social como num tabuleiro de xadrez. No entanto, nessa mítica cidadezinha cujos habitantes aparentemente são inofensivos e familiares, há sempre um que vai nos surpreender.

Ela não usa grande sutileza psicológica em suas caracterizações. Seus vilões e suspeitos são desenhados em traços amplos e claros e, talvez por causa disto, têm uma universalidade que leitores do mundo inteiro reconhecem instantaneamente. A base moral dos livros é simples e sem ambiguidades, resumida na declaração de Poirot: “Tenho uma atitude burguesa em relação ao assassinato: não o aprovo”.

Apesar do assassinato, a última coisa que se obtém num romance de Agatha é a presença perturbadora do mal. Não há emoções perturbadoras, estas ficam para o mundo real do qual buscamos na leitura uma tentativa de escapar. Enquanto lemos, todos os problemas e incertezas da vida são agrupados em um foco central: a identidade do assassino. E sabemos que, no final, isto será satisfatoriamente solucionado e a paz e a ordem serão recuperadas.

Seus leitores podem encontrar, livro após livro, a confortável garantia de rever velhos amigos. Ela nos induz, com delicada esperteza, a enganarmos a nós mesmos. Tomamos cuidado ao entrar naquela que é a mais letal das salas: a biblioteca. Suspeitamos do desocupado e insinuante retornado de terras estrangeiras e atentamos cuidadosamente aos espelhos, às portas entreabertas. Além da atenção redobrada ao mordomo.

Tantos truques são invariavelmente mais engenhosos do que críveis. As histórias são brandos enigmas intelectuais, não esquemas verossímeis do verdadeiro assassinato.

Quando a vítima é assassinada, há pouca informação quanto ao suspeito principal. Só no fim do livro reconhecemos que as pistas estavam todas ali e não percebemos, ou a autora as colocou de forma tão sutil que conseguiu nos enganar. Mas aí o leitor já está satisfeitíssimo, pois acabou de encontrar a paz e a ordem que procurava. Descobriu-se o assassino e alguma forma de punição vai ocorrer. Pelo menos na ficção!

Fonte:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/category/vera-carvalho-assumpcao/

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Vera Carvalho Assumpção (Livro: Paisagens Noturnas)

Primeira Aventura do Detetive Alyrio Cobra

Um rico executivo tem a irmã assassinada próximo à escola de periferia em que lecionava. Dois alunos confessaram o crime e o motivo: a professora os perseguia e impedia a atividade de venda de drogas nas salas de aula. Existiam assassinos confessos e um bom motivo. No entanto, algumas dúvidas pairam na mente do irmão da vítima que contrata o detetive Alyrio Cobra.

Num crime aparentemente solucionado, Alyrio Cobra se embrenha num mundo onde uma série de quadros que retratam paisagens escurecidas pela noite e assombradas pela lua guia seus passos. O que a princípio parecia um caso resolvido vai se mostrar um desafio para o detetive.

Vera Carvalho Assumpção é pioneira na publicação de livros virtuais e criadora do detetive Alyrio Cobra, sobre o qual publicou “Caldeirão de Raças” e “Paisagens Noturnas”. Recebeu vários prêmios por contos publicados, como o “Gralha Azul” e o “Guimarães Rosa”. Participou de várias antologias, como a “Contemporary Brazilian Literature”, da Universidade de Colorado, e teve contos publicados na revista “Semente”, da Universidade de Évora.

Fontes:
Sobre o livro = a autora
Sobre a autora =http://www.kbrdigital.com.br/vera-carvalho-assumpcao.html

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Dalton Trevisan (O Leão)

  A menina me leva diante do leão ,esquecido por um circo de passagem. Velho e doente, não está preso em grades de ferro. Foi solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: pernas reumáticas ,juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, fossem lágrimas.

   Observei em volta: todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o antigo prestígio  as crianças ao redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o bicho tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se de pé.

   Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe  um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: estremece a grama a seus pés. Simula ignorara a provocação e mastiga com dificuldade, no canto da boca, um pedaço de carne. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.

 – Ele não tem dente?

 – Tem sim, não vê? Não tem a força de morder.

   Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso de derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim. Ora ,leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.

   O leão abriu a bocarra de poucos dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor elevou-se aos tracos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé.Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de fordeco antigo.

   Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão trovejou seis ou setes urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.

Fonte:
Deixa que eu conto. SP: Ática, 2008.

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