Arquivo do mês: fevereiro 2013

Helena Kolody (O Dom da Alegria)

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26 de fevereiro de 2013 · 14:09

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Macaco)

O coelho e o macaco eram muito amigos.

Um dia, o coelho disse: “Amigo, vamos abrir uma machamba de amendoim”. “Está bem”, respondeu o macaco.

Havia muita fome na povoação.

Quando começaram a abrir o campo, o macaco ria, saltava, brincava e trabalhava pouco. O coelho tirou o capim, cavou, semeou quase toda a machamba praticamente sozinho.

Chegou a altura da colheita. O coelho tirava o amendoim e punha no saco. O macaco tirava-o e comia imediatamente.

O coelho ficou furioso e resolveu castigar o companheiro porque se continuassem daquela forma, estava a ver que não tiraria qualquer proveito do seu trabalho. Aproveitou então uma altura em que o macaco estava a saborear uma grande quantidade de amendoim e enterrou-lhe a cauda de forma a que não pudesse tirá-la.

Na altura de largar o trabalho, disse o coelho: “Ó amigo macaco, hoje tenho para o jantar amendoim com carne. Aparece”.

O coelho fingiu que tinha muita pressa e foi-se embora logo daí. O macaco tentou também ir-se embora e viu que estava preso pela cauda.

O macaco gritou chamando por ajuda. Passado algum tempo, apareceu o coelho todo ofegante. “O que foi, amigo macaco?” “Tira-me daqui”, pediu o macaco. O coelho fingiu que o ajudava, fez algum esforço. De repente, desistiu: “Paciência, amigo macaco, não há nada a fazer, eu tenho pressa, o jantar está à espera. A cauda está muito enterrada, só cortando-a, senão ficas aí toda a noite e nunca se sabe quando é que passa por aqui o leopardo…” Quando o macaco ouviu o nome do leopardo, pôs-se aos gritos e suplicou ao coelho que lhe cortasse a cauda. “Prefiro viver sem a cauda do que ser comido…” Era o que o coelho queria. Cortou-lhe a cauda e levou-a consigo.

Quando chegou a casa, cozeu-a juntamente com o amendoim que ia oferecer ao macaco. Este, apesar das dores, como era comilão, apresentou-se em casa do coelho para o jantar.

Começou a comer com sofreguidão até verificar que aquela carne não passava da sua própria cauda. Ficou furioso, quis agredir o coelho; este fugiu. A lamentar-se com as dores, foi-se embora.

Desde esse dia que o macaco e o coelho não cultivam juntos.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

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Arquivado em Contos, Moçambique

A. A. de Assis (A Trova na Imagem 4)

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26 de fevereiro de 2013 · 13:57

Waldir Araújo (Salvo pela Morte)

Carlos Nhambréne regressava de mais uma viagem à cidade de Bissau, onde tinha ido tratar de negócios ligados à venda de gado. No caminho para a sua região natal, a cidade de Bafatá, sentou-se confortavelmente na carrinha “Toca-Toca”* que levava cerca de duas dezenas de fatigados passageiros. Abriu cuidadosamente o jornal que ainda não tinha tido tempo de ler e, como sempre faz, foi directamente para às páginas da necrologia. Era um hábito, um vício ou qualquer outra coisa que o valha, mas o certo é que era um ritual. Tão bizarro quanto fatal. Mal abria um jornal, Carlos Nhambréne ia directamente para as páginas dos mortos. Tinha um estranho prazer em ver aquelas páginas. Saber quem deixou o mundo dos vivos. Apreciar a foto escolhida pela família do defunto para, pela última vez, mostrá-la a todo o mundo. Todos os dias de manhã, à hora do seu mata-bicho, mandava o pequeno Bubácar comprar o Djamburéré e já com o jornal na mão, repetia o seu ritual de leitura. Ia de imediato para as páginas da cruz e só depois lia a informação geral espalhada no jornal. Sem nunca antes deixar de apreciar todos os dados dos mortos diariamente anunciados. Conhecia os nomes e os estilos necrológicos das agências funerárias. Apreciava deleitemente os textos:

»A Família Enlutada Informa…«; »A todos os amigos e conhecidos a agência funerária Deus i Garandi informa do desaparecimento de…«; »A empresa Glória da Guiné informa aos clientes e amigos que o seu Digníssimo gerente deixou o mundo dos vivos.«

Nesse dia de regresso à casa depois de mais um excelente negócio, abriu o Djamburéré e foi directo às páginas do seu delírio. Carlos Nhambréne não queria acreditar. Mal começou a ler gelou de espanto. Numa coluna em destaque, com uma foto que lhe era muito familiar leu:

»Faleceu Carlos Nhambréne – A Família enlutada e amigos informam que o seu ente querido faleceu no passado dia 15 de Abril de 1992. O corpo encontra-se em câmara ardente da Igreja Matriz de Bafatá«.

Nhambréne perdeu o fôlego. Era a sua foto estampada na página da necrologia do Djamburéré, o jornal mais lido em toda a região Leste da Guiné-Bissau. Voltou a ler a mensagem ilustrada com um retrato que tirara há pouco mais de um mês na Foto do Leste, do seu vizinho Djibril Mané. Fechou a página impulsivamente. Olhou sorrateiramente para o restante dos passageiros que seguiam no »Toca-Toca«, quatro deles liam o mesmo jornal.

Carlos Nhambréne foi subitamente invadido por uma ira fulminante, um sentimento de ódio indescritível. Quem teria feito uma brincadeira de tamanha bizarria? Quem teve a coragem de provocar um dos homens mais temidos da região? Anunciar a morte de alguém que nunca se sentiu tão vivo? Enquanto o transporte, já cansado de muitos quilómetros galgar, percorrendo as massacradas estradas do interior, o comerciante mais proeminente de Bafatá e arredores preparava em silêncio ardente o plano de vingança. »Ah, mas quem fez isto vai pagá-las ou não me chamo Nhambréne Mon di Ferro«. Alcunha pela qual era conhecido em toda a região leste da Guiné-Bissau, Nhambréne »Mon di Ferro«. Por ser um patrão rude e ditador. Por ser um sovina de primeira água. Por se gabar de resolver tudo a pulso. E – por último, mas não menos revelador «, por ter uma prótese de metal que lhe completa o braço direito subtraído em consequência do acidente que sofrera em 1969, quando o camião militar que conduzia pisou uma mina do Colón**, junto à localidade de Candjambari, nos idos e gloriosos tempos da »Luta pela Liberdade da Pátria«. O acidente salvou-lhe a vida. Foi graças a esta desgraça que o triunfante »partido do povo« lhe atribuíra o almejado estatuto de »Combatente da Liberdade da Pátria« e um chorudo subsídio ad-eternum, o que lhe permitiu abrir um negócio de gado numa enorme Ponta que comprou e ainda três fábricas de gelo espalhadas pelas caloríficas localidades de Bafatá, Bambadinca e Gabú.

Nhambréne dobrou sorrateiramente o jornal, guardou-o na pasta preta que trazia sempre consigo e pôs-se a conjecturar. Sabia que inimigos não lhe faltavam. Amigos, só mesmo os que as circunstâncias emprestavam. Era mais fácil começar pelos últimos tempos. Quem teria motivos para pregar uma partida fúnebre como esta? Tinha dificuldades em ordenar as ideias. É que se trata de tarefa difícil encontrar uma acção deste homem que não tenha magoado fulano ou ofendido sicrano. O temperamento do homem trai qualquer gesto. Exímio gestor dos seus bens, Nhambréne Mon di Ferro era também excessivamente exigente e descaradamente ambicioso. Dormia apenas quatro horas por noite e o resto do tempo aplicava-o a tratar de enriquecer. Não se lhe conhecia filhos nem mulher oficial. Dormia com as empregadas e fazia tudo convencido de que ninguém sabia das suas desventuras nocturnas. Das mulheres que tivera por algumas horas ou noites, apenas uma marcou o homem. Aminata Sadjó, uma belíssima comerciante de Bambadinca, localidade a escassos quilómetros de Bafatá. Aminata conhecera Nahmbréne numa das viagens de negócios de gado. O homem ficou fascinado com a beleza dessa mulher de etnia mandinga. Uma beleza adornada por uma notória inteligência e capacidade de encantar. No encontro Aminata levou a melhor ao conseguir comprar mais cabeças de gado, deixando Nhambréne enraivecidamente enfeitiçado. O envolvimento entre os dois aconteceria dias depois. Mas foi sol de pouca dura. Não tardou muito, Aminata começara a encontrar no homem mais defeitos que virtudes. Depois de algumas desfeitas do comerciante, pequenas traições e mentiras mal formuladas, Aminata Sadjó nunca mais quis ver Nhambréne de perto. Enquanto isso, a paixão do comerciante de Bafatá por esta linda e misteriosa mulher de Bambadinca não conhecia limites. Mas estava de parte a hipótese de ser a Aminata a autora da fúnebre mensagem. Isto porque a mulher tinha mais que fazer. Detestava a arrogância de Mon di Ferro, mas votava-o ao desprezo. Aliás, o nome de Aminata só surgiu na mente ferida do homem porque é talvez a pessoa mais importante -ou será menos irrelevante?- da sua desinteressante vida.

Depois pensou no seu mais acérrimo rival. Samba Dabó, comerciante de cabeças de gado, dono de duas concorridas lojas em Bafatá e respeitado por toda a comunidade muçulmana do Leste. Nhambréne e Dabó cresceram juntos. O ódio de um pelo outro também. Com o passar do tempo, cada um foi à sua vida e voltariam a encontrar-se anos depois. Os dois feitos homens e comerciantes. Tirando os sinais exteriores que o tempo lhes foi deixando no corpo, mantinham o mesmo carácter. Samba Dabó, sério, trabalhador e pragmático. Carlos Nhambréne, trabalhador, sim, mas pouco sério e muito menos pragmático. Nhambréne fez de tudo para que o negócio de Dabó fracassasse. Até foi ter com o velho Serifo Camará, conhecido Muru*** da zona Leste. Pediu ao velho que utilizasse os seus dons de murundadi**** para atrasar a vida do seu inimigo de estimação. Mas saiu de lá com uma descasca. O Velho Serifo Camará repreendeu-lhe e disse que não utilizava os seus dons para fazer mal a um homem bom. Enquanto isso, Samba Dabó continuou a viver em Bafatá ignorando por completo a existência de Nhambréne. Sabia dos truques e dos constantes actos que este fazia para prejudicá-lo, mas em troca Samba apostava em manter o seu bom nome, a sua melhor defesa. Com tantos afazeres e até pela pouca importância que passou a dispensar ao seu concorrente de negócios, Samba não tinha assim grandes razões para constar na lista dos suspeitos. Bem, assim sendo, só se fosse o novo Governador da região. Jovem recém-nomeado e humilhado por Nhambréne desde o primeiro dia que assumiu o novo posto. Toumane Embalo tinha sido nomeado há poucos meses para substituir um antigo Governador que entendeu que chegara a hora de largar tudo e ir dormitar nas propriedades que foi acumulando ao longo dos tempos do poder. Toumane vinha cheio de energia, com ideias de mudar as coisas, instalar o rigor e desenvolver a região. Sonhos! Mal chegou enfrentou a teoria de conspiração instalada e fomentada por Carlos Nhambréne. Os habitantes mais influentes, comandados pelo Mon di Ferro, começaram logo por questionar a capacidade do jovem, a troçar da sua tenra idade e curto currículo. Porém, Toumane tentou não se deixar intimidar, mas teve dificuldades em dar início aos trabalhos. Os seus subordinados olhavam-no com um ar de desconfiança e fingiam não entender a sua linguagem de dinâmica e mudança. Cedo, o jovem administrador identificou o alvo número um, o obstáculo-mor do seu trabalho: Carlos Nhambréne. Mas sabia que a solução não deveria ser hostilizar o homem. Apesar de toda a arrogância e maldade, Nhambréne Mon di Ferro era, sem sombras de dúvidas, dos homens mais poderosos e temidos de Bafatá. A estratégia de Toumane era ter o homem como um aliado, pelo menos nos primeiros tempos. Carlos Nhambréne começara, aliás, a reconhecer o esforço do jovem, que lhe facilitava todas as burocracias relacionadas com o negócio e que lhe convidava para todas as cerimónias oficiais, apresentando o Mon di Ferro como »o nosso mais exímio comerciante e dos mais brilhantes cidadãos da região«. Toumane Embalo estava fora da lista dos suspeitos.

Enquanto procurava idealizar outro suspeito voltou a abrir sorrateiramente a página que anunciava a sua morte. Desta vez fixou bem a notícia. Não conseguia relacionar o estilo da escrita necrológica com nenhuma das agências funerárias da região. Fixou a sua fotografia e começou a pensar na sua vida. Quem era Carlos Nhambréne? Um homem duro e só. Por momentos vislumbrou toda a sua infância. As dificuldades que enfrentara desde os primeiros anos. A morte da mãe e a fuga do pai. Mais tarde a separação dos dois irmãos que decidiram partir para o Senegal à busca de melhor futuro, mas onde acabariam por encontrar a morte. Um tio austero acolheu-o educando sob a lei do chicote e da exploração, mas ensinando-lhe também toda a arte da pastorícia e dos negócios do gado. Era esse tio que viria a deixar tudo em nome de Nhambréne. Uma herança que honrou, fazendo crescer o negócio. Mas o duro passado moldou-lhe a alma e toldou-lhe o sentimento. A dureza passou a ser a palavra de ordem e guia dos seus actos. As relações com as pessoas que o circundavam era meramente mecânica, de puro interesse. Pensou nas maldades que fez sem se aperceber. Nas pessoas que procuravam despertar-lhe o sentimento da amizade e do amor. Pessoas a quem ele sempre respondera com desprezo. Nos empregados que serviram-lhe com dedicação e a quem ele sempre pagou míseros tostões. No pequeno Bubácar que lhe foi entregue para criação, por um casal desfavorecido que julgava que assim protegeria o futuro do rapaz. Criança que hoje não passa de um sujo e maltratado moço de recados. Pensou em tudo mais, mas só se lembrava de actos menos dignos, momentos de maldade de uma vida oca em virtudes. Sentiu-se invadido por um sentimento de remorso do tamanho do mundo. E, de repente, aconteceu algo de incrível. Começou a chorar. Carlos Nhambréne a chorar de remorsos! Chorou compulsivamente ignorando as pessoas que iam sentados a seu lado. Pouco depois sentia-se um homem novo, de alma lavada e coração aberto. Imaginou pela primeira vez como seria tudo diferente se ele desse um pouco de si aos outros. E sorriu. Carlos Nhambréne sorriu por ter bons pensamentos!

E de repente lembrou-se do sorriso que jamais esquecera. O sorriso da Aminata Sadjó. Breve no gesto, mas eterno na memória de Nhambréne.

Finalmente, quando o cansado Toca-Toca parou em Bafatá, Mon di Ferro reparou que era o único passageiro a descer naquele destino. Voltou para trás e viu apenas mais quatro passageiros sentados na carrinha. Eram as quatro pessoas que também vinham a ler o Djamburéré. Ainda tinham os jornais abertos a tapar-lhes a cara. Já de lado de fora do Toca-Toca, olhou de novo para dentro da carrinha e viu as mesmas pessoas, desta feita com as caras destapadas. Reconheceu a sua mãe, o seu pai e os dois irmãos. Gelou de espanto, imóvel tal qual uma estátua. A carrinha desapareceu por entre as poeiras das estradas do Leste da Guiné-Bissau. Abriu de novo o jornal na página da necrologia. Já lá não estava a sua morte. Carlos Nhambréne nunca mais foi o mesmo homem. Ainda hoje, quando compra o jornal, continua a ir directo para as páginas da necrologia.

Como se à espera de encontrar algo…

––––
Notas:
*“Toca-Toca” – Carrinha de transporte colectivo de passageiros.
**Colón – Diminutivo de Colonialismo. Termo com sentido depreciativo.
*** Ponta – Propriedade rural (equivalente a Fazenda, no Brasil)
****Muru – Curandeiro (Pai de Santo)
*****Murundadi – Trabalho de curandeiro.


Fonte:
Waldir Araújo.Admirável Diamante Bruto e outros contos. Portugal: Editora Livro do Dia Editores, 2008.

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Waldir Araújo (1971)

Waldir Araújo nasceu em Bissau, Guiné-Bissau, a 14 de Julho de 1971.

Estudou Direito em Lisboa, na Universidade Moderna, curso que não chega a concluir por ter trocado o estudo das Leis pelo Jornalismo.

Fez o curso de Jornalismo no Cenjor, Centro Protocolar para Formação de Jornalistas.

Iniciou a carreira jornalística na Revista VALOR, EM 1996.

Colabora em publicações como Diário Económico, África Lusófona, Africanidades, entre outros.

Presentemente é jornalista quadro da RDP-África, uma importante emissora portuguesa que emite para toda a África lusófona.

Em 2005 recebe uma Bolsa de Criação Literária, do Centro Nacional de Cultura português para realizar uma investigação literária sobre a comunidadecabo-verdiana dos “Rabelados de Santiago”.

Em Fevereiro de 2006, no importante encontro de escritores de expressão ibérica, “Correntes D’escritas”, na Póvoa do Varzim, Portugal, como escritor convidado da Guiné-Bissau.

Tem vários textos (contos, prosas e poemas) publicados em várias publicações ligadas à Literatura.

Actualmente reside em Lisboa.

Fonte:
http://novacultura.de/wb/pages/literatrip/salvo-pela-morte.php

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Ruth Rocha (Quem tem medo de dizer ”não”?)

A gente vive aprendendo
A ser bonzinho, legal,
A dizer que sim pra tudo,
A ser sempre cordial…
A concordar, a ceder,
A não causar confusão,
A ser vaca-de-presépio
Que não sabe dizer não!
Acontece todo dia,
Pois eu mesma não escapo.
De tanto ser boazinha,
Tô sempre engolindo sapo…
Como coisas que não gosto,
Faço coisas que não quero…
Deste jeito, minha gente,
Qualquer dia eu desespero…
Já comi pamonha e angu,
Comi até dobradinha…
Comi mingau de sagu
Na casa de uma vizinha…
Comi fígado e espinafre,
De medo de dizer não.
Qualquer dia, sem querer,
Vou ter de comer sabão!

Eu não sei me recusar,
Quando me pedem um favor.
Eu sei que não vou dar conta,
Mas dizer não é um horror!
E no fim não faço nada
E perco toda razão.
Fico mal com todo mundo,
Só consigo amolação.
Quando eu estudo a lição
E o companheiro não estuda,
Na hora da prova pede
Que eu dê a ele uma ajuda.
Embora ache desaforo,
Eu não consigo negar…
Meu Deus, como sou boazinha…
Vivo só para ajudar…
Se alguém me pede que empreste
O disco do meu agrado,
Sabendo que não devolvem
Ou que devolvem riscado…
Sou incapaz de negar,
Mas fico muito infeliz…
Qualquer um, se tiver jeito,
Me leva pelo nariz…

Depois que eu estou na fila
Pra pagar o supermercado,
Já estou lá há muito tempo…
Aparece um engraçado…
Seja jovem, seja velho,
Se mete na minha frente,
Mas eu nunca digo nada…
Embora eu fique doente!
A gente sempre demora
A entender esta questão.
Às vezes custa um bocado
Dizer simplesmente não!
Mas depois que você disse
Você fica aliviada
E o outro que lhe pediu
É que fica atrapalhado…
Mas não vamos esquecer
Que existe o “por outro lado”…
Tudo tem direito e avesso,
Que é meio desencontrado…
Quero saber dizer NÃO.
Acho que é bom para mim.
Mas não quero ser do contra…
Também quero dizer SIM!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 14. Lenço Perdido

Quando eu acabava de saltar do bonde, esta manhã, ouvi atrás de mim um pchiu!, voltei-me, e um passageiro, homem do povo, esticando o braço até no meio da rua, me apresentou um lenço que ficara no banco. Apalpei os bolsos, não me faltava lenço nenhum. Tive pena de que o objeto não me pertencesse, porque pareceu-me que sem isso o meu agradecimento não encaixaria perfeitamente com a amabilidade do homem. Por um instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceu o austero dever, tirei o chapéu, agradeci, e fui-me. O homem ainda me pediu desculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo dono.

Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão -que ainda há muito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestidade do ato, valha a verdade, não era grande. Os objetos transviados são quase sempre restituídos, quando de pouco importância. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria. A honestidade, afinal, é uma obrigação. Tem um princípiopassivo. É uma astúcia do egoísmo socializado, que evolveu para virtude, como o réptil se fez pato. Mas a galantaria é soberana: impulso livre, ação de luxo e primor, dom incompulsório, fantasia espontânea do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vontade senhora de si mesma. – O excesso da medida justa vale a medida inteira.

Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, num passo vagaroso de quem vê que carrega borboletas no ombro ou no chapéu e não quer afugentá-las. Ao entrar num café, dei com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho. Sorriu-se, descobriu-se e, inclinando a cabeça para um lado:

-“Seu doutor, não tem aí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar um pingado?”

Dei-lhe os nicolaus.

Fonte:
Domínio Público

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Aluísio Azevedo (O Esqueleto) II – O Satanás

Tinha uma bela compostura varonil e forte de velho conservado aquele desconhecido que tão inopinadamente acabava de entrar na bodega do Trancoso e em torno do qual todos respeitosamente se acercavam.

Por sobre o chapéu de abas largas, via-se um rosto bem modelado em ângulos violentos de decisão e afoiteza O espesso e comprido bigode militar, que o sarro dos cachimbos amarelecera, recurvava-se fantasticamente numas pontas erguidas para o céu como uma ameaça de conos de Satanás. O nariz e o queixo eram pontiagudos, fazendo-lhe a cara estreita e cortante como a cabeça dos peixes, e a quilha dos navios. E ele tinha, principalmente, um olhar, indefinível de cor, agudo e penetrante como a lâmina daquela espada que atirara sobre o balcão, olhar de rapina, de águia nobre ou abutre carniceiro. Não se lhe podia ver o traje, envolto como trazia o corpo numa vasta capa espanhola de forro escarlate Divisava-se-lhe apenas as largas botas de couro, muito elameadas e com esporas de grandes rosetas.

E aí, à luz baça dos candieiros, recostado por sobre uma mesa, ele quedava-se, indiferente com a preocupação dos outros, tipo fantástico de aventuras a quem pouco importavam a luta de ainda havia pouco, e a perspectiva toda da vida restante.

Chamavam-no Satanás e tinha a sua história.

De origem fiorentina e boas fidalguias, ele crescera logo numa infância cheia de tempestades. Na noite do seu nascimento, uma vingança italiana ateara o incêndio no palácio dos Pallingrini, e somente a um mi]agre se deveu a sua salvação. O pai, que o trouxera ao colo descendo pela escada abrasada, entregou-o a um criado. E pereceu dentro das chamas quando tentou voltar para salvar a mulher. Um frade mendicante que passava batizou-o então com o nome de Ângelo; e uma bruxa cigana, que dizia a buena dicha vaticinou-lhe mil horrores: uma inconstância de sorte fazendo-o milionário de repente e mendigo logo depois, e enfim uma morte violenta e uma sepultura fora do sagrado.

Ângelo Pallingrini, o pobre órfão da triste catástrofe, foi conduzido então para um castelo da Calábria, onde seu tio e tutor o confiou aos cuidados de uma ama, e o deixou crescer por ali, ao azar das circunstâncias, como bem parecia à criança e como bem entendiam os criados. O menino fez-se logo trêfego, autoritário e mau. Gostava de subir ao terraço da grande torre do castelo para precipitar os animais que conseguia apanhar. E de uma ocasião, aos sete anos, passou duas semanas na enxovia, porque, brincando armas com seu irmão colaço, matou-o para experimentar como eram as brigas de verdade. Adolescente, sonhou logo amores. Queria-os, porém, misteriosos e complicados, difíceis e românticos, como os contavam nas lúgubres legendas do papado que a gente do castelo gostava de repetir pelas horas tristes da noite, na monotonia fatigante dos serões. E apaixonou-se pela tia – uma bela mulher, vigorosa e forte que vivia a exuberância dos seus trinta anos junto à precoce decrepitude do marido.

Mas quando uma noite, entrava-lhe nos aposentos, encontrou-a morta sobre o assoalho, esplendidamente nua, com os bastos cabelos em desalinho e um lençol apenas envolvendo-lhe parte do corpo, deixando-lhe a descoberto os seios por entre os quais se afincava o punhal assassino.

Junto ao cadáver, sereno e pálido, o castelão velava de pé com as mãos nos copos da espada – sentinela da honra no campo da morte.

Ângelo Pallingrini soltou então pela primeira vez aquela gargalhada estentórica de ferros velhos que chocalham como as armaduras dos guerreiros dentro das campas, aquela gargalhada que lhe deu mais tarde o cognome de Satanás.

E antes que o tio se movesse, ele arrancou do peito da morta esse punhal com que a covardia de um marido tinha vitimado a sua amante, e investiu contra o velho fidalgo, que rodou no chão soltando uma praga de maldições.

O rapaz fugiu. Embarcou numa galera que partia para as Espanhas. Uma triste fatalidade pesava-lhe, entretanto, sobre o destino todo inteiro. Tanto que nas alturas de Argel a galera foi aprisionada pelos piratas mouriscos.

Ângelo, italiano e supersticioso por conseguinte, supôs-se então a vítima de um mau-olhado, de uma jetatura lançada sobre os amores mesmos de seus pais que ele nem tinha aprendido a respeitar.

A idéia do suicídio veio-lhe então. Ou pelo menos a idéia de encontrar a morte em um qualquer combate. Porque ele sentia-se melhor do que era. E via-se infeliz, fazendo a desgraça de todos aqueles de quem se aproximava.

Lá em Argel vieram-lhe, porém, novos amores e uns anos de calma fruídos lentamente no gozo lascivo dos serralhos.

O Bey apaixonara-se por essa criança esquisita, de olhar altivo, mas tenebroso, e que tão bem sabia gargalhar um riso triste, de amarguras e de dores. E o moço italiano foi prosperando de haveres e de posições. Quando o instinto das batalhas o espicaçava muito furte, seguia para o deserto à caça do leão.

Noticias, porém, da sua pátria, a intolerável opressão austríaca e as guerras valentes de Bonaparte o fizeram voltar para a sua terra onde melhor podia viver o seu gênio aventureiro de fidalgo.

Cumpria-se, entretanto, a fatal predição da cigana. E semelhante projeto foi o ponto de partida de uma série de desastres Um naufrágio fez-lhe perder a galera, onde iam os seus tesouros e as suas escravas, quase à entrada mesmo do porto de Nápoles.

E foi como simples soldado que ele entrou no exército da Venécia. Prisioneiro do austríaco e condenado à morte, conseguiu fugir entretanto graças ao auxílio de um fidalgo espanhol a quem salvara a vida e que o levou a Madri.

Foi ai que ele conheceu d. Bias, com quem se passou para Portugal e mais tarde para o Brasil junto com a comitiva de d. João VI que o escolhera para mestre de armas de seus filhos.

Na corte do monarca lusitano, o Satanás fez-se também escultor, artista galante, querido das damas, a quem impressionava pela altivez cavalheirosa de seu porte e pelo aventureiro de seu viver.

E nos anais do tempo ficou celebrado o seu amor com uma das damas da rainha, de quem houve uma filha, que estava sendo misteriosamente educada, ninguém sabia onde.

Aqui no Brasil fora ele quem dera a nota boêmia da vida nas tavernas, protegido que andava pela amizade de d. Pedro.

Velho embora, e taciturno, ele sabia fazer a alegria em torno de si. Tinha idéias esquisitas, caprichos de imaginação e principalmente um gênio batalhador que dava às suas noitadas um aspecto aventuroso de novidades e imprevistos.

E por muitas vezes pareceu-lhe que se renovavam para si aqueles bons tempos ditosos de Argel. Enriquecia e subia em considerações e importâncias.

Com o regresso de d. João VI, entregue que ficou a colônia ao príncipe regente, o Satanás foi quase a segunda pessoa do Estado, muito ouvido e atendido por d. Pedro, que conservara um grande respeito pelo seu velho mestre de armas de quem fazia guarda-costas nas costumeiras excursões noturnas.

Por isso estavam todos agora muito respeitosos, ali na bodega do Trancoso.

Apenas d. Bias teve a coragem de sentar-se junto a mesa, como velho conhecido de todos os tempos e de todas as vicissitudes. Beberam juntos, muito calados, logo após a troca. de algumas palavras.

E o Satanás pediu logo a espada que tinha mandado limpar.

– Boa lâmina! disse o Carniça para fazer conversa.

Mas ninguém teve a coragem de acrescentar palavra porque Satanás voltou-se e esparramou um olhar de desprezo por sobre os circunstantes.

Depois ergueu-se e atirou para cima do balcão uma moeda de ouro, dizendo ao Trancoso:

– Pague isso em bebidas a esta gente.

E saiu, sem ligar importância aos agradecimentos que lhe queriam fazer, chapinhando na lama do Piolho com as grandes botas de cavaleiro, e misturando nas trevas do derredor o longo fantasma de seu vulto de capa preta.
————–

continua

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Helena Kolody (Qual?)

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24 de fevereiro de 2013 · 21:56

Eliana Ruiz Jimenez (Trova-Legenda: Felicidade)

Vamos que vamos, poeta,
sem medo da liberdade…
Sigamos seguindo a seta
que leva à felicidade!
A. A. de Assis – Maringá/PR

Felicidade – utopia
que está bem longe de mim,
quem sabe se qualquer dia
essa utopia tem fim…
Adamo Pasquarelli – São José dos Campos/SP

Irei seguir essa seta
com muita tenacidade,
até atingir a meta
de achar a Felicidade!
Alberto Paco – Maringá/PR

En la ruta de los cielos
que con su azul embelesan,
se inauguran hoy mil vuelos…
esas aves la atraviesan.
Alicia Borgogno – Santa Fe/Argentina

Quem busca a Felicidade
acha mil bifurcações,
mas siga a fidelidade…
Não tem contra-indicações.
Amilton M. Monteiro – São José dos Campos/SP

Felicidade é contida
na vida de quem releva
e indica seguir a vida…
a vida que a gente leva!!!
Ana Maria Guerrize Gouveia – Santos/SP

Sigue el camino correcto
en paz, amor y bondad.
Tendrás de todos afecto
y también felicidad.
Ángela Desirée Palacios – Venezuela

Buscando a Felicidade
ao longo dos dias meus,
sigo a seta da Verdade,
que indica o reino de Deus!
Angelica Villela Santos – Taubaté/SP

Felicidade – brinquedo
que todos querem, porém,
se para alguns chega cedo,
para outros tarda ou não vem…
Antonio Juraci Siqueira – Belém/PA

Felicidade é encanto
que se vive por um triz,
mas celebro, por enquanto,
apenas o que Deus quis.
Antonio Cabral Filho – Jacarepaguá/RJ

Bem-vindo à Felicidade:
vem viver a plenitude
no melhor desta cidade,
a fonte da juventude!
Ari Santos de Campos – Itajaí/SC
Felicidade correta,
só tem uma direção:
a indicada na seta,
no rumo do coração.
Ary Viotti – Belo Horizonte/MG

Buscá-la cansa, é verdade…
mas a vida nos ensina:
– Se queres felicidade,
olha a seta…só lá em cima!
Carolina Ramos – Santos/SP

A  Seta,  muito à vontade
e sem fazer escarcéu,
mostra que a  Felicidade
mora mesmo é lá no céu…
Colavite Filho – Santos/SP

Felicidade: ei-la aqui,
aponta pra cima a seta.
Basta que todos daqui
entendam essa indireta!
Cristina Cacossi – Bragança Paulista./SP

Se perder o chão dos pés,
não chore, pois, em verdade,
muitas vezes num revés
se encontra a felicidade.
Dáguima Verônica – Santa Juliana/MG

Assim Deus à nossa frente
postou a felicidade,
ensinando a cada mente
que a seta indica bondade.
Dalva de Araujo – Santos/SP

Encontrei felicidade,
mas não a reconheci.        
Hoje, vivo na saudade,
sozinha, pensando em ti!
Dalvina Fagundes Ebling – Cruz Alta/RS

A razão me dissuade:
“ Desiste!”. E, no fundo, eu sei,
direito à felicidade,
não tem o amparo da lei..
Darly O. Barros – São Paulo/SP

Assim Deus à nossa frente
postou a felicidade                 
ensinando a cada mente
que a seta indica bondade.
Dalva de Araujo – Santos/SP

Busquei  a  Felicidade
e a encontrei certo dia!
Na minha realidade,
ventura é trova…é poesia!
Delcy Canalles – Porto Alegre/RS

Uma placa numa estrada
deseja felicidade.
Mas, não sendo respeitada,
vem a morte… a eternidade…
Diamantino Ferreira – Campos/RJ

Nos anos verdes da vida
mora a Felicidade
e depois se tanta lida
só nos braços da saudade.
Edite Capelo – Santos/SP

Sigo a seta, vou em frente,
mas não vai adiantar…
Ser feliz está na mente,
decisão ao acordar.
Eliana Jimenez – Balneário Camboriú/SC

“Para o alto e sempre em frente”
– mostra o guia da cidade;
sigo o rumo e, de repente…
“Bem-vindo a Felicidade!”
Elisabete Aguiar – Mangualde/Portugal

Obedeça, siga a seta,
acredite no Divino.
No caminhar do poeta,
felicidade é destino!
Francisco José Pessoa – Fortaleza/CE

Segui a placa…Eu mereço
ser bem feliz de verdade.
Eis o meu novo endereço:     
Rua da Felicidade!!!            
Gislaine Canales – Balneário Camboriú/SC

O “ser feliz” nesta vida
está na simplicidade,
um só carinho, querida,
traduz a felicidade!
Glória Tabet Marson – S. J. dos Campos/ SP

Já tenho setenta e três
nessa tal melhor idade,
versando com lucidez
e muita felicidade.
 Haroldo Lyra – Fortaleza/CE

Basta acompanhar a seta
para que a alegria alcances.
Felicidade completa
vais achar só nos romances.
Janske Niemann – Curitiba/PR

Dos meus sonhos de criança
e dos folguedos, saudade!
E na rua da lembrança,
a placa: Felicidade!
Jessé  Nascimento – Angra dos Reis/RJ

Felicidade “precisa”
precisa de muita paz
a levitar como a brisa
na liberdade que traz.
João Batista Xavier Oliveira – Bauru/SP

Na estrada da minha vida,
digo com sinceridade,
não há placa que convida
a ir à Felicidade…
José Fabiano – Belo Horizonte/MG

O que é a felicidade?
Será somente ilusão?
Cobertor de ingenuidade
encobrindo a solidão.
José Feldman – Maringá/PR

Felicidade! Procuro,
não a encontro, enfim.
Vou seguindo no escuro
esta vida até o fim.
José Kalil Salles – Barbacena/ MG

Felicidade é o lugar
indicado pelo amor…
Lá, quem consegue chegar
é, por certo, um sonhador!
José Lucas de Barros – Natal/RN

O meu sonho, escrito a giz,
em duas linhas se encerra:
Quisera eu fosse feliz
lá naquele pé de serra…
José Marins – Curitiba/PR

Se felicidade é a meta,
se a minha meta é você,
eu vou seguir esta seta,
pouco importa onde ela dê!
José Ouverney – Pindamonhangaba/SP

Felicidad es un puerto
al que se anhela llegar,
es un campo a cielo abierto
perfumado de azahar…
Libia Beatriz Carciofetti – Argentina

Olhando a seta da vida
encontro a felicidade
tão plenamente vivida
que perdê-la dá saudade.
Maria Zilda da Cruz –Santos/SP

Se esta seta me guiar,
por onde eu tenho vontade,
a placa vai me levar,
à maior felicidade.
Marly Barduco Palma  – Santos/SP

Vou em busca da verdade
numa viagem pro além,
garimpar felicidade
que aqui na Terra não tem!
Maryland Faillace – Santos/SP

A placa aponta pro céu,
mas eu prefiro este chão,
levando a vida a granel,
pra mudar a inequação.
Mário A. J. Zamataro – Curitiba/PR

Se a felicidade aqui
é tão frágil como um véu
– por tudo que já ouvi –
é muito forte… no céu!
Mercedes Lisbôa Sutilo – Santos/SP

Feliz em qualquer idade
é aquele que segue em frente;
buscando a felicidade,
sentindo-a já aqui presente.
Mifori –  São José dos Campos/SP

Felicidade é uma estrela
que nasce na alma da gente . . .
Precisas reconhecê-la
para plantar a semente!
Myrthes Masiero – São José dos Campos/SP

Devagar, mesmo sem pressa,
espalhe a felicidade.
Um amigo, assim se expressa,
deixa marcas de saudade!
Nadir Giovanelli – São José dos Campos /SP

Placa verde no caminho
mostrando a Felicidade,
vou segui-la rapidinho
e morrendo de ansiedade!
Nair Lopes Rodrigues – Santos/SP

Na estrada da humanidade,
toda cheia de tormentos,
só chega à felicidade
quem dirige os pensamentos.
Nei Garcez – Curitiba/PR

Siga sempre em linha reta
e não se desvie na estrada;
felicidade é uma meta
a ser sempre procurada.
Olympio Coutinho – Belo Horizonte/MG

Há uma seta que informa
a ida à felicidade…
mas,tem que seguir a norma:
ter fé, amor, humildade!…     
Paulo Roberto da Silva – Caicó/RN

Felicidade está à frente,
mas muito longe de mim…
Minha busca é inconsequente,
pois a estrada não tem fim.
Renato Alves – Rio de Janeiro/RJ

Independente de idade,
a esperança desmedida
indica a Felicidade
–  o melhor lugar da vida!
Ruth Farah Nacif Lutterback – Cantagalo/RJ

Felicidade, onde mora?
Será que eu não a mereço?
Mais que simples seta, agora,
eu quero o seu endereço,
Sonia Lodi Ferle – Santos/SP

A ligação tem valor
quando feita com verdade,
nem precisa ser amor,
basta dar felicidade.
Victor Batista – Barreiro/Portugal

Felicidade é a rota
do sábio… Que vai além!…
O que possui não se esgota,
mesmo entregando o que tem!
Wagner Marques Lopes – Pedro Leopoldo/MG

Fonte:

Eliana Ruiz Jimenez

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Luís Fernando Veríssimo (O Flagelo do Vestibular)

Luis Fernando Verissimo
Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que em ensinou, e como eu não prestava muita atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que é amarrar os sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom beaujolais pelo rótulo. E tenho um certo jeito – como comprova este exemplo – para usar frases entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior, recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira: “Olha na enciclopédia pô!”

 Este naco da autobiografia é apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio de um vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isso não impede que todos os anos, por essa época, eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e no fim olhando para o infinito com aquele ar de sobrevivente da Marcha da Morte de Batan. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer a minha simpatia. Como ofereci a uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno.

 – Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.

 – Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.

 – Bom, então roa as suas próprias unhas. Essas são as minhas.

 – Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que até calmante me excitava, e quando conseguia dormir sonhava com escolhas múltiplas:

 A) fracasso,
 B) vexame,
 C) desilusão

 E acordava gritando: Nenhuma destas, nenhuma destas. Foi horrível.

 – Só não compreendo porque você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida…

 – Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho! E o cretino está na praia, enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.

 Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá: diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fila por fila o gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da floresta amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, quando indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:

 – Ele foi um dos que não voltaram…

 Em vez de:

 – É um burro!

 Os candidatos à Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no Metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos- aliás, uma segurança para a população – mas as obras do Metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo!

 O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda por cima, há os cursinhos pré-vestibulares.Em São Paulo os cursinhos estão usando helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos que terão que repetir tudo no ano que vem. Daí para napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, uma visita do Kissinger para negociar a paz, é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que o professor, para se comunicar com as filas de trás, tem que usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só tem dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.

 O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma das suas provas:

 -Sei não. Acho que tubulei. O Inglês não estava mole.

 -Mas meu filho, hoje não era inglês! Era Física e Matemática!

 -Oba! Então acho que fui bem!

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A. A. de Assis (A Trova na Imagem 3)

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24 de fevereiro de 2013 · 21:39

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia X)

O QUE ME DÓI NÃO É

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão…

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

POBRE VELHA MÚSICA!
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.

PÕE-ME AS MÃOS NOS OMBROS…

Põe-me as mãos nos ombros…
Beija-me na fronte…
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.

Eu não sei por quê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.

Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo…
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.

SONHO. NÃO SEI QUEM SOU.
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

TENHO TANTO SENTIMENTO

Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

TEUS OLHOS ENTRISTECEM.
Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem…
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez…
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO BOMBARDEAMENTO

A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que bóiam nas banheiras —
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro…

E o da criança loura?

VAGA, NO AZUL AMPLO SOLTA

Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

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Vicência Jaguaribe (A Asa Branca e o Nordestino)

 Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr’esse sertão sofredor

          Finalmente, chove no Ceará. Embora com um certo atraso, Deus agora se alembrou / De mandar chuva / Pr’esse sertão sofredor. Se alembrou de fazer chover na capital e no interior do estado. A asa branca pode ir preparando a viagem de volta. Os agricultores já devem estar espalhando as sementes nas covas, abertas com antecedência, pois a esperança, que para muitos é a última que morre, para eles não morre nunca. Entra em estado de catalepsia, mas morrer mesmo, não. É. Aqui no Ceará, é assim.

          A ansiedade daqueles que trabalham com a terra e com o gado é grande. E têm um bom motivo. As secas periódicas, que desde sempre marcaram a história do Ceará, levam pequenos fazendeiros à ruína e expulsam os pequenos agricultores de suas terras. Daí nascerem as histórias mais ou menos folclóricas de que se encontra um cearense em qualquer quadrante do mundo que se visitar.

          Mas, talvez, haja muito de verdadeiro nessas histórias. O cearense pobre do sertão, quando vê a última rês despencar de fome e sede, o mandacaru entristecer, o leito dos últimos fios d’água crestar, os filhos lhe perguntarem com o olhar o que vão comer naquele dia, despede-se de sua terra e de sua gente e embarca. Deixa sua terra juntamente com a asa branca, que também resiste até o fim e só vai embora no último pau de arara. Vai na tentativa de trabalhar e mandar alguma dinheiro para que a mulher e os filhos possam sobreviver. Isso quando não pega a estrada com toda a família, o papagaio e o cachorro. Mas vai, pensando em regressar com as primeiras notícias do retorno da chuva.

          Nos tempos passados, o destino eram as terras lá de cima, as terras do norte. Muitos foram e não voltaram, possuídos pelos gênios da floresta, deixando a família à espera por anos, inutilmente. É, porque as florestas têm entidades que assediam, encantam, conquistam, dominam e matam.

          Hoje, o roteiro é o sul, o sul maravilha, como muitos chamam. Mas não propriamente os estados realmente do sul, mas os do centro-oeste, principalmente Rio e São Paulo. São Paulo está cheio de cearenses e de nordestinos em geral. São eles, os nordestinos, são eles, os cearenses, que hoje erguem São Paulo. Enfrentam a má vontade e o preconceito explícito das gentes do sul e, às vezes, até mandam buscar a família.

          O cearense, porém, tem muito da asa branca. Às primeiras notícias da chuva, aos primeiros prenúncios do inverno — da quadra chuvosa que aqui chamamos de inverno e que os estados que se situam mais para o sul chamam de verão —, põe em um saco os poucos pertences, dá um nó como cadeado e volta para sua terra, com a esperança de arrancar dela o milho, o feijão, a mandioca e a batata doce, que alimentarão a família e que, se vierem com fartura, serão vendidos na feira. Assim é a asa branca: ao primeiro sinal de inverno, ela volta. Aí, então, o nordestino tem a certeza de que o inverno vai pegar.

          Foi assim desde sempre. Promessas para a transposição de rios, para a irrigação, para a construção de açudes e de cisternas suficientemente grandes para acumular água potável nos anos de inverno bom sempre foram feitas e não cumpridas, ou cumpridas pela metade. Todos os governantes do Brasil, incluindo D. Pedro II — que, na grande seca de 1880, com a duração de três anos, fez a célebre promessa, cujas palavras foram levadas pelo vento: Venderei a última joia da Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome. —, têm feito, para solucionar o problema da seca no Nordeste, promessas e até efetivado projetos importantes, como o da perenização do rio Jaguaribe e o da polêmica transposição das águas do rio São Francisco, que, aliás, já devia estar concluída. Mas parece que falta uma atitude séria e consequente de quem traça esses projetos. D. Pedro II, pelo menos, embora não tenha vendido nenhuma joia da coroa, decretou, em 1880, a construção do açude do Cedro.

          A chuva, pois, chegou ontem, 15 de fevereiro, em uma pancada forte e mais ou menos demorada, que alagou ruas e avenidas, mas que fez o cearense abrir um sorriso de alívio. Ela chegou por volta das 10 h da manhã e ficou até mais ou menos 1 h. Avisara, no dia anterior, que viria: o dia 14 foi um dos mais quentes do ano que mal se inicia. Não sabemos se ela foi só um ensaio ou se a peça vai entrar mesmo em cartaz. Nestes tempos em que tudo está mudado, inclusive os sinais da natureza, nunca se sabe. Até os profetas do sertão encontram-se acuados e mais ou menos desmoralizados. Os indícios naturais, antes infalíveis, já não mais se confirmam. Assim, por garantia, é melhor esperar pelo 19 de março, para ver o que diz São José.

          Torçamos para que o nosso agricultor, este ano, não tenha que acompanhar o voo da asa branca.
        
Fonte:
A Autora

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Manuel Bandeira (Tragédia Brasileira)

Manuel Bandeira
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura… Dava tudo o que ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos…

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

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Carlos Machado (Caldeirão Poético da Bahia)

Formatação por J. Feldman com imagens obtidas na internet
COMÉRCIO

comprar tempo
em barras
– como ouro
ou sabão –
e estocá-lo
nos armazéns
da cobiça

instituir
o próspero
comércio
da eternidade

e abrir as
portas
para nova
e concorrida
profissão:
ladrão
de tempo

PUNHOS

o tempo tem punhos
de renda

e toda a cerimônia dos
carrascos

na mão direita três
punhais:

ponteiros de metal
cravados

na pele fria de cada
hora que vai

PÊNDULO
o braço do pêndulo
nunca se agita

apenas acena sem
ênfase

em compasso de
despedida

MARGARIDA

na margarida
do relógio

desfolho
uma a uma
as pétalas do dia

nesse jogo
de sal e saibro
toda pétala
a mais é
vida a menos

e toda flor
malmequer

FIDELIDADE

só a pedra é fiel
a sim mesma:

a lesma {e seus
coleios}

a lesma {e sua
gosma}

de molusco} é
sempre

o avesso do que
se supõe

mas a pedra ¿não
será ela

mesma uma forma
dura de lesma?

ANATOMIAS

anatomia de coisas

desnudar
o pássaro de vidro
e ver em seu lado
oculto
o outro lado
de seu vulto

dissecar
vozes
sombras descalças
e perquirir
a substância
escassa que principia
na polpa
branca do dia

flagrar a ânsia
do relógio
e a cadência
dessa máquina
humana

fotografar
a permanência
da chama

anatomia do gesto

dobrar a esquina
de mim mesmo
olhar pra trás
e ainda
enxergar
o resto de
meu gesto
tonto

PÁSSARO DE VIDRO (2)
quanto mais escancaras
teu íntimo de vidro

quanto mais descortinas
o avesso dos sentidos

mais o que revelas
deixas escondido

PÁSSARO DE VIDRO (3)
o pássaro é cego
e cego é quem
se agita
em seu espaço
ambíguo

esse espaço
de incessante
tarde nua

onde o vôo
risca um traço
branco
de vidro no vidro

ANJO MURITIBANO
sim, uma vez
vi um anjo

nada dos anjos
católicos
gabriéis
armados e vingativos

nada dos anjos
de Rilke
alemães terríveis

meu anjo
sem asa
e sem palavra
não foi visto num castelo
em Duíno
mas numa casa
chã e rasa

em Muritiba

era um anjo
pequenino
morto morto
placidamente morto

estava numa
caixa de sapatos

SÁBADO

cavalos burros
jumentos
na rua:
é dia de feira

no paralelepípedo
a pata do quadrúpede
acende uma centelha

CANÇÃO DE MÁRIO E FERNANDO 

estética e angústia
traços-de-união
entre dois orpheus
desencontrados

um sem biografia
o outro sem história
arte longa curta vida

— e ambos viraram
sílabas

sombras fugidias
sobre as águas
do Tejo ou do Sena:

a vida escrevivida
         vale a pena?

orpheus na sala
de espelhos
divididos
multiplicados

ai tortuosa
aritmética da alma

1 é número múltiplo

CÃMERA

How you die is the most
important thing you ever do.
                    Thimoty Leary

uns preferem
a morte discreta
asséptica
sem vexame

outros apostam
no alvoroço:
enxame
de câmeras até
o osso do nada

thimothy leary
guru
lisérgico não quis
o analgésico
do silêncio

 morreu em show
cibernético
câmera aberta
para o olho
              poente

 ESFINGES

 Alguns, prudentes, não falam com estranhos.
Outros, muito práticos, dizem apenas o necessário
Para o bom andamento dos negócios.

Alguns, calmos e sérios, fecham portas e janelas.
Outros, afoitos, ou filhos de um deus sem-terra,
Oferecem biscoitos, talvez flores, e longa prosa.

De todos, quem sorri com mais dentes de ouro?
quem finge? quem vê no espelho sua própria esfinge?

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/carlos_machado.html

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Carlos Machado (1951)

Nascido baiano de Muritiba, em 1951, é jornalista especializado em informática e vive em São Paulo desde 1980. Autor de livros técnicos publicados pela Editora Campos (RJ), emprega seu talento e competência em prol também da literatura, e de forma generosa. É o criador e editor do boletim semanal poesia.net, em que dedica com esmero páginas à divulgação de poetas, principalmente contemporâneos e em sua maioria, brasileiros. Publicou de sua própria lavra o livro Pássaro de Vidro (poesias, Editora Hedra, SP, 2006), a respeito do qual escreveu Donizete Galvão:

“Todos que conheciam o olhar atento, a observação acurada e a sintaxe elegante dos comentários de Machado que acompanham os poemas de poesia.net, podem ver essas mesmas qualidades condensadas em sua poesia. Pássaro de Vidro nos apresenta um poeta em plena sua maturidade, rigoroso na sua concisão substantiva, em que a clareza e a leveza estão a serviço de uma poesia reflexiva e consistente. Vale ressaltar o acabamento impecável dos poemas que resultam em artefatos límpidos, sem rasura. Seguindo a máxima de Aníbal Machado, o autor retira dos poemas toda estridência para que ganhem mais alcance e ressonância”.

Sobre o trabalho do poeta diz também Luiz Alberto Machado em seu blog: “Carlos Machado já é digno de meus aplausos acalorados pela iniciativa de criar o Ave, Palavra, onde divulga semanalmente um boletim denominado de poesia.net, abrigando, revelando, resgatando, revalorizando e reproduzindo poemas de toda sorte de poeta, desde os clássicos até os novos e novíssimos.(…) Isso prova o quanto de aplauso efusivo o seu trabalho merece. Este poeta dos bons tem poemas publicados em revistas literárias, como Cacto e Jandira, além de jornais, como O Escritor, da União Brasileira de Escritores. Na rede, tem uma seleção de poemas reunidos no legendário Jornal de Poesia. Agora ele chega com O pássaro de vidro, dividido nas sessões “Horológio”, “Pássaro de vidro” e “Garrafa de Náufrago”.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/carlos_machado.html

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 13. Um Romance

Entre os passageiros com os quais frequentemente me encontro, pela manhã, há uma bonita mulata, não de olhar azougado, mas calmo e um pouco triste. O condutor cumprimenta-a com respeito, e trocam notícias de família. Veste-se com decência e modéstia. Sobe e salta sem ruído, instala-se no seu canto e não se mexe. Tem as mãos lisas e mórbidas, os dedos compridos e afusados; as unhas ogivais parecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos tornozelos. Os pés, pequenos e arqueados, comprimidos em botins de couro, sob a massa movediça das saias, têm uma graça hesitante de pássaros timoratos. Será o pudor dos botins?

Essa criatura acabou por me interessar. A freqüência das suas viagens, a constância dos seus modos, a sua beleza um tanto fanada, o seu donaire involuntário de juriti meio desplumada e taciturna, a sua familiaridade familiar com o condutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheres brancas e chiques de braços e pernas ao léu, tudo me intrigava. A custo obtive umas informações vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me com o prático de farmácia, o homem do Infinito, ouvi dele a informação cabal.

“Pois não a conhece? Não conhece, deveras, a Florinda?” -Contou-me toda a história de Florinda, a mesma história de tantas outras, tantas outras Florindas, e finalizou: “Hoje, uma senhora. E ainda bonita, não viu? Costura fora de casa. É companheira de um empregado aposentado dos correios, um casca, velho, reumático, bravo como um gato sarnento. Serve-lhe de irmã de caridade, de cozinheira, de mãe e de filha. E até de armazém de pancadas.”

É aquilo de Amiel: Pas um brin d’herbe qui n’ait une histoire à raconter, pas un coeur qui n’ait son roman…, que é aquilo mesmo de Emerson: “Todo indivíduo tem uma história que valeria a pena conhecer, se ele pudesse contá-la, ou se nós lha pudéssemos arrancar”. -Cada um carrega em si um epítome do drama humanal, tecido de trevas e de lumes. E cada um nos dá uma sensação de humanidade imensa, como cada onda pode dar a vertigem do abismo.

Fonte:
Domínio Público

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Simone Pedersen (Balões Coloridos)

Um jovem casal teve seu primeiro filho, muito doente, com reduzidas chances de sobreviver. Sabendo de seus dias contados, os dois, de licença do trabalho, dividiram as vinte e quatro horas do dia de forma que ambos ficassem com o bebê e eles – apenas eles -, cuidassem do frágil recém-nascido. Com muita dificuldade para mamar, o anjinho precisava ser alimentado a cada hora do dia e da noite, com apenas alguns poucos mililitros do leite materno que a mãe produzia e cuidadosamente retirava e armazenava, num processo doloroso e demorado, pois o pequenino não tinha forças nem para mamar suas gotas de amor…

Em nenhum momento os pais reclamaram de cansaço. Em nenhum momento brigaram sobre quem teria que trocar a próxima fralda ou dar a próxima mamadeira. Nem discutiram quem se levantaria no meio da noite. Fez-me sentir uma péssima mãe… Fez-me lembrar de todos os momentos em que me sinto irritada com os tantos afazeres que a maternidade nos transfere, os familiares exigem e os amigos esperam.

A história do jovem casal mostrou-me que tudo na vida é passageiro e rapidamente desaparece, em largos passos, se nós não atentarmos a cada segundo e vivê-los intensamente. E que, no final da vida, não adiantará mais ter aprendido essa importante lição, pois o tempo passado é tempo vivido, ou tempo perdido. Não existe meio-termo. Não se vive mais ou menos. Não se arrepende mais ou menos. Ou estamos presentes, inteiros, naquele momento, ou nunca mais poderemos alcançá-lo. E as mães sabem disso melhor que ninguém. Acompanham cada minuto da vida de seus rebentos, choram com eles suas dores, riem com eles suas traquinagens. E cuidam, com todo amor e carinho, nos momentos de doença.

No dia do velório do pequenino menino, os pais não estavam desolados. Estavam tristes, mas tranquilos. Estavam conscientes de que haviam feito o melhor que lhes era possível. Haviam amado cada segundo, cada suspiro, cada lágrima e cada sorriso daquele frágil ser. E soltaram 99 balões coloridos, um para cada dia de vida do pequeno anjo, com quem tiveram o privilégio de conviver naqueles meses. Todos os presentes olharam para o céu, refletindo quanto um momento singelo pode representar se nós o agarrarmos com unhas e dentes.

E – como o passado -, os balões ficaram inacessíveis, desaparecendo no céu azul, num piscar de olhos. Lindos, se foram. E nunca mais foram vistos, restando apenas a imagem de um inigualável entardecer, colorido como só a vida pode ser por balões que representavam cada dia vivido no amor.

Fonte:

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João Batista Xavier Oliveira (Poesias Escolhidas)

João Batista Xavier Oliveira nasceu em Presidente Alves/SP, em 16 de junho de 1947. Reside em Bauru/SP, desde 1975.
Blog http://jobaxaol.blogspot.com
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ISOLADO ENCANTO

Salão repleto, nobre de artes belas,
murmúrios, gestos, ares estilistas.
O afago forte nos pincéis de artistas
moldura abraços, traços, luz nas telas.

A flor disposta à porta em todas vistas
exala as auras plácidas, singelas.
Porém as vistas todas são aquelas
voltadas às paredes tão benquistas.

Se os quadros levam ao encantamento
no brilho mais audaz de um só momento…
o vaso à entrada ampara, preterida,

a forma que transforma a transparência:
– a tela estampa a vida, é conseqüência;
a flor no entanto é causa, pois tem vida!

JOIO

Por que nós complicamos singelezas
pelo simples sabor de afirmação;
por que não escutar o coração
que pulsa as vibrações das incertezas…

se temos ao alcance o corrimão;
degraus que facilitam mãos coesas;
o dom de emocionarmos às belezas…
Por que só ver a luz na escuridão?

Estamos de passagem simplesmente.
Abrindo com desvelo nossa mente
o mundo é bem maior em nosso espaço.

Por que nós complicamos as passagens
seguindo a realidade das miragens?
A vida é bela e o tempo é bem escasso!

L I B E R D A D E

À pequenina flor pedem passagem
as liras das libertas redondilhas
que fazem amplidões das suas ilhas
e os versos se esvoaçam na miragem.

E quantos que desejam maravilhas
largando as mãos que prendem a coragem
nas ilusões que agitam mas não agem,
levando os sonhos às tribos das trilhas…

Desejam ares nos mares sem costas,
os abandonos das peias supostas,
para os grilhões dos fugazes delírios.

Neste meu mundo deveras pequeno
ao horizonte dos olhos aceno
vôo nas asas das vestes dos lírios!

HARMONIA DO OLHAR

Um mavioso som esparziu-me à mente
de repente, alucinadamente,
ao deparar-me no alarme do olhar
do teu mundo de olhar.

No ínfimo espaço do nosso íntimo
apenas o som das veias
que incendeias nas entranhas.
Uma canção acaricia
Os nossos tatos dos olhos.

Latente harmonia
explode em êxtases…
E deparamo-nos no santuário
onde a pauta é infinita.

É o coral do suprassumo!
Ali mesmo se chega às estrelas!
Nossos corpos são nossos olhos!
Adentramos nas almas
e purificamos a eternidade!!

M A L G R A D O

O tempo está perdendo consistência;
pessoas mal conseguem meditar;
o frenesi, filhote da ciência,
lugar-comum, qualquer seja o lugar.

É a nova era, a febre da existência,
vendendo tudo, até a luz do luar!
E mais distante a luz da Providência
ao livre-arbítrio brilha sem parar.

Como é pequena a vida que se encerra
na plenitude fria da alquimia;
na inexorável sina de uma guerra…

E mesmo assim, malgrado a algaravia,
os nortes fazem parte desta terra;
auroras prenunciam outro dia…!

INSPIRAÇÃO

Ao longe o casarão adormecido,
 refúgio de sonoras nostalgias,
 ecoa, num lampejo, melodias
 que pairam, esparzidas, sem sentido.

 O som das uniões de algaravias,
 buscando modelar no meu ouvido,
 parece desenhar quadro esquecido
 nas pautas de diletas sinfonias.

 Na sintonia fina então repouso
 e o pranto sincopado é o refrigério.
 O enlevo de voar se faz presente.

 Cantar a realidade jamais ouso.
 Ao longe o casarão é meu mistério;
 é a inspiração que pulsa tão fremente!

V I A G E M

 Ganho momentos da vida
 para recordar momentos
 que minha infância querida
 legou aos meus pensamentos.

 Infância da ingenuidade,
 dos planos mirabolantes
 de conquistar a cidade
 e mudar o que era antes.

 Infância bola-de-gude
 entre os dedos tão certeiros;
 o êxtase da virtude
 atravessando os bueiros.

 O taco no pega-pega,
 balança-caixão e pique,
 passa-anel e cabra-cega,
 estilingue e piquenique.

 Matinê e amarelinha,
 lobisomem e sacis,
 roubar manga da vizinha,
 sempre escapar por um triz.

 Mocinho e vilão, ciranda,
 jogar pedras no telhado,
 caminhar atrás da banda,
 fincar os pés no molhado.

 Esconder a nota baixa,
 brigar por qualquer motivo,
 fazer brinquedo de caixa,
 se esbaldar no morto-vivo.

Sujar a roupa sem dó,
 escalar o jatobá,
 encher a casa de pó,
 confessar o que não há.

 No carnaval bater lata,
 soltar pipa no campinho.
 O resmungão que maltrata;
 carrapicho, prego e espinho.

 Perna-de-pau no palhaço
 anunciando na rua…
 quem tiver nervos de aço
 vai ver homem que flutua.

 Nas férias, o carrossel,
 e as arapucas no mato.
 No natal, papai-noel;
 o presente no sapato.

As trancinhas da menina,
 calças curtas do menino,
 olhares soltos na esquina,
 o sorriso pequenino.

 Ser craque de futebol,
 vingar-se do grandalhão:
 __conquistar lugar ao sol
 e a força do medalhão.

 Aquele dente-de-leite
 a chuva tirou do teto,
 boneca virou enfeite,
 espinha no rosto é afeto.

 O pensamento maduro
 põe os pés no chão agora;
 pela porta do futuro
 linda infância foi embora.

 Oh! infância viajante
 onde o céu era o limite,
 hoje é um mundo tão distante…
 não há fase que a imite.

 Oh! infância da pureza
 angelical, saudosista
 de sonhar sua beleza
 que minha alma não desista!

 Quem viveu a plena infância
 sabe do que estou falando.
 Lembrá-la encurta a distância
 e esquece o mundo nefando!!
(Da antologia “Quando vierem as rosas” 2009 UBT Seção de Bauru.)

Fonte:
Facebook do autor

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Salgado Maranhão (Sol Sanguíneo)

Salgado Maranhão destaca-se pelo trato apurado da linguagem e pelo domínio da mesma. Sua relação de intimidade com a palavra escrita denota uma postura centrada diante do fazer poético e da vida. Influenciado pela filosofia oriental, o poeta traz para seus versos o estado de equilíbrio empenhado na relativização dos valores instituídos. O ser humano mostra-se cada vez mais limitado e distanciado da realidade em que vive e torna-se necessário soltar as amarras do convencionado e experimentar o desconhecido. É isso que o autor faz com sua poesia: toma a palavra e desnudando-a de seus significados usuais, explora sua condição polissêmica apontando para o caráter simples e transitório das coisas.

Numa dicção arraigadamente pessoal, Salgado Maranhão, em Sol Sanguíneo, atinge o (até agora) ponto máximo de sua obra, num conjunto coeso de poemas, em que a inteligência especulativa e a celebração da corporalidade do mundo se expressam com grande rigor metafórico. Nesta obra são preservadas todas essas características e percebe-se ainda um aperfeiçoamento da técnica escrita.

A poesia de Salgado Maranhão procura libertar a palavra de seu caráter usual (com a qual nos deparamos diária e cotidianamente), desvinculando-a das amarras do convencionalismo, e, através de um sofisticado trabalho poético experimentar a polissemia da palavra, expandindo indefinidamente as suas significações. Nesse sentido, as palavras se desdobram em suas múltiplas e possíveis interpretações, ao mesmo tempo em que interagem entre si, a fim de formar o corpo coeso do poema. É por essa razão que nos poemas de Salgado se encontra presente uma “escrita ascética (quase sem palavras)” visando a “sinergia do signo”. Ao distender ludicamente a palavra e ao expandir a sua significação imediata, o poeta impede que esta se esgote.

A ressignificação assumida pela palavra, produzida de forma proposital pelo poeta, causa no leitor certo estranhamento que altera o curso normal de suas
interpretações e certezas, levando-o a novas percepções e experiências. Como o próprio Salgado afirma em uma entrevista: “(…) cada rasgo de autêntica poesia nos ensina a desconfiar das certezas. Nos revela, através da linguagem, a força sutil que dá vertigem ao esqueleto das palavras” (SOUZA, revista Agulha online, 2003). Através de suas observações, o poeta nos leva a crer que a fragilidade e a efemeridade da existência humana podem ser compensadas através da perenidade e imanência da palavra poética. Segundo essa perspectiva, o poema possui o poder de fixar as experiências e percepções da existência caracterizada pela transitoriedade. Tal é o desejo do poeta descrito no poema “Sol Sanguíneo” que abre o livro:

Voltar ao desolado abrigo
da terra
chã.
Voltar aos limítrofes
da palavra (larva fulminante
e alarde) que assiste
da despensa
ao rapto da existência.
Voltar ao solo atávico
onde os loucos
riem-se
à sombra da neblina.

Percebe-se pela leitura do poema, que a “terra chã” é uma metáfora da palavra poética, terreno que deve ser conquistado pelo poeta, mas que se apresenta simultaneamente como abrigo e desolação. Como os versos sugerem, a palavra “assiste da despensa” – uma vez que ela se encontra à espera para ser transformada em poesia – “ao rapto da existência”, pois a vida humana nada mais é do que um “sopro itinerante”, fugaz e passageiro. A palavra atemporal assiste à inexorável temporalidade da existência humana.

Este poema remete ao tempo da posse de terras. Tudo que nela existia também foi violado e tratado como bens comerciais. “Sol sanguíneo: terra chã” faz esse movimento de volta às origens de seu povo quando o eu lírico narra a chegada do navio negreiro no cais. Enquanto isso as noites, “a terçar atabaques”, esperavam os cativos que estavam a chegar, evidenciando o sincretismo de elementos da cultura européia e africana.

Do cais rasurado de esperas
velam noites a terçar
atabaques.

Minha terra é minha pele.

vieram o sol –
e o azeviche
conjugado à carne;
e vieram moendas de açúcar
e súplica;
e vieram demandas de açoite
e séculos
a desatar fonemas
à fervura.

Nesse trecho do poema, o eu enunciador assume sua especificidade étnica e cultural encarando a terra como segmento de sua pele. Nota-se um cuidado na opção pelo vocábulo que irá representar a sua cor: o azeviche, tipo de carvão fóssil utilizado em joalheria. O efeito seria outro se em seu lugar estivesse simplesmente “carvão”. Além disso, destaca que junto com os escravos vieram as “moendas de açúcar”, que representa uma das contribuições dos negros à economia brasileira, e as súplicas dos cativos tratados como mercadoria. Desse regime vieram os açoites que duraram séculos e a imposição cultural dos brancos
sobre os negros.

Tratados apenas como corpo vazio de cultura e espírito, esses homens foram entregues ao cativeiro devido à ganância do branco que se julgava superior. Além de terem sido separados do seu povo, viram-se obrigados a receber os valores dos senhores, que lhes eram impostos, em geral, de maneira violenta.

Já em “Mater”, o eu lírico faz uma homenagem à mãe África e chama a atenção para o descaso da história em representar sua herança entre o povo brasileiro. Seus descendentes em nosso país foram obrigados a se curvarem diante do branco. Porém o fio de sua memória ancestral, como “impressões digitais num rio”, mantém ligados seus filhos ao longo dos tempos:

I
De ti não há sequer
um álbum de família:

retratos da infância
nos campos de arroz e gergelim.

Talvez reste em pensamento
pedaços de tua voz

no vento
como impressões digitais
num rio.

II
No dia em que o azul
roubou teus olhos
e o silencio rival rasgou
teu nome,
cotovias cantaram no teu rastro.
No dia em que a manhã
cerrou teus olhos.

No poema, o azul aparece como metonímia para o mar e metáfora para o traficante que levara os filhos da mater africana. Silenciosa foi como se deu a captura e dura foi a partida. Porém quando não havia mais corpo, foi ao som das cotovias, aves que voam para a África no inverno, que o espírito retornou a terra mãe.

Noutra linha, totalmente metapoética, ”Fero” descreve a inquietação que a escrita causa ao poeta e este, que tenta representar o mais inimaginável como a oração dos pássaros, vê-se numa luta constante com a palavra quando esta parece se fechar às possibilidades de figuração:

Tento esculpir a Litania
dos pássaros
e as palavras mordem
a inocência. Aferram-se
ao que é de pedra
e perda.

insights de insânia
e súplica; volúpias insolúveis
acossam-me a página
em branco
qual bandido bárbaro
ou mar revolto
a rasgar a calha
do poema.

O processo de escrita configura-se conflituoso; o poeta é tomado por uma onda de embriagante loucura e perseguição. Seu maior inimigo então se vislumbra na “página em branco” a exibir o não-resultado de trabalho. É este, portanto um forte veio da poesia de Salgado Maranhão, escritor comprometido com a reflexão da linguagem, empenhado em recriá-la, explorá-la ao máximo e encontrar, nas bordas da palavra, o sentido buscado. Foi possível perceber também o envolvimento com situações íntimas de um sujeito que, assumindo-se como negro filho de África, deixa vozes de tempos remotos falarem em seus poemas, aludindo às atrocidades do passado escravo e rebelando-se contra as do presente.

Fonte:
Eduarda Rodrigues Costa (Graduada em Letras pela UFMG), Edimilson de Almeida Pereira(Ph. D. em Literatura Comparada – Universidade de Zurique, Professor Titular da Faculdade de Letras – UFJF), Fabrício Tavares de Moraes (Graduando em Letras – UFJF). Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/s/sol_sanguineo

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Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Sapo)

O coelho e o sapo eram amigos.

Um dia resolveram os dois ir roubar marfim à Administração.

Depois do roubo, resolveram passar pela povoação do régulo para comemorar o feito e começaram a beber até não poderem mais.

Como toda a gente sabe, o sapo está sempre de boca aberta e a garganta a abanar. Quando o coelho viu aquilo, pensou logo numa forma de se livrar dele e ficar com o produto do roubo e começou a dizer em voz alta:

– “Então sapo, decides-te ou não a contar o que te sufoca a garganta?”

O régulo e os seus conselheiros disseram entre eles: “Nós sabemos que desapareceu o marfim da Administração. Vamos ficar atentos, o ladrão pode estar perto”.

O coelho continuava:

– “Anda sapo, tens vergonha ou medo? Não disseste que não aguentavas mais? Não disseste que te bastava beber dois copos para te decidires? Então, sapo?”

O sapo estava atordoado, não sabia onde é que o coelho queria chegar.

O régulo mandou um auxiliar para perguntar:

– “Ei vocês, o que é que o sapo tem para contar?”

– “Nada, nada, senhor chefe”, apressou-se a responder o sapo. Mas estava atrapalhado porque tinha bebido demais e trocava as palavras. Além disso, a presença do auxiliar do régulo metia-lhe medo por causa do roubo do marfim. O sapo olhou para o coelho como a pedir para ser ele a explicar o que se passava:
– “Anda coelho, tu és esperto, responde aqui ao senhor chefe”.

O coelho disse:

– “Eu não posso dizer, o meu amigo pediu segredo… é melhor perguntar a ele próprio”. E virando-se para o sapo:

– “Então, sapo, vais continuar com o problema entalado na garganta? Resolves ou não falar no roubo…”.

O régulo, que já estava à espera disso, disse:

– “Eu já sabia que era o sapo quem tinha roubado o marfim do senhor Administrador. Vamos prendê-lo e levá-lo ao rei para ser julgado”.

Só então é que o sapo percebeu que o coelho fizera tudo aquilo para se livrar dele e ficar com o marfim só para si.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

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Soares de Passos (O Firmamento)

Ao meu amigo J. S. da Silva Ferraz

Glória a Deus! eis aberto o livro imenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.
Eis do teu tabernáculo corrida
Uma ponta do véu misterioso:
Desprende as asas retomando a vida,
Alma que anseias pelo eterno gozo!

Estrelas, que brilhais nessas moradas,
Quais são os vossos destinos!
Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradas
De seus umbrais divinos.
Pululando do seio omnipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faíscas do seu carro ardente
Ao rolar através da imensidade.

E cada qual de vós um astro encerra,
Um sol que apenas vejo,
Monarca doutros mundos como a terra
Que formam seu cortejo.
Ninguém pode contar-vos: quem pudera
Esses mundos contar a que dais vida,
Escuros para nós qual nossa esfera
Vos é nas trevas da amplidão sumida?

Mas vós perto brilhais, no fundo acesas
Do trono soberano:
Quem vos há-de seguir nas profundezas
Desse infinito oceano?
E quem há-de contar-vos nessas plagas
Que os céus ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sustém as vagas
Dos sóis que um dia romperão na altura?

E tudo outrora na mudez jazia
Nos véus do frio nada:
Reinava a noite escura; a luz do dia
Era em Deus concentrada.
Ele falou! e as sombras num momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Ele falou! e o vasto firmamento
Seu véu de mundos desfraldou ovante!

E tudo despertou, e tudo gira
Imerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lira
Cantando os seus louvores.
Cantai, ó mundos que seu braço impele,
Harpas da criação, fachos do dia,
Cantai louvor universal Àquele
Que vos sustenta, e nos espaços guia!

Terra, globo que geras nas entranhas
Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão d’areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão dos mundos
Em volta do seu trono levantado
Do universo nos seios mais profundos.

E tu, homem, que és tu, ente mesquinho,
Que soberbo te elevas.
Buscando sem cessar abrir caminho
Por tuas densas trevas!
Que és tu com teus impérios e colossos?
Um átomo subtil, um frouxo alento:
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas que sacode o vento.

Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes
À razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves
Na chama das ideias:
Alegra-te, imortal, que esse alto lume
Não morre em trevas dum jazigo escasso!
Glória a Deus, que num átomo resume
O pensamento que transcende o espaço!

Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre,
Conquista áureo destino,
E de século em século mais nobre
Eleva a Deus teu hino!
E tu, ó terra, nos floridos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto d’amor reúne aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões d’esferas!

Dizem que já sem forças, moribunda,
Tu vergas decadente:
Oh! não, de tanto sol que te circunda
Teu sol inda é fulgente.
Tu és jovem ainda: a cada passo
Tu assistes dum mundo às agonias,
E rolas entretanto nesse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.

Mas ai! tu findarás! além cintila
Hoje um astro brilhante;
Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,
E fenece arquejante:
Que foi? quem o apagou? foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada;
Foram séculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.

Um dia, quem o sabe? um dia, ao peso
Dos anos e ruínas,
Tu cairás nesse vulcão aceso
Que teu sol denominas;
E teus irmãos também, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflama,
Atraídos enfim, quais borboletas,
Cairão como tu na mesma chama.

Então, ó sol, então nesse áureo trono
Que farás tu ainda
Monarca solitário, e em abandono,
Com tua glória finda?
Tu findarás também, a fria morte
Alcançará teu carro chamejante:
Ela te segue, e profetisa a sorte
Nessas manchas que toldam teu semblante.

Que são elas? talvez os restos frios
Dalgum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
No teu seio profundo.
Talvez, envolto pouco a pouco a frente
Nas cinzas sepulcrais de cada filho,
Debaixo deles todos de repente
Apagarás teu vacilante brilho.

E as sombras pousarão no vasto império
Que teu facho alumia;
Mas que vale de menos um saltério
Dos orbes na harmonia?
Outro sol como tu, outras esferas
Virão no espaço descantar seu hino,
Renovando nos sítios onde imperas
Do sol dos sóis o resplendor divino.

Glória a seu nome! um dia meditando
Outro céu mais perfeito,
O céu d’agora a seu altivo mando
Talvez caia desfeito.
Então, mundo, estrelas, sóis brilhantes,
Qual bando d’águas na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no caos do universo.

Então a vida, refluindo ao seio
Do foco soberano,
Parará, concentrando-se no meio
Desse infinito oceano;
E, acabando por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na imensidade –
O silêncio aguardando a voz futura,
O trono de Jeová, e a eternidade!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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Pedro Bandeira (Lado a Lado, Bem Bolado)

Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes seguidas, ele perderia todas elas.

O caso é que ele tinha aprendido que “em cima” se escreve separado e “embaixo” se escreve junto. Mas, na hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário.

Foi queixar-se pra Vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de todas as coisas.

– É fácil, Ricardinho – ensinou a Vovó. – Levante a mão esquerda, bem aberta.

– Assim?

– Não. Essa é a direita.

– Então é essa?

– É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração.

– E de que lado fica o coração?

– Do lado dessa pintinha que você tem no rosto.

– Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com “em cima” e “embaixo”?

– Veja, querido: seus dedos, “em cima”, estão separados e, “embaixo”, eles estão juntos, grudados na palma, não estão? Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! “Em cima” é sempre separado e “embaixo” é sempre junto!

Ricardinho achou genial a idéia da Vovó. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque para o Adriano, seu melhor amigo na primeira série.

– Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e…

– Não vai dar certo – respondeu o amigo.

– Por que não?

– Porque, se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto!

– Bom, então levante a direita, que dá no mesmo.

– E como é que eu sei qual é a direita?

– É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho na cara.

– Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara – discordou o Adriano.

Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou achando mais fácil saber que a sua mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era… bom, era a outra!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte I

I
Mistério da Casa de Bragança

A NOITE NA TAVERNA

Era por uma triste noite chuvosa, dessas que faz bem gozar quando a gente esta em casa. Lá fora, na rua do Piolho, a chuva argamassava a lama ao ritmo plangente de uma melopéia de cativo. E o vento vinha por ela assoviando, como por um funil, para desembocar imprecativamente no campo da Alampadosa. Dentro, na célebre tasca do Trancoso, a luz tremia vagarosamente nos grandes candieiros de azeite de peixe. Dava um lúgubre aspecto aquele antro de terra batida para chão, e de paredes escalavradas onde a gaiatice dos fregueses gostava de pintar obscenidades e onde se fazia a carvão a conta complicada dos pichéis.

Fantástico, por detrás do balcão envernizado como um cabo de enxada, o Trancoso erguia o busto na plenitude atlética de seu tórax. Era a grande cabeça barbuda e gadanhenta e, por debaixo da blusa felpuda de vasconço, o peito largo e forte a oscilar numa tempestade de respirações troando muitas vezes o grito estentórico dos apelativos brutais. E, para além na vastidão escura do aposento, por meio dos altos e bojudos tonéis cheios de cartaxo e de aguardente de cana, estavam as pequenas mesas de pau carunchoso, rodeadas de mochos baixos em rodelas de madeira sobre três espeques.

Naquela hora treda da noite, retardavam-se entretanto os fregueses a pretexto de que vinham cansados da procissão ao outeiro da Glória, e de que a chuva vergastava lá fora a quem tinha a audácia de sair. O Trancoso amuava-se, posto que lhe fossem emborcando as bebidas e o cobre lhe caísse pela gaveta adentro com um grande retinir metálico de chocalhar de guizos.

Já fora para ele o tempo dos primeiros açodamentos em juntar os patacões. As moedas de ouro contavam-se aos centos na velha arca escondida debaixo do nauseabundo catre onde dormia. Muito criança ainda, viera de além-mares para essas terras do Brasil, onde o ouro boiava à tona das enxurradas. E, em vez das longas empresas viajantes pelo sertão adentro, preferira o sossego das bodegas onde o dinheiro vinha ter pela lógica fatal das bebedeiras. Agora, diziam-no rico, senhor de bastantes haveres e traficante até das galeras que iam buscar o negro ao vasto deserto branco das plagas africanas.

Enriquecera principalmente depois da chegada de d. João VI, quando a real comitiva de fidalgos se derramara pela velha cidade de Mem de Sá, com uma enorme praga de orgias e depredações. Fazia-se modesto, rindo com bom sorriso galhofeiro, quando alguém alevantava o valor de suas fazendas. Dizia que não! que mais luzia do que havia!

Mas não andava disposto para as longas vigílias da taverna no serviço de borrachos retardados. E, naquela noite, já por três vezes tentara despedir a freguesia. Os fregueses bebiam, monossílabos raros e sonolentos ouviam-se apenas de espaço a espaço. E o barulho contínuo da água, regular e metódico na tristeza da noite.

O Trancoso principiava a cochilar, quando a porta se abriu de repente: uma lufada sacudiu violentamente os velhos candieiros, que rangeram nas correntes de ferro. E leve, rápido como o vento que o trouxera, d. Álvaro Bias saltou no meio da sala, gotejante como uma biqueira de telhado.

Saltou, parou, e mirou-se. No chão, em roda dos sapatos puídos de d. Bias, formou-se logo uma poça d’água. D. Bias, magro e esgalgado, no velho gibão de veludo sem pêlo, parecia um guarda-chuva fechado, depois de um aguaceiro formidável.

D. Bias, fidalgo espanhol da mais pura linhagem, perseguido pelos credores e pelos alguazis em todas as bodegas das margens dos Mansanares, pulou um dia a fronteira e foi tentar a vida em Portugal. Não houve serão de convento que não procurasse – em vão! – saciar-lhe a fome secular: o primeiro avô conhecido de d. Bias era tenente de Cid Campeador, e entrava em combate com um alforje às costas, carregado de olla podrida. A família de d. Bias não era uma família: era a arvore genealógica da fome.

Em Portugal, d. Bias comeu, d. Bias bebeu. Com esses predicados, ganhou as boas graças de d. João VI, que em 1808 o trouxe com sua corte para o Brasil.

Este D. Bias, segundo reza a crônica, logo que chegou de Lisboa, foi morar na rua do Lavradio, na casa hoje no 40, pertencente a Antônio José Viana, à razão de 8$ por mês, cujo aluguel nunca pagou. E tais tratantices fez, combinado com o desembargador – ouvidor Francisco Alves de Andrade, que se ficou com o prédio e terrenos.

O mesmo praticou com o carpinteiro Custódio Pinto de Oliveira, que lhe não querendo vender dous lotes de terrenos contíguos e que fazem face com a rua, de acordo com a mulher deste Custódio, formou-lhe culpa de mancebia e meteu-o na cadeia em princípio do ano de 1811. D. Bias se ficou com a mulher e a filha de Custódio, e na posse dos bens deste depois do desquite.

Custódio, sem sua mulher e filha, e seus bens, foi viver do jornal que lhe dava o célebre escultor Ângelo Pallingrini, por alcunha o Satanás.

O Trancoso rosnou uma praga, quando o fidalgo lhe apareceu. Mas d. Bias enganchou-se num banco. E, uma vez servido, pôs-se a beber fidalgamente a sua zurrapa, levantando os braços para não emporcalhar na mesa os seus manguitos sujos. A sala recaiu no silêncio. A água continuou a bater, os fregueses continuaram a bebei; o Trancoso continuou a cochilar, e d. Bias, esgotado o pichel, cravou dous olhos compridos e sôfregos no gordo chouriço que fulgurava no balcão.

– Traga outra medida, gritou a voz avinhada de um sujeitinho baixo e gordo, tão baixo que tinha as pernas a oscilar dependuradas do mocho, e tão gordo que parecia um tonel cuidadosamente suspenso do chão para não se estragar com a umidade.

O Trancoso remexeu os ombros num esgar sonolento de desprezo.

– Melhor fariam vocês todos em limpar-me a casa de suas borracheiras! disse. E, depois de uma pausa, acrescentou:

– Demais, por estas horas tardias da noite, eu não vendo mais fiado! Ponham dinheiro no balcão se querem a boa da pinga! Súcia de malandros que a polícia d’el-rei bem devia vir buscar para uma dormida na rua da Vala!

Um belo movimento de solidariedade fez-se então entre toda aquela gente que o Trancoso assim maltratava com o desplante dos homens fortes e enriquecidos pela canalha miúda dos pobretões de gibão esburacado.

E o Carniça – um mulato esguio e de maus bofes, que vivia de sovar os negros nas casas de família – saiu à frente das reclamações.

– Que assim não se tratava à gente séria! gritou esmurrando a mesa onde as garrafas e os copos dançaram.

– Ninguém se teme da polícia d’el-rei! fez d. Bias, fanfarrão, saltando para o meio da bodega com a mão nos copos da espada e um largo gesto arrogante.

– Qual el-rei, nem pêra el-rei! vociferou o Carniça, pondo-se também de pé, muito avinhado e bêbado. – Nós aqui já estamos fartos de aturar toda essa corja portuguesa! Eu cá não faço mistério para gritar: Viva o príncipe regente!

E gritou, com e feito, o grito revolucionário daquele tempo, num grande berreiro forte de convicção popular.

Os outros entreolharam-se, já desarmonizados em pensamento. A questão deslocara-se. Já não era a rusga de uns fregueses retardatários contra um dono de taverna que queria fechar a casa, e não fiava mais. A luz baça e fedorenta dos candieiros que rangiam nas correntes, ofegava agora o hálito quente das revoluções.

– Qual d. Pedro! Mandam as cortes. E ele há de partir para abater a cerviz de vocês outros, canalhas de brasileiros! rosnou o homem-pipa que dera origem à contenda.

Os fregueses dividiram-se em dous grupos. De um para outro voaram imediatamente os copos e as garrafas. E d. Bias, que se ficara no mesmo lugar, entre os contendores, levou o melhor do primeiro arremesso. Rolou até pelo chão quando o Carniça investiu manhoso para tomar-lhe a durindana. E lá do balcão, o Trancoso, abrindo uma larga e forte navalha catalã, veio para o meio do barulho numa neutralidade agressiva de quem queria pôr no olho da rua toda aquela comitiva brigalhona de ébrios esbodegados.

– Que fossem se haver lá para a lama do Piolho!

Nisto, veio de lá de fora um retinir de armas. Ouviu-se um grito de agonia, e mais outro, e mais outro ainda. Correram todos para a porta. Matava-se ali por perto.

E d. Bias, muito lambuzado de poeira e vinho no seu roupão de veludo sem pêlo, ergueu-se e foi para o fundo da casa, aproveitando a confusão do momento para esconder o chouriço por debaixo da camisa.

A porta, todos alongaram os olhos pela noite escura. A chuva estiara um pouco. Sem iluminação, a rua do Piolho desenhava indecisamente os seus perfis de casas baixas. E a alguma distância da taverna, via-se redemoinhar um grupo confuso de homens que se batiam. Mais alto que o tinir das espadas soavam as pragas dos combatentes.

Era positivo que um dos combatentes se defendia de todos os outros, com uma coragem de leão.

Os fregueses do Trancoso ficaram sem movimento contemplando a luta. E Trancoso encolheu os ombros e voltou para seu posto no balcão, rosnando entre dentes que melhor que se matassem todos uns aos outros aqueles vagabundos que tiravam a espada por qualquer patifaria.

Os outros ficaram sem intervir. O Carniça entusiasmou-se: um dos combatentes acabava de cair varado por um bote do que se defendia. E o mulato, diante daquele espetáculo delicioso para seu temperamento de galo de briga, berrou, batendo palmas:

– Aí, bravo!

Os dous agressores perdiam terreno. A espada do desconhecido girava multiplicando os botes, e pondo-lhe diante do peito um muro de aço em que vinham bater inofensivas as armas dos outros dous. Mais um ferido. E o último rodou sobre os calcanhares, fugindo, seguido de perto pelo inimigo.

Nesse momento, d. Bias indignou-se da covardia em que estavam todos, vendo um bater-se com tantos.

– Caramba! não se dirá que um fidalgo de Espanha deixou de ir em auxilio de um fraco!

E abalou de durindana em punho para o lado em que o desconhecido perseguia o fugitivo. Mas o fidalgo viu a sua bravura sem proveito. O desconhecido já vinha de volta, e daí a pouco, quando entrou na tasca, o Trancoso, ao ver-lhe a fisionomia, acercou-se dele com um ar de respeito e carinho. Os fregueses cumprimentaram-no também. Sentou-se a um mocho, e atirando a espada ensangüentada sobre o balcão, ordenou ao taverneiro:

– Limpa isto e dá-me vinho!

—————-
continua

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Helena Kolody (Século Atômico)

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22 de fevereiro de 2013 · 14:08

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia IX)

INTERVALO

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado –
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?…
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca –
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer !
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa…

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não !

Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

NÃO DIGAS NADA!

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender –
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada…
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Não: não digas nada!

Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.

A ‘sp’rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha ‘s’prança,
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam – verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças –
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim –
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser – muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

O MAESTRO SACODE A BATUTA

O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe …

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo …

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo. e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal… E a música atira com bolas
À minha infância… E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos …

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo…

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância…

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo…

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

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Lourenço do Rosário (O Coelho e o Leão)

O coelho e o leão eram amigos.

Um dia, o leão foi a casa do coelho para o convidar a acompanhá-lo a casa dos futuros sogros como seu ajudante.

No fundo, o que o leão queria era humilhar o coelho e acabar de uma vez para sempre com as suas malandrices. O coelho aceitou ir com ele.

No dia combinado, partiram os dois. A meio do caminho, disse o leão apontando para as folhas de um arbusto: “Olha, coelho, se, por acaso, durante a refeição, eu me queimar com a comida e gritar por remédio, já sabes, vens a correr e colhes o que te pedir deste arbusto”. O coelho, sem se perturbar, disse que sim. No entanto, tratou de se prevenir porque lhe cheirou logo a uma armadilha. Deixou cair uma faca e continuou viagem com o amigo. Já as casas estavam à vista quando o coelho exclamou: “Oh! mas eu não trago aqui a minha faca. Voltemos para procurá-la”. Ele sabia que o leão não aceitaria a ideia de ter de voltar só para procurar pela faca. “Vai sozinho. Não estou para perder tempo indo procurar por uma faca que não se sabe onde a perdeste”, respondeu-lhe o leão. O coelho queria exactamente aquilo. Correu logo e foi para junto do arbusto. Cortou folhas, raízes, partes de tronco. Secou algumas folhas, fumou outras e o mesmo fez com o caule e as raízes.

Quando chegou a casa, encontrou o leão a conferenciar com os futuros sogros mais a rapariga pretendida. O coelho chegou a tempo de ouvir o pai da rapariga dizer: “Não pense senhor leão que é o único. Por isso eu darei a minha filha ao pretendente que demonstrar maior esperteza. O tempo que ficar cá há-de estar em constante prova”.

Durante o almoço, o leão começou a gritar: “Salva-me amigo”. O coelho percebeu logo o que o leão queria, correu e foi buscar tudo quanto tinha trazido do arbusto. Apresentou primeiro as folhas. O leão pediu: “Quero-as fumadas, trouxeste verdes não prestam”. O coelho apresentou de imediato as folhas fumadas. O leão percebeu que o coelho não tinha caído na armadilha, mas experimentou pedir cinzas do caule do arbusto. O coelho trazia-as. O leão pediu as raízes cortadas às rodelas. O coelho trazia-as. Ao fim e ao cabo, o coelho trazia tudo quanto o leão quis pedir. Não teve outro remédio senão fazer um chá com tudo aquilo e toma-lo. Enquanto isso, o coelho saboreava a comida dos dois.

À noite, a mãe da rapariga apresentou uma boa esteira e uma casca de árvore. O coelho, que sabia que aquilo fazia parte das provas para casar com a rapariga, aceitou logo a casca de árvore, pensando o leão que aquele gesto era de respeito para com ele. O leão disse para consigo: “Ainda bem que o miúdo aceitou a casca de árvore, assim não se discute quem vai dormir na esteira…”

Durante a noite, enquanto dormiam, a esteira onde se encontrava o leão foi-se transformando em cordas que se enrolavam no leão, manie-tando-o totalmente. O coelho, esse, dormia profundamente na sua casa de árvore.

No dia seguinte, o leão acordou ridiculamente amarrado e envergonhado com a figura que estava a fazer perante a sogra e fugiu para não voltar. O coelho foi recebido como genro e casou com a rapariga.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

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João Cabral de Melo Neto (Tecendo a Manhã)

 1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
 ele precisará sempre de outros galos.
 De um que apanhe esse grito que ele
 e o lance a outro; de um outro galo
 que apanhe o grito de um galo antes
 e o lance a outro; e de outros galos
 que com muitos outros galos se cruzem
 os fios de sol de seus gritos de galo,
 para que a manhã, desde uma teia tênue,
 se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

 E se encorpando em tela, entre todos,
 se erguendo tenda, onde entrem todos,
 se entretendendo para todos, no toldo
 (a manhã) que plana livre de armação.
 A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
 que, tecido, se eleva por si: luz balão.

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Esopo (A Raposa e o Bode)

Uma raposa caiu em um poço e foi obrigada a permanecer ali.

Um bode, levado pela sede, aproximou-se do mesmo poço e, vendo a raposa, perguntou-lhe se a água estava boa. E ela, regozijando-se pela circunstância, pôs-se  a elogiar a água, dizendo que estava excelente e o aconselhou a descer.

Depois que, sem pensar e levado pelo desejo, o bode desceu junto com a raposa e matou a sede, perguntou-lhe como sair.

A raposa tomou a palavra e disse:

– “Conheço um jeito, desde que nos salvemos juntos. Apóia, pois, teus pés da frente contra  a parede e deixa teus chifres retos. Eu subo por aí e te guindarei.”

Tendo o bode se prestado de boa vontade à proposta dela, a raposa, subindo pelas pernas dele, por seus ombros e seus chifres, encontrou-se na boca do poço, saltou e se afastou.

Como o bode a censurasse por não cumprir o combinado, a raposa voltou-se e disse ao bode:

– “Ó camarada, se tivesses tantas idéias como fios de barba no queixo, não terias descido sem antes verificar como sair.”

Assim também, é preciso que os homens sensatos primeiro verifiquem o resultado de uma ação antes de pô-la em prática.

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A. A. de Assis (A Trova na Imagem II)

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22 de fevereiro de 2013 · 13:39

Regina Chamlian (O Amigo Secreto)

A turma reuniu-se na sala enfeitada.

Martinha carregava um pacote enorme, cheio de laços. Suzana e Antônio conversavam animados. Mariana pediu para Juju começar a brincadeira. Cada um devia explicar antes porque escolhera o presente para seu amigo secreto.

Quando Juju terminou de falar, um tênis, que mais parecia uma nave espacial, foi parar nas mãos de Felipe. Este contou porque comprou o CD importado para o Luís. Que explicou porque escolheu a bermuda de surfista para o Bruno.

— Bruno! — a turma gritou. — Agora é você!

Bruno pôs-se a falar:

— Bom, pessoal. Na primeira semana de dezembro, tarde da noite, lá em casa, ouvimos um grito de filme de terror.

Todo mundo saltou da cama: “O que foi? O que foi?”

Minha mãe apontou, soluçando: “A ge-la-de-dei-ra!

Ela que-que-brou!”

“O técnico avisou que, se ela enguiçasse de novo, já era”, disse meu pai.

“Não faço questão de geladeira”, minha irmã falou.

“O que não dá é ficar sem computador.”

Aí, minha mãe disse: “Se a gente fosse esquimó, jogava a caça sobre a neve, cobria com gravetos pros lobos não roubarem, e pronto. Mas, em pleno verão brasileiro, geladeira é prioridade. Precisamos comprar uma nova”.

“E daí?”, minha irmã perguntou.

“E daí que o mesmo dinheiro não sai da mesma carteira duas vezes”, disse meu pai.

“Então o computador dançou?!”, eu perguntei.

Meu pai respondeu: “O computador e outras coisinhas. Nossa geladeira é dúplex, ela custa mais caro”.

“E o presente do amigo secreto”, minha irmã lembrou.

“Bolem um presente criativo e que não custe nada”, falou meu pai.

— Foi aí que eu tive a idéia — continuou Bruno, abrindo a mochila e tirando de lá um pequeno pacote.

— Espero que meu amigo secreto goste. Ele é o Rafa.

— Aí, Rafa! Vai lá! — gritou a turma.

Rafa começou a abrir o pacote. O silêncio era total.

— Não acredito que você guardou esta foto, cara!

Que idade a gente tinha?

— Mostra! Mostra!

E a foto emoldurada de Bruno e de Rafa, quando tinham 6 anos de idade, foi passando de mão em mão.

O maior sucesso.

— Puxa, Bruno. Só faltou uma coisa — disse Rafa.

— O quê?

— Um abraço, cara. Gosto de você! Bom fim de ano!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 12. Apêndice do Gato

Meu Deus, como a arte de escrever é difícil e como eu faço bem de não escrever senão para mim mesmo! À medida que vou enchendo estas minhas costaneiras de almaço, trezentas coisas que eu dantes não suspeitava, se me apresentam, -pequenos e grandes problemas de composição e de expressão, de lógica e de verdade, de método e de maneira. Enxergando-os, palpando-os, sentindo-os bulir sobre a lauda como insetos descobertos e espicaçados pelo bico da pena, surpreendo-me de os ver tão numerosos e tão estranhos; e gozo um indefinível prazer:

o prazer de não ser obrigado por coisa nenhuma, a atormentar-me com eles. Um exemplo de inadvertência galucha: falando de animais bonitos e nobres, dei a minha preferência, precipitadamente, depois do gato, ao cavalo e ao elefante. Entretanto, seria tão natural que tivesse refletido em que os vertebrados, geralmente, são belos e que os há tão encantadores como aqueles! Tanto mais quanto Remy de Gourmont, nas suas Dissociações, já o fizera notar. Na verdade, só há um animal feio, é o homem. O Esporte, que se aplica em fomentar a beleza física da espécie, tem nesse ponto fracassado, uniformemente, em toda a parte do mundo. Só apresenta indivíduos bonitos quando os colheu da natureza. Belos, sempre muito raros, ele não os revela em maior número do que o simples Acaso. O aspecto ordinário das suas legiões é desencorajante. – Os esportes particulares deformam, dando excessivo desenvolvimento a certas aglomerações musculares. Pensou-se em remediar, doutrinando o atletismo completo: vão-se com isso criando deformações generalizadas.

Veja-se entretanto um coelho, um veado, uma onça, um porco-do-mato em condições normais de desenvolvimento e saúde: cada qual, dentro dos princípios da sua construção respectiva, é uma obra deliciosa de acerto, de rêussite, de precisão sem sobras e sem falhas. Surge-nos sem traços de esforço nem de intenção, com a corrente naturalidade de um descuido! – Conformação e movimento permanecem dentro de uma lógica infrangível, de uma unidade perfeita, de uma economia necessária, onde cada coisa tem um valor e entretanto, se engolfa e se dissimula na totalidade. Nada que estale, bambeie, descaia, descole, descontinue; um admirável concerto de transições e transformações simultâneas e sucessivas. O jogo das massas e dos contornos perde-se fluidicamente em si mesmo. Cada imagem emerge da precedente como numa espiral de fumo, dissolve-se na seguinte como num caleidoscópio sem recortes e sem chocalho. Tudo facilidade, afinação, fusão, correnteza, equilíbrio, tudo aquela suprema simplicidade que é o nome familiar da complexidade infinita na perfeição.

Bem, mas porque foi que eu cometi esse erro? Porque estava possesso de Rufina. A imagem da moça do bonde se interpunha entre mim e os bichos, o som da sua voz golpeava cada momento a membrana fragílima das minhas idéias, os seus gestos rápidos rebentavam a todo instante o meu colar de miçangas. Embalde eu protestava que ela era mais feia do que o elefante, menos perfeita do que uma leitoa. Embalde eu procurava esquecer, embrenhar-me no meu produto como a aranha no seu, embriagar-me com esses pensamentos de luxo, suspender-me a essas teias, atar as minhas arrobas ao vôo dessas borboletas extraterrenas. E, na verdade, nem agora consigo exconjurar aquele demônio.

Fonte:
Domínio Público

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Pe. Antônio Vieira (Sermão da Sexagésima)

O Sermão da Sexagésima foi um dos mais famosos, entre tantos. Foi proferido na Capela real de Lisboa em março de 1655. Através dele, o pregador esmerou-se na retórica, contando com sua memória prodigiosa e rara habilidade no domínio da palavra.

As palavras de Vieira transformaram-no em um orador digno de fé e despertavam nos ouvintes uma paixão transformadora.

O sermão é um todo de 10 pequenos capítulos e é considerado seu mais importante sermão: uma crítica monumental ao estilo barroco, sobretudo ao Cultismo. Como foi pregado na Capela Real, em Portugal, podemos concluir que o auditório era particular, composto por católicos da nobreza portuguesa da época. O autor procura se aproximar do auditório dirigindo-lhe perguntas que ele mesmo, o autor, responde. O autor procurou no sermão a adesão do auditório à sua tese principal de que se não havia conversões em massa ao catolicismo na sua época era por culpa dos pregadores de então.

O tema do Sermão da Sexagésima é a “Parábola do semeador”, tirada do Evangelho segundo São Lucas: Semen est verbum Dei (A semente é a palavra de Deus). Neste sermão, o Padre Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Vieira resume e comenta a parábola: um semeador semeou as sementes que caíram pelo caminho, pelas pedras ou entre os espinhos. Apenas parte delas caiu em terra boa. Nele Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Traçando paralelos entre a parábola bíblica sobre o semeador que semeou nas pedras, nos espinhos (onde o trigo frutificou e morreu), na estrada (onde não frutificou) e na terra (que deu frutos), Vieira critica o estilo de outros pregadores contemporâneos seus (e que muito bem caberia em políticos atuais), que pregavam mal, sobre vários assuntos ao mesmo tempo (o que resultava em pregar em nenhum), ineficazmente e agradavam aos homens ao invés de pregar servindo a Deus. Vieira examina a culpa do pregador, considerando sua pessoa, sua ciência, a matéria e o estilo de seus sermões e sua voz.

No Sermão, seu autor interessava saber o motivo de a pregação católica estar surtindo pouco efeito entre os cristãos. Sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa, pergunta ele, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Depois de muito argumentar, Vieira conclui que a culpa é dos próprios padres. Eles pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus, afirma. Dito de outra maneira, o jesuíta reclama daqueles que torcem o texto da Bíblia para defender interesses mundanos. No sermão proferido, o Padre também procura criticar a outra facção do Barroco, logo a utilizar o púlpito como tribuna política.

Padre Antônio Vieira, um mestre da persuasão, ensinava que “o sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria”. É a regra daunidade do discurso persuasivo.

Pe. Antonio Vieira empregava diversos elementos de retórica no sermão analisado e podemos afirmar que sua palavra produziu muito fruto, visto que sua obra se mantêm como pensamento válido depois de 300 anos de sua morte.

O assunto básico do sermão, à primeira vista, é a discussão de como é utilizada a palavra de Cristo pelos pregadores. Um olhar mais profundo mostra que o autor vai além do objetivo da catequese, adotando atitude crítica da codificação da palavra. Percebe-se, também, que o Sermão é usado como instrumento de ataque contra a outra facção do Barroco, representada pelos chamados cultistas ou gongóricos.

Em O Sermão da Sexagésima, Vieira expôs o método que adotava nos seus sermões:

1. Definir a matéria.
2. Reparti-la.
3. Confirmá-la com a Escritura.
4. Confirmá-la com a razão.
5. Amplificá-la, dando exemplos e respondendo às objeções, aos “argumentos contrários”.
6. Tirar uma conclusão e persuadir, exortar.

Nota: O contexto histórico da época do Padre, uma época onde várias atitudes tomadas pelo catolicismo eram apoiadas inclusive pelo próprio poder temporal – já que não é simples separar a Igreja e o Estado português neste momento da história -, como converter almas ao cristianismo.

Nessa época, o mundo assistia a Santa Inquisição atuando a pleno vapor, que inclusive fez visitações ao Brasil colonial nas regiões Nordeste e Norte, além de em outras terras pertencentes ao Império Colonial Português como Angola, Madeira e Açores, e que Goa possuía o seu próprio tribunal do Santo Ofício; também assistia-se a imposição do cristianismo para muitos índios no Brasil; além dos negros africanos que para cá foram trazidos e também foram-lhes imposto o catolicismo.

Considerando o contexto de conversões forçadas da época do Padre Vieira e analisando apenas o sermão que fora pregado em 1655, o padre aparenta ser contra a conversão forçada que imperava no período. No entanto, em alguns sermões ele justifica a escravidão, tanto indígena quanto a negra, com argumentos religiosos, como o de que no juízo final esses escravos terão suas almas salvas, no Céu serão servidos pelo próprio Deus, ou ainda, a comparar o sofrimento dos escravos ao martírio do próprio Cristo.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/s/sermao_da_sexagesima

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IV Seletiva para a IV Coletânea Século XXI – 2013 (Prazo: 5 de Março de 2013)

Homenagem (Aceita e Autorizada pela Autora) –
Olga Savary (Belém, 21 de maio de 1933)

É poeta, como gosta de ser chamada, contista, romancista, crítica, tradutora e ensaísta.

Inscrições de 1º de FEVEREIRO a 5 de MARÇO de 2013

(Preferencialmente pela INTERNET ou pelos Correios)

A PoeArt Editora de Volta Redonda RJ, institui a IV Coletânea Século XXI (depois do sucesso da I, II, III e das Antologias Poéticas de Diversos Autores, Vozes de Aço da I A XIII e do livro Cardápio Poético, primeira e segunda edição), para premiar autores de ambos os sexos, maiores de dezoito anos, amadores ou profissionais, somente residentes no país, na categoria: Poesia, em língua portuguesa, tendo como objetivo principal à descoberta de novos autores e o intercâmbio cultural entre os participantes.

SEM TAXA DE INSCRIÇÃO: (ATÉ 3 POESIAS)

Ao efetuar a sua inscrição, o autor estará concordando com as regras do Concurso, e, se selecionado, autorizando a publicação dos trabalhos na IV Coletânea Século XXI – 2013. Em caso de cópia indevida e demais crimes previstos na Lei do Direito Autoral, será responsabilizado judicialmente.

Tema e Apresentação:

– O tema é livre OU HOMENAGEM À AUTORA.

– Cada autor poderá inscrever de uma a 3 poesias (versos livres ou poema com forma fixa), cada uma em uma página, inéditas ou não, máximo de até 30 versos cada, fonte Times New Roman, corpo 12, digitadas somente em um dos lados da folha, onde deverá constar o título de cada poesia. Não é necessário pseudônimo.

– Uma via de cada trabalho, no mesmo envelope, mais um CD (se for enviar pelos correios) com as poesias gravadas e uma foto de perfil recente em alta resolução (que será usada no livro).

– Em anexo um envelope menor, lacrado, sem qualquer identificação do lado de fora, contendo:

– Nome completo, nº do RG, nome do concurso, títulos dos trabalhos, endereço completo, dados biográficos

(no máximo dez linhas), telefone e e-mail.

– As obras que chegarem sem esses dados não serão consideradas inscritas.

– Todos os trabalhos enviados (selecionados ou não) serão incinerados, após a divulgação do resultado.

Forma de Inscrição:
As obras deverão ser enviadas (preferencialmente pela INTERNET para: poearteditora@gmail.com)

ou pelos correios para:
PoeArt Editora: Caixa Postal: 83967 – Cep: 27255-970 – Volta Redonda – RJ.

Premiação:

Os cinco melhores poemas serão publicados sem qualquer ônus na IV Coletânea Século XXI – 2013 –, cada um dos cinco autores premiados receberá 3 exemplares da obra pelos direitos autorais, diploma e a sua foto colorida no livro.

OBS: A partir do 6º trabalho selecionado, os autores serão convidados a participar do livro pelo sistema de cooperativismo, pois serão escolhidos no máximo cem trabalhos de até cinqüenta autores.

Jean Carlos Gomes / Organizador e Editor / Contatos: 24 – 9993-0615 | 33457352 (depois das 18h)

E-mail: poearteditora@gmail.com.br/ poearteditora.blogspot.com

Organização e Realização: PoeArt Editora de Volta Redonda – RJ

Apoiadores: Reprográfica Barrense, Colégio Garra Vestibular, Lex Print – Suprimentos de Informática, Teatro GACEMSS 67 Anos de Cultura, GREBAL – Grêmio Barramansense de Letras, Academias: Barramansenses de Letras e História, Art Nouveau, Val Lourenço – Cabelo e Corpo, Jornais: O Universo, Volta Cultural, Jornal do Interior, MaioIrdade, A Voz da Cidade e Diário do Vale, Clube Foto Filatélico e Numismático de VR – Ponto de Cultura, Zênite Publicidade, Usina Gráfica – Design e Propaganda, Câmara Municipal de VR e Deputado Federal Zoinho.


Fonte:
Clevane Pessoa

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Helena Kolody (Crianças)

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21 de fevereiro de 2013 · 19:17

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia VIII)

GLOSA

Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor ?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor ?

Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor ?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor…

Quem me dispôs para o que não pudesse ?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece ?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
“Onde a minha saudade a cor se trava ?”

GOMES LEAL

Sangra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são
A desgraça, a tristeza, a solidão.
Oito luas fatais fitam no espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço
A Saturno entregou. A plúmbea mão
Lhe ergueu ao alto o aflito coração.
E, erguido , o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito luas da loucura
Quando a cintura tríplice denota
Solidão e desgraça e amargura !

Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura :
É a lua além de Deus, álgida e ignota.

GRANDES MISTÉRIOS HABITAM
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

GUIA-ME A SÓ A RAZÃO

Guia-me a só a razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão ?
Só ela me alumia.

Tivesse quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
<> ?

Como olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão-
Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.

ILUMINA-SE A IGREJA POR DENTRO DA CHUVA
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro …

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar…

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro…

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste …
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel…

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa …

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

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Arquivado em Poesias, Portugal

Lourenço do Rozário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Leão)

O coelho e o leão eram amigos.

O coelho indicava onde estavam os animais e o leão ia caçá-los.

Um dia disse o coelho: 

– “Sabes amigo, arranjei uma maneira de caçar animais sem precisares de ter de caminhar”.

– “Como assim?” perguntou o leão admirado. 

“Olha, na base da montanha é o lugar mais indicado. Tu ficas cá em baixo num lugar que te vou indicar e eu vou lá acima espantá-los. Verás que até os apanhas com os olhos fechados”. 
O leão concordou satisfeito e até achou graça a essa de poder apanhar os animais de olhos fechados.

No dia conbinado, lá foram. O coelho colocou o leão num lugar por ele escolhido e foi lá acima onde deslocou uma grande pedra. Esta começou a rolar com estrondo. Quando o pedregulho se aproximou do lugar onde estava o leão, o coelho gritou: 

– “Fecha os olhos para os animais não verem o seu brilho. Apanha-os todos”. 
O leão assim fez e apanhou com o pedregulho na cabeça, tendo ficado esmagado. 
O coelho foi-se embora.

Desde esse dia, os leões não gostam do coelho.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

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Arquivado em Contos, Moçambique

Trova 249 – Wagner Marques Lopes (MG) (Trova da rãzinha brincalhona)

Imagem: Juventude Esperantista da Noruega

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Arquivado em Minas Gerais, Pedro Leopoldo, Trovas

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 11. O Gato

Sentei-me hoje ao pé de uma velhota embrulhada num xale. Logo notei, sem ter nada investigado, que ela dissimulava qualquer coisa por baixo da manta. -Como foi que cheguei a isso? não o sei ao certo. Um movimento de suas mãos ocultas a arrepanharem o xale sobre o regaço… o seu ar demasiado “inocente”… sei lá.

Eu podia ter-me ufanado da minha perspicácia. Mas não. Nem houve propriamente perspicácia alguma; ou, se houve, foi toda inconsciente: pouco se me dava daquela mulher, do seu xale, dos seus gestos. Ser Sherlock por vontade, por estudo, por aplicação determinada e metódica da inteligência, é um esporte razoável, embora não me seduza. Mas esta espécie de “suspicácia” inata e vulgar é aborrecível como todas as inclinações tolas e baixas.

Senti-me desgostoso de mim, e mal me consolei com a reflexão, que fiz em seguida, de que o dom não me era particular, nada tinha de diferencialmente pessoal, Pois que alheio a todopensamento, a toda vontade e a toda tendência definida. É qualidade humana, com raízes fundas na camada mais funda da nossa humanidade. Todos temos dentro de nós um bicho indiscreto e malévolo, em simbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que às vezes o ignora ou faz por ignorá-lo, ou mesmo lhe dá largas.

Arrastado pela curiosidade, antes que acabasse de refletir, não me custou perceber que de fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa era um gato. Um gato branco, boquinha rósea, olhos muito grandes estriados por um chuvisco de luz entre vegetações de esmeralda e ouro. Tinha um ar pouco amigável, meio enfezado, meio suplicante. -Percebi tudo isso num ápice, porque tenho a vista habituada a inspecionar gatos. É este o animal da minha predileção, o único semovente que me agrada sem reservas.

Gostaria também bastante dos cavalos de raça desde o possante Brabançon até o árabe naturalizado e aperfeiçoado nos haras de Inglaterra, por seu instinto da atitude pictórica ou escultural, se tais cavalos fossem do tamanho de gatos e se pudessem ter dentro de casa, pôr ao colo e deixar correr por cima das mesas. -O defeito desse animal é ser excessivamente grande. Isto o reduziu ao papel pouco distinto de mero acessório do homem, e tornou-o um prosaico objeto de utilidade ou de ostentação.

Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho está nessa fantasia inutilíssima e zombeteira com que ela repartiu a força e a beleza pela escala das dimensões, no reino animal.

Os insetos, em regra, são feíssimos e fortíssimos; ao mesmo tempo, pequeninos e inaproveitáveis. Os cavalos e outros viventes grandes e belos são relativamente fracalhões. Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos do tamanho de girafas, besouros do volume de vacas holandesas, pulgas das dimensões de bezerros; que motores formidáveis à disposição do homem! Entretanto, escusava que os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e, sendo na verdade os bibelots da natureza, fossem condenados ao estábulo, à estrebaria, ao amanho da terra, à tração de veículos, ao trabalho bruto, à escravidão humilhante.

Essa a justiça da grande Mãe! E ainda se isso passasse exclusivamente com os bichos! Mas, não. Toda beleza é escrava. Mulher, -é o alvo e a presa da matilha esfaimada dos instintos. Vende-se nos mercados. Aprisiona-se. Condena-se a ser uma forma vazia, ornada de vermelhão, de pó-de-arroz e de jóias, com a noite dentro, como a cabaça mágica do bugre. Talento, gênio, bondade, amor, -tudo capturado, amarrado, explorado, torturado, agadanhado, sangrado, e finalmente reduzido a cacos, a cisco, a lama, a cinza, a pó, a pó que se espalha ao vento, entre o delírio e a confusão da macumba retumbante e frenética.

Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo, em determinadas regiões, com a espécie humana, esse, contudo, guarda a dignidade de um escravo testarudo e resignado -obediente, fiel, mas inamoldável, sempre intransigentemente elefante. Não tem a elegância do nobre equus (elegância, aliás, já um pouco desacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas lá tem a sua, que lhe é própria e, além de própria, intransferível, por mais que haja indivíduos humanos a quererem tomar-lha, na classe que compreende os grandes vendeiros, os desembargadores e os clérigos.

A elegância do elefante, revelam-na bem certos artistas. Há bibelots de louça, marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a evidência da luz. Hierática, cheia, pesada, a massa liga-se às proporções e aos contornos numa sóbria unidade de concepção e de fantasia, e tudo é um só élan de inspiração enternecida e brincalhona. A gravidade unida ao peso, a paciência ao volume, a doçura à simplicidade, e um quê de majestoso, e um quê de ingênuo, e um quê de gaiato. -Apenas falta a essas composições o indefinível encanto da vida, esse encanto que resulta da nossa perversa inclinação para só gostar completamente das coisas que sofrem.

O certo é que, se eu pudesse possuir um elefante em casa, aí com umas dez ou doze polegadas de altura, e que me viesse comer à mão, e brincasse com o meu bichano, às correrias por baixo de mesas e cadeiras, isto me seria um verdadeiro enlevo na minha solidão povoada de imagens inertes. -O pior é que um dia… Tudo tem o seu fim neste mundo. Seria possível que o meu bibelot animado devolvesse antes de mim a sua porção de fluido vital ao laboratório do universo. O meu bichano havia de andar miando tristemente pelos cantos. A minha cozinheira talvez enxugaria lágrimas, às escondidas, ao ver-me acariciar o Romão, à hora das refeições, na ausência do outro.

Gatos que miam e cozinheiras lacrimejantes estragam uma casa. Desisto do elefantinho.

A verdade é que tenho um fraco pelos gatos, e fiquei a pensar no que a mulher do bonde faria daquele. Iria deitá-lo fora? Iria dá-lo a alguém que lhe destinasse o indigno emprego de caçador de ratos?

Eu estou convencido de que os gatos não querem mal ao gênero mus. Procuram agarrar os roedores por simples prazer e necessidade de brincar. E se preferem esses a quaisquer outros, é apenas porque o rato, de todos os bichos proporcionados ao felino doméstico, é, o que mais radicalmente difere deste.

O gato só pode compreender o rato como uma coisa sem afinidade alguma com ele, mais ou menos como nós encaramos os peixes, aos quais não concedemos nenhuma sobra de respeito, nem de simpatia, nem de piedade. São objetos de um outro mundo, criações de um outro plano, obras de uma outra série. A teoria que Malebranche sustentava com referência à sua triste cadela -cujos latidos de dor eram no seu entender simples passagem do ar pelo mecanismo da garganta -é por todo o mundo imemorialmente e inconscientemente aplicada aos peixes. O próprio dilúvio, condenação e aniquilamento de todos os viventes não embarcados, deixou à margem, isto é, dentro da água, esses interessantes autômatos.

O rato, roedor meticuloso, destruidor frio, amigo das sombras, dos recantos ocultos, das gretas e frinchas secretas, dos buracos dissimulados e recônditos, grande trabalhador sem horizonte, medroso, tenaz, esperto, estúpido, o rato é o antípoda psicológico e moral deste príncipe dos quadrúpedes, deste poeta de pelo, deste artista de garras, deste sonhador indolente e desdenhoso, que compreendeu a imensa utilidade de não fazer nada, amigo do sol, das noites de lua, dos jardins floridos, dos telhados altos e desertos.

Este, quando procura a penumbra e o aconchego, é no borralho familiar onde o fogo deixou um pouco da sua alma quente e errante, é entre cobertas moles e cariciosas, é no regaço quieto das pessoas pensativas, ternas ou tristes.

Acusam-no de ser desamoroso e ingrato. Julgamento mesquinho. O mal do gato está unicamente em não ser nem servil nem serviçal. O homem só compreende as afeições no seu tríplice aspecto de promessa, desejo ou saudade de serviços. (Triste de quem as concebeu algum dia como um culto e um puro gozo interior, esquecendo-se de que a vida que vale é a que se processa e corre da periferia do corpo para fora!)

O gato saboreia melhor do que os próprios donos a fina flor da humanidade, aquilo que há em nós de mais seleto, e despreza tranqüilamente o farelo. Por isso é que se apega mais à casa do que ao habitante, como alguém, de refinado olfato, que preferisse, numa paisagem, o ar embalsamado por um resto de perfume de flores ausentes.

O homem canta -Home, sweet home!, e vai para a pândega, a dissipação, o tráfico, as feiras dos negócios, dos vícios e das vaidades: o gato fica, adorando com recolhida finura o melhor produto do homem, o melhor retrato do homem melhor, a Casa, a Casa onde o fogo prisioneiro canta a ária encantatória das coisas perpétuas, verazes e substanciais, a mesa em torno da qual a família reparte o pão cotidiano em paz no meio da tormenta, as paredes de onde pendem alfaias e recordações, as portas em cuja tela de penumbra se enquadraram vultos amigos que nunca mais vieram empurrá-las, mas parece às vezes que vão chegar a todo momento, que andam ali perto, ali. -A Casa! A Casa do Homem, em tudo superior ao habitante que passa, ao hóspede mofino de uns dias fugazes; ilha de estabilidade, de composição, de recolhimento, de segurança e de amor, no meio da instabilidade, da precariedade, da confusão, do desperdício, da angústia e da loucura universal.

O homem faz a sua casa e foge dela; ainda lá dentro, foge em espírito; não chega a compreender nem a sentir que fez um mundo, um mundo maravilhoso, para o qual todo o mundo grande, desde tempos imemoriais, vem acumulando infinitos elementos; um pequeno mundo sensível e supra-sensível onde a soma dos elementos imateriais é incomparavelmente maior do que a dos outros, onde cada pedra ou tijolo, cada móvel, cada quadro, cada retrato, cada canto encerra uma saturação imensa de humanidade e de vida vivida e vem a ser mais rica em poder irradiante do que a mais carregada petchblenda…

Mas eu estava em que os gatos não têm aversão aos ratos. E não têm. O que há é que são antípodas uns dos outros. O bichano vê no rato um simples mecanismo, bom para esporte e brinquedo.

É verdade que das brincadeiras resulta muitas vezes o óbito da presa. Mas é natural que um gato não tenha idéias claras acerca dos sofrimentos e da morte.

Nós, que somos gente, ou tendemos a isso, apenas sentimos que há dor no mundo por
experiência própria e individual, e nada nos custa como acreditar que a experiência dos outros possa coincidir com a nossa.

Por isso o rancor é dez mil vezes mais comum do que a piedade; além de que a piedade é freqüentemente uma forma de rancor fatigado.

Quanto à morte, pode-se muita vez duvidar que seja motivo de mágoa para algum dos que ficam; ao passo que se tem a certeza de que é festa para os herdeiros, pão para os gato-pingados, rócio para várias indústrias, e espetáculo para os vizinhos do falecido.

Tive ganas de ver se a dona quereria vender-me o gatinho, mas deteve-me a dificuldade do transporte. Se eu o levasse na mão até à secretaria, rir-se-iam de mim pelo caminho e na repartição. Carregá-lo no bolso, impossível. Mandá-lo levar a casa, despesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista e econômico em matéria de prazeres do coração.

Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damas imaginárias, sob o pretexto de que as de osso e carne são imperfeitas, mas na realidade por uma questão de economia: pus-me a pensar amorosamente num gato ideal. E desfiei de memória aquilo de Beaudelaire:

Viens, mon bon chat, sur mon coeur amoureux,
Retiens les griffes de ta patte.

Logo o enxerguei junto de mim, grande, perfeito, maravilhosamente gato, lambendo a mão com a língua rósea, o olhar tranqüilamente perdido no borborinho das ruas, e como que a repetir aquela sentença grave de Eurípedes: “Zeus aborrece os homens atarefados e os que se agitam demais”.

O gato é uma das mais completas expressões de beleza dadas ao mundo. Completas? Digo mal. Nem nós esgotamos todo o seu potencial, nem o próprio acabou de se realizar. Como os colibris, as rosas e os periquitos, é uma obra-prima, feita pela Natureza no caprichoso intento de mostrar como aquela que faz montanhas e mares é também capaz de compor coisas de paciência, de fantasia graciosa e de gosto quintessencial.

Desconfio, porém, às vezes, que não foi a Natureza, mas o próprio Deus quem modelou esses objetos com os próprios dedos, para humilhar o homem e divertir os anjos. E que os anjos os deixaram cair à terra por descuido, ou para os destruir. -É talvez por isso que os periquitos têm a cabeça achatada, e aquele arzinho de devotos irônicos, e aquele ânimo desconfiado e áspero que faz com que se irritem e escancarem o bico recurvo quando os queremos acariciar. De certo, é pela mesma razão que os gatos conservam essa aura de humana nostalgia que os distingue, essas atitudes de insatisfação gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imóveis e solitários, com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na desesperada esperança de ver cair alguma traga migalha do paraíso perdido!

Fonte:
Domínio Público

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A. A. de Assis (Trova na Imagem I)

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21 de fevereiro de 2013 · 19:04

Millôr Fernandes (O Cavalo e o Cavaleiro)

Pois ainda que pareça incrível, quando o homem chegou às portas do céu, São Pedro disse:

– “Não pode entrar!”

– “Como não posso entrar? Tenho folha corrida de bons antecedentes e tenho bons antecedentes mesmo.” 

– “Sei” – respondeu  Saint Pierre – “mas no céu ninguém entra sem cavalo.”

      E o homem, não podendo argumentar com Saint Peter, voltou. No caminho encontrou um velho amigo e perguntou aonde ele ia. Disse o amigo que ao céu. Ele lhe explicou então que, sem cavalo, “neca”. O amigo então sugeriu:

– “Olha aqui, Saint Pietro já está velho. Você fica de quatro, eu monto em você. Ele não percebe nada porque já está velho e míope e nós entramos no céu.”

E assim fizeram.
Na porta, o Santo olhou o nosso herói:

“Opa, você de novo? Ah, conseguiu cavalo, heim? Muito bem, amarre aí fora e pode entrar.”

MORAL: BURRO NÃO ENTRA NO CÉU.

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Patrícia Engel Secco (Paradoxos)

A vida parecia cada vez mais complicada para Alberto. Não ruim, pelo contrário, mas cada vez mais difícil.

Há alguns anos, ele não tinha com o que se preocupar… Bastava se entregar aos estudos e às descobertas. Ah! Como ele estava seguro em meio aos seres invertebrados, aos redemoinhos, às constelações, aos tubos de ensaio e aos elementos químicos…

A cada dia que passava, Alberto compreendia mais e mais as razões e o funcionamento de tudo no mundo. Tudo.

A formação do Universo, estrelas anãs e gigantes brancas, buracos negros, novos planetas e até mesmo um novo anel em algum planeta conhecido… Nada passava despercebido para Alberto, que, sem ter muito tempo para atividades que não levassem a alguma conclusão científica, não participava dos jogos do recreio e não usava, de maneira nenhuma, a internet para o lazer e para o diletantismo, atitude que ele considerava simplesmente ultrajante!

Então por que dentre todos os jovens da escola justamente ele tinha sido o escolhido pela mais linda e encantadora menina do grupo?

A vida parecia, sim, mais estranha para Alberto, que, sem entender o porquê de seu comportamento, ficou quase duas horas tentando montar uma imagem real da atmosfera de Saturno, que, recentemente, descobriram ser colorida devido aos gases que a compõem. Uma imagem bela o suficiente para tocar o coração de qualquer menina!

Duas horas perdidas tentando montar uma foto enquanto o mundo científico estava em polvorosa com o registro de uma colisão de galáxias! E ele ainda assim tinha certeza de que o tempo perdido tinha valido a pena!

Alberto guardou com carinho a fotografia em uma pasta e seguiu o caminho da escola, pensando em uma deliciosa frase de seu ídolo maior, Einstein, que naquele momento lhe servia de consolo:

“A verdade científica é sempre um paradoxo se julgada pela experiência cotidiana, que se agarra à aparência efêmera das coisas”.

De acordo com Einstein, são paradoxos a Terra se mover em torno do Sol e a água ser constituída por dois gases altamente inflamáveis…

Quem sabe paradoxos tão grandes como este que ele agora está vivenciando: saber que tudo o que lhe interessa na vida são as explicações científicas e que não existe explicação científica para o que mais lhe interessa neste momento, o amor.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

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Arquivado em Contos

Soares de Passos (Maria, a Ceifeira)

(IMITAÇÃO DE UHLAND)

«Bons-dias, Maria: da lida do prado
«Nem mesmo te afastam cuidados d’amor,
«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado
«A mão do meu filho te quero propor.»

Promessa é do rico, soberbo rendeiro:
Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!
Seus olhos brilharam, seu braço ligeiro
Mais forte nas messes a foice moveu.

Soou meio-dia: que ardente secura:
Já todos demandam a fonte, o pinhal;
Somente nos ares a abelha murmura:
Maria não pára, que é sua rival.

O sol esmorece, bateram trindades:
Debalde o vizinho lhe grita: bastou!
Zagais e ceifeiros se vão às herdades
Maria, coa foice, lidando ficou:

O orvalho desliza; desponta a seu turno
A estrela no espaço, na selva o cantor;
Maria, insensível ao bardo nocturno,
A foice incansável agita ao redor.

Os dias e as noites assim por tais modos,
Nutrida d’amores, mal sente passar,
Três dias findaram: oh! vinde ver todos
Maria ditosa d’esp’rança a chorar.

«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!
«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.
«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;
«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»

Tal disse, e passava… no peito constante,
Ai pobre Maria, que transe cruel!
Teu corpo formoso tremeu vacilante,
E exausta caíste, ceifeira fiel.

Um ano a coitada, sozinha consigo,
Vivendo de frutos, vagou sem falar…
No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:
Ceifeira como esta jamais heis de achar.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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Arquivado em Poesias, Portugal

Simone Pedersen (Ave Maria)

O meu sonho sempre foi ser freira. Chamar-me Maria. Mas nasci com asas, sem ser anjo. Posso me aproximar de Deus de outra forma. Consigo subir até Sua casa.

Antes de a noite acordar pela manhã, as irmãs libertam a respiração do convento pelas janelas: “Tum-tum”, “Tum-tum”, escuto o coração do convento pulsando em reza. Ah, se não fosse ave, seria freira! Como é encantador ouvir os passos delas flutuando pelo piso frio do convento, como se voassem, sem abrir as asas. Logo começam as xícaras a tocar piano e eu sinto o aroma de café.

O convento é um grande ninho onde moram anjos em forma humana. Gosto de sobrevoar os telhados e sentir o calor que irradia pelas suas janelas. O próprio sol visita as suas dependências e depois se esparrama pelos seus pátios e frestas. Fico tão emocionada, que arrulho de encantamento.

Às vezes, sinto saudade do cheiro verde das matas e voo até lá. Como é extasiante sentir odores tão diferentes! A maresia, que salga as narinas. O café quente do convento. Os perfumes de banho dos humanos que andam de um lado para outro, como formigas trabalhadeiras. Sou mesmo uma ave privilegiada, testemunho a história desse povo todos os dias. De um lado, as doces beatas; do outro, o salgado mar de botas molhadas. O vento traz  folhas da mata, que acariciam os rostos dos homens. O chafariz respinga lágrimas de felicidade desse solo abençoado.

Outro dia, muitas nuvens se aproximaram do convento. Extasiada, deitei-me sobre o telhado e permiti que as águas doces me banhassem de todas as minhas decepções. Eu aceitei quem eu era. Como havia pessoas humanas e animais, havia eu, ave. Tantos similares e tantos diferentes, convivendo com árvores e mares, chuvas e risadas. Únicos e realizados. Filhos da natureza. Pais de nossos sonhos.

Eu sempre quis ser freira. Mas nasci ave. Acho que a vida foi muito generosa comigo. Não sou uma pomba qualquer. Sou uma ave brasileira, alegre como uma cigana, viajando entre o mar, a mata e a cidade, em um tapete mágico movido a vento. Sou uma ave maravilhada. Sou uma ave dessa terra santa.

Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51b.html

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Pe. Antônio Vieira (Sermão do Bom Ladrão)

O Sermão do Bom Ladrão, foi escrito em 1655, pelo Padre Antônio Vieira. Ele proferiu este sermão na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e sua corte. Lá também estavam os maiores dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros.

Observa-se que em num lance profético que mostra o seu profundo entendimento sobre os problemas do Brasil – ele ataca e critica aqueles que se valiam da máquina pública para enriquecer ilicitamente. Denuncia escândalos no governo, riquezas ilícitas, venalidades de gestões fraudulentas e, indignado, a desproporcionalidade das punições, com a exceção óbvia dos mandatários do século 17.

Vieira usou o púlpito como arauto das aspirações públicas, à guisa de uma imprensa ou de uma tribuna política. Embora estivesse na Igreja da Misericórdia, disse ser a Capela Real e não aquela Igreja o local que mais se ajustava a seu discurso, porque iria falar de assuntos pertinentes à sua Majestade e não à piedade.

O padre adverte aos reis quanto ao pecado da corrupção passiva/ativa, pela cumplicidade do silêncio permissivo. O sermão apresenta uma visão crítica sobre o comportamento imoral da nobreza, da época.

Eis alguns fragmentos:

Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.
Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno.

Esta pequena introdução serviu para que Vieira manejasse os seus dardos contra aquele auditório repleto pela nobreza. E continuou enfático:

A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se perdoa sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum.

Suposta esta primeira verdade, certa e infalível; a segunda verdade é a restituição do alheio sob pena de salvação, não só obrigando aos súditos e particulares, senão também aos cetros e as coroas. Cuidam ou deveriam cuidar alguns príncipes, que assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo; e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; enquanto lei divina também os obriga; porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles.

Estribado no pensamento filosófico de Santo Tomás de Aquino, de que os príncipes são obrigados a devolver o que tiram de seus súditos, sem ser para a preservação do bem da coletividade, lembrou Vieira terem sido punidos com o cativeiro dos assírios e dos babilônios os reinos de Israel e Judá, porquanto os seus príncipes, em vez de tomarem conta do povo como pastores roubavam o povo como lobos: “Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam” (Ezech. XXII, 27).

Invocando o pensamento de Santo Agostinho, mostrou a diferença entre os reinos, onde se comprovam opressões e injustiças, e as covas dos ladrões: naqueles os latrocínios ou as ladroeiras são enormes; nestes os covis dos ladrões representam-se por reinos pequenos, e comprova essa afirmação narrando de uma passagem histórica com Alexandre Magno:

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Quando li isto em Sêneca não me admirei tanto de que um estóico se atrevesse uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero. O que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nosso oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina.

Prosseguindo ainda nessas considerações, lança verrinas contra os poderosos:

O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.
Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos… Quantas vezes se viu em Roma a enforcar o ladrão por ter roubado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo, um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província?… De Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinário: Nom cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só! Declarando assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse, e digo levam consigo os reis ao inferno.

Novamente Vieira vai invocar as palavras de Santo Tomás de Aquino:

(…) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.

Imprimindo uma faceta satírica e anedótica, Vieira comenta o seguinte episódio:

Dom Fulano (diz a piedade bem intencionada) é um fidalgo pobre, dê-se-lhe um governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contêm nesta piedade? Se é pobre, dê-lhe uma esmola honesta com o nome de tença, e tenha com que viver. Mas, porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico?!

Numa outra parte, ao comentar as investidas portuguesas na Índia, fala sobre a informação de São Francisco Xavier a D. João III, quando aquele santo denunciava que naquela região, bem assim em outras, os responsáveis pela administração pública conjugavam o verbo rapio em dos os modos.

Escreveu Vieira:

O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a). Tanto que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas… Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.

Com coragem e convicção, aponta o seu verbo ao rei de corpo presente:

Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.
Onde encontrar, a não ser num Santo Ambrósio, num São Bernardino de Sena ou num Savanarola, outra voz que terrivelmente assim bradasse perante el-rei conivente de algum modo com as malversações de seus súditos, registrando o pregador, noutro sermão, não se haver sem motivo observado que enquanto os magnetes atraem o ferro, os magnatas atraem o ouro?
O que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos ou é a fazenda real ou a dos particulares; e uma e outra têm obrigação de restituir depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis; ou seja, porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente (que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve advertir uma notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis a e dos particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não são obrigados a restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem com paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles obrigação de restituir a própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou perdoar aos que roubaram. A razão da diferença é, porque a fazenda do particular é sua; a do rei não é sua, senão da república. E assim como o depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de a restituir, assim tem a mesma obrigação o rei que é tutor e como depositário dos bens e erário da república; a qual seria obrigado a gravar com novos tributos, se deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.
Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morreste entre dois ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão; e o primeiro a quem prometeste o paraíso foi outro ladrão; para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com vossa graça a todos os reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in paradiso.

Neste sermão nos vemos diante de um diagnóstico que parece mesmo atemporal, desnudando os desmandos e a mistura dos interesses públicos e privados que infestam a administração pública brasileira desde o início da colonização, contexto em que os Sermões são escritos, até os dias que correm. Note:

O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. (…) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. – Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.

Ele acusa os colonos e os governantes do Brasil de roubarem escandalosamente:

Grande lástima será naquele dia, senhores, ver como os ladrões levam consigo muitos reis ao Inferno: e para esta sorte se troque em uns e outros, vejamos agora como os mesmos reis, se quiserem, podem levar consigo os ladrões ao Paraíso. Parecerá a alguém, pelo que fica dito, que será cousa muito dificultosa, e que se não pode conseguir sem grandes despesas; mas eu vos afirmo e mostrarei brevemente que é cousa muito fácil e que sem nenhuma despesa de sua fazenda, antes com muitos aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que modo? Com uma palavra; mas a palavra de rei. Mandando que os mesmos ladrões, os quais não costumam restituir, restituam efetivamente tudo o que roubaram.

Vieira foi um autor barroco e pode-se encontrar em suas obra as características desse movimento, tais como o uso de contínuas antíteses, comparações, hipérboles etc. Seu texto é essencialmente persuasivo e, enquanto tal, os jogos de palavras obedecem a uma finalidade prática, isto é, a retórica em função de seu discurso crítico. Vieira colocou-se contra o uso da palavra num sentido apenas lúdico, para provocar prazer estético.

Percebe-se que o autor preocupava-se com temas de caráter social e de dimensão política. Neste sermão, ele aproxima e compara a figura de Alexandre Magno, grande conquistador do mundo antigo, com a do pirata saqueador, evidenciando assim sua crítica aos valores morais e sua visão ideológica.

A persuasão em Vieira alcança o raio da alegoria — de resto, um recurso típico da tradição medieval — como reforço à grandeza dos padrões sociais e éticos. Consubstanciada pelo modelo do pregador, alimenta-se também da ironia, da sátira, do ataque (sutil ou explícito) contra vícios morais e administrativos dos representantes do rei na Colônia do Brasil, como citado. O suporte alegórico do bom ladrão é a demonstração pouco corrente, escolhida pelo pregador para testemunhar melhor dos erros de sua época, dos crimes de superiores e nobres e de colonizadores reles, distantes da justiça reinol e divina.

Em seus sermões Vieira mostrava certa independência nas palavras, atitude completamente contrária ao dogma fundamental da Companhia de Jesus, que era o da obediência cega às ordens superiores. Ele trabalhava por conta própria, e pensava mesmo em introduzir reformas na Companhia, coisa que os mais antigos viam com muito maus olhos. Daí resultou que seus superiores lhe ordenassem positivamente que partisse para as missões do Maranhão.

Fonte:
Passeiweb

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Helena Kolody (Flama)

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20 de fevereiro de 2013 · 19:59

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 10. Rufina (3)

Hoje de manhã, ao tomar o bonde, lobriguei lá dentro um vulto de mulher e, com a instantaneidade do raio, enxerguei a imagem de Rufina. Trêmulo, sentei-me, e verifiquei: o vulto era uma velha gorda e tostada. Fechei os olhos, procurei esquecer-me da velha e de Rufina ejusdem farínae, afinal de contas! -e comecei a resolver o seguinte problema: qual seria a renda bruta da companhia, supondo-se que tinha em tráfego quatrocentos bondes, cada bonde transportando em média vinte e cinco passageiros? A questão me interessava, porque estou tratando de redigir uma reclamação para a imprensa contra certas irregularidades do serviço.

-Vejamos. 25 x 200 = vinte por duzentos, que são 4.000, mais… Ru-fi-na… cinco por duzentos, que são mil… Erre, um = Ru…. Quatro mil mais mil, cinco mil; cinco mil que? Ora, o diabo da velha! Cinco mil contos… -Desisti das contas. A matemática é inconciliável com o coração. É inconciliável com a vida.

Como é que Newton pôde ser pai de família, ter uma esposa, ter filhos, ter afetos, preocupações, desejos, e calcular continuamente? Eu, quando alguma vespa me pica, faço até as máquinas de cálculo errar uma adição. Tudo aquilo em que ponho as mãos desconcerta, extravaga. Até o Melquíades, meu servente, que em matéria de calma e paciência e um urso de bazar, fica esparavonado, entorta, arrebita e disparata!

Preciso esforçar-me para me corrigir. Não tanto, porém, que me torne apto a maquinar friamente com a cabeça no meio das tormentas e das delícias da vida. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Eu prefiro sonhar com Rufina a cavar uma celebridade em cálculo diferencial.

Fonte:
Domínio Público

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Praline Gay-Para (Conto da Etiópia: Quem é o Rei?)

Esta é a história de um camponês que de tão pobre estava só pele e osso.

Um dia, sentado à porta de sua velha cabana, viu chegar um caçador montado num cavalo.

O caçador parou, aApeou do cavalo, cumprimentou-o e disse:

— Perdi-me na floresta e estou procurando o caminho que leva à cidade de Gondar.

— Gondar fica a dois dias de viagem — respondeu o camponês. -— O sol já se pôs, seria mais prudente passar a noite aqui e prosseguir amanhã de manhã.

O camponês tinha uma galinha tão magricela quanto ele. Matou-a e a cozinhou para oferecer um bom jantar ao caçador. Ofereceu-lhe ainda sua cama.

De manhãzinha, quando o homem despertou, o camponês explicou a ele como chegar a Gondar:

— Você deve contornar a floresta, evitar as pedreiras, afastar-se dos precipícios, não se perder, seguir a estrada, tomar um atalho…

O caçador ficou preocupado:

— Pressinto que vou me perder novamente. Não conheço a região. Você não poderia me acompanhar até Gondar? É só montar na garupa.

— Está bem — disse o camponês —, mas sob uma condição: quando lá chegarmos, você poderia me apresentar ao rei, que eu nunca vi em toda minha vida?

— Você o verá, prometo a você.

Nosso homem fechou a porta da casa, montou na garupa e lá se foram pela estrada.

Viajaram muito, por muito tempo.

Quando avistaram Gondar, o camponês perguntou ao caçador:

— Como se faz para reconhecer o rei?

— Não se preocupe. Lembre-se apenas disto: enquanto todos fazem a mesma coisa ao mesmo tempo, o rei é o único diferente.

Observe bem as pessoas ao redor e assim o reconhecerá.

Uma hora mais tarde, os dois homens chegaram às imediações do palácio.

Uma multidão se apinhava diante dos portões.

Todos falavam e comentavam as notícias do reino.

Quando viram os dois homens a cavalo, afastaram-se do portão, e se ajoelharam.

O camponês não entendeu nada.

Todos se ajoelharam, menos ele e o caçador, que estavam a cavalo.

— Onde pode estar o rei? — perguntou o Camponês. — Não o vejo.

— Vamos entrar no palácio e lá você o verá — assegurou o caçador.

E os dois homens entraram a cavalo no palácio.

O camponês estava preocupado. Ao longe, viu uma fileira de guardas montados, que os esperavam na entrada.

Os guardas desceram dos cavalos. Ficaram todos a pé. Apenas ele e o caçador continuaram a cavalo.

O camponês irritou-se:

— Você me disse: quando todo mundo fizer a mesma coisa… Onde está o rei?

— Paciência. Você vai reconhecê-lo, lembre-se apenas disto: enquanto todos fizerem a mesma coisa ao mesmo tempo, o rei fará diferente.

O camponês ficou mais perplexo do que nunca.

— Quem pode ser o rei? Ainda não consigo vê-lo.

Os dois homens apearam também. Entraram numa sala imensa do palácio. Todos os nobres, cortesãos e conselheiros tiraram o chapéu
quando os viram. Ficaram todos de cabeça descoberta, exceto o caçador e o camponês, que não sabia por que usavam chapéu ali dentro do palácio.

O camponês se aproximou do caçador e murmurou:

— Não estou vendo o rei.

— Não seja impaciente. Quando todo mundo faz a mesma coisa ao mesmo tempo, o rei é diferente. Logo você acabará por reconhecê-lo. Venha se sentar.

Os dois homens se instalaram num sofá confortável. Todos ficaram de pé em volta deles.

O camponês não parava quieto.

Olhou ao redor, aproximou-se do caçador e perguntou:

— Quem é o rei? É você ou sou eu?

O caçador soltou uma gargalhada e disse:

— Você tem razão, eu sou o rei. Mas você também é um rei, pois soube acolher um estranho.

Como esta história, a amizade deles durou muito tempo, uma amizade real.

E eis aqui o final.

Nota:
Gondar: antiga capital do império da Etiópia, situada a nordeste do lago Tana. Foi ocupada pelos italianos entre meados de 1930 até 1941, ano em que os britânicos a bombardearam. A cidade abriga ruínas do período imperial, bem como vestígios de arquitetura fascista.

Fonte:
Extraído de O príncipe corajoso e outras histórias da Etiópia, Praline Gay-Para, São Paulo, Comboio de corda, 2007.

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Selene de Medeiros (Poesias Avulsas)

DA AGONIA

Sim, tudo morre em mim violáceo o pensamento
Tudo que fui se esvai. o que andei se anuvia
Sol de âmbar, trigo e noite, ave e sombra, errasia
imagem do que amei, nudez e alumbramento,

e em vão me apego à vida e a permanência tento.
Oh!, regatos de ouvir, intangível poesia,
sonhos em migração, lampejo de alegria,
para tão curto andar tão fundo desalento.

Esperança, onde estás? Eu mesma não socorro
esta ânsia de ir-me e vai comigo o tempo e morro
– Tão triste o desprender dos dias que eram teus!

Só vivo o amor e sempre e mais dilacerante . . .
Que silêncio, Deus meu, neste undécimo instante,
que enorme solidão neste chorar de adeus!

DA SOLIDÃO

Ninguém para esperar. Ninguém! abrir a porta
e encontrar o silêncio, o frio, a sombra espessa . . .
Ausente a voz que indaga, o gesto que conforta,
o peito onde pousar ao menos a crença.

Ninguém para esperar, voltar quando amanheça
ou não voltar talvez. E nada, nada importa!
Chorar rebelde e só . . . ninguém que se enterneça
Apenas o ermo, a sombra, o frio, e a casa morta . . .

E entanto ansiar se alguém . . . e o silêncio tão denso
que só na treva pode o desepero imenso
Como sinistro oceano em vadas e entornar . . .

E acabar esta noite, a noite íntima e pura,
com tanta entrega, tanto amor, tanta ternura,
chorando sobre a mesa escondida de um bar . . .

FOLHAS SECAS

Folhas secas . . . Pisai-as , namorados . . .
Ei-las em roda alígera, veloz,
quando estendeis os lábios despertados
para o primeiro beijo dado a sós.

Estais num bosque, em tudo a doce voz
do amor nos ramos altos e abraçados.
E as folhas vêm qual se velhice atroz
as tangesse à quietude dos relvados.

Também elas na seiva e albor de outrora
sentiram beijos quentes noite afora
responer-lhes às ânsias vegetais . . .

Hoje gostam de ouvir beijos de amantes,
e vêm tombar macias, hesitantes,
atapetando o solo que pisais . . .

Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/072-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html

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