Arquivo do mês: setembro 2008

Nilto Maciel (Leste da Morte)

A trama das narrativas de Nilto Maciel freqüentemente se expressa em linguagem poética: “Abriu a porta e o som do piano inundou o mundo. (…) Tateou espaldares de cadeiras. Tocos os dedos numa orelha. Ouviu um muxoxo feminino. (…) Conhecia a música. Talvez de Haendel. Ou seria de Grieg? (…) As mãos do artista. Não, não podiam ser mãos. (…) Sim, eram garras, jamais mãos humanas. Seriam de lobo?” Atmosfera semelhante pode ser encontrada em vários outros momentos do livro. Trata-se de um cadáver ensangüentado, “levado, às escuras, para os confins do cemitério. (…) E o enterraram numa cova aberta às pressas. A leste da morte” (p. 39). Ao escrever sobre incêndio ocorrido num espigão de cimento armado, o salto de uma pessoa para o abismo é visto deste modo pelo autor: “Súbito um corpo apareceu entre a parede do edifício e a eternidade, rodopiou no espaço, na direção da terra”. Para espanto da platéia, o suposto cadáver ergueu-se do chão e saiu andando (p. 43).

Num conto em que narra as peripécias de um mágico supostamente dinamarquês, a cosmovisão do ficcionista desenha poeticamente as façanhas saídas das mãos do prestidigitador: “Uma pombinha surgia trêmula nas mãos do estrangeiro. Batia as asinhas, voava, voava e sumia no céu. Um coelhinho saltava da cartola, olhinhos vermelhos de espanto, focinho inquieto, e as primeiras mãos do povo o agarraram sangrentas” (p. 67).

“Menino Insone” (p. 76) é outra página com todas as peculiaridades de um poema. Os ritmos da narrativa parecem confundir-se com os ritmos da respiração dos personagens. Não se sabe ao certo se o menino está dormindo ou acordado sob “a luz da lamparina (que) bruxuleia”. O irmão menor do menino levanta-se da rede e perambula pela casa, como se acometido de uma crise de sonambulismo. “Permanece de olhos abertos, atento à luz da lamparina, às sombras, aos pequenos ruídos”. É como se um fantasma, expulso dos subterrâneos de um pesadelo, vagasse por aposentos desertos à procura de reminiscências de vidas passadas em outros planetas.

Contos dessa natureza não são raros na ficção de Nilto Maciel. Levam necessariamente o leitor às raízes da chamada literatura do absurdo, na qual se destacam celebridades da estatura de Kafka e de outros mestres do gênero. “Chovia fininho. Um arco-íris enorme cobria a praça, a cidade, a serra, o mundo. (…) Na rede ao lado, o outro menino dormia. Pareceu-lhe ouvir um galo cantar” (p. 77). Em “Chão Pintado de Sangue”, algumas pessoas aplaudiam ou vaiavam “um rapaz de roupas exóticas”, que declamava versos herméticos para uma platéia irreverente: “O poema é um punhal que brilhará na carne dos condescendentes. Seus reflexos parirão estrelas que habitarão o céu. Marinas cintilarão como ametistas nas bocas dos desvalidos. Imensas pérolas de enfeites da grande festa anunciada” (p. 63).

Poderia citar vários outros exemplos da riqueza semântica encontrada no contexto das narrativas de Nilto Maciel. Não o faço por estar convencido de que ao leitor deve caber o privilégio de descobri-los por si mesmo. Até porque, segundo Montaigne, certos leitores são capazes de detectar nos escritos alheios virtudes e perfeições não percebidos pelos próprios autores. Gosto sempre de repetir frase de Drummond, segundo a qual “o romance é a arte de destelhar casas sem que os transeuntes percebam”.

Nilto Maciel é, sem dúvida, um mestre consumado do conto moderno. Não apenas pelo requinte no uso de todas as gradações e alternativas morfológicas da escrita literária. Como também, e sobretudo, pela maneira engenhosa com que disserta sobre tendências e conflitos da subjetividade que navega “a leste da morte”.
Fortaleza, 3 de agosto de 2006.

Narrativa polifônica caracteriza os contos do novo livro de Nilto Maciel
Ronaldo Cagiano • Brasília – DF

Autor de mais de duas dezenas de livros que cobrem diversos gêneros, Nilto Maciel percorre com desenvoltura várias temáticas, sempre se valendo de uma grande flexibilidade de linguagem, técnica e forma e da manipulação de cenários distintos para construir seus personagens e histórias. Em seu novo livro, A leste da morte, ele reúne 47 contos, matizando universos que extrapolam os territórios geográficos, porque são ressonâncias fiéis do psicológico, da memória, das lembranças e imagens ancestrais, que constituem as experiências afetivas, sociais e humanas que habitam a imaginação e são as referências que sustentam o vasto espectro criativo do autor.

Alternando textos breves ou longos com uma prosa que mantém um pé na tradição e outro na modernidade, Maciel consolida sua força narrativa em histórias que filtram a vida, principalmente a vida do interior, onde o autor colhe matéria para uma artesania literária que incorpora, na maioria das vezes, um vezo de surrealismo. Alguns textos têm a duração de um curta-metragem e trazem, nesse breve arcabouço, um mundo coroado de mistério e misticismo, de sagrado ou de profano, de lenda e de folclore, revelando sutilmente a alma sertaneja, distanciando-se dos clichês da escritura regionalista. Não obstante a cor local de seus contos, a dicção niltoniana ultrapassa as fronteiras dessa geografia carregada de mitologias, porque os dramas e acontecimentos retratados são próprios do homem em qualquer circunstância ou lugar, daí a universalidade de seus relatos.

Trem fantasma, texto que nos faz embarcar no conjunto dessas histórias, revela, tanto pela síntese quanto pelo inusitado e pela surpresa, a tendência fabulatória encontrada em muitos textos do autor, que busca na fantasia, no absurdo, na alegoria ou na caricatura um artifício para compreender a realidade. A exatidão minimalista e fotográfica de alguns contos também nos remete a perceber a influência da instantaneidade, peculiar à oralidade e ao coloquialismo encontradiços na rica cultura popular nordestina.

Nilto aproveita a carga metafórica das histórias do mundo anterior que traz no inconsciente e as reinventa, para guiar o leitor por diversas atmosferas. A ambientação da linguagem, embora sem localização territorial, nos faz reconhecer situações presentes no imaginário do homem do interior, em que prevalecem os velhos cacoetes da vida provinciana, dos burgos, do coronelismo e do cangaço, da religiosidade e das crendices, com seus coronéis, suas lutas de poder, em que vida e morte se digladiam em tênue fronteira. Enfim, um esboço típico dos contrastes entre a modernidade e o arcaísmo, aqui amalgamado por um sutil censo de humor e ironia.

O último vôo da rapina, conto em que o personagem principal é o anagrama do abutre, traz como simbologia a luta pela preservação da vida por meio da busca desenfreada da manutenção dos sonhos, num conto de acento hitchcockiano. Outro bom exemplo de tessitura ficcional encontramos em Os urubus e Deus, explícito viés do fantástico. Em outros momentos, Nilto repovoa suas histórias revisitando temas bíblicos, literários e históricos, como em Caim e Abel, O sonho esquecido, O sétimo aniversário de Branca de Neve, Apontamentos para um ensaio e o paradigmático Maneco, futebol e cerveja, reconstrução da decadência de um jogador, numa perfeita analogia sobre a fugacidade da glória e a transitoriedade do infortúnio.

A perícia de Nilto Maciel é marcante na confecção de Águas de Badu, ao utilizar-se da transcriação literária para dialogar com a profundidade narrativa de Guimarães Rosa, invocando os paradigmas de O burrinho pedrês. E no peculiar O livro infinito, uma espécie de conto dentro do conto, transita pela história, pela literatura, pela música, etc., num espectro em que se discute a própria arte. Impende dizer que para atingir o ápice ou convencer o leitor, Maciel não se vale de nenhum recurso estrambótico, como rupturas ou outros artifícios experimentais de linguagem. Sua prosa se revela moderna, mas sua estrutura é clássica, tradicional, porque o que importa para o autor é o domínio do conteúdo e não o extravasamento da forma.

A leste da morte é um caleidoscópio de temas e situações que consolidam a trajetória de Nilto Maciel, um autor que há três décadas vem se dedicando de corpo e alma à literatura e a cada novo livro, com seu timbre, suas vozes e seu sutil censo de observação, se afirma como um habilidoso artista, que conta e reconta as delícias e asperezas da vida, expondo as grandezas e misérias humanas, com inegável destreza literária.

Fontes:
Francisco Carvalho. in http://www.vastoabismo.xpg.com.br
Ronaldo Cagiano in http://www.bestiario.com.br

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Nilto Maciel (Paisagem Celeste)

Pé ante pé, mão a roçar a parede, Luís deixou o quarto, passou pelo corredor e alcançou a ante-sala. Em cada mão um sapato. Parou, conteve a respiração, desceu o primeiro degrau e o segundo. Olhou para trás. Tudo calmo. Levou a mão à porta. Nada de barulho ao retirar a trave. Se Maria ou os filhos acordassem, inventaria alguma desculpa: esquecera de trancar a porta. E voltaria à rede. Sondou de novo a retaguarda: a parca luz da lamparina se infiltrava pela brecha da porta e alumiava uma nesga de chão do corredor. Ninguém tossia nem roncava. Dormiam sonos profundos, talvez. Retirou, com cautela, a trave e a pôs no chão, em posição vertical. Se tombasse, todos acordariam. Deu uma volta à chave, mais uma, retirou-a da fechadura e a colocou num bolso. Abaixou-se para levantar o ferrolho, voltou à posição normal, puxou com leveza a tábua da porta, olhou para os dois lados da rua, fez o movimento contrário na madeira e desceu o degrau para a calçada. Meteu no bolso a mão, à cata de cigarros. Não, a fumaça inundaria a casa, pelas brechas da porta. Caminhou a passos largos no rumo da igreja matriz.

Necessitava caminhar muito, cansar, sentir vontade de dormir. Não suportava mais tantas noites sem sono, a se revirar na rede. Quando a claridade da aurora se anunciava no telhado, mal agüentava espiar os punhos da rede, a cabeça a lhe doer, o corpo quente, febril. Embora assim, carecia se banhar, tomar café, caminhar até a mercearia e passar mais um dia sem ânimo, nem para as conversas sem fim com os amigos de sempre. Ao chegar à pracinha, sentou-se num banco. As luzes dos postes lhe faziam mal. Tossiram numa das casas. Tratou de deixar o banco e se pôs a caminhar entre as árvores, pelas calçadas internas do logradouro. Viu-se diante do coreto. Há quanto tempo não o via! Talvez nunca tivesse passado ao seu interior. Um cachorro dormia debaixo de um banco e se assustou ao ver aquele guarda-noturno estranho. Fez menção de se erguer e correr. Luís o tranqüilizou. Ficasse ali mesmo, não lhe ia fazer mal. O cão mirou os olhos do homem, que deu meia-volta e se retirou. Nada de confusões, fosse com bichos, fosse com gente. Precisava de solidão, paz e silêncio. Para onde iria? Talvez para a mercearia. Não, aquilo não. Os vizinhos acordariam e suspeitariam de arrombamento. Além do mais, já passava os dias enfurnado entre sacos de arroz e fardos de algodão. Tomou o rumo da rua paralela àquela pela qual ia e vinha duas vezes por dia. Na calçada outro cachorro deitado junto à parede. Passou para o meio da rua. Avistou, ao longe, as torres da matriz. O relógio indicava 12 horas e 45 minutos. Se encontrasse a porta entreaberta, ajoelharia diante do altar e rezaria. Talvez não. Há anos não assistia à missa. Até já o chamavam de ateu. E por que não subir a serra? Apressou o passo. Sim, rumar pela estradinha escura e depois se meter no mato, procurar algum riacho, alguma cachoeira. A Lua apareceu atrás do Pico Alto. Pôde ver com clareza o chão coberto de folhas secas e gravetos. Ia necessitar de muito fôlego para subir a ladeira. Daquele jeito, fumando muito, bebendo genebra todo dia, não chegaria longe. Mas precisava daquilo, os negócios iam mal, os filhos mais velhos só lhe davam desgostos, Maria não lhe apetecia mais. Há quanto tempo não se encostavam um no outro? Ela num quarto, ele noutro. Conversavam apenas o necessário, quando muito. Discutiam por qualquer ninharia. Não se miravam nunca. Dormir como qualquer outro – impossível. Estacou diante de uma vereda. Examinou a ribanceira. Chiado de água a escorrer. Apalpou o chão com os pés e se pôs a descer. Rastejariam serpentes por ali? Armou-se de um pedaço de pau. Serviria de cajado. Maria teria despertado? E os filhos pequenos? Quando acordassem e o não vissem… Não, nunca o viam ao amanhecer. Ainda dormiam quando saía para trabalhar. Mesmo assim, prometia voltar antes de o sol raiar.

Sentou-se ao pé de uma rocha. Açoitou o chão com o galho seco. Nada de bichos por perto. Olhou para o alto. A Lua vagava entre nuvens. Acendeu um cigarro. Bater de asas ao seu derredor. Pios de protesto. Jogou fora a ponta acesa e a esmagou com o pé. Deitou-se e se pôs a admirar a Lua, como há muito não fazia. São Jorge num cavalo enfrentava um dragão. Nuvem enorme encobriu soldado e animais. Luís fechou os olhos. Aquela peleja não acabava nunca. Ou não passava de pintura, paisagem celeste? Rodavam no espaço desde o início. E rodariam até o fim.Quando abriu os olhos, uma nesga de sol se filtrava entre as telhas do quarto. Estremeceu na rede e viu Maria a fugir feito fantasma, de volta ao outro quarto. Já voltei da serra?
(Agosto/ 2003)

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre, RS: Ed. Bestiário, 2006.

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Nilto Maciel (Livro Infinito: Mensagem)

Como costumava fazer durante as manhãs de sábado, Antônio Sollos, em pé, folheava livros desde cedo, numa livraria. Nada de praias, bares, visitas a parentes. Buscava novidades e antigüidades. O novo contista, o romancista esquecido, o escritor de sua predileção. Agarrou com unhas e dentes um volume de contos de Kafka. Queria conhecer “Durante a Construção da Grande Muralha da China”. Cheirou o livro, como se fosse um charuto, admirou a capa e se pôs a ler um trecho: “O imperador – assim consta – enviou-te, a ti, a ti que estás só, tu, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a ti o imperador enviou do leito de morte uma mensagem.” Desde a chegada, não via freguês. Apenas vendedores. Alguma novidade? Muitas, muitas, Seu Sollos. Ouviu vozes de quem entrava na loja. Voltou ao livro: “Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto”. As vozes e o arrastar de pés calçados o fizeram levantar a vista. Não conseguiu distinguir de quem eram. Vozes de mulher e homem. Um casal, certamente. Gostou da voz dela. Até lhe lembrava uma voz doce de uns tempos passados. O som dos passos se aproximaram dele. Sondou os arredores. O casal só podia estar do outro lado da estante. Ergueu-se nas pontas dos pés. Viu uma testa robusta, corada, de homem, e uns fios de cabelos quase louros, lindos. Abaixou-se e, pela brecha da prateleira, viu uns lábios rubros que parecia sorrirem para ele. Descontrolado, largou o livro e se pôs a caminhar lentamente pelo estreito corredor. Ao fim dele, virou para a esquerda e parou. A dois ou três metros, avistou o homem de lado, mãos erguidas na direção da prateleira. Só podia ser o marido de Ana. A mulher ao lado dele seria, então, Ana. Não queria revê-la. E se voltou, para atravessar a sala pelo corredor perpendicular àquele em que o casal se achava. Saiu apressado, disposto a fugir. No entanto, antes de alcançar a porta, se viu frente a frente com Ana. Quis sorrir, olhou para os lados, cumprimentou-a com duas palavras, contemplou os olhos dela e saiu da loja.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre, RS: Ed. Bestiário, 2006.

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Feira de Livros em Maringá

De 29 de setembro a 03 de outubro (segunda à sexta), acontecerá a Feira de Livros, promovida pelo SESC, com apoio da Academia de Letras de Maringá.

PROGRAMAÇÃO:

29 DE SETEMBRO – Segunda-feira
– 9 e 10 horas – Apresentação/contação de histórias
Cia. Fanto Kid’s: Na mala há histórias. Contadores: Danilo Furlan e Ro Fagundes.

– 12 horas – Performance literária: Dom Casmurro e o Cortiço
Cia. Célula Adiposa. Produtora: Ligia Souza.

– 13h30 às 17h30 – Oficina de Haicai com a escritora Neide Rocha Portugal, Membro Correspondente da ALM.

– 20 horas – Palestra interativa. Mediadora: Lucia Bittencourt – RJ. Local: SESC-Maringá.

30 DE SETEMBRO – Terça-feira

– 10 e 15 horas – Espetáculo de bonecos: Montando Lobato.
Bonequeiro: Elcio Di Trento – Curitiba – PR

– 20 horas – Seminário de literatura. Tema: Os vários olhares da Literatura.

– 20 horas – Workshop e bate-papo com educadores: Da Narrativa ao Livro – A Arte de Contar Histórias

Mesa redonda 01: Mídia, Literatura e Violência.

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– Tema: Indústria Cultural como Mensagem à Violência.
Mediador: Professor Dr. Luiz Hermenegildo Fabiano, Doutor em Educação – UEM.

– Tema: Violência Étnica.
Mediadora: Aracy Adorno Reis, Especialista em Cultura Africana e Relações Inter-Étnicas.

– Tema: Um Olhar sobre Produção de Telas.
Mediador: Professor Dr. Raimundo Lima, Doutor em Educação – UEM.

1º. DE OUTUBRO – Quarta-feira

– 9, 10, 14 e 15 horas – Apresentação/contação de histórias: Donas Palavrinhas e Suas Conversinhas – poesia para crianças e o show Contarolando.
Contador: Guga Cidral, artista educador – Curitiba – PR

Mesa redonda 02: Mídia, Turismo e Literatura.

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– Tema: Santiago de Compostela.
Mediador: Professor Dr. Luiz Giani, Doutor em Educação – UEM.

– Tema: Turismo Cultural.
Mediador: Professor Ms. João Santos, Mestre em Educação, História e filosofia da Educação – UEM.

– Tema: Literatura Indígena.
Mediadora: Professora Ms. Sheilla Dias de Souza, Mestre em Artes Visuais.

02 DE OUTUBRO – Quinta-feira

– 9, 10, 14 e 15 horas – Espetáculo de contação de histórias: Fantasia e Histórias que a Vovó Contava
Cia. Pedras. Contadores: Iara Ribeiro e Adriano Braga – Maringá – PR

Mesa redonda 03: Mídia, Literatura e Ideologia.

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– Tema: Olhar sobre a Cegueira (José Saramago).
Mediador: Professor Dr. Walter Lúcio de Alencar Praxedes, Doutor em Educação – UEM.

– Tema: Quarto de Despejo (Carolina Maria de Jesus).
Mediador: Professor Dr. Fábio Viana Ribeiro, Doutor em Sociologia – UEM.

– Tema: Poesia e MPB.
Mediador. Professor Dr. Marciano Lopes e Silva, Doutor em Letras – UEM.

03 DE OUTUBRO – Sexta-feira.

– 9 horas e 14 horas – Espetáculo de contação de histórias: Chuva de Cores (Espaço Sou Arte).
Contadora: Raquel Cruz – Campo Mourão – PR

Mesa redonda 04: Mídia, Misticismo e Literatura.

– Tema: Literatura e Mídia.
Mediadora: Professora Dra. Mirian Zappone, Doutora em Literatura.

– Tema: Mídia.
Mediadora: Professora Dra. Fátima Maria Neves, Doutora em Educação.

– Tema: Teatro como formação da consciência.
Mediador: Professor Ms. Jorge Henrique Lopes, Mestre em educação para a Ciência.

PARTICIPAÇÃO GRATUITA. INFORMAÇÕES: (44) 3262-3232

Fonte:
E-mail enviado por Olga Agulhon, membro da Academia de Letras de Maringá

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Silmar Bohrer (Trovas)

A vida anda tão restrita,
tão restrita anda a vida
e eu ainda busco guarida
nesta senhora mal-dita.

Escreveu o romancista,
“o homem, poliedro imenso”,
milhares de faces a vista
que não chegam ao consenso.

Fazemos versos “a revirias”
eu e o escriba bissexto,
versejando todos os dias
até praticamos incesto.

Ando à procura no mundo
do veio dos ventos uivantes,
aqueles mesmo, ventantes,
os tais ventos giramundo.

Estou com os livros – meu mundo,
embrenhado na biblioteca,
onde o silêncio é profundo
e o grito é baixinho – heureca !

Mesmo atrelado aos tais
ditames da pura Razão
não renunciarei jamais
às doçuras do coração.

Caneta, a pecinha realeza
que pereniza meus versos,
captando comigo a sutileza
na lonjura dos universos.

Tenho tido gostado de ser
assim como tenho sido,
um ser que se passa esquecido
desde a manhã ao anoitecer.

Haverá melhor gostosura
nestes tempos setembrinos
do que os ares assobiolinos
que deixaram a clausura ?

A nuvenzinha no céu
parece não ter intentos
vai graciosa pra dedéu
invadindo os pensamentos

Sendo louco pela vida
minhas idéias se consomem
quando vejo tanta ferida
exposta pelo bicho-homem

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Ialmar Pio Schneider (Trovas)

Trova vencedora do Concurso de Trovas
Centenário de José Barros Vasconcellos
União Brasileira de Trovadores – UBT Porto Alegre – RS
Âmbito Estadual – Tema TERNURA

Neste mundo de tormentos,
Apesar da vida dura,
Nunca faltem os momentos
Para o culto da ternura !…
Ialmar Pio Schneider (Porto Alegre – RS)

Troféu João-de-Barro, no Piquete da Cavalhada no Acampamento Farroupilha.

Mistura de mágoa e tédio,
Esta carência de amor:
E se tomo algum remédio
Mais aumenta minha dor…
=====================
Poeta, advogado, cronista e bancário aposemntado, nasceu no município de Sertão, RS, em 26/8/1942. Residiu por mais de 20 anos em Canoas, e atualmente reside em Porto Alegre. Entidades a que pertence: Casa do Poeta Rio-Grandense, União Brasileira de Trovadores – Sede de Porto Alegre, Grêmio Literário Castro Alves, Agei – Associação Gaúcha dos Escritores Independentes, Casa do Poeta de Canoas, entre outras.

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Ialmar Pio Schneider (Sonetos Avulsos)

Nosso Caminho

Envio-lhe estes versos com saudade
dos momentos felizes
de serenidade
ou deslizes…
Tudo é possível quando nos visita
uma paixão avassaladora,
inaudita
e sedutora…
Um sonho se descortina
em nosso caminho
e nos fascina
pelo carinho…
Quando estivermos juntos e unidos
vamos sempre lembrar
que fomos concebidos
para viver e amar…
=================
Soneto a uma Musa

Simplesmente me olhaste com meiguice
e me disseste: – Como vais, poeta !
Eu respondi com minha voz discresta:
– Vou indo mais ou menos… Assim disse…

Depois te foste como quem partisse
quase infeliz, oh musa predileta,
és tu que minha vida desinquieta
nas horas de incerteza e de crendice.

Hás de viver comigo e nos meus sonhos
serás a inspiração que me seduz
nos momentos amargos ou risonhos.

Vou te guardar pra sempre inalterada
porque quando te vejo surge a luz
que vem clarear a escuridão da estrada.
=======================
Soneto da Angústia

Acendo bruscamente o meu cigarro
e penso no futuro que me esperas…
Oh! sem querer numa ilusão esbarro
e tropeço num mundo de quimeras !

Por que, mísero ser, feito de barro,
hei de sonhar eternas primaveras,
e na vida sem léu a que me agarro,
pensar que tu serias o que não eras ?!

E viverás sorrindo ao gosto amargo
do sonho que me mata noite e dia
e faz-me mal viver neste letargo,

nesta angústia que a alma me excrucia.
Enquanto esta fumaça aos ares largo
te lembro bela, cálida e sadia.
=======================
Soneto

Enquanto a gente cai e se levanta
não há motivo de parar na viagem,
mas quando já nos falta até coragem
para seguir em frente, não adianta.

Feliz daquele que sofrendo canta
e traz ao mundo varonil mensagem,
pois leva sobre todos a vantagem
de amar a mesma mágoa que acalanta.

Jamais encontraremos solução
às coisas desastrosas desta terra,
porque é um combate inglório, louco e vão,

repleto de terror que nos aterra,
de ver o irmão matar ao próprio irmão
numa hecatombe irracional da guerra.
=====================
Soneto Antigo

Cinza a fumaça rolará nos ares
e irá perder-se inutilmente louca
como as notas fatais dos meus cantares,
deixando um amargume em minha boca.

Tento esquecer teus lânguidos olhares
e a tua imagem com calor evoca
paisagens longas de distantes mares
pra onde a sereia meu ardor desloca.

Não é possível te olvidar, querida,
nem tenho culpa de te amar assim
com toda a força do meu triste peito…

Dá-me a alegria de levar a vida
por entre as flores de um taful jardim
e seguirei contente e satisfeito…
====================
Soneto a uma Fada

Fazes de conta que jamais me viste
e eu também finjo que não te conheço;
nossa união terminou sem ter começo
e eu continuo, como sempre, triste.

O que tu prometias não cumpriste;
mas esquece-me, então, pois eu te esqueço;
isto conosco foi mais um tropeço;
vamos saber qual de nós dois desiste.

Quero descrer de ti, não mais te amar;
porém, tudo me leva à tua presença
e por nada te posso condenar.

Foste uma Fada que surgiu voando
e não trouxeste, enfim, a recompensa
ao poeta que vive te adorando…
====================

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História do Soneto

Sonetos no mundo

Ao que tudo indica, o soneto – do italiano sonetto, pequena canção ou, literalmente, pequeno som – foi criado no começo do século XIII, na Sicília, onde era cantado na corte de Frederico II da mesma forma que as tradicionais baladas provençais. Alguns atribuem a Jacopo (Giacomo) Notaro, um poeta siciliano e imperial de Frederico, a invenção do soneto, que surgiu como uma espécie de canção ou de letra escrita para música, possuindo uma oitava e dois tercetos, com melodias diferentes.

O número de linhas e a disposição das rimas permaneceu variável até que um poeta de Santa Firmina, Guittone D’Arezzo, tornou-se o primeiro a adotar e aderir definitivamente àquilo que seria reconhecido como a melhor forma de expressão de uma emoção isolada, pensamento ou idéia: o soneto. Durante o século XIII, Fra Guittone, como era conhecido, criou o soneto guitoniano, padronizado, cujo estilo foi empregado por Petrarca e Dante Aligheri, com pequenas variações. Tais sonetos são obras marcantes, se considerarmos as circunstâncias em que eles surgiram.

O nome mais associado aos primeiros desenvolvimentos da forma do soneto na Itália, é claro, é Francesco Petrarca (1304-1374). Em 1326, após a morte de se pai, ele se mudou de Arezzo na Toscana para Avignon. Ali começou o seu singelo amor por uma mulher conhecida como Laura, a quem ele endereçou seus poemas. Ele é lembrado como o fundador do movimento humanista, acreditando na continuidade entre a cultura clássica e a mensagem de Cristo. Em 1337 ele deixou Avignon por Vaucluse, um lugar de retiro, onde ele produziu muito de seus maiores trabalhos. Em setembro de 1340 ele recebeu convites tanto de Paris quanto de Roma para ser coroado como poeta; ele escolheu Roma. (…) A ele é creditada a primeira forma conhecida do soneto: As catorze linhas divididas em duas estrofes, uma oitava com o posicionamento das rimas abbaabba e um sexteto com o posicionamento variável – cdecde, ou cdcdcd, ou cdcdce, ou qualquer outro arranjo, que nunca termina num par de versos. A oitava apresenta o tema ou problema do poema e o sexteto apresenta uma mudança no pensamento ou a resolução do problema. Seu Canzoniere contém 317 sonetos, coletânea de poesia que exerceu inflência sobre toda a literatura ocidental. As melhores poesias desse livro são dedicadas a Laura de Novaes, por quem possuía um amor platônico. Destacam-se os recursos metafóricos e o lirismo erótico dos sonetos.

Quando estes sonetos foram trazidos para a Inglaterra, junto a outras formas italianas de versos, por Sir Thomas Wyatt (1503-1542) e Henry Howard, conde de Surrey (1517-1547) no século XVI, eles foram modificados para o que hoje é conhecido como a forma Shakesperiana: esta possui três quartetos, cada um com um posicionamento de rimas independente, e termina com um par de versos rimado (abab;cdcd;efef;gg). Mais uma vez, os sonetos geralmente formavam uma uma seqüência de conjuntos independentes mas relacionados de poemas de amor. Um antigo exemplo é a obra Astrophel e Stella (1591) de Sir Philip Sidney. Os próprios 154 sonetos de Shakespeare foram publicados em 1609, embora suas datas de composição sejam desconhecidas.

A outra forma inglesa do soneto é chamada a forma Spenseriana, por causa de Edmund Spenser (1552-1599). Sua obra de mestre foi The Faire Queen, cuja primeira edição foi publicada em 1609. Ele publicou versões inglesas de poemas do poeta francês do século XVI Joachim du Bellay, e de uma versão francesa de um poema de Petrarca em 1569, quando ele entrou no Pembroke Hall da Universidade de Cambridge. (…) Em 1595 ele publicou Amoretti, uma seqüência de sonetos. A forma Spenseriana tem três quartetos e um par rimado ao final, mas o posicionamento das rimas é intercalado: abab;bcbc;cdcd;ee.

A forma Petrarquiana do soneto continuou a ser usada por poetas ingleses; ela também foi revivida em meados do século XIX, por exemplo por Elizabeth Barrett Browning em Sonnets from the Portuguese (1850) (Isto não significa que os 44 poemas são traduções dos originais em português – “The Portuguese” foi o apelido que Robert Browning deu a ela!). William Wordsworth também empregou esta forma, por exemplo em The World is Too Much with Us, como fez John Keats. (…) John Berryman achou esta uma forma tentadora para escrever os seus 115 sonetos eróticos.

A forma do soneto também penetrou em outros idiomas – francês, onde o verso decassílabo foi substituído por uma linha dodecassílaba, porque ela se encaixava melhor com a linguagem; alemão, polonês e outros idiomas eslavos.

Uma das mais modernas seqüências de sonetos é Die Sonnette an Orpheus (Sonetos a Orfeu) escrita por Rainer Maria Rilke (1875-1926). Este ciclo de 55 poemas foi publicado em 1923. A forma que ele usa é de certa forma diferente. As linhas são decassílabas, mas os poemas consistem de quatro estrofes: dois quartetos e dois tercetos, e o posicionamento das rimas varia: abab;cdcd;eff;gge, ou abba;cddc;efg;gfe, ou abba;cddc;efe;gfg, ou abab;cdcd;eef;ggf. Existem outras variações, porém isto depende do tipo de licença poética que o poeta se permite, sem perder a estrutura disciplinada da forma.

Dante Alighieri, o autor da consagrada “A Divina Comédia”, e também um seguidor de Guittone, em sua infância já compunha sonetos amorosos. Seu amor impossível por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari) foi imortalizado em vários sonetos em “Vita Nuova”, seu primeiro trabalho literário de grande importância.

Anos se passaram até que dois ícones da literatura mundial, um inglês e um português, deram ao soneto, cada um ao seu modo, o toque de mestre: William Shakespeare e Luis de Camões.

Camões freqüentou a nobreza em Portugal, mas foi exilado por suas posições políticas. Passou alguns anos na prisão, de onde saiu com “Os Lusíadas”, uma obra que o colocou entre os maiores poetas de todos os tempos. Apesar disso, morreu pobre. Escreveu diversos sonetos, tendo o amor como tema principal.

Luis de Camões

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Shakespeare, além de teatrólogo, desenvolveu uma habilidade única na poesia. O seu soneto, o soneto inglês, é composto por três quartetos e um dístico, diferente da composição original de Petrarca. O mais célebre dos escritores ingleses escreveu diversos poemas, alguns deles recheados de metáforas. Curiosamente, sua obra Romeu e Julieta destaca um soneto, bem no início do diálogo entre os seus protagonistas…

William Shakespeare

NUM SALÃO DA CASA DOS CAPULETOS

ROMEU (a Julieta)
Se minha mão profana o relicário
em remissão aceito a penitência:
meu lábio, peregrino solitário,
demonstrará, com sobra, reverência.

JULIETA
Ofendeis vossa mão, bom peregrino,
que se mostrou devota e reverente.
Nas mãos dos santos pega o paladino.
Esse é o beijo mais santo e conveniente.

ROMEU
Os santos e os devotos não têm boca?

JULIETA
Sim, peregrino, só para orações.

ROMEU
Deixai, então, ó santa! que esta boca
mostre o caminho certo aos corações.

JULIETA
Sem se mexer, o santo exalta o voto.

ROMEU
Então fica quietinha: eis o devoto.

Desde então, o soneto adquiriu importância ao redor do mundo, tornando-se a melhor representação da poesia lírica. Alguns casos são notáveis: o poeta russo Aleksandr Pushkin compôs Eugene Onegin, um poema repleto de sonetos adotado por Tchaikovsky para compor uma de suas óperas; o francês Charles Baudelaire ajudou a divulgar os versos alexandrinos em Les Fleurs du Mal. Até Vivaldi usou-se de sonetos.

Charles Baudelaire

Teu olhar me diz, claro como cristal:
“Bizarro amante, o que há em mim que mais te excita?”
– Sê bela e cala! O meu coração, que se irrita,
Por tudo, exceto a antiga candura animal,
.
Não te quer revelar seu segredo infernal,
Embalo cuja mão a um longo sono incita,
Nem a sua negra lenda a ferro e fogo escrita.
Abomino a paixão e a alma me faz mal!
.
Amemo-nos em paz. Amor, numa guarida,
Tenebroso, emboscado, entesa o arco fatal.
Conheço-lhe os engenhos do velho arsenal:
.
Crime, horror e loucura! – Ó branca margarida!
Não serás tu, como eu, triste sol outonal,
Ó minha branca, ó minha branca Margarida?

E por falar em versos alexandrinos, utilizados por muitos sonetistas, eles remontam – segundo alguns dicionários da língua portuguesa – a uma obra francesa do século XII chamada Le Roman d’Alexandre, e significam versos de doze sílabas poéticas. Porém, os dicionários da língua espanhola – apesar de apontarem para a mesma origem – insistem em afirmar que os versos alexandrinos são aqueles que contêm catorze sílabas gramaticais.

Finalmente, após aderir ao humanismo e ao estilo barroco, o poema dos catorze versos acabou sendo desprezado pelos iluministas. No século XIX, ele voltou a ser cultivado, com mais fervor, por românticos, parnasianos e simbolistas, sobrevivendo ao verso livre do modernismo – que viria em seguida – até os dias atuais.

Sonetos no Brasil

Gregório de Mattos foi um dos primeiros sonetistas em terras brasileiras. Nascido na Bahia, revoltou-se contra o governo e a Igreja e passou a escrever obras satíricas, algumas de caráter pornográfico. Era conhecido como “Boca do Inferno” por seus versos e chegou a ser denunciado à Inquisição. Sua obra “Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado” é uma das que mais aparecem nas provas de vestibular.

A uma dama dormindo junto a uma fonte

À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,

Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.

Quando o arcadismo apareceu no Brasil, quase ao mesmo tempo que em Portugal, um de seus representantes foi o mineiro Cláudio Manuel da Costa, que em Vila Rica (Ouro Preto) juntou-se a Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga foi outro sonetista de grande importância e autor da obra que o tornou o mais famoso dos árcades brasileiros: “Marília de Dirceu”. Ambos foram presos acusados de terem participado da Conjuração Mineira.

Cláudio Manuel da Costa

V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

Tomaz Antônio Gonzaga

Marília de Dirceu
Soneto 5

Ao templo do Destino fui levado:
Sobre o altar num cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anúncio do futuro estado.

Tiro um papel e lio – céu sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Este duro decreto escrito estava
Com negra tinta pela mão do fado:

“Adore Polidoro a bela Ormia,
sem dela conseguir a recompensa,
nem quebrar-lhe os grilhões a tirania.”

Dar mãos Amor mo arranca, e sem detença,
Três vezes o levando à boca impia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.

O romantismo em seguida viria a conhecer diversos imortais da poesia. Compuseram sonetos Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Augusto dos Anjos, Castro Alves entre outros. Suas obras ilustram as três fases da era romântica, período cuja importância literária promoveu uma verdadeira revolução na cultura brasileira.

Gonçalves Dias

Pensas tu, bela Anarda, que os poetas
Vivem d’ar, de perfumes, d’ambrosia?
Que vagando por mares d’harmonia
São melhores que as próprias borboletas?

Não creias que eles sejam tão patetas.
Isso é bom, muito bom mas em poesia,
São contos com que a velha o sono cria
No menino que engorda a comer petas!

Talvez mesmo que algum desses brejeiros
Te diga que assim é, que os dessa gente
Não são lá dos heróis mais verdadeiros.

Eu que sou pecador, – que indiferente
Não me julgo ao que toca aos meus parceiros,
Julgo um beijo sem fim cousa excelente.

Álvares de Azevedo

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando…
Negros olhos as pálpebras abrindo…
Formas nuas no leito resvalando…

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti – as noites eu velei chorando,
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!

Fagundes Varela

Desponta a estrela d’alva, a noite morre.
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando corre.

Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.

Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
Às carícias da aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!

Porém minh’alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
– Oh! mundo encantador, tu és medonho!

Augusto dos Anjos

A Árvore da Serra

– As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho…
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

– Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros… no junquilho…
Esta árvore, meu pai, possui minh’alma! …

– Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Castro Alves
.
Aqui, onde o talento verdadeiro
Não nega o povo o merecido preito;
Aqui onde no público respeito
Se conquista o brasão mais lisonjeiro.

Aqui onde o gênio sobranceiro
E, de torpes calúnias, ao efeito,
Jesuína, dos zoilos a despeito,
És tu que ocupas o lugar primeiro!

Repara como o povo te festeja…
Vê como em teu favor se manifesta,
Mau grado a mão, que, oculta, te apedreja!

Fazes bem desprezar quem te molesta;
Ser indif’rente ao regougar da inveja,
“Das almas grandes a nobreza é esta.”

Olavo Bilac introduziu o parnasianismo em seus sonetos grandiosos pela devoção ao culto da palavra e ao estudo da língua portuguesa. É o autor do “Hino à Bandeira”. Juntos a ele escreveram sonetos Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraes, esse último representante do simbolismo e um dos autores que apresentaram maior misticismo em nossa literatura.

Olavo Bilac

I
Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a… Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria…

Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando…

Cruz e Souza

Sonho Branco

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas no meu peito!…
És do Luar o claro deus eleito,
Das estrelas puríssimas nascido.

Por caminho aromal, enflorescido,
Alvo, sereno, límpido, direito,
Segues radiante, no esplendor perfeito,
No perfeito esplendor indefinido…

As aves sonorizam-te o caminho…
E as vestes frescas, do mais puro linho
E as rosas brancas dão-te um ar nevado…

No entanto, Ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!

Alphonsus de Guimaraes

II
Celeste… É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste…
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?

Celeste… E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.

Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.

E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.

Do pré-modernismo e do modernismo, estilo que perdura até hoje, surgiram escritores célebres. Alguns exemplos de sonetistas são Machado de Assis (com sua maravilhosa obra “A Carolina”):

Machado de Assis

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Fernando Pessoa

Há um poeta em mim que Deus me disse…

Há um poeta em mim que Deus me disse…
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efêmera e espectral ledice…

Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos…
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse…

Florir do dia a capitéis de Luz…
Violinos do silêncio enternecidos…
Tédio onde o só ter tédio nos seduz…

Minha alma beija o quadro que pintou…
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e vôo…

Carlos Drummond de Andrade

Legado

Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

Manuel Bandeira

Sonho Branco

Não pairas mais aqui. Sei que distante
Estás de mim, no grêmio de Maria
Desfrutando a inefável alegria
Da alta contemplação edificante.

Mas foi aqui que ao sol do eterno dia
Tua alma, entre assustada e confiante,
Viu descender à paz purificante
Teu corpo, ainda cansado da agonia.

Senti-te as asas de anjo em mesto arranco
Voejar aqui, retidas pelo aceno
Do irmão, saudoso de teu riso franco.

Quarenta anos lá vão. De teu moreno
Encanto hoje resta? O eco pequeno,
Pequeno de teu sonho – um sonho branco!

Vinícius de Moraes

Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Os sonetos atravessaram a história, vencendo prisões e guerras, cantando o amor e a arte. Tornaram-se o vício de uma geração. Rimando ou não, tocaram (e tocam) corações por todas as culturas e países, principalmente o Brasil. Ao mesmo tempo curtos e elaborados, eles são sem dúvida a expressão maior da dedicação de escrever versos. Tal dedicação cantou Olavo Bilac em sua obra “Profissão de fé”:

Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que êle, em ouro, o alto-relêvo
Faz de uma flor…”

Fontes:
Bernardo Trancoso. In http://www.sonetos.com.br/
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/
Desenho http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

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Braz Chediak (Trovas de A a Z)

Atirei um céu aberto
na janela de meu bem:
Quando as mulheres não amam,
que sono as mulheres têm!
(Manuel Bandeira)

Bicho que anda de noite,
de dia o rasto consome:
Nunca vi rasto de alma
Nem coro de lobisomem.
(Minas Gerais)

Com pena peguei na pena
com pena de escrever;
a pena caiu no chão
com pena de não te ver.
(Piauí)

De manhã encilho o pingo,
Solto o poncho estrada fora;
canta o galo, chora a china
que o gaúcho vai-se embora.
(Rio Grande do Sul)

Entre os suspiros do vento,
da noite ao mole frescor,
quero viver um momento,
morrer contigo de amor!
(Álvares de Azevedo)

Farinha com rapadura
Nagua fria faz geleia;
tomo a bença, chamo a tia
quando vejo muié véia.
(Minas Gerais)

Garrafão tem fundo largo,
botija não tem pescoço,
pedaço de telha é caco,
banana não tem caroço.
(Minas Gerais)

Há duas coisas na vida
que não há cristão que agüente:
tomar vento pelas costas,
tendo a sogra pela frente!
(Antonio Cardoso Filho)

Inhame verde é veneno.
É veneno de matar:
Moreninha eu vou morrer,
Somente pra não casar.
(Minas Gerais)

Já sou velho e tive gosto,
morro quando Deus quiser;
duas coisas me acompanham:
Cavalo bom e mulher.
(Paraíba)

Kágado é bicho perrengue,
Mas ateima até chegar:
O meu amor é constante
– Inda vem a te alcançar.
(Minas Gerais)

Lua – fonte de saudade,
quando a fitar-te me ponho,
visto de raios dourados
a saudade de meu sonho
(Dulce de Mello Monte-Mór)

Minha Maria é morena
como as tardes de verão;
tem as tranças da palmeira
quando sopra a viração.
(Castro Alves)

Nasci pobre, este delito
seguiu-me toda a existência…
Sob o teto de uma choça,
de que serve a inteligência?
(Fagundes Varela)

Ocultas no aspecto langue
amortecido vulcão;
há batuques no teu sangue,
é um samba teu coração.
(Gilka Machado)

Pulseira de besta é peia,
lençol de burro é cangáia,
mulher de padre é visage,
cabra safado é canáia.
(Ceará)

Quem tiver o seu segredo
não conte a mulher casada,
que a mulher conta ao marido
e o marido à camarada.
(Minas)

Rosinha de saia curta,
barra de salta-riacho,
trepa aqui neste coqueiro,
bota estes cocos abaixo.
(Rio de Janeiro)

Subi nas pontas das nuvens,
no estouro do trovão;
desci nas cordas da chuva
com dez coriscos na mão
(Piauí)

Tudo se gasta e se afeia,
tudo desmaia e se apaga,
como um nome sobre a areia,
quando cresce e corre a vaga.
(Cassimiro de Abreu)

Um pé de limão mais doce,
outro de limão azedo;
amor de mulher casada
é coisa que tenho medo.
(Minas Gerais)

Vais onde te leva a sorte,
eu, onde me leva Deus.
Buscas a vida – eu, a morte;
buscas a terra – eu, os céus!
(Gonçalves Dias)

Xarope que queima a goela
É bom pra limpar o peito;
A tua zanga, menina,
é que vai me dar um jeito.
(Sebastião M. Guimarães)

Yayá, você quer morrer?
Si morrer, morramos juntos:
Eu quero ver como cabem
numa cova dois defuntos.
(sem indicação)

Zombando peguei te amar,
zombando amor te tomei,
zombando tu me mataste,
zombando morto fiquei.
(Piauí)

Fonte:
http://www.violacaipira.com.br/

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Academia Sorocabana de Letras

Fundada em 26 de maio de 1979 e instalada em 2 de julho do mesmo ano, a Academia Sorocabana de Letras (ASL) é associação civil sem finalidade econômica, com personalidade jurídica distinta dos seus membros, composta de sócios efetivos, honorários, eméritos, correspondentes e benfeitores, sem distinção de credo religioso ou político, cor e sexo, que tem por finalidade a cultura da língua e da literatura nacional.

É governada pela Assembléia Geral dos membros efetivos, uma Diretoria e um Conselho Fiscal, ambos com mandato bienal, cujos integrantes, a exemplo dos demais associados de todas as categorias, nada recebem pelo desempenho de suas funções. Acha-se inscrita no CNPJ/MF sob o N.º 50.817.139/0001-09 e é considerada de Utilidade Pública pela Lei Municipal N.º 2.243, de 30 de novembro de 1983.

Realiza reuniões mensais, para apresentação de trabalhos sobre artes, letras e ciências humanas, por parte de seus associados, convidados e visitantes; assessora voluntariamente o poder público municipal mediante participação de seus membros em órgãos colegiados de natureza cultural, nas Comissões Julgadoras do Prêmio Anual Sorocaba de Literatura e do Concurso Jornalístico e Publicitário e, quando solicitada, na organização de cursos e seminários ligados à Semana do Tropeiro.

A Academia tem atuado como um ativo centro de pesquisa e produção editorial, publicando livros e plaquetas de interesse para a cultura regional, distribuídos gratuitamente às bibliotecas de universidades e instituições isoladas de ensino superior do Brasil, academias de letras, institutos históricos, e associações de imprensa, bibliotecas públicas regionais, nacionais e à representação da Biblioteca do Congresso norte-americano no Brasil e desenvolve através de um de seus organismos auxiliares – o Centro de Estudos Regionais de Sorocaba – o projeto Bibliografia Sorocabana, com o objetivo de levantar a produção de autores sorocabanos e de escritores que escreveram obras literárias ou científicas sobre Sorocaba. Mantém este Portal e uma revista, em fase de reorganização.

ACADÊMICOS / PATRONOS

ADALBERTO NASCIMENTO – Cadeira 01, Patrono: Euclides da Cunha
ADILSON CEZAR – Cadeira 04, Patrono: Francisco Adolfo de Varnhagen
ADOLFO FRIOLI – Cadeira 08, Patrono: Antônio Francisco Gaspar
ANA MARIA DE SOUZA MENDES – Cadeira 24, Patrono: Lima Barreto
BENEDITO WALTER MARINHO MARTINS – Cadeira 13, Patrono: Machado de Assis
BERNARDINO ANTONIO FRANCISCO – Cadeira 06, Patrono: Castro Alves
CLEIDE RIVA CAMPELO – Cadeira 21, Patrono: Mário de Andrade
ELOISA GONÇALVES LOPES – Cadeira 11, Patrono: Érico Veríssimo
EURIDES BERTONI JÚNIOR – Cadeira 23, Patrono: Vinícius de Moraes
GERALDO BONADIO – Cadeira 09, Patrono: Paulo Setúbal
IRANI ALVES DE GENARO – Cadeira 28, Patrono: José Lins do Rego
JAIRO VALIO – Cadeira 14, Patrono: Ascenso Ferreira
JOÃO ALVARENGA – Cadeira 29, Patrono: José de Alencar
JOÃO DIAS DE SOUZA FILHO – Cadeira 05, Patrono: Rui Barbosa
JOSÉ MONTEIRO SALAZAR – Cadeira 18, Patrono: Aluísio Azevedo
JOSÉ RUBENS INCAO – Cadeira 40, Patrono: Cecília Meireles
JULIANA SIMONETTI – Cadeira 25, Patrono: Clarice Lispector
LOURIVAL MAFFEI – Cadeira 16, Patrono: Oduvaldo Viana Filho
MARIA VIRGÍLIA FROTA GUARIGLIA – Cadeira 26, Patrono: Joaquim Nabuco
MÁRIO BARBOZA DE MATOS – Cadeira 27, Patrono: Simões Lopes Neto
MÁRIO CÂNDIDO OLIVEIRA GOMES – Cadeira 07, Patrono: Martins Fontes
MILTON MARINHO MARTINS – Cadeira 35, Patrono: Renato Sêneca de Sá Fleury
MÍRIAM CRIS CARLOS – Cadeira 38, Patrono: Oswald de Andrade
MYRNA ELY ATALLA SENISE DA SILVA – Cadeira 03, Patrono: João Guimarães Rosa
NANCY RIDEL KAPLAN – Cadeira 10, Patrono: Graciliano Ramos
NEIDE BADDINI MANTOVANI – Cadeira 15, Patrono: Barão de Ramalho
OTTO WEY NETTO – Cadeira 37, Patrono: Luiz Gonzaga de Camargo Fleury
SÉRGIO COELHO DE OLIVEIRA – Cadeira 17, Patrono: Gonçalves Dias
SHEILA KATZER BOVO – Cadeira 32, Patrono: Fernando de Azevedo
SÔNIA APARECIDA OLIVEIRA CANO – Cadeira 02, Patrono: Olavo Bilac
VERA RAVAGNANI JOB – Cadeira 33, Patrono: Aluísio de Almeida
ZEILA FÁTIMA PEREIRA GIANGIÁCOMO – Cadeira 31, Patrono: Nelson Rodrigues

A insígnia da Academia Sorocabana de Letras

O emblema ou insígnia da Academia Sorocabana de Letras, assim se lê: escudo redondo em campo de blau, tendo, armada no abismo, uma águia de ouro, bicada e lampassada, ostentando, de prata, na garra sinistra, uma pena e, na dextra, um livro com os dizeres – OS LUSÍADAS.

Bordadura de goles com a divisa MEDICINA ANIMI, e a legenda ACADEMIA SOROCABANA DE LETRAS, em sable.

Explicação: a forma redonda do escudo é a preferida na heráldica corporativa. O campo em azul (blau) — simbolizando harmonia, serenidade casa-se bem com o idealismo dos associados, que na Academia, se reúnem para haurir, cada vez mais, dilatados conhecimentos.

A águia — de vida centenária — quando perpassa as regiões alcandoradas de infinito azulado, nos impõe mais uma razão para que lhe demos o título de rainha das aves; serena no seu vôo é símbolo perfeito de realeza.

Os romanos adotaram-na como insígnia militar, desde o Imperador Mário, no ano 650.

Nos funerais dos Imperadores romanos estava sempre presente, presa a uma corda, junto da fogueira, quando se lhes cremava o cadáver. Finda a cerimônia, queimava-se a corda e a águia alçava vôo, grimpando as alturas, levando consigo a alma do Imperador para junto de Júpiter.A cor azul simboliza realeza, majestade, formo­sura, serenidade.

Nas armarias reais essa cor é chamada de Júpiter. É representada por Vênus, Touro, Libra, Violeta, Zéfiro e Pavão Real.

Ela é símbolo dos poetas gregos e latinos; das Artes e do Gênio.

A águia heráldica apresenta grandes garras e cauda estilizada, posta de frente e com a cabeça voltada para a dextra.

A do emblema da Academia está de asas abertas (se não o fora devera constar da descrição); está armada e membrada ou bicada, isto é de membros e bico diferentes do esmalte do corpo: no caso, o vermelho.

Sua figura lembra a ousadia, o arrojo ao cometimento de grandes empresas.

Heraldicamente representa o poder, o espírito de luta, a vitória, o gênio.

O seu uso nos brasões vem desde o século XI. Suas garras lembram a coragem e o sangue frio.

Representada pelo primeiro dos metais heráldicos — o ouro — no caso, lembra, também, uma das cores do brasão municipal de Sorocaba. O ouro representa para a Academia o valor dos altos estudos a que ela se dedica.

Trazendo nas garras a pena de prata, mostra que os associados a usarão para expressar a pureza da língua, de que Os Lusíadas — seguro pela outra garra — são a mais alta expressão, e por ser também, o livro nacional dos portugueses e luso-descendentes.

A bordadura em vermelho (goles) ainda é homenagem ao brasão da cidade.

A divisa ou mote — Medicina Animi — ou seja, o pão do espírito, traduz Está em latim como homenagem à universalidade e à perenidade da língua mater; dá mais peso e severidade à frase.

Era a descrição que se lia na entrada da biblioteca do rei egípcio Osmândia ou Oximândias, segundo narra Diodoro Sículo (I-49,39).

Corresponde ao Nutrimentum Spiritus, que Frederico, o Grande mandou gravar no frontispício da Biblioteca Real de Berlim, em 1780.

Está em prata que significa eloqüência, verdade, integridade, humildade, inocência, felicidade, pureza, etc. etc.

Chama-se Marte, no escudo dos Príncipes.

A bordadura é símbolo de favor e proteção. Representava, outrora, a cota d’armas, sendo concedida tal peça de honra aos esforçados guerreiros que saiam dos combates com a roupa ou cota manchada do sangue inimigo.

No que se refere aos atributos morais, o ouro — o mais nobre metal — significa riqueza, força, fé, pureza, constância, benignidade, clemência, justiça.

Simboliza o Sol, o Leão, o Topázio, o Fogo, o Domingo, o Cipreste, o Galo, o Girassol, o Delfim.

Já a prata significa Símbolo de amizade e eqüidade é representada pela Pérola, Lua, Pomba, Palma, Água, tendo por signo Câncer.

Quanto às cores, a vermelha da bordadura indica nobreza conspícua, audácia, honra, domínio, galhar¬dia, valor, etc. A cor azul simboliza realeza, majestade, formo¬sura, serenidade.

Nas armarias reais essa cor é chamada de Júpiter.

É representada por Vênus, Touro, Libra, Violeta, Zéfiro e Pavão Real.

O emblema da Academia Sorocabana de Letras foi criado pelo seu primeiro Presidente, escritor José Aleixo Irmão, e aprovado pela primeira Diretoria. Aleixo Irmão é também o redator do texto acima, que explica sua significação, publicado no nº 1 da Revista da Academia Sorocabana de Letras, 1979, p. 8 a 11.

Fonte:
http://www.academiasorocabana.com.br/

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1ª Jornada de Estudos Machadianos

A Academia Sorocabana de Letras promoverá, em sua sede, um encontro com Machado de Assis, no dia 29 de setembro, das 15 às 19h. Machado de Assis, jornalista, contista e romancista, será o caminho de estudo da tarde. Cem anos de sua morte no dia 29. Observador da vida, da sociedade, de si mesmo, criou personagens magníficas e firmou as letras brasileiras no panorama da literatura mundial. Excelente escritor e primeiro Presidente da Academia Brasileira de Letras. Soube amar e foi amado por Carolina. As falas serão poucas e, as conversas, como em serões antigos, acreditamos que fluirão. Machado é mágico, sua fala instiga. Há muito a se busca e entender na obra machadiana. Os estudos não param. As pesquisas persistem e ampliam-se. Grande em sua época, esplêndido hoje, inesquecível sempre. Estaremos conversando sobre as obras de um dos maiores escritores do mundo. Machado, sem medo de cometer exageros, é um fenômeno das letras mundiais. Brasileiro.

Tema:
Do Jornalismo ao Romance. A trajetória de Machado de Assis
Promoção:
Academia Sorocabana de Letras
Núcleo de Letras Artes e Ciências Humanas
Laboratório de Pesquisa Literária Avançada

Data e Local:
Sorocaba, 29 de setembro de 2008
Academia Sorocabana de Letras
Rua Comendador Oeterer 737
De 15 às 19 horas

Programa

15 h
Instalação dos trabalhos

15h15
Esse Machado de Assis…
Acadêmico Benedito Walter Marinho Martins

16h
O texto jornalístico de Machado de Assis. Leitura e apreciação
Acadêmico Geraldo Bonadio

16h45
Café

17 h
Aprendizagem, maturidade e apogeu no romance de Machado de Assis
Acadêmica Myrna Ely Atalla Senise da Silva

17h45
O mapeamento da alma humana nos contos de Machado de Assis.
Acadêmico José Rubens Incao

18h30
Encerramento. Chá com biscoitos

Fontes:
Academia Sorocabana de Letras.
http://www.academiasorocabana.com.br/
Douglas Lara. In
http://www.sorocaba.com.br/acontece

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Alcântara Machado (Miss Corisco)

Embora alguns nacionalistas teimassem em chamá-la de senhorita o título oficial era Miss Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre que primeiro nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram unia caixa. Mas nunca viu um tostão porque o dinheiro que havia se gastou todo com ela. Miss Corisco foi eleita pelo sistema de exclusão. A filha do Bentinho era sardenta. A irmã do João tinha um defeito nas cadeiras. Logo de saída a Conceição se impôs: foi aclamada Miss Corisco.

Aí deu uma entrevista para o O Cachoeirense. Perguntaram: Qual a maior emoção de sua vida? Respondeu: Três: minha primeira comunhão. uma fita do Rodolfo Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e… não conto porque é segredo. Respeitamos o segredo (escreveu o jornal) pois naturalmente encobria urna linda história de amor. Depois perguntaram: Qual o seu maior desejo? Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda de todos os empreendimentos. Resposta admirável (comentou O Cachoeirense) que revela em Miss Corisco uma patriota digna de emparelhar com Clara Camarão, Anita Garibaldi, Dona Margarida de Barros e outras heroínas da nacionalidade. Finalmente perguntaram: O que pensa do amor? Respondeu: O amor, minha fraca opinião, é uma cousa incompreensível mas que governa o mundo. Palavras (acentuou o órgão) que encerram uma profunda filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora Miss.

Miss Corisco foi retratada em várias posições: com um cachorrinho no colo, apanhando rosas no jardim, as costas das mãos sustentando o queixo. Deu também um autógrafo. Papel cor-de-rosa de bordas douradas, risquinhos de lápis para sair bem direitinho e as letras se equilibrando neles. O cunhado ditou. Os representantes do O Cachoeirense se retiraram. Miss Corisco foi varrer a cozinha como era de sua obrigação todos os dias inclusive domingos e feriados e na manhã seguinte tomou a jardineira em companhia do irmão casado para comparecer na cidade perante o júri estadual.
*
O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás do júri a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a assistência entusiasmada erguia vivas ao Brasil e à raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado gosto. Os juizes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano e um português. Predominava neles o espírito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O Doutor Noé Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrão: boca grande e olhos ternos. Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos.

Ouviu então o primeiro discurso que foi proferido com emoção que lhe embargava a voz e lenço de seda na mão, pelo Doutor Noé Cavalheiro, segundo promotor público. Principiou este fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga Grécia se votava à formosura física. Acentuou depois a desvantagem de uma mens sana desde que não seja num corpore sano. Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catástrofes tem também mais de uma vez contribuído para o progresso geral dos povos, citando vários exemplos históricos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que lhe dedicou Dom Pedro I à influência benéfica da Marquesa de Santos. Referiu-se à competência do júri, à sua isenção de ânimo e confessou que a única nota dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os protestos unânimes da assistência. Perorando entoou um hino inflamado à peregrina formosura de Miss Corisco. Disse então: Unindo à beleza clássica da Vênus de Milo a sedução estonteante da lendária rainha de Nínive, Miss Paraíba do Sul, maior do que Beatriz e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração de toda uma região! A Pátria não é somente, como soem pensar certos espíritos imbuídos de materialismo, a lei que garante a propriedade privada! A Pátria é mais alguma cousa de sublime e divino! A Pátria é a estrela que nos contempla do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós, Miss Paraiba do Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as forças viris da nacionalidade! Para nós, patriotas conscientes e eternos enamorados da Beleza, Miss Paraiba do Sul é neste momento o Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!)

Um a um os membros do júri beijaram as mãozitas róseas e espirituais de Miss Paraíba do Sul enquanto a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regência do Maestro Pietro Zaccagna, atacava vigorosamente a imortal protofonia do Guarani.

Muito vermelha e batendo com ar ingênuo as pálpebras aveludadas Miss Paraíba do Sul concedeu então as primeiras entrevistas. Externou sua opinião sobre a futura sucessão presidencial, a cultura da laranja, a questão religiosa no México, Mussolini, Padre Cícero, a estabilização cambial, Victor Hugo, Coelho Neto, os perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febrônio, o diabo. No Grande Hotel Mundial era uma romaria de manhã à noite. Muito afável Miss Paraíba do Sul recebia toda a gente com um encantador sorriso brincando nos lábios purpurinos. O camareiro do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um jornalista: É de uma amabilidade extraordinária. Recebe todos. Quem bate no quarto entra. Mas o irmão pelo sim pelo não caiu de bofetadas em cima do camareiro. O caso foi parar na policia onde o prestígio de Miss Paraíba do Sul conseguiu arranjar tudo do melhor modo possível.

Puseram à sua disposição um automóvel fechado, uma máquina de escrever portátil e um binóculo de corridas. Todos os dias choviam os presentes. O futuro arquiteto Barros Jandaia pôs gratuitamente seus serviços profissionais às ordens de Miss Paraíba do Sul. O cabeleireiro não lhe quis cobrar nada e ainda por cima lhe deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens com Pixavon. A Livraria Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do Paraíso Perdido. E assim por diante.

Miss Paraíba do Sul foi recebida em audiência especial pelo Presidente do Estado, respondeu com muita graça às perguntas de S. Exa. e distribuiu cigarros Petit Londrinos (ovalados) aos presos da cadeia pública. Visitou também a Câmara Municipal. Aí foi saudada por um vereador que a comparou a mimosa violeta dos nossos vergéis que não só atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e conquista pela sua modéstia exemplar.

Foram quinze dias bem cheios. Repletos. Não houve um minuto de folga. Miss Paraíba do Sul embora delicadamente deixou transparecer que a glória era um fardo pesado demais para seus ombros frágeis. E seguiu de vagão especial para a capital do país Todas as cidades do percurso enviavam à estação o juiz de direito, o promotor, o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristão da matriz que se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vívório, o trem seguia. Miss Paraíba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça que não agüentava mesmo.
*
Começou a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas. E sonetos na seção livre dos jornais. E bilhetes de apaixonados anônimos. E baile na torpedeira Paraíba do Sul. E retratos de todo o jeito nas revistas. E chás com as rivais. E tesouradas gostosas nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um repórter mais audacioso penetrou no quarto de Miss Paraíba do Sul e tirou uma fotografia muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal deu de cara com um pé de sapato enquadrado pela seguinte nota: – Enquanto Miss Paraíba do Sul jantava conseguimos penetrar no seu aposento e cometemos a deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se encontrava sobre o toucador. Levamos a nossa indiscrição ao ponto de verificarmos o número; era trinta e três e meio! Para encanto dos nossos leitores publicamos um clichê do sapatinho da nova Maria Borralheira da Graça e da Beleza.

Cousas assim comovem. Miss Paraíba do Sul deu ao repórter como lembrança o famoso sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmão casado) já estava imprestável com a sola até fura-não-fura. Enorme multidão teve a felicidade de vê-lo exposto na redação do jornal. Não houve um parecer discordante: era de fato um amor de sapatinho.

Enfim vieram as provas do concurso. Miss Paraíba do Sul passeou de roupa de banho para os velhos do júri apreciarem bem as formas dela e submeteu-se ao exame antropométrico no Museu Nacional. Sua ficha foi discutida nas sociedades científicas, empolgou a imprensa, provocou desinteligências entre pessoas que se davam desde os bancos escolares. Tudo inútil porém. Miss Paraíba do Sul não foi considerada a mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston.

Chorou é verdade. Não se pode negar. Chorou. Mas isso no hotel. Em público não perdeu a linha. Era toda sorriso diante de Miss Brasil. Entrevistada declarou que a escolha do júri tinha sido justa. Admiradores seus protestaram com energia. Um grupo de estudantes deitou manifesto a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia cousas muito amáveis a respeito de Miss Brasil. Foi consagrada a Miss Pindorama, a Miss Terra de Santa Cruz, a Miss Simpatia Verde-Amarela. Todos reconheceram que a vitória moral lhe pertencia. Era um consolo.
*
De volta à capital do seu Estado no entanto ela resolveu mudar de atitude. Criticou duramente a decisão do júri. Miss Brasil? Uma beleza sem dúvida. Mas beleza impassível. E que vale a formosura sem a graça? Depois sem gosto algum. Cada vestido que só vendo. Todos de carregação. E era visível nos seus traços a ascendência estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston. A raça brasileira não. E por aí foi. Nem os organizadores do concurso escaparam. Amáveis sim. Porém parciais. Um deles, careca barbado, vivia amolando as candidatas com galanteios muito bobos. Por isso mesmo levou um dia a sua. Uma das concorrentes lhe perguntou: Por que não corta um pedaço da barba e gruda na cabeça para fingir de cabelo? Disse isso sim. Como não. Na cara. Como não. E perto de gente. Ora se. Ele ficou enfiado.

Corisco recebeu de luto na alma a sua Venus. O pai de Miss Paraíba do Sul sacudiu a cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça! Inutilmente ela e o irmão casado falavam na vitória moral, na simpatia do povo, nos protestos da imprensa. Ela contava: Uma vez quando saía do hotel um popular me disse que eu era a eleita do coração dos brasileiros! Então, papai, que tal?

Mas o velho não se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Aí é que está. Os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Injustiça. Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas depois era preciso jurar que não, que o Brasil ia muito bem, que a vitória moral era mais que suficiente, que dinheiro não faz a felicidade de ninguém porque Miss Corisco, Miss Paraíba do Sul, Miss Pindorama, Miss Terra de Santa Cruz, Miss Simpatia Verde-Amarela começava a chorar.

Fonte:
http://www.biblio.com.br

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Affonso Arinos (ASSOMBRAMENTO)

História do Sertão

À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d’ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu. Naquele escampado onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos.

E quem não fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho a fora.

Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e mourões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedra com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso, esponjadouros de animais vagabundos.

Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.

Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.

Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome “Fidalgo” – dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os receios do povo.

Dito e feito.

Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas; e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um mourão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.

Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.

As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, denunciaram ao arneiro que a descarga fora feita com a ordem do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.

Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capão onde costumam crescer as ervas venenosas.

Dos camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos serões de pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma cantilena saudosa.

Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando ai, tramava alguma das dele.

– O macho lionanco está meio sentido da viagem, só Manuel.
– Nem por isso. Aquele é couro n’água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa.
– Pois olhe, não dou muito para ele urrar na subida do morro.
– Este? Não fale!
– Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.
– Ora!
– Vossemecê bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece desbarrigada que é um Deus nos acuda.
– Deixe de poetagens, Venâncio! Eu sei cá.
– Vossemecê pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão e Venâncio p’r’aqui, Venâncio p’r’acolá.

Manuel deu um muxoxo. Em seguida levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse:

– Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.
– Hum, hum! Está aí! Eia, eia, eia!
~ Não temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede.
– Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.

E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes.

– Que é que vossemecê determina agora?
– Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui também se vai cuidando do jantar…

O caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava à vasilha olhares ávidos e cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de água fresca; qual corria a lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.

Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes:

– Arre! Tem tempo, gente! Parece que vocês nunca viram feijão. Cuidem de seu que fazer, se não querem sair daqui a poder de tição de fogo!

Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com cozinheiro em momento assim melindroso.

Pouco depois chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.

Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam valentemente.

– Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.
– Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!
– Uai! É estúrdio!
– E vossemecê pousa lá mesmo?
– Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.
– Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas… é o diabo!
– Ora! Pelo buraco da fechadura não entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber amanhã.
– Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negócio com assombração. Isso de coisa do outro mundo p’r’aqui mais p’r’ali – terminou o Venâncio, sublinhando a última frase com um gesto de quem se benze.

Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos…. A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola e outro – namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do céu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, co’a voz tremente, à sua amada distante…

II

Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão erma.

As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.

Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.

E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistório das almas penadas – outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes:

– Ché, povo! Tá chegando a hora!
O último estribilho:
Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar
expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:
Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar
O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:
Rio Preto há de dar vau
Té pra cachorro passar!
– Tá chegando a hora!
– Hora de que, Joaquim?
– De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.

Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.

– Gente! O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.
– Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o patrão sozinho?
– Que se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só, porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.
– O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá, não escapa nenhum.
– Qual, homem! Isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.

A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.

E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto.

– Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida – e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.

Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte.

Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.

Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:

– Até aí vou eu, gente! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.

E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.

III

Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.

Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arneiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.

Era noite.

Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arneiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.

– Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato.

E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!

– Senhor! Por que seria? – inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.

Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.

Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.

Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.

– Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a virgem Maria…

O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.

O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.

Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.

– É o vento, talvez, no sino da capela.

E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.

– Acaba aqui – murmurou.

Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.

– Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver…

Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.

Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.

A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.

Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a principio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.

Meteu a binga no bolso e disse:

– Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.

Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.

No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arneiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.

Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.

Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a ventania – alcatéia de lbos rafados – investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios.

Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas… Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu… e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.

Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arneiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.

E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com o vento, os morcegos e a treva.

Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez em quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de outro.

– Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não – exclamava o arrieiro para o invisível. – Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro!

E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.

Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.

Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um barrão acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traía. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:

– Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!

De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.

A queda assanhou-lhe a fúria e o arneiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo.

Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venâncio armara na sala da frente.

Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro Manuel, Manuel, Manuel – em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.

Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.

O arneiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:

– Traiçoeiras! Eu queria carne para rasgar com este ferro! Eu queria osso para esmigalhar num murro!

As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d’acolá, açulando-o como a um cão de rua.

O arneiro dava saltos de ugre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coréia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.

Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.

O arneiro rugiu:

– Eu mato! Eu mato! Mato! – e acometeu com de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes, fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro.

Manuel lá no fundo, ferido, ensangüentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: – “Eu mato ! Mato! Ma…” – e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.

IV

O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirão cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.

Venâncio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos freqüentes, por impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos, guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora, ecavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.

Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à aurora que principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.

– Eh, gente! o orvalho ‘stá cortando, êta! Que tempão tive briquitando co’aquele macho “pelintra”. Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura as trilhas, por não deixar rastro.
– E a “Andorinha”? Isso é que é mula desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.

A rapaziada chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.

– Que é da giribita? Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo.
– Uma hora é frio, outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo! – gritou o Venâncio.
– Largue da vida dos outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estávamos atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo, feito um cachorro velho.
– Tá bom, tá bom, não quero muita conversa comigo não. Vão tratando de chegar os burros às estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco e o patrão chega de uma hora para a outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! Mas eu não pude fechar os olhos esta noite! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma que pudesse suceder a sô Manuel. Deus é grande!

Logo-logo o Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.

– Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.

Nesse instante, um molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.

Logo à saída, o velho tropeiro refletiu um pouco alto:

– É bom ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica você, Aleixo.

Seguiram os três, calados, pelo campo a fora, na luz

Suave de antemanhã. Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arneiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno, andando lépido e de rosto tranqüilo; cada qual, escondia do outro a angústia do coração e a fealdade do prognóstico.

José Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:
A barra do dia ai vem!
A barra do sol também,
Ai!

E lá foram, cantando todos três, por espantar as mágoas. Ao entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito na véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e não cedeu.

Forcejaram os três e ela resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de um aríete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos cujo fragor se foi evolumando pelo casarão adentro em roncos profundos.

Em alguns instantes o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do solho. A caliça que caía encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros – e a porta escancarou-se.

Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada.

– Mau, mau, mau! – exclamou Venâncio não podendo mais conter-se. Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas do outro mundo.

Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra malefícios.

– Gente, onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de Deus? – exclamou o Venâncio.

Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se perdidos em conjeturas sinistras.

Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um conciliábulo em que somente se lhes comunicassem os espíritos. Mas, de repente, creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venâncio debruçou-se, sondando o porão da casa.

A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu um vulto estendido.

– Nossa Senhora! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo, estirado!

Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetáculo estranho deparou-se-lhes:

O arneiro, ensangüentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia.

– Meu patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?!

Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lâmina se enterrara no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na pele.

– Sô Manuelzinho! Ai meu Deus! P’ra que caçar histórias do outro mundo! Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me livre!
– Qual, tio Venâncio – disse por fim José Paulista. – Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada para o terreiro. Aí é que está. Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto não topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condição de cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo! Na hora de ver a assombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p’r’amor de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!

E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam ê que quer que fosse – “para as ondas do mar” ou “para as profundas, onde não canta galo nem galinha”.

Enquanto conversavam iam procurando levantar do chão o corpo do arneiro, que continuava a tremer. Às vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da garganta.

– Ah! Patrão, patrão! Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! São Bom Jesus do Cuiabá! Olha sô Manuel, tão devoto seu! – gemia o Venâncio.

O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chão o corpo do arneiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse ao José Paulista:

– Eu não pego nessas moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.

Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.

– É alto deveras! Que tombo! – disse de si para si. – Que há de ser do patrão? Quem viu sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro há de ser de pouca serventia. Para mim, eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!

O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De cá se via a fila dos barrotes estendendo-se para a direita até ao fundo escuro.

José Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chão o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo vagarosamente o arneiro.

As névoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.

Houve um instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno: “apanhasse-lhe o chapéu”.

Aí chegando, José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora.

À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.

Às vezes ouvia-se um grito: – Toma, diabo! – e um animal espirrava para o campo à tacada de um tropeiro.

Quando lá do rancho se avistou o grupo onde vinha o arneiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha do olho-d’água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e disparou também. Os animais já amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.

O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.

Foram chegando e José Paulista chegou por último. Tropeiros olharam com estranheza a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para que saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?

O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. Dos tropeiros chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido, banhava as feridas do arneiro cujo corpo vibrava, então, fortemente.

Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.

Então Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de lágrimas, exclamou aos parceiros:

– Minha gente! Aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! – E ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um – “Senhor Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!” – E trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa, afloram-lhe à boca.

Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensão de almas, um apelo fremente “in excelsis”, na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a própria voz do deserto mal ferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.

De feito, não pareciam mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que do seio largo do deserto às alturas infinitas: – “Meu coração está ferido e seco como a erva… Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões!… Atendei propicio à oração do desamparado e não desprezeis a sua súplica…”

E assim, em frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senão erguer um hino de glorificação ao “Agios Ischiros”, ao formidável “Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth”.

Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele.

Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capa-o, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma ema, abrindo as asas, galopava pelo campo… E os tropeiros, no meio de uma inundação de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.

Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta… e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça suprema:

– Eu mato!… Mato!… Ma…

Fontes:
http://www.biblio.com.br
Capa do Livro: http://www.planetanews.com

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Afonso Arinos (1868 – 1916)

Afonso Arinos de Melo Franco nasceu em Paracatu (Minas Gerais), a 1º de maio de 1868. Era filho de Virgílio de Melo Franco e de Ana Leopoldina de Melo Franco. Faleceu em Barcelona, a 19 de fevereiro de 1916.

Membro da Academia Brasileira de Letras em 31 de dezembro de 1901, foi empossado em 18 de setembro de 1903.

Afrânio Peixoto assim resumiu a atuação ligerária de Afonso Arinos: “jornalista monarquista, depois contista de coisas do sertão”.

Os primeiros estudos de Afonso Arinos foram feitos em Goiás, para onde fora transferido seu pai. Os preparatórios tiveram lugar em São João del-Rei no estabelecimento de ensino dirigido pelo cônego Antônio José da Costa Machado, e no Ateneu Fluminense, do Rio de Janeiro.

Em 1885, iniciou o curso de Direito em São Paulo, concluído quatro anos mais tarde. Desde o tempo de estudante manifestou Afonso Arinos forte inclinação para as letras escrevendo alguns contos.

Depois de formado mudou-se com a família para Ouro Preto, então capital do Estado de Minas Gerais. Concorreu a uma vaga de professor de História do Brasil, em cuja disputa por concurso obteve o 1º lugar.

Foi um dos fundadores da Faculdade de Direito de Minas Gerais onde lecionou Direito Criminal.

Durante a Revolta da Armada (1893/1894), abrigou em sua casa alguns escritores radicados no Rio de Janeiro que, suspeitos de participação naquele movimento, haviam buscado refúgio no interior de Minas.

Afonso Arinos teve vários trabalhos publicados, na década de 1890, na “Revista Brasileira” e na “Revista do Brasil”. Convidado por Eduardo Prado assumiu, em 1897, a direção do “Comércio de São Paulo”.

Em fevereiro de 1901 foi eleito sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No mesmo ano candidatara-se à vaga de Eduardo Prado na Academia Brasileira de Letras.

Distinguiu-se Afonso Arinos em nossa literatura como um contista de feição regionalista, fato comprovado pelos seus livros “Pelo sertão” e “Os jagunços”. Escreveu, também, o drama “O contratador de Diamantes” e “O mestre de campo”. Depois de sua morte foram publicados – “Lendas e Tradições Brasileiras”(1917) e “Histórias e paisagens”(1921).

Da obra de Afonso Arinos e de seu estilo escreveu Lucia Miguel Pereira:

“Possuía a qualidade mestra dos regionalistas: o dom de captar a um tempo, repercutindo nas outras, prolongando-se mutuamente, as figuras humanas e as forças da natureza”.

Bibliografia
Obras publicadas:
Pelo sertão e Os jagunços, 1898;
Notas do dia, 1900;
O contratador de Diamantes, 1917;
A unidade da Pátria, 1917;
Lendas e Tradições Brasileiras, 1917;
O mestre de campo, 1918;
Histórias e paisagens, 1921;
Ouro, ouro (inacabado) e Obra Completa, introdução de Afonso Arinos de Melo Franco, 1969;
Pelo sertão, Academia Brasileira de Letras, Coleção Austregésilo de Athayde, 2005;
Contos, Martins Fontes Ed., SP, 2006.

Fontes:
http://www.biblio.com.br
http://www.academia.org.br

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1ª Semana da Poesia Paranaense

Local: Espaço Cultural Alberto Massuda
Data: 23,24 e 25 de setembro de 2008

Providências para os participantes:

1- Cada poeta disporá de 08 a 10 minutos para ler seus versos
2- Cada poeta deverá enviar até 1º/09/08
a – seus poemas digitalizados, totalizando no máximo até 140 versos
b – uma foto digitalizada
c- seu “currículo” literário em até 10 linhas…
para os emails: manoelandrade2004@hotmail.com e mandrade@clinipam.com.br

Obs. Como pretendemos fazer um E BOOK (Livro Eletrônico) com o nome, foto, dados biográficos e um trecho dos poemas dos participantes, necessitamos deste material para ser elaborada a arte final da impressão para ser publicado na Internet.

Os poetas que moram em Curitiba deverão se programar para um ensaio, no local. dia 22 de setembro, segunda-feira, às 20:00 horas

Enviem seus telefones fixos e celular para possíveis comunicações e esclarecimentos.

A Comissão.

Fonte:
E-mail enviado pelo secretario da UBT/Paraná – Nei Garcez

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Carlos Drummond de Andrade (Definitivo)

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções
irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado
do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter
tido junto e não tivemos,por todos os shows e livros e silêncios que
gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas
as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um
amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os
momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas
angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável,um tempo feliz.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso:

Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do
sofrimento,perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional…

Fonte:
http://www.pensador.info/

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Paginas da Vida (A Vida!)

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William Shakespeare (Otelo, O Mouro de Veneza)

Otelo, o Mouro de Veneza (no original, Othello, the Moor of Venice) é uma obra de William Shakespeare escrita por volta do ano 1603. A história gira em torno de quatro personagens: Otelo (um general mouro que serve o reino de Veneza), sua esposa Desdemona, seu tenente Cassio, e seu sub-oficial Iago. Diferente de outras histórias de tragédias, esta não contém parte cômica. Por causa dos seus temas variados — racismo, amor, ciúme e traição – continua a desempenhar relevante papel para os dias atuais, e ainda é muito popular.

História

Toda história gira em torno da traição e da inveja. Inicia-se com Iago, alferes de Otelo, tramando com Rodrigo uma forma de contar a Brabâncio, rico senador de Veneza, que sua filha, a gentil Desdêmona, tinha se casado com Otelo. Iago queria vingar-se do general Otelo porque ele promoveu Cássio, jovem soldado florentino e grande intermediário nas relações entre Otelo e Desdêmona, ao posto de tenente. Esse ato deixou Iago muito ofendido, uma vez que acreditava que as promoções deveriam ser obtidas “pelos velhos meios em que herdava sempre o segundo o posto do primeiro” e não por amizades.

Brabâncio, que deixara a filha livre para escolher o marido que mais a agradasse, acreditava que ela escolheria, para seu cônjuge, um homem da classe senatorial ou de semelhante. Ao tomar ciência que sua filha havia fugido para se casar com o Mouro, foi à procura de Otelo matá-lo. No momento em que se encontraram, chegou um comunicado do Doge de Veneza, convocando-os para uma reunião de caráter urgente no senado.

Durante a reunião, Brabâncio, sem provas, acusou o Mouro de ter induzido Desdêmona a casar-se com ele por meio de bruxarias. Otelo, que era general do reino de Veneza e gozava da estima e da confiança do Estado por ser leal, muito corajoso e ter atitudes nobres, fez, em sua defesa, um simples relato da sua história de amor que foi confirmado pela própria Desdêmona. Por isso, e por ser o único capaz de conduzir um exercito no contra-ataque a uma esquadra turca que dirigia-se à ilha de Chipre, Otelo foi inocentado e o casal seguiu para Chipre, em barcos separados, na manhã seguinte.

Durante a viagem uma tempestade separou as embarcações e, devido a isso, Desdêmona chegou primeiro à ilha. Algum tempo depois, Otelo desembarca com a novidade que a guerra tinha acabado porque a esquadra turca fora destruída pela fúria das águas. No entanto, o que o Mouro não sabia é que na ilha ele enfrentaria um inimigo mais fatal do que os turcos.

Em Chipre, Iago que odiava a Otelo e a Cássio, começou a semear a sementes do mal, ou seja, concebeu um terrível plano de vingança que tinha como objetivo arruinar seus inimigos. Hábil e profundo conhecedor da natureza humana, Iago sabia que, de todos os tormentos que afligem a alma, o ciúme é o mais intolerável.

Ele sabia que Cássio, entre os amigos de Otelo, era o que mais possuía a sua confiança. Sabia também que devido a sua beleza e eloqüência, qualidades que agradam às mulheres, ele era exatamente o tipo de homem capaz de despertar o ciúme de um homem de idade avançada, como era Otelo, casado com uma jovem e bela mulher. Por isso, começou a realizar seu plano.

Sob pretexto de lealdade e estima ao general, Iago induziu Cássio, responsável por manter a ordem e a paz, a se embriagar e envolver-se em uma briga com Rodrigo, durante uma festa em que os habitantes da ilha ofereceram a Otelo. Quando o mouro soube do acontecido, destituiu Cássio de seu posto. Nessa mesma noite, Iago começou a jogar Cássio contra Otelo. Ele falava, dissimulando um certo repúdio a atitude do general, que a sua decisão tinha sido muito dura e que Cássio deveria pedir a Desdêmona que convencesse Otelo a devolver-lhe o posto de tenente. Cássio, abalado emocionalmente, não se deu conta do plano traçado por Iago e aceitou a sugestão.
Dando continuidade a seu plano, Iago insinuou a Otelo que Cássio e sua esposa poderiam estar tendo um caso. Esse plano foi tão bem traçado que Otelo começou a desconfiar de Desdêmona. Iago sabia que o Mouro havia presenteado sua mulher com um velho lenço de linho, o qual tinha herdado de sua mãe. Otelo acreditava que o lenço era encantado e, enquanto Desdêmona o possuísse, a felicidade do casal estaria garantida. Sabendo disso e após ter encontrado o lenço que Desdêmona perdera, Iago disse a Otelo que sua mulher havia presenteado o seu amante com ele. Otelo, já enciumado, pergunta a sua esposa sobre o lenço e ela, ignorando que o lenço estava com Iago, não soube explicar o que aconteceu com ele. Nesse meio tempo, Iago colocou o lenço dentro do quarto de Cássio para que ele o encontrasse.

Depois, Iago fez com que Otelo se escondesse e ouvisse uma conversa sua com Cássio. Eles falaram sobre Bianca, amante de Cássio, mas como Otelo que só ouviu partes da conversa, ficou com a impressão de que eles estavam falando a respeito de Desdêmona. Um pouco depois Bianca chegou e Cássio deu a ela o lenço que encontrara em seu quarto para que ela providenciasse uma cópia. As conseqüências disso foram terríveis: primeiro Iago, jurando lealdade a seu general, disse que, para vinga-lo, mataria Cássio, mas sua real intenção era matar Rodrigo e Cássio simultaneamente porque eles poderiam estragar seus planos. No entanto, isso não ocorreu conforme suas intenções, Rodrigo morreu e Cássio ficou apenas ferido.

Depois Otelo, totalmente descontrolado, foi a procura de sua esposa acreditando que ela o havia traído e matou-a em seu quarto. Após isso, Emília, esposa de Iago, sabendo que sua senhora fora assassinada revelou a Otelo, Ludovico (parente de Brabâncio) e Montano (governador de Chipre antes de Otelo) que tudo isso foi tramado por seu marido e que Desdêmona jamais fora infiel. Iago matou Emília e fugiu, mas logo foi capturado. Otelo, desesperado por saber que matara sua amada esposa injustamente, apunhalou-se, caindo sobre o corpo de sua mulher e morreu beijando a quem tanto amara.

Ao finalizar a tragédia Cássio passou a ocupar o lugar de Otelo, Iago foi entregue às autoridades para ser julgado e Graciano, uma vez que seu irmão Brabâncio morrera, ficou com os bens do mouro.

Estrutura

A Tragédia Otelo é dividida em cinco atos e cada um deles é subdividido em cenas conforme abaixo:
Ato I – três cenas;
Ato II – três cenas;
Ato III – quatro cenas;
Ato IV – três cenas; e
Ato V – duas cenas.
Essa obra pode ser estruturada da seguinte maneira:

Apresentação

Iago trama com Rodrigo contar a Brabâncio que sua filha casou-se com Otelo, porque o mouro promoveu Cássio ao posto de tenente, posição essa que Iago almejava.

Desenvolvimento

Brabâncio toma ciência de que Otelo casou-se com Desdêmona, e sai à procura de Otelo para mata-lo. Quando se encontram são convocados a uma reunião no senado.

Chegando lá, Brabâncio acusa Otelo de ter enfeitiçado sua filha, mas a própria Desdêmona desmente a acusação e o casal parte para Chipre. Em Chipre Iago trama e executa a desgraça de Otelo.

Clímax

O Clímax da obra se dá no Ato V, cena II, quando Otelo, acreditando que sua esposa havia realmente o traído vai até o quarto onde ela dormia e, após algumas falas carregadas de extrema tensão, acaba tirando a vida de Desdêmona.

Desfecho

Otelo, ao descobrir que matou sua esposa injustamente porque fora enganado por Iago, ficou totalmente angustiado e pôs fim na sua vida. Iago, que matou sua esposa porque ela revelou a todos os seus planos malignos, foi entregue as autoridades para ser julgado. Cássio passou a ocupar o lugar de Otelo e Graciano, herdeiro do mouro, ficou com seus bens.

Temos assim a reafirmação da ordem moral, ou seja, os valores e dignidade são reafirmados.

Análise dos Personagens

Protagonistas

Otelo – General mouro e nobre a serviço da República de Veneza. A sua idade não é revelada na obra, mas são encontradas algumas passagens que nos remetem a idéia de que ele era um homem de idade avançada. Apesar de sua aparência rude, Otelo possuía caráter, atitudes e sentimentos nobres. Entretanto, era ingênuo, pois desconhecia a maldade humana e era incapaz de reconhecer a malícia nas pessoas. Isso é percebido quando ele descobre que fora traído por Iago e acredita que tal atitude não é obra de uma pessoa, mas do diabo. “Procuro ver-lhe os pés. Mas não… É pura fábula. Se fores o diabo, não conseguirei matar-te.” (fere Iago)(p.150). Além disso, Otelo era fraco, ele não acreditou que seu amor era forte o suficiente, bastou que Iago insinuasse que Desdêmona o estava traindo para que ele acreditasse.

Desdêmona – É uma jovem nobre, pretendida por vários jovens das melhores famílias da República, não só por sua beleza, mas também por seu rico dote. Ela era “Uma jovem tão tímida, de espírito tão sossegado e calmo, que corava de seus próprios anseios!…” (p34). Tais características ficam explicitas na atitude de seu pai, que ao saber que ela casou-se com o Mouro, atribuiu tal fato à bruxarias. Em uma época em que os casamentos eram arranjados pelos pais, Desdêmona gozava do privilégio de poder escolher seu próprio marido, porque seu pai confiava muito nela. Todo esse perfil singelo que envolve Desdêmona sofre uma brusca alteração quando ela abandona sua família e, apesar das diferenças de idade e raça, vai viver ao lado de Otelo em sua vida aventurosa de militar.

O fim de Desdêmona é extremamente triste: Além de ter sua imagem de esposa dedicada maculada, ela é abandonada por Deus, ou seja, nos seus últimos momentos de vida, não teve sequer o consolo da religião (p142).

Desdêmona é um personagem que , além de tudo o que já foi dito, nos ajuda a entender um pouco mais do próprio Otelo. Por meio dela nos é revelado os traços morais de Otelo, características essas que contrastam com seu exterior rude.

Antagonista

Iago – Era uma figura mais diabólica do que humana. Ele era alferes de Otelo, no regime militar atual, alferes corresponde ao posto de 2º tenente. Ele era uma pessoa vil, não media esforços para alcançar seus objetivos e todo lado negro de sua alma vem a tona em seus monólogos.

Iago odiava Otelo. Ele não suportou o fato de Otelo ter promovido Cássio ao posto de Tenente, cargo esse que ele acreditava ser seu pelo fato de possuir maior experiência. Iago, não suportando ver outra pessoa ocupando tal posto usou sua mente maquiavélica para articular um plano cujo objetivo era destruir seus oponentes.

Iago era um homem movido pelo interesse pessoal que se colocava sob as ordens de Otelo somente por proveito próprio. Ele dominava a arte de dissimular e manipular as pessoas. Provas disso são os fatos de Otelo chama-lo, com freqüência, de “O honesto Iago” enquanto esse o traía. Quanto a manipulação, podemos citar o exemplo de Cássio ter sido induzido à procurar Desdêmona para que ela intercedesse a seu favor junto a Otelo.

Secundários

Cássio – Micael Cássio era um jovem matemático florentino que “nunca comandou nenhum soldado num campo de batalha e que conhece tanto de guerra como uma fiandeira” (p18). Mesmo assim, foi escolhido por Otelo para ocupar o posto de tenente. Cássio foi o grande intermediário das relações amorosas entre Desdêmona e Otelo e, por isso, gozava da confiança do casal. Ele era amante de Bianca que vivia em Chipre, mas não se importava muito com ela.

Cássio era ingênuo. Não percebeu que Iago tramava sua desgraça, deixou-se embriagar enquanto estava de guarda, envolveu-se em uma briga e, por esse motivo, foi destituído de seu posto. Isso levou-o ao desespero e transformou-o em um verdadeiro marionete nas mãos de Iago.

Cássio pode ser classificado como personagem coadjuvante, uma vez que Iago se apoia em sua figura para executar seus planos.

Brabâncio – Pai de Desdêmona, ocupava um o cargo de senador na República de Veneza. Era um homem rico e mostrou-se ser totalmente contraditório: antes do casamento de sua filha com Otelo, ela convidou várias vezes o Mouro para visitar sua casa. Depois disso, acusou-o de rapto, feitiçaria e teve a intenção de mata-lo. No entanto, quem veio a falecer foi o próprio Brabâncio que não suportou essa união.

Emília – Mulher de Iago e serviçal de Desdêmona. A princípio sua participação na peça é discreta, mas no final ganha importância. Em nome da honra de sua senhora ela enfrenta o marido, revelando a Otelo, Ludovico e Montano que Iago estava os enganando.

Os demais personagens ocupam papéis de pouca importância e, por isso, serão apenas apresentados:
Rodrigo – Fidalgo veneziano, apaixonado por Desdêmona e, como Cássio, também foi usado por Iago;
Doge de Veneza;
Graciano – Irmão de Brabâncio;
Ludovico – Parente de Brabâncio;
Montano – governador de Chipre antes de Otelo;
Bobo – criado de Otelo;
Bianca – Amante de Cássio

Tempo

Na obra “Otelo” existe o predomínio do tempo psicológico. Isso ocorre devido aos vários monólogos existentes na peça. Esse recurso era muito usado no teatro para revelar o que os personagens estavam pensando. A maioria dos monólogos da obra “Otelo” é feita por Iago que nos revela toda interioridade de sua alma tenebrosa.

Quando isso ocorre o tempo ele quebra a cronologia do tempo cuja passagem é marcada pela fala dos personagens e, como isso é feito de forma muito sutil, é difícil identificá-lo.

O primeiro Ato dura uma noite. Entre esse Ato e o seguinte existe um intervalo de cerca de uma semana, tempo que durou a viagem de Veneza a Chipre “…Em companhia ele a mandou do destemido Iago, cuja vinda ultrapassa nossos cálculos de uma semana…”(p50). O segundo ato dura uma noite. Inicia-se quando os navios desembarcam em Chipre e termina na noite desse mesmo dia com Iago incentivando Cássio a procurar Desdêmona para que ela intercedesse a seu favor junto a Otelo. “…logo que amanhecer, vou pedir à virtuosa Desdêmona que interceda a meu favor...”(p71).

O Ato III inicia-se no dia seguinte “Iago – Então não vos deitastes?/ Cássio – Oh, não! Raiou o dia quando nos separamos…” (p76). Acreditamos que esse ato dure um pouco mais de uma semana. Essa idéia é apoiada na fala de Bianca que se dá no final desse ato:
Bianca – E a vossa casa eu também ia, Cássio. Uma semana ausente? Sete dias e sete noites...” (p105). Por meio dessa fala deduzimos que Cássio, quando chegou a ilha, foi visitar sua amante.

Os atos IV e V duram um dia e uma noite. A fala de Bianca no final do Ato III nos da a indicação de que esse ato termina durante o dia. “…acompanhai-me um pouco e declarai-me se ainda vos verei antes da noite.”(p106). Depois disso não há na obra mais indicações de que os dias se passaram, o que existe são apenas trechos que indicam que anoiteceu:
Ludovico- ….é noite alta” (p135);
Desdêmona dorme, no leito. Uma candeia acesa. Entra Otelo.” (p139).
Com base nos dados do levantamento acima, acreditamos que o tempo interno da obra dure aproximadamente 24 dias.

Espaço

O espaço em “Otelo” não é muito relevante. O primeiro Ato da obra ocorre em Veneza e os demais na ilha de Chipre. Em Veneza os espaços são a rua da casa de Brabâncio, uma outra rua não identificada e a Câmara do conselho. Em Chipre, a primeira cena ocorre em uma praça perto do cais, as demais se dão em ruas não identificadas, diante e em quartos do castelo. Na obra existem espaços abertos e fechados, mas as cenas de maior tensão ocorrem em espaços fechados como exemplo podemos citar as mortes de Desdêmona, Otelo e Emília. O espaço também é fechado quando Iago articula seus planos malignos. As vezes isso se dá nas ruas, espaços abertos, mas a escuridão da noite dificulta a visibilidade e esse espaço torna-se fechado. Iago é um ser tão maquiavélico que usa os espaços para executar seus planos. Ele se aproveita dos espaços fechados para induzir Cássio a envolver-se em uma briga. Depois ele usa esse mesmo tipo de espaço para matar Rodrigo e ferir Cássio. Na cena em que Iago faz Otelo ouvir apenas parte de sua conversa com Cássio, dando-lhe a impressão que Desdêmona havia o traído, o espaço é aberto, mas adequa-se perfeitamente a seus planos malignos.

Ideologia

Nessa tragédia são encontradas várias idéias muito interessantes que, em sua maioria, fazem parte do nosso cotidiano:

Preconceito, racial, religioso e contra o estrangeiro

O preconceito racial se faz presente em quase toda obra. É fácil encontrar trechos em que outros personagens zombam de Otelo por causa da sua cor.
Iago – … Agora mesmo, neste momento, um velho bode negro esta cobrindo vossa ovelha branca…”(p21)
Iago – …quereis que vossa filha seja coberta por um cavalo barbere e que vossos netos relinchem atrás de vós?…”(p22)
• O preconceito religioso é percebido na fala de Otelo:
e cuja mão, tal como um vil judeu, jogou fora uma pérola mais rica que toda sua tribo…”(p153)
• O preconceito contra é encontrado na seguinte fala de Rodrigo:
“… destes permissão, mui grave pecado cometeu, unindo o espírito, a beleza, o dever e seus haveres a um estrangeiro andejo e desgarrado daqui e de tôda parte…pela garganta detendo aquele cão circuncidado…” (p153). A circuncisão é uma operação que retirada parte do prepúcio, pele que envolve o pênis. Esse tipo de cirurgia é feita pelos Judeus para serem confirmados na religião. No novo e velho mandamentos, sempre que é usado o termo circuncidado, faz-se referencia ao povo Judeu.

contraste entre a realidade e as aparências
Iago aparentava ser uma pessoa boa e digna de confiança, mas ele mostrou ser justamente o oposto, ou seja, maligno e traidor; •

o ciúme injustificado
Otelo sentia ciúme de sua mulher, sem que ela nunca lhe desse motivos. Foi esse ciúme doentio que permitiu que Iago o enganasse. a união de uma mulher branca com um mouro – isso, para a época, era uma situação pouco comum e que, se ocorresse de fato, escandalizaria a sociedade.

Crítica política
Esse tipo de crítica pode ser visto quando Brabâncio chama Iago de vilão e ele, ironizando, chama-o de senador: “Brabâncio – Sois um vilão / Iago – E vós… um senador

Mensagem

A grande mensagem que “Otelo” nos deixa é a fraqueza humana. Iago e Cássio são pessoas fracas pois não suportaram perder as posições no exercito. O primeiro não suportou ver uma outra pessoa ocupando posto de tenente que ele tanto almejara. Já o segundo ao ser destituído desse mesmo posto entrou em desespero, mostrando assim toda sua fragilidade. Otelo, por sua vez, foi fraco por não acreditar que possuía qualidades para manter ter ao seu lado uma mulher jovem e bonita como Desdêmona.

Além disso, percebemos que em “Otelo” o mal não prevalece. Apesar de Iago ter conseguido o seu objetivo que era destruir a felicidade do mouro, ele foi preso e entregue às autoridades para ser julgado. Com isso, concluímos que o que prevalece na obra são os bons valores morais, percebidos na figura de Cássio que sempre agiu com boa fé e acabou premiado com um posto superior ao que ocupava e que Iago tanto almejara.

Fontes:
Professores:Antônio Carlos Pinho, Adilson Oliveira, Lucas Tavares e Ronaldo Fazam. In
http://www.mundocultural.com.br/
SHAKESPEARE, William. Otelo. SP: Martin Claret, 2006.
Quadro: “Othello e Desdemona em Veneza” por Théodore Chassériau (1819–1856)

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Lêdo Ivo (Poesias Avulsas)

Os Morcegos

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteira no escuro,
chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
“Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda o dia ofendido.

ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

Soneto de Abril

Agora que é abril, e o mar se ausenta,
secando-se em si mesmo como um pranto,
vejo que o amor que te dedico aumenta
seguindo a trilha de meu próprio espanto.

Em mim, o teu espírito apresenta
todas as sugestões de um doce encanto
que em minha fonte não se dessedenta
por não ser fonte d’água, mas de canto.

Agora que é abril, e vão morrer
as formosas canções dos outros meses,
assim te quero, mesmo que te escondas:

amar-te uma só vez todas as vezes
em que sou carne e gesto, e fenecer
como uma voz chamada pelas ondas.

As Iluminações

Desabo em ti como um bando de pássaros.

E tudo é amor, é magia, é cabala.
Teu corpo é belo como a luz da terra
na divisão perfeita do equinócio.

Soma do céu gasto entre dois hangares,
és a altura de tudo e serpenteias
no fabuloso chão esponsálício.

Muda-se a noite em dia porque existes,
feminina e total entre os meus braços,
como dois mundos gêmeos num só astro.

O Caminho Branco

Vou por um caminho branco
Viajo sem levar nada.
Minhas mãos estão vazias.
Minha boca está calada.
Vou só com o meu silêncio
e a minha madrugada.
Não escuto, entre os barrancos,
a voz do galo estridente
que, na treva do terreiro,
anuncia as alvoradas.
Nem mesmo escuto a minha alma:
não sei se ela vai dormindo
ou me acompanha acordada,
se ela é vento ou se ela é cinza
ou nuvem rubra raiante
no dia que se levanta
como vela desdobrada
em nave que corta as vagas.
Não sei nem mesmo se é alma
ou apenas sal de lágrimas.
Vou por um caminho branco
que parece a Via Láctea.
Só sei que vou tão sozinho
que nem sequer me acompanho,
como se eu fosse um caminho
pisado por vulto estranho.
Não sei se é dia ou se é noite
o que surge à minha frente,
se é fantasma do passado
ou vivente do presente.
Não sei se é a torrente clara
da água que corre entre pedras
ou se um gavião me espreita
oculto no nevoeiro,
espantalho prometido
ao meu dia derradeiro.
Atravessando barrancos
e plantações de tomate
e ouvindo o canto escarlate
de airosos galos polacos,
vou por um caminho branco:
brancura de bruma e prata.
Entre tufos de carqueja
há constelações de orvalho
e um clarão de meio-dia
cega a minha madrugada.
Vou como vim, sem saber
a razão da travessia.
Nem sequer levo na boca
o gosto de água salgada
que relembra a minha infância
feita de mar e de mangue.
Nem sequer levo nos olhos
– nos meus olhos de menino –
a mancha rubra de sangue
deixada pelo assassino
que vi certa madrugada.
Vou por um caminho branco
e nada levo nem tenho:
nem ninho de passarinho
nem fogo santo de lenho.
Só vou levando o meu nada.
Foi tudo quanto juntei
para oferecer a Deus
nesta madrugada.

Minha Pátria

Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando
[sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas
[carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos
[e impaludados não param de
[tossir e tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria
[muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.

As Ferragens

Em Maceió, nas lojas de ferragens,
a noite chega ainda com o sol claro
nas ruas ardentes. Mais uma vez o silêncio
virá incomodar os alagoanos. O escorpião
reclamará um refúgio no mundo desolado.
E o amor se abrirá como se abrem as conchas
nos terraços do mar, entre os sargaços.
Nas prateleiras, os utensílios estremecem
quando as portas se cerram com estridor.
Chaves-de-fenda, porcas, parafusos,
o que fecha e o que abre se reúnem
como uma promessa de constelação. E só então é noite
nas ruas de Maceió.

Soneto do Poeta Brasileiro

Não sou viril somente nas poesias.
Quero dormir contigo, pois teus pés
amassavam pitangas e trazias
no corpo inteiro a marca das marés.

Disseste que comigo casarias
– amor na cama, beijos, cafunés.
Entre-sombras de carne oferecias
tão navegáveis como igarapés.

Minha morena até dizer que não,
o nosso amor demais me recordava
duas lagoas onde me banhei.

Sou macho e brasileiro, coração:
em teu olhar eu nu e forte estava
e foi assim, morena, que te amei.

Soneto da Mulher e a Nuvem
A João Cabral de Melo Neto

Nuvem no céu do nunca, nem tão branca
– assim era o amor, à minha espreita,
e era a mulher, de nuvens sempre feita
e de véus e pudor que o amor arranca.

Não pude amá-la, pois não era franca
a sua carne que o amor aceita,
nuvem que um céu de amor sempre atravanca
e entre praias e pântanos se deita.

Bruma de carne, em vão céu de tormento,
parindo fogo aos meus dezesseis anos,
assim foi ela, sem deixar seu nome.

Nunca foi minha, e só em pensamento
eu pude dar-lhe o amor de desenganos
que me deixou no corpo espanto e fome.
(As imaginações, 1944.)

Soneto da Conciliação

Que o amor não me iluda, como a bruma
que esconde uma imprevista segurança.
Antes, sustente o chão em que descansa
o que se irá, perdido como a espuma.

Veja que eu me elegi, mas sem nenhuma
razão de assim fazer, e sem lembrança
de aproveitar apenas a esquivança
de que o amor não prescinde em parte alguma.

Que também não se alheie ao que esclarece
o motivo real, de uma oferta,
reunir o acessório e o imprescindível.

Antes, atente a tudo o que se tece
distante do seu dia inconsumível
que dá certeza à noite mais incerta.

Soneto dos Vinte Anos

Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.

Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.

Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.

Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.

Soneto das Alturas

As minhas esquivanças vão no vento
alto do céu, para um lugar sombrio
onde me punge o descontentamento
que no mar não deságua, nem no rio.

Às mudanças me fio, sempre atento
ao que muda e perece, e ardente e frio,
e novamente ardente é no momento
em que luz o desejo, poldro em cio.

Meu corpo nada quer, mas a minh’alma
em fogos de amplidão deseja tudo
o que ultrapassa o humano entendimento.

E embora nada atinja, não se acalma
e, sendo alma, transpõe meu corpo mudo,
e aos céus pede o inefável e não o vento.
(Acontecimento do soneto, 1948.)

Balada Insolente

Ao amor, como ao banho
deve-se ir nu
levando-se contudo
cálcio e Poesia.
E deve-se exigir
mais que a morte,
a vida; movimentos
livres e respiração.

Que, neste momento,
a Poesia seja
riso e não lágrimas.
Nunca assaz louvada,
que ela esteja sempre
a serviço da vida
sem trair os homens.
Poesia e cálcio.

Ao amor, que tem tudo,
deve-se ir sem nada,
levando-se no entanto
provisões de hormônios
até mesmo no olhar.
Na noite higiênica
o vento balança
grandes flores: cálcio.
(A jaula, em Ode ao silêncio, 1948.)

Os Frutos da Imobilidade

Entre a tarde e a arquitetura,
a oclusão e a consonlância,
canto-me dormido no horizonte
na viagem de olhos cerrados
para as catástrofes do sono.
E meu coração que é sombrio
como um sol visto às avessas
tem canção ininterrupta,
fanal de sino acordado
ou os instantes plantados
no dia do dia seguinte.

Canto o tráfico do que sou
diante da luz da aurora,
a mulher do meu amor
e eu sempre seguro e calmo.
Luz no caminho noturno
que cheira a mato pisado.
O romper do dia sustenta-me
com seus címbalos de mármore.

Não entôo o desencontro
no amor da tarde, ou a cadeia
que nasce de tuas palavras.
Canto a canção que me envolve
com os teus textos cruzados
como o trânsito na chuva
em uma rua chanfrada.
Não me inclino às harmonias
descobertas no tédio, elipses
de vôos incomunicáveis.
No vasto chão do acaso
eu lúcido apanho a rosa.

Ei melodia! e o mar
ao meu lado comparece
com todos os seus navios
inclusive os naufragados
que retornam com seus mastros
aos preâmbulos das nuvens.
Guardando um sol no meu peito,
falo de amor, compareço
aos espelhos dos instantes
onde a vida se reflete
em termos de diamante.

E aos torvelinhos de outubro
– momentos que são pirâmides –
canto a vida em que pereço
entre dois pavimentos.
(Cântico, 1949.)

O Dia

Das profundezas da tarde vem o dia em que se vive eternamente
igual à água múrmura entre os rochedos
onde se ocultam na antemanhã os peixes perseguidos pelos
homens.

Não se percebe o outro dia melodioso lá fora
nas perspectivas dos arranha-céus, nos cinemas e no trânsito.
A hora tem uma espessura de segredo guardado
e as gargantas de onde as sedes emigraram
suplicam apenas o que sobrou do frio e do sono.

As imprecações dormem no ar, com uma resistência de anjos,
e as doçuras se desfiguram numa ilusão de joelhos fendidos

n’água
como se os corpos sentissem que o tempo foi embora.
A vida, liberta dos vocabulários eventuais, festeja-se sem

memória
no espírito acorrentado a um infinito agora
eternamente presente como o oceano nas praias.
(Cântico, 1949.)

Balada do Arraial

Não vim para te amar
mas para descobrir
o que teu corpo tem
e que não posso ver.
No colégio falavam
de tantas coisas tuas!
Neste campo deserto
podemos começar.
Um dia serei poeta
e cantarei este instante
e te chamarei na certa
de minha primeira amante.

Oh! deixa que eu entre para o Amor
com os olhos abertos…
(Cântico, 1949.)

O Coração da Liberdade

Estive, estou e estarei
no coração da realidade,
perto da mulher que dorme,
junto do homem que morre,
próximo à criança que chora.

Para que eu cante, os dias são momentâneos
e o céu é o anúncio de um pássaro.
Não me afastarei daqui,
da vida que é minha pátria,
e passa como as águias no sul
e permanece como os vulcões extintos
que um dia vomitam sono e primavera.

Minha canção é como a veia aberta
ou uma raiz central dentro da terra.
Não me afastarei daqui, não trairei jamais
o centro maduro de todos os meus dias.
Somente aqui os minutos mudam como praias
e o dia é um lugar de encontro, como as praças,
e o cristal pesa como a beleza
no chão que cheira à criação do mundo.
Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.
Bebo a hora que é água; refugio-me na estância
quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,
e estou livre, sinto-me final, definitivo
como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz
e todas as coisas que são o centro, o coração
da realidade que escorre como lágrimas.
(Linguagem, 1951.)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras.

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Lêdo Ivo (A Resposta)

Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.

Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.

— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.

O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.

Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. “Aqui mora Serafim Costa.” Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.

Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:

— Olhe o Serafim Costa!

A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:

— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.

E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.

Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada… Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!

Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.

E, assim, obtive a resposta.

Fonte:
O texto acima foi extraído da revista “Ficção” nº 06, Rio de Janeiro, junho/1976. Disponível em
http://www.releituras.com

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Lêdo Ivo (Um carioca da gema)

Marques Rebelo cometeu a imprudência de nascer no Rio de Janeiro. Resultado: a posteridade deu seu nome a um beco. E não um beco familiar e pequeno-burguês, mas um vexatório beco na Lapa. Como ele foi o romancista de Marafa, é possível que tenha acudido à Prefeitura Municipal homenageá-lo perto das prostitutas, boêmios e marginais de sua ficção cruel e fagueira. Se tivesse nascido no Ceará, como José de Alencar, teria ganho uma estátua. Gaúcho, como Érico Veríssimo, haveria de abrir-se para ele a glória de uma avenida de primeira água, na Barra. Mas Edy Dias da Cruz – este era o seu nome de certidão, desativado para dar nova oportunidade a um obscuro clássico português – nasceu em Vila Isabel.

Assim, ocorreu com ele o mesmo que sucedera a Machado de Assis e Lima Barreto. O autor de Dom Casmurro tornou-se nome de uma ruazinha enjoada do Catete, que, atravancada de carros estacionados, é diariamente escarnecida pelos motoristas desejosos de alcançar o Lago do Machado… de um machado que, pintado por um açougueiro na porta do seu estabelecimento, nada tem a ver com o nosso grande romancista. E, quanto a Lima Barreto, a rua com o seu nome se esconde no formigueiro suburbano: ninguém sabe, ninguém viu. Só existe no catálogo telefônico.

Poderíamos ainda citar o exemplo da Praça Olavo Bilac, a única praça do mundo que não existe, pois a ocupa um sinistro mercado de flores que mal deixa lugar para a passagem dos pedestres. Ah, se Olavo Bilac tivesse nascido no Piauí! O Rio haveria de dar-lhe uma praça maior do que a destinada ao português Antero de Quental.

Essa ingratidão póstuma da cidade a um dos seus três maiores escritores ilumina um dos aspectos mais curiosos da história cultural brasileira, depois de Machado de Assis, que é a solidão dos poetas e prosadores cariocas. Eles surgem sem companheiros e, para sobreviver, têm que se atrelar a uma máfia (máfia no bom sentido) intelectual proveniente da vastíssima região da Sudene, que também inclui Minas Gerais. Foi entre pernambucanos, alagoanos, mineiros, sergipanos e baianos que transcorreu a existência literária de Marques Rebelo. Ele vivia imprensado e com a sensação de que o seu espaço intelectual nativo fora ocupado por invasores ambiciosos e esfaimados.

A sua ficção de miniaturista pode parecer uma criação menor, ao lado da obra impetuosa daqueles que o ressentido Oswald de Andrade chamava de ”os búfalos do Nordeste”. Mas não o é: é uma grandeza escondida, um tesouro guardado. Em suas prosas belas, o Rio de sua vida, recriado pelo conúbio da memória com a imaginação, emerge atravessado de vozes, rumores, cores, humores, aromas, dores anônimas, luminosidades, escuridões, com o movimento dos seus corpos e as aflições de suas almas; cidade tornada alegria de uma linguagem.

Esse prosador que pertencia à linhagem privilegiada (e tão invejada pelos sorumbáticos!) dos artigos literários que sabem rir e sorrir; esse carioca que vivia se coçando e trajava roupas bizarras compradas nos departamentos infantis das grandes lojas de Buenos Aires; esse míope que sabia enxergar as paisagens e as misérias humanas mais do que muitos dos seus confrades de olhos arregalados; esse sarcástico e todavia meigo e amoroso Marques Rebelo ostentava em seu brasão o mesmo lema de Noel Rosa: ”Modéstia à parte, eu sou da Vila”.

E era. Morando em Botafogo ou Laranjeiras, e vagueando pela Cinelândia, o criador de Leniza sentia a nostalgia de Vila Isabel. Era um carioca da gema, típico da Zona Norte, e para ele os túneis são divisas com outros países. Tinha horror a Copacabana: achava que ela devia ser bombardeada todos os sábados. Havia um Rio, um certo Rio, que ele amava e tornou perene em sua obra. Em retribuição, a cidade o converteu num nome de beco estreito e escuso. Mas por esse beco passam diariamente os cariocas sem nome que costumamos identificar como ”personagens de Marques Rebelo”. E isto, e só isto, é a glória.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 4/1/2006

Fonte:
Academia Brasileira de Letras.

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Lêdo Ivo (1924)

Biografia

Quinto ocupante da Cadeira nº 10, eleito em 13 de novembro 1986, na sucessão de Orígenes Lessa e recebido em 7 de abril de 1987 pelo acadêmico Dom Marcos Barbosa. Recebeu os acadêmicos Geraldo França de Lima, Nélida Piñon e Sábato Magaldi.

Lêdo Ivo nasceu no dia 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL), filho de Floriano Ivo e Eurídice Plácido de Araújo Ivo. Casado com Maria Lêda Sarmento de Medeiros Ivo (1923-2004), tem o casal três filhos: Patrícia, Maria da Graça e Gonçalo.

Fez a sua formação primária e secundária em sua cidade natal. Em 1940, transferiu-se para o Recife, onde passou a colaborar na imprensa local e a conviver com um grupo literário de que fazia parte Willy Lewin, o qual haveria de exercer grande influência em sua formação cultural.

Em 1941, participou do I Congresso de Poesia do Recife. Em 1942, terminou o curso complementar no Liceu Alagoano e, em 1943, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Passou a colaborar em suplementos literários e a trabalhar na imprensa carioca, como jornalista profissional.

Em 1944, estreou na literatura com As Imaginações, poesia, e no ano seguinte publicou Ode e Elegia, distinguido com o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras. Nos anos subseqüentes, sua obra literária avoluma-se com a publicação de obras de poesia, romance, conto, crônica e ensaio.

Em 1947, seu romance de estréia As Alianças mereceu o Prêmio de Romance da Fundação Graça Aranha. Em 1949, pronunciou, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, a conferência “A geração de 1945”. Nesse ano, formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, mas nunca advogou, preferindo continuar exercendo o jornalismo.

No início de 1953, foi morar em Paris. Visitou vários países da Europa e, em agosto de 1954, retornou ao Brasil, reiniciando suas atividades literárias e jornalísticas.

Ao seu livro de crônicas A Cidade e os Dias (1957) foi atribuído o Prêmio Carlos de Laet, da Academia Brasileira de Letras.

Em 1963, a convite do governo norte-americano, realizou uma viagem de dois meses (novembro e dezembro) pelos Estados Unidos, pronunciando palestras em universidades e conhecendo escritores e artistas.

Como memorialista, publicou Confissões de um Poeta (1979), que mereceu o Prêmio de Memória da Fundação Cultural do Distrito Federal, e O Aluno Relapso (1991).

Seu romance Ninho de Cobras foi traduzido para o inglês, sob o título Snakes’ Nest, e em dinamarquês, sob o título Slangeboet. No México, saíram várias coletâneas de poemas seus, entre as quais La Imaginaria Ventana Abierta, Oda al Crepúsculo, Las Pistas, Las Islas Inacabadas e La Tierra Allende. Em Lima, foi editada uma antologia, Poemas; na Espanha saiu La Moneda Perdida (antologia); nos Estados Unidos, Landsend, antologia poética; na Holanda, a seleção de poemas Vleermuizen em blauw Krabben (Morcegos e goiamuns).

Na Itália foi publicada sua antologia poética Illuminazioni e no Chile a antologia poética Los Murciélagos.

Em 1973, foi conferido a Finisterra o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa (poesia) do PEN Clube do Brasil, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal. O seu romance Ninho de Cobras foi distinguido com o Prêmio Nacional Walmap de 1973. Em 1974, Finisterra recebeu o Prêmio Casimiro de Abreu, do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em 1982, foi distinguido com o Prêmio Mário de Andrade, conferido pela Academia Brasiliense de Letras ao conjunto de suas obras. O seu livro de ensaios A Ética da Aventura recebeu, em 1983, o Prêmio Nacional de Ensaio do Instituto Nacional do Livro. Em 1986, recebeu o Prêmio Homenagem à Cultura, da Nestlé, pela sua obra poética. Eleito “Intelectual do Ano de 1990”, recebeu o Troféu Juca Pato do seu antecessor nessa láurea, o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Ao seu livro de poemas Curral de Peixe o Clube de Poesia de São Paulo atribuiu o Prêmio Cassiano Ricardo – 1996; ao livro O Rumor da Noite foi conferido o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 2001.

Ao longo de sua vida literária, Lêdo Ivo tem sido convidado numerosas vezes para representar o Brasil em congressos culturais e participar de encontros internacionais de poesia.

É sócio efetivo da Academia Alagoana de Letras, sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, sócio efetivo da Academia Municipalista de Letras do Brasil, sócio efetivo da Academia Brasileira de Letras do Brasil, sócio honorário da Academia Petropolitana de Letras; sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.

Condecorações:
Ordem do Mérito dos Palmares, no grau de Grã-Cruz;
Ordem do Mérito Militar, no grau de Oficial;
Ordem de Rio Branco, no grau de Comendador;
Medalha Manuel Bandeira;
Cidadão honorário de Penedo, Alagoas.
É Grande Benemérito do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Alagoas.

Bibliografia

Poesia
1944 – As Imaginações.
1945 – Ode e Elegia (Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras)
1948 – Acontecimento do Soneto.
1948 – Ode ao Crepúsculo
1949 – Cântico
1951 – Linguagem.
1951 – Ode Equatorial
1951 – Acontecimento do Soneto e Ode à Noite
1951 – Um Brasileiro em Paris e O Rei da Europa.
1960 – Magias
1962– Uma Lira dos Vinte Anos
1968 – Estação Central.
1972 – Finisterra (Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, do PEN Clube do Brasil; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal; Prêmio Casimiro de Abreu, do Governo do Estado do Rio de Janeiro).
1974 – O Sinal Semafórico
1980 – O Soldado Raso.
1982 – A Noite Misteriosa.
1985 – Calabar.
1987 – Mar Oceano.
1990 – Crepúsculo Civil.
1995 – Curral de Peixe (Prêmio Cassiano Ricardo, do Clube de Poesia de São Paulo)
1997 – Noturno Romano.
2001 – O Rumor da Noite.
2004 – Plenilúnio.
2004 – Poesia Completa.

Romance

1947 – As Alianças (Prêmio da Fundação Graça Aranha).
1958 – O Caminho Sem Aventura.
1964 – O Sobrinho do General.
1973 – Ninho de Cobras (V Prêmio Walmap).
1990 – A Morte do Brasil.

Conto
1961 – Use a Passagem Subterrânea

Crônica
1957 – A Cidade e os Dias (Prêmio Carlos de Laet, da Academia Brasileira de Letras)

Autobiografia
1979 – Confissões de um poeta, autobiografia (Prêmio de Memória da Fundação Cultural do Distrito Federal)

Literatura infanto-juvenil
1995 – O Menino da Noite.
1990 – O Canário Azul.
2000 – O Rato de Sacristia.

Edição conjunta
1971 – O Navio Adormecido no Bosque (reunindo A Cidade e os Dias e Ladrão de Flor).

Fonte:
– Academia Brasileira de Letras.
http://www.releituras.com/

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Páginas da Vida

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19 de setembro de 2008 · 19:39

Balaios de Trovas I

O grande tenor se cala
ante o pássaro silvestre.
– É o discípulo de gala
querendo escutar o mestre!
A. A. de Assis – PR

Tem visita que aconchega,
tem outra que não me atrai;
não empolga quando chega…
mas alegra quando sai!
Ademar Macedo – RN

De ciúmes ela delira,
diante da realidade:
por um amor de mentira,
mata um amor de verdade…
Aparício Fernandes

O café que aquece as almas
e adoça nossas lembranças
merece todas as palmas:
companheiro de esperanças.
Carmem Pio – RS

Sou mais alta que esse morro,
mais vasta que aquele mar.
Há muito que me percorro
sem me poder encontrar.
Cecília Meireles

Teus olhos, contas divinas,
por falsos, minha alma os teme.
– São iguais às turmalinas
no destino de Paes Leme…
Célio Grünewald

Por te amar a vida inteira
e assumir esta postura,
o meu amor é fronteira
Entre a razão e a loucura.
Clênio Borges – RS

Soltei o teu nome ao vento…
e o vento, só por maldade,
repete a todo momento
o nome desta saudade.
Conceição Abritta – MG

Da singeleza eu me ufano,
da minha rua escondida,
que tem mais calor humano
que a mais central avenida.
Conceição de Assis – MG

Depois de longa ciranda,
por todo o céu a vagar,
é aqui. na minha varanda,
que a lua vem madrugar.
Darly O. Barros – SP

Poetas mantêm acesa
a chama do amor fecundo,
minimizando a tristeza
e as dores cruéis do mundo.
Djalma Alves da Mota – RN

Vou vivendo a minha vida,
bem feliz no meu mister;
sigo de cabeça erguida,
pois sou poeta e mulher!
Domitilla B. Beltrame – SP

Meus pobres sonhos, tão fracos,
a vida em escombros fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos,
e eis-me a sonhar outra vez!
Dorothy J. Moretti – SP

Nos seus encontros ousados
junto da velha porteira,
esperava os namorados:
hoje ela espera a parteira!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Nas curvas do desalento,
quando a paixão me convida,
eu largo a velhice ao vento
e bebo o sopro da vida!
Eduardo A. O. Toledo – MG

Sejamos leais amigos
com esta obra de Deus,
conservando sem castigos
os teus direitos e os meus
Fahed Daher – PR

O nosso sonho termina
num adeus triste, exaltado,
deixando no chão da esquina
o teu retrato rasgado!
Fernando Câncio – CE

Olhando o mar, eu diviso
a areia branca a esperar
um beijo feito sorriso,
que as mansas ondas vêm dar!
Gislaine Canales – SC

Teu retrato desbotado,
num canto velho e sozinho,
são resquícios do passado
das pedras do meu caminho.
Gutemberg Liberato – CE

A escolha que fiz um dia
é prece que se renova,
quando faço da alegria
matéria-prima da trova.
Ieda Lima – RN

Queria dar-te um abraço
e só não foi desta vez…
por culpa deste embaraço
que me causa timidez!
Istela Marina – PR

Carteiro, ao fazer a entrega
das cartas, de porta em porta,
o pranto e o riso carrega
nos segredos que transporta.
Jacy Pacheco

No meu humilde viver
a solidão é tamanha
que só me falta perder
a sombra que me acompanha.
J.C. de Lery Guimarães

Após muitos desenganos
e conselhos não ouvidos,
chego ao final dos meus anos
sem ter meus dias vividos…
Jessé Nascimento – RJ

Aquele que não respeita
o tempo, na semeadura,
certamente na colheita
não terá fruta madura.
João B. Xavier Oliveira – SP

Se julgas coisa bonita
andar na frente, eu destaco:
quem vai atrás sempre evita
cair no mesmo buraco!
José Fabiano – MG

– Doce flor que desabrocha
perfumando seu cantinho,
envolvendo toda rocha
com doçuras e carinho.
José Feldman – PR

Se a vida, nos rios, nada;
nos galhos, brinca e balança,
podemos plantar na estrada
um novo pé de esperança.
José Lucas – RN

Terá o amor senda fácil?
Difícil é seu cultivo;
tal e qual um jardim grácil,
pede um jardineiro ativo.
José Marins – PR

Quem vem lá? Pelo alarido
ela sabe, rapidinho:
se o cão latir, é o marido;
se fizer festa… é o vizinho!
José Ouverney – SP

Anseio, na noite calma,
seu retorno, sem tardança;
pois, se a sedução tem alma,
ela se chama esperança!
José Valdez C. Moura – SP

Da incerteza eu tiro o véu,
chego a flutuar no espaço…
Avisto a porta do céu
quando ganho o teu abraço!
Lucília Decarli – PR

Quem não se importa onde pisa,
na escalada desta vida,
sobe muito mas desliza
e escorrega na descida.
Luiz Hélio Friedrick – PR

Sempre que amanhece o dia,
teu sorriso me acompanha.
Com suavidade e harmonia,
me envolvendo, ele me apanha.
Marah Teresinha de Souza – SC

A escuridão, por mais densa,
também nos traz coisas belas:
sem luz se ama, se pensa,
dá-se mais valor às velas.
Maria Eliana Palma – PR

Vou cumprir a minha sina:
– Não pode ter recaída…
Pois teu sorriso elimina,
As mazelas desta vida!
Maria Luiza Walendowsky – SC

Embora o dia me açoite
com seus barulhos brutais,
lá no silêncio da noite…
a solidão bate mais!
Maria Madalena Ferreira – RJ

Velho bilhete… lembrança
de um amor que não foi meu…
Um pedido de esperança
que a vida não respondeu…
Marina Bruna – SP

A vingança do chulé
não lavado há vinte dias
é deixar meias em pé
mesmo que estejam vazias.
Miguel Russowsky – SC

O melhor amigo, em tudo,
de atitude sempre pronta,
nos quer bem, e não é mudo:
nossos erros nos aponta.
Nei Garcez – PR

Orgulho é a bola de neve
que vai, em diário exercício,
levando o infeliz, de leve,
às bordas de um precipício.
Nilton Manoel – SP

Trabalhando sob o orvalho,
capinava o seu trigal,
enquanto o amigo espantalho
vigiava-lhe o embornal.
Olga Agulhon – PR

]Eu não lamento a saudade
que a tudo invade, porque
é tão bom sentir saudade,
quando a saudade é você!
Olympio Coutinho – MG

Vós que andais em ânsias loucas
matando a sede às paixões,
não junteis as vossas bocas
sem unir os corações!
Osmar Barbosa

O que dói na minha idade
não é ver próximo o fim;
é ver que mesmo a saudade
já se despede de mim…
Osório Dutra

Passei uma tarde inteira
ouvindo discursos, mas…
é melhor ouvir besteira
do que ser surdo, rapaz!…
Osvaldo Reis – PR

De que vale o meu protesto
se manténs, em tuas mãos,
o poder de, a um simples gesto,
cortar o “til” dos meus nãos!
Otávio Venturelli – RJ

O alfaiate Zé Lucena,
perseguindo um sonho eterno,
vive sempre atrás da sena,
mas, coitado, só faz terno…
Pedro Ornellas – SP

Muita gente se parece
com o vaga-lume, também:
– Seu brilho só aparece
onde não brilha ninguém.
Peri Ogibe Rocha

Carícia mais eloqüente
que meu coração aprova
é te dar um beijo ardente
nos versos da minha trova!
Renato Alves – RJ

Sou rio, minha querida,
correndo para o seu mar,
para adoçar sua vida
com pena de me salgar.
Roberto Acruche – RJ

Minha mãe era tão bela,
alva, de olhos tão azuis,
que o povo dizia a ela:
– Senhora, cadê Jesus?
Rodolfo Coelho Cavalcante

Ao que pede, à tua porta,
dá, também, tua afeição!
Um pouco de amor conforta
mais que um pedaço de pão!
Rodolpho Abbud – RJ

Tentar desfazer as mágoas
que o meu peito guarda e sente
é como querer que as águas
corram da foz… à vertente!
Sérgio Ferreira da Silva – SP

Todo amor que, terminado,
deixa saudade na gente
é como um tronco cortado:
pode brotar novamente…
Severino Uchoa – SE

A Trova é tão pequenina
mas quanta beleza encerra;
feliz de quem tem a sina
de espalhá-la pela Terra!…
Sônia Ditzel Martelo – PR

À sombra do entardecer,
quando esvai-se a luz do dia,
vem a saudade tecer
teias de sonho em poesia.
Sônia Sobreira – RJ

O meu coração me intriga
e só me traz confusão:
toda vez que a gente briga,
quero esquecer-te e ele não!
Therezinha Brisolla – SP

Numa riqueza sem fim,
nasce a força da bondade,
como as flores do jardim
na sua simplicidade!
Vidal Idony Stockler – PR

Vou sorrindo com cuidado,
sondando bem a pessoa,
pois ser feliz é um pecado
que pouca gente perdoa.
Zálkind Piatigórsky – RJ

Fonte:
Jornal TROVIA – Ano 9 – nº 107 – Setembro 2008.

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Ana Pismel (Vozes do Inverno)

Posso ouvir em mim
Uma voz chamando desesperadamente
Por alguém que não existe
Procurando eternamente
Numa agonia sem fim…

Posso ouvir lá fora
O barulho do vento forte e frio
Saudando um inverno
Uivando alto contra minha janela
Agitando árvores, revolvendo folhas caídas…

Posso ouvir em ti
Algo que outros não escutam
Vozes ocultas que falam por si
Denunciando que por traz da máscara
Uivam as vozes do Inverno em ti
Clamando inconscientes
Do fundo de um abismo sem fim…

Fontes:
http://recantodasletras.uol.com.br/
publicação autorizada pela autora
Imagem http://oglobo.oglobo.com/

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7º Concurso de Contos IPDAE

Inscrições: até 31 de outubro de 2008
Premiação: 20 de dezembro de 2008

Desde 2002, o Instituto Popular de Arte e Educação e Biblioteca Leverdógil de Freitas vêm realizando concursos de contos com o objetivo de formação e divulgação de trabalhos que estão sendo produzidos.

Através da narração de um conto, o escritor pode mostrar seu mundo, interior ou exterior. Esse fato permite ao leitor, por outro lado, ver a si mesmo ou alguém de suas relações na história narrada.

Esse processo de identificação é alcançado por meio da sensibilidade despertada pelo texto naquele que lê, que, ao entrar em contato com a narrativa, desperta seu imaginário, desprendendo-se do real e entrando no mundo fictício criado pelo autor.

Por essa razão, Mempo Giardianelli diz: “Todo bom conto deve tocar alguma fileira íntima do leitor. Necessariamente”.

As características primordiais do conto devem confluir para causar impacto no leitor. Assim, um conto deve juntar imaginação e sentimento, através de uma estrutura de sustentação da narrativa que abrigue poucas personagens, apenas aquelas imprescindíveis ao entendimento do conflito, deve apresentar unidade de tempo, de espaço e de tom.

A extensão reduzida dessa modalidade literária permite a impressão de efeito único, de concentração, de intensidade ou tensão, fatores que levam o leitor a gostar do que lê.

REGULAMENTO

I – Da inscrição:

1- As inscrições serão realizadas no período de 04 de agosto a 31 de outubro de 2008.

2- O concurso abrange o público juvenil, de 13 a 17 anos, e o público adulto, de 18 em diante.

3- O tema do concurso é livre e cada participante poderá enviar até 03 (três) contos.

4- Serão considerados válidos para o concurso somente contos originais e inéditos.

5- As inscrições são inteiramente gratuitas.

II – Sobre o envio:

1- Cada conto não pode ultrapassar de 3 (três) laudas A4, espaço simples, usando formato de letra Arial ou Times New Roman, fonte 12.

2- O(s) conto(s) deverá(ão) ser entregue(s) em 5 (cinco) vias, digitados ou datilografados. Não serão aceitas cópias manuscritas.

3- Em cada cópia do(s) conto(s) deverá constar apenas o título do trabalho e o pseudônimo do autor.

4- O participante deverá enviar, em anexo, uma folha contendo os seguintes dados:
a) Nome Completo;
b) Endereço completo, incluindo CEP;
c) Telefone para contato e e-mail, se houver;
d) Profissão;
e) Data de nascimento e idade;
f) Título(s) do(s) conto(s);
g) Pseudônimo do participante.

5- O material deverá ser entregue na sede da Biblioteca Leverdógil de Freitas, Av. João de Oliveira Remião, 7.193, Parada 18, Lomba do Pinheiro, Porto Alegre- RS, CEP 91560-000, ou remetidos via correio, postados até o último dia do período de inscrições.

6- Os trabalhos que não contiverem necessariamente as informações estabelecidas no regulamento serão automaticamente desclassificados.

7- O material enviado não será devolvido.

III – Da seleção:

1- As obras inscritas serão analisadas por uma comissão formada por professores, escritores, jornalistas e críticos literários, nomeados pelo IPDAE.

2- A seleção dos contos será feita no período de 10 a 28 de novembro de 2008.

3- Serão selecionados 10 (dez) contos de cada público (Juvenil e Adulto).

4- Os contos selecionados serão publicados em uma coletânea.

5- Uma vez selecionados, os participantes estarão fazendo a cessão de diretos de publicação.

IV – Do resultado:

1- O resultado do 7º Concurso de Contos estará disponível a partir do dia 1ª de dezembro de 2008 na Biblioteca Leverdógil de Freitas e no nosso site (http://www.ipdae.org/).

V – Da premiação:

1- A premiação consistirá na entrega de certificados a ser realizado no 20 de dezembro, sábado, às 16h, na sede na Biblioteca Leverdógil de Freitas, e na publicação dos trabalhos.

Comissão de organização do 7º Concurso de Contos
Cláudia Feijó, Ediane Gheno, Fátima Flores, Luiz Conte, Luiz Miguel Lisboa, Kamila Ail da Costa, Maria Hedy, L. Pandolfi, Rafael Mendes Dias e Vera Adalgiza Alves.

Fonte:
IPDAE.
http://www.ipdae.org/

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19º Concurso de Contos Paulo Leminski

Inscrição: até 30 de setembro de 2008
Premiação: 22 de novembro de 2008

O Concurso de Contos Paulo Leminski, cuja inscrição e participação é gratuita, faz parte do Calendário de Eventos Culturais de Toledo e Unioeste, com repercussão na área cultural e literária da cidade e região; tem como objetivo maior incentivar e estimular o exercício da linguagem escrita e, sobretudo, divulgar a produção literária “conto”.

A realização do evento é uma atividade conjunta entre a Unioeste – Campus de Toledo – e Prefeitura Municipal de Toledo – ao encargo da Secretaria Municipal de Toledo, através da Biblioteca Pública Municipal. Esse evento tem sido realizado anualmente há mais de dezoito anos, e neste ano ocorre a 19ª edição.

Durante esse período algumas empresas colaboraram e contribuíram para sua realização, mas o investimento quase que total tem sido de ambas as instituições públicas. Do concurso anualmente participam contistas toledanos e paranaenses; outros provêm da grande parte dos estados do país e também escritores do exterior. Além dos três melhores contos, os quais recebem prêmios em dinheiro, não figurando entre os três melhores contos, ao Melhor Conto Toledano é também anualmente dado um prêmio, como forma de incentivar a participação local. Uma banca julgadora, composta por professores, escritores e jornalistas se reúne durante uma semana para a leitura escolha e julgamento dos contos inscritos.

A cada ano alguns contos recebem menções honrosas, cujos autores recebem certificados que documentam essa menção. Após a decisão da banca, os contos premiados são divulgados nos Portais da Unioeste e Prefeitura Municipal, na mídia local e mais tarde são reunidos, a cada período de quatro ou cinco anos, numa coletânea. Assim, os escritores de contos premiados, e também aqueles que tenham recebido menção honrosa, têm seus trabalhos publicados num volume.

A realização do concurso de contos há dezoito anos também tem sido uma forma de divulgação da universidade e do Município de Toledo não apenas em nível regional, senão que também nacional e internacionalmente. A iniciativa de criar um concurso de contos surgiu a partir da constatação de que não havia, em Toledo e região, oportunidade para a divulgação de trabalhos literários.

Desta forma, em reunião de 08/05/89, Ata nº 03/89, o então Departamento de Letras da UNIOESTE/FACITOL aprovou a criação do Concurso de Contos Paulo Leminski. Já na sua 1ª edição o concurso extrapolou os limites do Município e região atingindo 10 municípios do Estado do Paraná. Na 5ª edição não só ganhou repercussão nacional como também internacional. E na última década são recebidos contos de países da América do Norte, Europa e Ásia. Julga-se de grande importância para a comunidade acadêmica e também para a comunidade de Toledo sua continuidade.

Informações:
Unioeste – Campus de Toledo – PR – Brasil
Biblioteca Pública Municipal de Toledo – PR
Fone/Fax: (45) 3252-6225
E-mail: biblioteca@toledo.pr.gov.br

.

Regulamento

Regulamento para a participação no Concurso

1. O Concurso destina-se a todas as pessoas interessadas e cada concorrente poderá participar com apenas um trabalho, que ainda não tenha sido premiado em outro concurso. O tema é livre e a inscrição é gratuita.

2. Consideram-se inscritas as obras entregues sob protocolo ou enviadas pelos correios (com registro A.R.), endereçadas à Unioeste/Campus de Toledo ou à Biblioteca Pública Municipal de Toledo, Paraná.

Unioeste/Campus de Toledo/PR.
R. da Faculdade, 645 CEP 85903-000
Caixa Postal 250 – Toledo – PR

Biblioteca Pública Municipal de Toledo
Av. Tiradentes, 1165 CEP 85900-230
Toledo – PR

3. O conto deverá ser apresentado em 02 (duas) vias, escrito em língua portuguesa ou espanhola, digitado em espaço 1,5 (um e meio), com fonte Arial, tamanho 12 (doze), de um só lado do papel, e obedecer um limite máximo de 20 (vinte) páginas.

4. Deverá constar, no interior do envelope que contém o trabalho, um outro envelope menor, contendo em seu interior uma folha na qual constem o título do conto, pseudônimo, nome completo do autor, seu endereço, telefone, R.G., e-mail e grau de instrução. E, na parte externa desse pequeno envelope, deverão constar apenas o pseudônimo do autor e o título do conto.

5. A comissão julgadora será composta de seis membros de reconhecido nível intelectual, sendo sua decisão soberana e irrecorrível.

6. Premiação:
Primeiro prêmio
R$ 1.500,00 – (Hum mil e quinhentos reais)
Segundo prêmio
R$ 1.100,00 – (Hum mil e cem reais)
Terceiro prêmio
R$ 850,00 – (Oitocentos e cinqüenta reais)
Quarto prêmio – (Melhor Conto Toledano)
R$ 700,00 – (Setecentos Reais)
NOTA: A eventual premiação de trabalho que já tenha sido premiado em outro concurso implicará na obrigatoriedade de devolução do prêmio pelo respectivo candidato.

7. A relação dos contos classificados será publicada nos órgãos de imprensa da região. Posteriormente, os contos serão publicados sob forma de coletânea, reunindo os contos premiados e os que tenham recebido menção honrosa. Por ocasião de seu lançamento, os respectivos autores continuarão recebendo um determinado número de volumes em seus endereços residenciais.

a. Os contos premiados consideram-se propriedade da Unioeste e Prefeitura Municipal de Toledo – Biblioteca Pública Municipal, entidades realizadoras do Concurso de Contos Paulo Leminski para finalidade de publicação da Coletânea de Contos; e aqueles que tenham recebido menções honrosas serão incluídos nessa coletânea mediante cessão de direitos por seus respectivos autores, através de documento legal.

b. O produto da potencial venda das coletâneas será depositado na conta da Fundação Universitária – Unioeste ou da conta da Associação dos Amigos da Biblioteca Pública Municipal de Toledo e participará integralmente no orçamento dos custos de divulgação e premiação das subseqüentes edições deste mesmo concurso.

8. O resultado será divulgado na imprensa e na Internet, endereço: http://www.unioeste.br/leminski/ e http://www.toledo.pr.gov.br/

9. O encaminhamento dos trabalhos na forma prevista neste regulamento implica na concordância com as disposições nele consignadas.

10. Para a devolução dos contos, as despesas de postagem serão de responsabilidade do solicitante, devendo para tanto enviar envelope já selado, constando nele os dados do destinatário. Os contos estarão à disposição de seu autor após a divulgação do resultado do concurso por um período de 30 (trinta) dias. Após este prazo, serão incinerados.

11. Os casos omissos no presente regulamento serão resolvidos pela Comissão Julgadora.

Fonte:
http://www.unioeste.br/leminski/

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Antologia Enigmas do Amor (Editora Scortecci – SP)

Estão abertas as inscrições para a Antologia de Poesias, Contos e Crônicas ENIGMAS DO AMOR, especial para o dia dos Namorados: 12 de junho de 2009. Serão 50 vagas ou até 250 páginas ou data limite de 31 de março de 2009.

A antologia será editada por nome de Autor em ordem alfabética em um ou mais volumes, conforme o número de inscrições. Não é concurso e todos os inscritos terão seus trabalhos publicados. Participaram escritores residentes ou não no Brasil.

INSCRIÇÕES

Serão 50 vagas ou até 250 páginas ou data limite de 31 de março de 2009, o que completar ou atingir primeiro.

Podem ser feitas em http://www.scortecci.com.br/materias.php?cd_secao=154&codant=

REGULAMENTO

A antologia será editada por nome de Autor em ordem alfabética conforme o número de inscrições. Não é concurso e todos os inscritos terão seus trabalhos publicados.

Poderão participar escritores residentes ou não no Brasil. Os trabalhos deverão ser digitados em Word, corpo 12, Times New Roman, em língua portuguesa, o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto.

O Autor poderá participar das duas categorias ao mesmo tempo (Poesias ou Contos / Crônicas), desde que siga as regras de participação por categoria e o número de páginas não ultrapasse o limite máximo de 10 (dez) páginas.

A categoria POESIAS poderá ocupar de 2 (duas) a 4 (quatro) páginas e a categoria CONTOS / CRÔNICAS poderá ocupar de 2 (duas) a 6 (seis) páginas, sendo cada página com até 32 linhas e aproximadamente 60 toques por linha, com direito a até oito linhas para biografia do autor e 5 (cinco) exemplares da obra por página contratada.

QUADRO: TAXA DE INSCRIÇÃO (Poesias e Contos/Crônicas)

02 páginas – Preço R$ 156,00 – 3 parcelas de R$ 052,00 – 10 exemplares
03 páginas – Preço R$ 225,00 – 3 parcelas de R$ 075,00 – 15 exemplares
04 páginas – Preço R$ 300,00 – 3 parcelas de R$ 100,00 – 20 exemplares
05 páginas – Preço R$ 375,00 – 3 parcelas de R$ 125,00 – 25 exemplares
06 páginas – Preço R$ 414,00 – 3 parcelas de R$ 138,00 – 30 exemplares
07 páginas – Preço R$ 519,00 – 3 parcelas de R$ 173,00 – 35 exemplares
08 páginas – Preço R$ 591,00 – 3 parcelas de R$ 197,00 – 40 exemplares
09 páginas – Preço R$ 660,00 – 3 parcelas de R$ 220,00 – 45 exemplares
10 páginas – Preço R$ 741,00 – 3 parcelas de R$ 247,00 – 50 exemplares

FORMAS DE PAGAMENTO

1) À VISTA

Opção 1 – Depósito em conta corrente. Enviar cópia do comprovante por fax (11) 3032.1179 ramal 16 ou por e-mail: antologia@scortecci.com.br

Banco Itaú
Ag. 0444
C/c. 39233-6
Cedente João Ricardo Scortecci de Paula Editorial
CNPJ 49.313.554/0001-38

Banco Bradesco
Ag. 2062-1
C/c. 17398-3
Cedente João Ricardo Scortecci de Paula Editorial
CNPJ 49.313.554/0005-61

Opção 2 – Cheque cruzado e nominal a João Ricardo Scortecci de Paula Editorial – EPP para: Antologia ENIGMAS DO AMOR – Caixa Postal 11481, São Paulo, SP, CEP 05422-970.

2) A PRAZO COM CHEQUES – 3 (três) cheques pré-datados (conforme tabela), cruzados e nominais a João Ricardo Scortecci de Paula Editorial – EPP, sendo o primeiro à vista e os demais pré-datados. Enviar para: Antologia ENIGMAS DO AMOR – Caixa Postal 11481, São Paulo, SP, CEP 05422-970.

* É permitido o uso de cheque(s) de terceiros com documento de autorização do titular.

OUTRAS INFORMAÇÕES

Não serão aceitas inscrições em desacordo com o regulamento ou fora do prazo. Não haverá reserva de vagas. Uma vez preenchidas as vagas, o autor poderá optar por participar da próxima antologia da editora ou receber o material e a taxa de inscrição de volta.

Não haverá cessão de direitos autorais, ou seja, os trabalhos continuarão pertencendo a seus autores.

Cabe ao autor ou responsável legal responder sobre plágio, publicação não autorizada, calúnia, difamação ou não autoria da obra, isentando a Scortecci Editora de crime de Direito Autoral.

O tema é livre e não haverá qualquer tipo de censura, por parte da editora, sobre o conteúdo publicado pelos autores na antologia.

Cada autor receberá por e-mail cópia da composição de seus trabalhos para revisão, que, uma vez revisados, deverão ser assinados, datados e liberados para impressão.

Os trabalhos não devolvidos no prazo serão impressos com a revisão da editora.

Autores de São Paulo (capital) e Grande São Paulo deverão retirar os livros na editora (serão informados por e-mail). Autores residentes fora do Brasil terão que fornecer um endereço no Brasil para recebimento dos livros prontos.

Participantes do interior de São Paulo e outros estados receberão seus exemplares pelo correio, via encomenda normal, no endereço indicado na ficha de inscrição. Recomendamos ficar atendo ao aviso de “encomenda” dos correios. O reenvio será de responsabilidade do participante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Antologia de Poesias, Contos e Crônicas ENIGMAS DO AMOR será lançada em São Paulo, Capital, em Junho de 2009, em local e data a ser definido pela Scortecci Editora.
Os autores inscritos poderão ou não participar do evento.

Mais informações pelo e-mail: antologia@scortecci.com.br

Telefone: (11) 3032-8848 com NOELE ROSSI.

Fonte:
Scortecci Editora. http://www.scortecci.com.br/

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André Augusto Passari (Despertar)

Desperta o coração para o amor
Deitado em leito de paz, ouve
O canto do sol que amanhece
Soergue-se para melhor ver através
De uma pequena janela de uma pequena cabana
As cores da aurora que refulgiam no céu
E diz baixinho para o dia que começa:
Como é linda essa imensidão!

Fonte:
PASSARI, André Augusto. Tempo, Solidão e Fantasia. São Paulo: Scortecci, 2006. p.88.

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Janduhi Dantas (A Gramática no Cordel)

Previlégio ou Privilégio?

É com e ou é com i?
Preste atenção no recado:
Quem pronuncia ou escreve
Previlégio está errado,
Quem grafa ou diz privilégio
É um privilegiado

Maisena, com s

Maizena escrita com z
É a da marca afamada,
A maisena da gramática
É a com s grafada:
S depois de ditongo,
Diz a regra, camarada!

Porque de todo jeito

O emprego dos porquês
Há quem ache complicado.
Há porque de todo jeito:
Porque junto, separado,
Com acento, sem acento,
Há porque pra todo agrado!

Porque junto e sem acento
Será uma conjunção
Explicativa ou causal,
De um pois tendo a função:
“Mateus está de castigo
Porque não fez a lição”.

“Por que não telefonou?”
(Veja como está grafado):
Na frase interrogativa,
Sem acento e separado
“Por que não disse a Maria?”,
“Por que não deu o recado?”

Por pelo qual e flexões
Por que também é usado
(Sendo a preposição por
Ao pronome que ligado):
“Sei que é grande o sofrimento
Por que você tem passado”.

Quando for substantivo,
Porquê junto, acentuado;
Vindo depois de artigo
E por motivo empregado:
“Ele não disse o porquê
De à aula ter faltado”.

Por quê — em final de frase
Interrogativa ou não.
E o que é acentuado
Se no fim da oração:
“Lumária te disse o quê?”
(Entenda, preste atenção!).

=====================
Sobre o Autor
Janduhi Dantas Nóbrega é paraibano de Patos. Agente cultural — autor de teatro popular, poeta cordelista e declamador —, participou ativamente dos movimentos sociais e populares registrados em Patos nos anos 80 e 90. Professor de Português, foi monitor de redação do Curso e Colégio Objetivo de Brasília (DF). Leciona, atualmente, em colégios e cursinhos pré-vestibulares em Patos, Princesa Isabel, Pombal e Sousa.

A idéia de fazer um livro ensinando gramática através de versos surgiu da dificuldade de seu casal de filhos aprenderem a matéria pelo sistema tradicional.
=======================
Fontes:
http://www.releituras.com/
Capa do livro http://cienciahoje.uol.com.br/

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J. Miguel (Trás de casa passa um rio)

Trás de casa passa um rio, da parede vem tão junto
que se encrassa um bafio, fartum rançoso e defunto.
Trás de casa passa um rio, nunca fica, só se vai
é um rio um tanto esguio, qual um bravo samurai.
Até lhe quis um desvio, antes dele desviar-me o pai
num triste e chuvoso março, arrastou-o em suas gorduras
sem dele deixar nenhum traço, apenas suas águas escuras.
Trás de casa passa um rio…

Trás de casa passa um rio, escuro, torto e fedorento
e no passar de suas águas, as mágoas, dores e a fez
eu percebo o desafio, em seu troar lento e frio:
“Não me sejas fugidio, um dia, um dia será tua vez.”
E transpiro, e choro e lamurio, mas é a vida esse rio
com águas revoltosas tais, amáveis e inexoráveis, tornam jamais.
Trás de casa passa um rio…

E nesse passar doloroso e lento, de águas, meses e ais
vejo o rio sonolento, serpeando seus cais, barrancos, quintais
arrastando toda a gente vivente, samurai, filho, mãe e pai
e compreendo finalmente, não é o rio que passa, sou eu quem se vai.
Trás de casa fica o rio e sou eu quem se vai.
=============
Sobre o Autor
J. Miguel : assim assina seus textos Jacob Miguel El-mokdisi, carioca, nascido em 1966, cronista, autor de textos de humor, romances e algumas poesias. Tem um livro de contos publicado pela Editora Komedi, ” Contos de Vida e Vida Após a Vida”, trabalhos publicados em algumas coletâneas de contos e um livro de humor no prelo, “Para Chorar… de Rir!” que será lançado ainda em 2008
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Fonte:
http://www.releituras.com

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Josie Mello (Poemas)

Quotidiano 17

ela
lava passa coze
borda a fronha
arruma a cama
e nessa espera medonha
fica repleta de horas
fica vazia de tempo

ele
quer ficar na rua
iludindo a liberdade
sente a noite
encher-lhe o peito
vira o copo com despeito
e se esvazia de vontade

ela
sabe que ele volta
mesmo sem querer voltar

ele
sabe que ela espera
mesmo se ele não chegar

Poema
(dedicado a Adélia Prado)

se eu não houvesse nascido
com essa maldita mania de escrever poemas
gostaria de ser viticultora
daquelas bem robustas
de pouca conversa
de muito labor
[pisar uvas
desenhar rótulos
fiscalizar tonéis
vender a safra]

e à noite
na minha poltrona
fazer meu crochê
ler a Bíblia
com aquela indescritível sensação de felicidade
que só as mulheres sentem
quando estão com as contas pagas
a casa limpa
e os filhos dormindo.
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Sobre a autora
Josie Mello (Josefina Neves Mello) nasceu em Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro. Escreve desde pequena. Mora em São José dos Campos (SP), onde leciona língua portuguesa, compila textos, faz traduções para o espanhol e, é claro, escreve prosa e versos. Teve alguns trabalhos publicados em jornais e revistas, sendo que o “Poema” em homenagem a Adélia Prado consta do livro “Mulheres de São José – Antologia Poética”, organizado por Celso de Alencar.
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Fonte:
http://www.releituras.com/

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Machado de Assis (Idéias do Canário)

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua,sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário.

A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo.

— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou vendo que confundes.

— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito.

— Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

— As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

— Quero só o canário.

Paguei lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

Não tendo mais família que dois criados, ordenava lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas.

Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias.

Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto.

— Mas não o procuraram?

Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos?

Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.

— Que jardim? que repuxo?

— O mundo, meu querido.

— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior.

— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?

Fonte:
Machado de Assis. O Alienista e outros contos. São Paulo: Moderna, 1995.

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Ernest Hemingway (1899 – 1961)

Ernest Miller Hemingway (Oak Park, Illinois, 21 de Julho 1899 — Ketchum, Idaho, 2 de Julho 1961) foi um escritor dos Estados Unidos da América.

Trabalhou como correspondente de guerra em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola e a experiência inspirou uma de suas maiores obras, Por Quem os Sinos Dobram. Ao fim da Segunda Guerra Mundial se instalou em Cuba.

Biografia

Segundo dos seis filhos de Grace Hall e Clarence Edmonds Hemingway, um clínico geral de Illinois que incutiu na criança o gosto pela caça e pesca. já na infância demonstra suas inclinações futuras. Ele gosta de ler e de passar os verões em uma casa de campo em Michigan, caçando e pescando. A família, de classe média – o pai é médico e a mãe, professora de Música – garante-lhe uma vida confortável.

Hemingway licencia-se na primavera de 1917 e, ao contrário do que seus pais esperavam, inicia-se como repórter no Kansas City Star, num trabalho “arranjado” pelo tio Tyler, amigo próximo do chefe de redação do jornal. Durante o tempo que ali permanece, adquire o estilo de escrita que mais tarde viria a influenciar sua ficção. Como jornalista, aos 18 anos, em Kansas City, o momento da despedida do pai, que o acompanha até a estação de trem, é reproduzido em uma passagem do clássico Por Quem os Sinos Dobram.

Hemingway era parte da comunidade de escritores expatriados em Paris, conhecida como “geração perdida”, nome inventado e popularizado por Gertrude Stein. Levando uma vida turbulenta, Hemingway casou quatro vezes, além de vários relacionamentos românticos. Em 1952 publica “O Velho e o Mar”, com o qual ganhou o prêmio Pulitzer (1953), considerada a sua obra-prima. Hemingway recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1954.

A vida e a obra de Hemingway tem intensa relação com a Espanha, país onde viveu por quatro anos. Uma breve passagem, mas marcante para um escritor americano que estabeleceu uma relação emotiva e ideológica com os espanhóis. Em Pamplona, meados do século XX, fascinado pelas touradas, a ponto de tornar-se um toureiro amador, transporta essa experiência para dois livros: O sol também se levanta (1926) e Por quem os sinos dobram (1940). Ao cobrir a Guerra Civil (1937) – como jornalista do North American Newspaper Alliance, não hesitou em se aliar às forças republicanas contra o fascismo.

Ainda muito jovem, decidiu ir à Europa pela primeira vez, quando a Grande Guerra assombrava o mundo (1918). Tentou alistar-se, mas foi preterido por ter um problema na visão. Decidido a ir à guerra, conseguiu uma vaga de motorista de ambulância na Cruz Vermelha. Na Itália, apaixonou-se pela enfermeira Agnes Von Kurowsky, sua inspiração na criação da heroína de Adeus às armas (1929) – a inglesa Catherine Barkley. Atingido por uma bomba, retornou para Oak Park que, depois do que viu na Itália, tornou-se monótona demais.

A obra de Hemingway é, em parte, autobiográfica. Ele escreve sobre sua infância e juventude usando um alter-ego chamado Nick Adams; fala dos pais, do lugar onde nasceu, da convivência com os índios – tudo isso nos primeiros livros.

Hemingway retrata com maestria a história da qual também foi protagonista. Como combatente na Primeira Guerra Mundial, ativista na Guerra Civil Espanhola, viaja pela Europa no período entreguerras, vive em Cuba e, no fim da vida, faz safáris pela África. Nesse percurso, não apenas participa de guerras, como conhece de perto a vida artística da Europa das vanguardas, em plena efervescência da década de 20.

Com o fim da guerra, vai para os Bálcãs e para o Oriente Médio como correspondente de jornais norte-americanos. Essa experiência lhe serve de inspiração para um de seus contos mais obscuros, No Cais de Esmirna.

Recebe o Prêmio Pulitzer em 1950 e, em 1954, ganha o Nobel de Literatura. Nessa época, reside em Cuba, onde mora por 22 anos. É lá que escreve a obra-prima O Velho e o Mar. Em 1956, após a ascensão de Fidel Castro, Hemingway tem de deixar a ilha. Volta para a cidade natal, já com o quarto casamento desfeito, e o alcoolismo se agrava.

Muito do que se sabe da vida do escritor norte-americano é fruto de exageros e invenções do próprio Hemingway, preocupado em criar um mito ao redor de sua imagem. Encorpado, com 1,80 m de altura, foi caçador, pescador e até boxeador nas horas livres. Dizia que preferia beber e falar de touradas a conversar sobre literatura e costumava chamar para a briga críticos que o contrariavam.

Como disse Burgess, “Hemingway era, tanto quanto seus livros, uma criação, e uma criação bem inferior a eles”. Algumas das histórias que contava eram mentiras deslavadas, como a de ter sido amante de Mata Hari durante a Primeira Guerra Mundial.

Outras, menos exageradas, foram construídas em cima de eventos reais. Ao sair de um avião em chamas na África, por exemplo, ele teria gritado, com uma garrafa de gim e um cacho de bananas nos braços: “Ando tendo muita sorte” (o acidente ocorreu em 1954 e lhe valeu ferimentos e queimaduras graves pelo corpo).

Casamentos

Volta à Europa (Paris), em 1921, recém-casado com Elizabeth Richardson, seu primeiro casamento, com quem teve um filho. Na ocasião, trabalhava para o Toronto Star Weeky. Para um escritor em início de carreira, a Paris dos anos 20 era o lugar certo. Hemingway se aproximou de outros principiantes: Ezra Pound (1885 – 1972), Scott Fitzgerald (1896 – 1940) e Gertrude Stein (1874 – 1940).

O seu segundo casamento (1927) foi com a jornalista de moda Pauline Pfeiffer. Com ela teve dois filhos. Em 1928, o casal decidiu morar em Key West, na Flórida. O escritor sentiu falta da vida de jornalista e correspondente internacional. O casamento com Pauline era instável. Nessa época conhece Joe Russell, dono do Sloppy Joe’s Bar e companheiro de farra. Já na década de 30, resolveu partir com o amigo para uma pescaria. Dois dias em alto-mar que terminaram em Havana, capital cubana, para onde voltava anualmente na época da corrida do agulhão (entre os meses de maio e julho). Hospedava-se no hotel Ambos Mundos, em plena Habana Vieja, bairro mais antigo da cidade que se tornava o lar do escritor, e os cenários que comporiam sua história e a da própria ilha pelos próximos 23 anos. Duas décadas de turbulências que teriam como desfecho a revolução socialista e o suicídio do escritor.

Em Cuba, o escritor se apaixonou por Jane Mason, casada com o diretor de operações da Pan American Airways e se tornaram amantes. Em 1936, novamente se apaixona, desta feita pela destemida jornalista Martha Gellhorn, motivo do segundo divórcio, confirmando o que predisse seu amigo, Scott Fitzgerald, quando eles se conheceram em Paris: “Você vai precisar de uma mulher a cada livro”. Assim, Hemingway partiu para a Espanha, onde Martha já estava e, em meio à guerra, os dois viveram um romance que resultou no seu terceiro casamento. Quando a república caiu e a Europa vivia o prenúncio de um conflito generalizado, Hemingway retornou para Cuba com Martha.

Em 1946, o escritor casa-se pela quarta e última vez com Mary Welsh, também jornalista, mas tímida e disposta a viver ao lado de um Hemingway cada vez mais instável emocionalmente.

Suicídio

Ao longo da vida do escritor, o tema suicídio aparece em escritos, cartas e conversas com muita freqüência. Seu pai suicidou-se em 1929 por problemas de saúde (diabetes) e financeiro (havia perdido muito dinheiro em especulações na Flórida). Sua mãe, Grace, dona de casa e professora de canto e ópera, o atormentava com a sua personalidade dominadora. Ela enviou-lhe pelo correio a pistola com a qual o seu pai havia se matado. O escritor, atônito, não sabia se sua mãe estava querendo que ele repetisse o ato do pai ou que guardasse a arma como lembrança.

Aos 61 anos e muito doente (hipertensão, diabetes, arteriosclerose, depressão e perda de memória) Hemingway acabou com a própria vida, assim como fizera seu pai.

Todas as personagens deste escritor se defrontaram com o problema da “evidência trágica” do fim. Hemingway não pôde aceitá-la. A vida inteira jogou com a morte, até que, na manhã de 2 de julho de 1961, em Ketchum (Idaho), tomou do fuzil de caça e disparou contra si mesmo.

Influenciou a escrita no século 20, com seu estilo econômico e direto. “Foi a fusão do artista sensível e original com o musculoso homem de ação que transformou Ernest Hemingway num dos maiores mitos internacionais do século 20”, disse o escritor inglês Anthony Burgess (1917-93) em biografia a seu respeito.

“O Velho e o Mar”, de 1952, é o último trabalho que Hemingway publicou em vida. Para muitos, é também a sua obra mais importante. Ela lhe valeu o Prêmio Pulitzer em 1953 e, no ano seguinte, foi decisiva para que o escritor ganhasse o Prêmio Nobel.

O livro é sobre Santiago, um pescador cubano, idoso e pobre. Seus companheiros acreditam que sua carreira está perto do fim. A única pessoa que ainda confia em suas habilidades é um garoto que o ajudara em outras ocasiões, mas que havia sido proibido pelos pais de o acompanhar em novas pescarias.

Disposto a recuperar a sorte e o prestígio, Santiago parte sozinho para o alto-mar, onde trava uma luta de três dias na caçada a um peixe. “Como o matador com seu touro, sente-se atraído por aquela criatura magnífica, de tal modo que, embora um tenha que matar o outro, não importa quem matará quem”, escreve Burgess.

A caçada de Santiago aborda dois temas centrais de sua obra. A bravura, na luta do homem com a natureza, e a honra, que permanece intacta mesmo na hora da derrota. “O homem não foi feito para a derrota”, escreve Hemingway, em um dos momentos mais importantes do livro. “Ele pode ser destruído, mas não derrotado.”

Curiosidades

• Spruille Braden, que concordou em apoiá-lo. O escritor, então, reuniu um grupo de delatores (informadores) e passou a coordená-lo. Para o governo dos Estados Unidos, ele era o “agente 08”. Washington ainda providenciou fundos para que ele reformasse seu iate, o Pilar, e navegasse pelos mares caribenhos à procura de submarinos alemães.

• A primeira vez em que um lote de documentos veio à luz, com informações sobre as atividades de Hemingway como agente secreto, foi em 1983. O biógrafo Jeffrey Meyers desentranhou dos arquivos do FBI um dossiê detalhado a respeito do escritor, mostrando que o poderoso órgão de inteligência, comandado na época por Edgar Hoover, tinha conhecimento das iniciativas de Hemingway – e as desaprovava, por considerá-lo simpatizante do comunismo. São relatórios assinados pelo agente Robert Leddy, com detalhes sobre o funcionamento da rede de espiões de Hemingway: “Em 30 de setembro de 1942 fui informado de que ele agora tem quatro homens operando em tempo integral e catorze colaboradores, entre eles barmen, garçons e outros. O custo é de 500 dólares por mês”.

• O desejo de “escrever o que realmente aconteceu na vida real” sobre assuntos de relevância para a condição humana levou Hemingway aos mais diversos lugares do planeta: à Itália, durante a primeira guerra mundial; a Paris, quando a capital francesa era o centro literário e cultural do mundo; à Espanha, durante a guerra civil; à África; a Cuba; à China, durante a invasão japonesa; e à Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial. Nestes lugares ele teve a oportunidade de tecer relatos de estilo jornalístico que se desdobram sobre temas centrais para a experiência humana no século vinte: a guerra, o crime, o medo da morte, o amor, a perda. Traçou assim um esboço do que preocupava e afligia as pessoas de sua geração e descreveu um mundo moderno que pode ser perigoso e muitas vezes nocivo e amoral.

Obras publicadas

Romances
• 1925 The Torrents of Spring
• 1926 The Sun Also Rises (O Sol Também Se Levanta)
• 1929 A Farewell to Arms (Adeus às Armas)
• 1937 To Have and Have Not (Ter e Não Ter)
• 1940 For Whom the Bell Tolls (Por Quem os Sinos Dobram)
• 1950 Across the River and Into the Trees (Do Outro Lado do Rio e Entre as Árvores)
• 1952 The Old Man and the Sea (O Velho e o Mar)
• 1962 Adventures of a Young Man(Aventuras de um Homem Jovem)
• 1970 Islands in the Stream (As Ilhas da Corrente)
• 1986 The Garden of Eden (O Jardim do Éden)

Não-ficção
• 1932 Death in the Afternoon
• 1935 Green Hills of Africa
• 1960 The Dangerous Summer
• 1964 A Moveable Feast (Paris é uma Festa)
• 2003 Ernest Hemingway Selected Letters 1917-1961
• 2005 Under Kilimanjaro

Contos e pequenas histórias
• 1923 Three Stories and Ten Poems
• 1925 In Our Time
• 1927 Men Without Women
• 1932 The Snows of Kilimanjaro
• 1933 Winner Take Nothing
• 1938 The Fifth Column and the First Forty-Nine Stories
• 1947 The Essential Hemingway
• 1953 The Hemingway Reader
• 1972 The Nick Adams Stories
• 1976 The Complete Short Stories of Ernest Hemingway
• 1995 Collected Stories

Fontes:
Revista História Viva, nº 46, pp. 28 a 33, Editora Duetto (2006)
http://www.klickescritores.com.br/pag_mundo/eua_ernest00.htm
FERRONI, Marcelo. Bravura e honra embalam “O Velho e o Mar”. In http://biblioteca.folha.com.br/1/noticias/2003081601.html
Foto: http://www.jornallivre.com.br/

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Ernest Hemingway (As neves do Kilimanjaro)

Tradução Luís Varela Pinto (texto completo)

Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6.000 metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África. O seu pico ocidental chama-se ‘Ngàge Ngài’, a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude.

“O que é fantástico é que isto é indolor,” disse ele. “É assim que ficamos a saber quando ela começa.”

“É assim realmente?”

“Absolutamente. Mas, desculpa este cheiro. Deve incomodar-te.”

“Não! Por favor, não digas isso.”

“Olha para eles,” disse ele. “É o que vêem ou o que lhes cheira que os atrai desta maneira?”

A cama de lona em que o homem estava deitado estava na extensa sombra de uma mimosa, e quando ele olhou para além da sombra, no brilho intenso da planície viam-se três daquelas aves obscenamente agachadas, enquanto, no céu, mais uma dúzia voava, fazendo sombras velozes quando passavam.

“Eles andam ali desde o dia em que a camioneta avariou,” disse ele. “Hoje foi a primeira vez que alguns poisaram. Reparei na maneira como eles voam, ao princípio com muito cuidado, para o caso de eu alguma vez os querer utilizar numa história. É engraçado.”

“Espero que não,” disse ela.

“Estou só a falar,” disse ele. “As coisas ficam mais fáceis se eu falar. “Mas não quero incomodar-te.”

“Tu sabes bem que isso não me incomoda,” disse ela. “É que fiquei tão nervosa por não poder fazer qualquer coisa. Parece-me que devíamos facilitar as coisas o mais possível até que o avião chegue.”

“Ou até que o avião não chegue.”

“Diz-me, por favor, o que é que eu posso fazer. Há-de haver alguma coisa que eu possa fazer.”

“Podes arrancar-me a perna, e isso talvez resolvesse a questão, embora tenha as minhas dúvidas. Ou podes dar-me um tiro. Tu já tens uma boa pontaria. Eu ensinei-te a atirar, não foi?”

“Por favor, não fales assim. Eu podia ler-te qualquer coisa.”

“Ler o quê?”

“Um livro qualquer daqueles que estão no saco e que ainda não lemos.”

“Não estou capaz de ouvir,” disse ele. “Falar é mais fácil. Discutimos, e isso ajuda a passar o tempo.”

“Eu não discuto. Eu nunca quero discutir. Vamos acabar com as discussões. Por mais nervosos que estejamos. Talvez eles voltem hoje com outra camioneta. Talvez o avião chegue.”

“Eu não quero sair daqui,” disse o homem. “Não faz sentido sair daqui, a não ser para te facilitar as coisas.”

“Isso é cobardia.”

“Será que tu não és capaz de deixar uma pessoa morrer sem lhe chamar nomes? De que serve insultares-me?

“Tu não vais morrer.”

“Não sejas parva. Eu já estou a morrer. Pergunta àqueles canalhas.” Olhou para o sítio onde estavam aquelas enormes aves imundas, agachadas, com as cabeças nuas enterradas nas penas arqueadas. Uma quarta desceu em voo planado, para depois correr rapidamente, e finalmente, bamboleando-se, caminhou vagarosamente em direcção às outras.

“Eles andam sempre por perto em todos os acampamentos. A gente nunca repara neles. Tu não morres se não desistires.”

“Onde é que leste isso? És uma idiota chapada.”

“Podias pensar em arranjar outra pessoa.”

“Por amor de Deus,” disse ele. “Não tenho feito outra coisa.”

Estendeu-se então na cama e ficou calado por momentos a olhar para a orla do bosque através da luz trémula do calor. Muito longe, viu uma manada de zebras brancas, contra o fundo verde do bosque. O acampamento era agradável, sob grandes árvores, junto a uma colina, com boa água, e, muito perto, um charco quase seco, onde, de manhã, voavam galinhas bravas.

“Não queres que te leia qualquer coisa?” perguntou ela. Estava sentada numa cadeira de lona ao lado da cama. “Está-se a levantar uma brisa.”

“Não, obrigado.”

“Talvez a camioneta venha.”

“A camioneta não me interessa nada.”

“A mim interessa.”

“A ti interessam-te tantas coisas que a mim não interessam nada.”

“Não são assim tantas, Harry.”

“E se eu bebesse qualquer coisa?”

“Deve fazer-te mal. Diz no Black que se deve evitar o álcool. Não devias beber.”

“Molo!” chamou ele.

“Diga, Bwana.”

“Traz-me whisky-soda.”

“Sim, Bwana.”

“Não devias,” disse ela. “É isso que eu quero dizer com desistir. Faz-te mal. Eu sei que te faz mal.”

“Não,” disse ele. “Faz-me bem.”

Portanto, agora acabou-se, pensou ele. Já não teria oportunidade de o acabar. Portanto, o fim era assim, uma questiúncula acompanhada de uma bebida. Desde que a gangrena começara na perna direita ele não sentia dores, e com a dor fora-se também o horror, e tudo o que ele agora sentia era um grande cansaço e irritação por aquilo ser o fim. Em relação àquilo que estava para chegar, não tinha grande curiosidade. Durante anos, tinha-o obcecado; mas agora não significava nada em si mesmo. Estranho, como o cansaço facilitava as coisas.

Já não escreveria as coisas que tinha reservado só para escrever quando soubesse o bastante para escrever bem. Bom, também não teria de falhar na tentativa de as escrever. Talvez nunca viesses a ser capaz de as escrever, e essa era a razão por que as adiavas e atrasavas o seu começo. Bem, agora, nunca viria a saber.

“Estou arrependida de ter vindo,” disse a mulher. Estava a olhar para ele, com o copo na mão e a morder o lábio. “Tu nunca terias arranjado um problema como este em Paris. Sempre disseste que adoravas Paris. Podíamos ter ficado em Paris ou ido a outro sítio qualquer. Eu teria ido para outro sítio qualquer. Eu disse-te que ia para onde tu quisesses. Se querias caçar podíamos ter ido caçar confortavelmente na Hungria.”

“O teu maldito dinheiro,” disse ele.

“Isso não é justo,” disse ela. “Foi sempre tanto meu como teu. Deixei tudo e fui sempre para onde quer que tu quisesses ir, e fiz o que tu querias fazer. Mas nunca devíamos ter vindo.”

“Tu disseste que adoravas.”

“Sim, mas quando estavas bem. Agora detesto. Não percebo como é que isto te havia de acontecer à perna. O que é que nós fizemos para isto nos acontecer?”

“Parece-me que o que eu fiz foi esquecer-me de lhe pôr tintura de iodo quando a cocei a primeira vez. Depois não lhe dei importância porque nunca tinha tido uma infecção. Mais tarde, quando piorou, foi provavelmente o ter usado aquela solução de fénico, quando os outros anti-sépticos acabaram que paralisou os minúsculos vasos sanguíneos e provocou a gangrena.” Ele olhou para ela, “Que mais?”

“Eu não queria dizer isso.”

“Se tivéssemos arranjado um bom mecânico em vez de um motorista kukuyu sem experiência, ele teria verificado o óleo e aquele rolamento da camioneta não se teria queimado.

“Eu não queria dizer isso.”

“Se tu não tivesses deixado a tua maldita gente de Old Westbury, Saratoga, e Palm Beach…”

“Oh, eu amava-te. Isso não é justo. E ainda te amo. Sempre te amarei. E tu não me amas?”

“Não,” disse o homem. “Parece-me que não. Nunca te amei.”

“Harry, que estás a dizer? Perdeste a cabeça.”

“Não. Não tenho cabeça nenhuma para perder.”

“Não bebas isso,” disse ela. “Querido, por favor, não bebas isso. Temos de fazer tudo ao nosso alcance.”

“Faz tu,” disse ele. “Eu estou cansado.”

Agora ele recordava uma estação de caminho de ferro em Karagatch e ele estava lá com o seu saco e aquilo era o farol do Simplon-Orient a rasgar a escuridão e ele ia partir da Trácia depois da retirada. Era uma das coisas que ele tinha reservado para escrever, e também, de manhã ao pequeno almoço, a olhar pela janela e a ver a neve nas montanhas da Bulgária e a Secretária de Nansen a perguntar ao velho se aquilo era neve e o velho a olhar e a dizer, Não, aquilo não é neve. Ainda é cedo para a neve. E a Secretária a repetir para as outras raparigas, Não, estão a ver. Não é neve e elas todas a dizerem, Não é neve, estávamos enganadas. Mas era neve, sim senhor e ele mandou-as para lá quando elaborou a troca de populações. E foi neve que elas palmilharam até morrerem nesse inverno.

Foi neve também que caíu durante toda a semana do Natal nesse ano no Guaertal, naquele ano que viveram na casa do lenhador com o fogão de porcelana que enchia metade da sala, e dormiam em colchões cheios de folhas de faia, na altura em que chegou o desertor com os pés ensanguentados na neve. Ele disse que a polícia andava atrás dele e eles deram-lhe meias de lã e demoraram os polícias à conversa até as marcas terem desaparecido.

Em Schrunz, no dia de Natal, a neve brilhava tanto que fazia doer os olhos quando se olhava pela janela do weinstube e se via toda a gente a regressar da igreja. Foi aí que eles andaram pela estrada de piso macio, dos trenós, e amarela de urina, ao longo do rio, com colinas escarpadas cobertas de pinheiros, skis pesados ao ombro, e onde eles fizeram aquela grande corrida pelo glaciar abaixo, acima da Madlener-haus, a neve tão macia de ver como a cobertura de um bolo e tão leve como o pó e lembrou-se do ímpeto silencioso que a velocidade causava quando se saltava como um pássaro.

Nessa altura ficaram bloqueados por uma tempestade de neve na Madlener-haus durante uma semana, a jogar as cartas no meio do fumo à luz da lanterna e as apostas eram cada vez mais altas enquanto Herr Lent perdia cada vez mais. Finalmente perdeu tudo. Tudo, o dinheiro da skischule e todos os lucros da época e depois o seu próprio capital. Ele via-o com o seu nariz comprido, a apanhar as cartas e depois a abrir ‘Sans Voir’. Havia sempre jogo nessa altura. Jogava-se quando não havia neve, e jogava-se quando havia neve demais. Pensou no tempo todo que passou a jogar.

Mas nunca escrevera uma linha sobre isso, nem sobre aquele dia de Natal frio e claro com as montanhas a verem-se do outro lado da planície que Johnson tinha sobrevoado para lá da linha para bombardear o comboio dos oficiais que partiam de licença, metralhando-os à medida que eles se espalhavam e corriam. Lembrava-se de Johnson depois vir à Messe e começar a contar o acontecimento. E o silêncio que se fez e depois alguém a dizer, ‘Canalha assassino!’

Aqueles austríacos que eles então mataram eram os mesmos com que ele esquiou depois. Não, os mesmos, não. Hans, com quem ele esquiou todo aquele ano, tinha estado no Kaiser-Jägers e quando eles foram à caça juntos no pequeno vale acima da serração tinham conversado sobre a luta em Pasubio e sobre o ataque a Pertica e Asalone e ele nunca escrevera uma palavra sobre isso. Nem sobre Monte Corno, nem sobre Siete Commun, nem sobre Arsiedo.

Quantos invernos é que ele tinha passado em Voralberg e em Arlberg? Quatro, e depois lembrou-se do homem que tinha a raposa para vender quando eles foram a Bludenz, dessa vez para comprar prendas, e do sabor a cereja do belo kirsch, a escorregadia investida à corrida da neve seca sobre o gelo, a cantar ‘Hi!Ho! disse Rolly!’ quando se corria o último troço até ao declive, indo a direito, depois a correr no pomar em três voltas, e para fora atravessando a vala e até à estrada com gelo por detrás da estalagem. A desapertar os cintos, a tirar os esquis e a encostá-los à parte de madeira da estalagem, a luz do candeeiro vinda da janela, onde, dentro, no calor fumarento a cheirar a vinho novo, eles tocavam acordeão.

“Onde é que nós ficámos em Paris?” perguntou ele à mulher que estava sentada junto dele numa cadeira de lona, agora em África.

“No Crillon. Sabes muito bem.”

“Sei muito bem porquê?”

“Era onde sempre ficávamos.”

“Não. Nem sempre.”

“Lá e no Pavillon Henri-Quatre, em St Germain. Disseste que adoravas aquilo lá.”

“A adoração é um esterqueiro,” disse Harry. “E eu sou o galo que vai para lá cantar.”

“Se realmente tens de embarcar,” disse ela, “será que tens mesmo de destruir tudo o que deixas para trás?” Quero dizer, tens mesmo de levar tudo contigo? Será que tens de matar o cavalo e a mulher e queimar a sela e a armadura?”

“Tenho,” disse ele. “O teu dinheiro era a minha armadura. O meu Swift and Armour.”

“Por favor.”

“Está bem. Vou parar com isto. Não quero magoar-te.”

“Já é um bocado tarde para isso.”

“Está bem, está bem. Vou continuar a magoar-te. É mais divertido. A única coisa que eu gostava de fazer contigo já não posso fazer.”

“Não, isso não é verdade. Tu gostavas de fazer muitas coisas comigo, e tudo o que tu querias fazer eu fazia.”

“Oh, por amor de Deus, pára com essa gabarolice, sim?”
Ele olhou para ela e viu-a a chorar.

“Ouve,” disse ele. “Achas que eu me estou a divertir muito com isto? Não sei por que estou a fazê-lo. Acho que, ao tentar matar, a pessoa está a procurar manter-se viva. Eu estava bem quando começámos a conversar. Eu não tinha a intenção de começar com isto, e agora estou completamente maluco e estou a ser cruel contigo o mais possível. Não ligues ao que eu digo, querida. Eu amo-te mesmo. Sabes bem que sim. Nunca amei ninguém como te amo a ti.”

Caíu nas mentiras habituais que o sustentavam.

“Tu és muito meigo para mim.”

“Ó minha cabra,” disse ele. “Minha cabra rica. Isso é poesia. Já estou cheio de poesia. De podridão e poesia. De poesia podre.”

“Cala-te. Harry, por que é que te hás-de agora transformar num demónio?”

“Não gosto de deixar ficar seja o que for,” disse o homem. Não gosto de deixar ficar as coisas para trás.”

Era já quase noite e ele tinha estado a dormir. O sol já se escondia por detrás da colina, e agora a sombra cobria toda a planície e os animais pequenos comiam perto do acampamento; ele via-os a baixarem rapidamente a cabeça e a abanar a cauda, mantendo-se agora afastados do bosque. As tais aves já não estavam à espera no solo. Estavam todas pesadamente empoleiradas numa árvore. Havia agora muitas mais. O seu boy pessoal estava sentado junto da cama.

“A Memsahib foi caçar,” disse o rapaz. “O Bwana quer alguma coisa?”

“Nada.”

Ela tinha ido caçar para arranjar um pouco de carne e, sabendo como ele gostava de observar os animais, tinha ido para longe de modo a não perturbar aquela pequena parte da planície que ele abarcava com a vista. Ela era sempre ponderada, pensava ele. Em tudo o que sabia, ou que tinha lido, ou de que alguma vez tinha ouvido falar.

Ela não tinha culpa de ele já estar acabado quando começaram a andar juntos. Como é que uma mulher podia saber que uma pessoa não queria dizer nada daquilo que disse; que uma pessoa falava apenas por falar e para se sentir bem? Depois que começou a fingir que falava verdade, as suas mentiras eram mais bem sucedidas com as mulheres do que quando ele lhes dizia a verdade.

Não era tanto o facto de ele mentir, mas antes o de não haver uma verdade para dizer. Ele tinha vivido a sua vida e acabara-se e depois continuou a vivê-la de novo com pessoas diferentes e mais dinheiro, com os melhores dos mesmos lugares, e alguns novos.

Evitavas pensar e era tudo fantástico. Armavas-te com um bom íntimo para assim não ficar despedaçado, como a maioria deles, e tomavas uma pose que mostrasse que o trabalho que antes fazias não te interessava nada, agora que já não podias fazê-lo. Mas, para ti próprio dizias que havias de escrever sobre aquelas pessoas; sobre os muito ricos; que não eras um deles mas antes um espião no seu campo; que havia de deixar aquilo e escrever sobre aquilo e por uma vez aquilo seria escrito por alguém que sabia do que estava a escrever. Mas ele nunca o faria, porque cada dia sem escrita, sem conforto, cada dia em que ele era precisamente aquilo que desprezava, entorpecia a sua capacidade e amolecia a sua vontade de trabalhar, de tal maneira que, por fim, não fazia mesmo nada. As pessoas que ele agora conhecia sentiam-se muito melhor quando ele não trabalhava. A África era o lugar onde ele fora mais feliz nos bons tempos da sua vida, e portanto tinha lá voltado para começar de novo. Tinham feito este safari com um mínimo de conforto. Sem privações; mas também sem luxo, e ele pensara que assim poderia voltar ao treino daquela maneira. Que de certa maneira poderia desfazer-se da gordura do espírito tal como um lutador ia para a montanha trabalhar e treinar para assim queimar a do corpo.

Ela gostara. Disse que adorava aquilo. Ela adorava qualquer coisa que fosse excitante, que envolvesse uma mudança de cenário, onde houvesse boas pessoas e onde as coisas fossem agradáveis. E ele tinha sentido a ilusão de recuperar a força de vontade para trabalhar. Ora, se era assim que as coisas iam acabar, e ele sabia que era, ele não devia começar a fazer como a serpente que se morde a si própria por ter quebrado a espinha. A culpa não era desta mulher. Se não fosse ela, tinha sido outra qualquer. Se ele vivia numa mentira, devia morrer nela. Ouviu um tiro para lá da colina.

Ela atirava bem, aquele cabra boa, aquela cabra rica, aquela simpática zeladora e destruidora do seu talento. Disparate. Ele é que tinha destruído o seu próprio talento. Por que é que ele havia de culpar aquela mulher por ela o tratar bem? Ele tinha destruído o seu talento não o utilizando, com traições a si próprio e àquilo em que acreditava, bebendo tanto que embotava o gume das suas percepções, com a preguiça, a indolência, e o snobismo, com o orgulho e o preconceito, com o bem e com o mal. O que era aquilo? Um catálogo de livros antigos? De qualquer maneira, o que era o seu talento? Era mesmo talento mas, em vez de o usar, ele tinha feito negócio com ele. A questão não era nunca o que ele tinha feito, mas sempre o que podia fazer. E ele escolhera ganhar a vida com qualquer coisa que não a caneta ou o lápis. Também era estranho, não era? que quando se apaixonava por mais outra mulher, essa mulher havia de ter sempre mais dinheiro do que a anterior. Mas quando já não estava apaixonado, quando já só andava a mentir, como no caso desta, agora, que era, de todas, a mais rica, que tinha o dinheiro todo, que tivera marido e filhos, que tinha arranjado amantes e se tinha fartado deles, que o amava profundamente como escritor, como homem, como companheiro, como uma posse de que se orgulhava; era estranho que, quando ele já não a amava de todo e andava a mentir, que ele fosse capaz de lhe dar mais pelo seu dinheiro do que quando realmente amara.

Nós devemos ser feitos para aquilo que fazemos, pensou ele. O nosso talento reside na maneira como ganhamos a vida, seja ela qual for. Ele vendera a vitalidade, de uma forma ou de outra, toda a sua vida, e quando os nossos afectos não estão demasiado envolvidos damos muito mais valor ao dinheiro. Ele descobrira isto, mas também já nunca o iria escrever. Não, não o iria escrever, embora valesse bem a pena.

Nesta altura ela apareceu à vista, a atravessar a planície em direcção ao acampamento. Vestia calças de montar e trazia a espingarda. Os dois rapazes traziam uma arma à tiracolo e seguiam atrás dela. Ainda era uma bela mulher, pensou ele, e tinha um corpo agradável. Tinha grande talento para a cama e gostava, não era bonita, mas ele gostava do seu rosto, lia muitíssimo, gostava de montar e caçar e, claro, bebia demais. O marido morrera quando ela era ainda relativamente nova e durante um tempo dedicara-se aos seus dois filhos adolescentes, que não precisavam dela e ficavam embaraçados com a sua presença, ao seu estábulo, aos livros, às garrafas. Gostava de ler à noite, antes do jantar e bebia whisky e soda enquanto lia. Pela hora de jantar, estava já um pouco bebida, e depois de uma garrafa de vinho ao jantar ficava normalmente embriagada o bastante para dormir.

Isto foi antes dos amantes. Depois de ter os amantes já não bebia tanto porque então não precisava de estar bêbeda para dormir. Mas os amantes aborreciam-na. Tinha estado casada com um homem que nunca a aborrecera, e esta gente aborrecia-a imenso.

Então, um dos seus dois filhos morreu num acidente de aviação e depois disso não mais quis os amantes, e, não sendo a bebida um anestésico, ela teve de arranjar outra vida. De repente, ficara agudamente amedrontada de estar só. Mas queria a companhia de alguém que ela respeitasse.

Tudo tinha começado muito simplesmente. Ela gostava do que ele escrevia e sempre invejara a vida que ele fazia. Ela pensava que ele fazia exactamente tudo o que queria. Os passos que dera para o conquistar, e a maneira como finalmente se apaixonara por ele, fazia tudo parte de uma progressão regular em que ela construíra uma nova vida para si própria e ele tinha vendido o que restava da sua antiga vida.

Tinha-a vendido em troca de segurança, e também de conforto, isso não se podia negar, e de mais quê? Não sabia. Ela ter-lhe-ia trazido tudo o que ele quisesse. Ele sabia isso. Ela era uma belíssima mulher, também. Ele ia para a cama com ela como com qualquer outra; mas preferia-a a ela, porque era mais rica, porque era muito agradável e gostava, e porque nunca fazia cenas. E agora essa vida que ela construíra de novo estava a chegar ao fim, porque há quinze dias ele não usara tintura de iodo quando um espinho lhe tinha feito um arranhão num joelho ao avançarem para tentar fotografar uma manada de gamos parados, com a cabeça levantada, a espreitar, de nariz no ar, as orelhas bem estendidas para escutar o primeiro ruído que os precipitaria para o bosque. Mas eles fugiram antes de ele tirar a fotografia.

Aí vinha ela agora.

Ele voltou a cabeça na cama para olhar para ela. “Olá,” disse ele.

“Matei um carneiro,” disse-lhe ela. “Vai fazer um belo caldo para ti e vou-lhes mandar fazer puré de batata com o Klim. Como é que te sentes?”

“Muito melhor.”

“Não é delicioso, isso? Sabes que eu já imaginava isso mesmo. Estavas a dormir quando fui embora.”

“Fiz uma boa soneca. Foste para muito longe?”

“Não. Só até ali adiante, atrás da colina. Foi um tiro bastante bom, no carneiro.”

“Tu atiras muito bem, sabes?”

“Adoro isto. Adorei a África. É verdade. Se ficares bom foi o melhor tempo que já tive. Tu não imaginas o gozo que foi caçar contigo. Adorei a região.”

“Eu também gosto.”

“Querido, não sabes como é maravilhoso ver-te melhor. Eu não suportava ver-te daquela maneira. Não vais falar mais comigo daquela maneira, pois não? Promete.”

“Não,” disse ele. “Eu já não me lembro do que disse.”

“Tu não precisas de me destruir. Pois não? Eu sou só uma mulher de meia idade que te ama e que quer fazer o que tu quiseres. Já me destruíram duas ou três vezes. Não ias com
certeza querer destruir-me outra vez, pois não?”

“Eu gostaria de te destruir umas vezes, na cama,” disse ele.

“Sim. Essa é a boa destruição. Foi para sermos destruídos dessa maneira que nós fomos feitos. O avião vai chegar aí amanhã.”

“Como é que sabes?”

“Tenho a certeza. Tem de chegar. Os rapazes têm a madeira toda pronta e a erva para fazerem a fogueira. Fui ver hoje, outra vez. Há muito espaço para aterrar e nós temos as fogueiras preparadas, em ambos os extremos.”

“O que é que te faz pensar que ele vem amanhã?”

“Tenho a certeza de que vem. Já está atrasado. Depois, na cidade, eles tratam-te da perna e então nós trataremos de fazer alguma destruição. Não daquele terrível género falado.”

“Vamos beber um whisky? O sol já se pôs.”

“Achas que deves?”

“Eu vou beber um.”

“Vamos beber juntos. Molo, letti dui whisky-soda?” chamou ela.

“É melhor calçares as botas contra os mosquitos,” disse-lhe ele.

“Depois de tomar banho…”

Enquanto escurecia estiveram a beber e precisamente antes de escurecer completamente e quando já não se via para disparar, uma hiena atravessou a clareira a caminho da colina.

“Aquele patife faz isto todas as noites,” disse o homem. “Todas as noites há duas semanas.”

“É ela que faz barulho de noite. Eu não me importo. Mas são animais imundos.”

A beberem juntos, já sem dores, a não ser o desconforto de estar deitado sempre na mesma posição, os rapazes a acenderem a fogueira e as suas sombras a saltar sobre as tendas, ele sentia o regresso da sua anuência a esta vida de agradável rendição. Ela era, de facto, muito boa para ele. Ele fora cruel e injusto para com ela, à tarde. Ela era uma belíssima mulher, realmente maravilhosa. E precisamente nessa altura lembrou-se de que ia morrer.

A lembrança veio-lhe numa arremetida; não uma arremetida de água ou de vento; mas de um vazio súbito, cheirando a mal e o estranho é que a hiena deslizava levemente ao longo da margem.

“O que foi, Harry?” perguntou ela?

“Nada,” disse ele. Era melhor mudares para o outro lado. Para o lado do vento.”

“O Molo mudou-te o penso?”

“Mudou. Agora só estou a pôr o bórico.”

“Como é que te sentes?”

“Um bocado enjoado.”

“Vou tomar banho,” disse ela. “Volto já. Venho comer contigo e depois pomos a cama lá dentro.”

Portanto, disse ele consigo, fizemos bem em acabar com as discussões.

Ele nunca tinha discutido muito com esta mulher, enquanto que com as mulheres que ele amava discutira tanto que sempre acabavam por matar a relação com a corrosão das discussões. Ele amara demais, exigira demais e esgotara tudo.

Pensou naquela altura em que estava só em Contantinopla depois de uma discussão em Paris antes de ir embora. Passara o tempo com prostitutas e depois, quando isso acabou, não tinha conseguido vencer a solidão, mas apenas piorá-la, escrevera-lhe uma carta, à primeira, àquela que o deixou, uma carta a contar-lhe como não tinha conseguido vencê-la… como ao julgar vê-la à saída do Regence ele se sentira todo fraco e enjoado interiormente, e que costumava seguir uma mulher que se parecia com ela ao longo do Boulevard, com receio de ver que não era ela, com receio de perder aquela sensação que aquilo lhe dava. Como todas aquelas com quem dormira apenas lhe faziam sentir mais a sua falta. Como o que ela lhe fizera não podia nunca ter qualquer importância uma vez que ele não conseguia deixar de amá-la. Escreveu essa carta no Clube, completamente sóbrio, e mandou-a para Nova York pedindo que lhe respondesse para o escritório em Paris. Assim parecia seguro. E nessa noite, sentindo tanto a sua falta que se sentiu oco por dentro, vagueou pelo Taxim’s, arranjou uma rapariga, e levou-a a jantar. Tinha ido depois com ela dançar, ela dançava mal, e trocou-a por uma quente puta arménia, que se esfregava contra ele de tal maneira que quase queimava. Ele tirou-a de um artilheiro britânico subalterno depois de uma briga. O artilheiro desafiou-o lá para fora e eles lutaram na rua, sobre o empedrado, na escuridão. Ele tinha-lhe batido duas vezes, com força, ao lado do queixo e quando viu que ele não caiu, concluiu que tinha ali uma luta séria. O artilheiro atingiu-o no corpo e depois num olho. Ele atirou-lhe uma esquerda outra vez, vacilou e caiu ao chão e o artilheiro caíu-lhe em cima agarrou-lhe o sobretudo e rasgou-lhe uma manga e ele agrediu-o por duas vezes por detrás da orelha e depois socou-o com a direita enquanto o afastava. Quando o artilheiro caíu, bateu primeiro com a cabeça e ele fugiu com a rapariga porque ouviram os M.P.’s a chegar. Apanharam um taxi que os levou para Rimmily Hiss ao longo do Bósforo, e de volta, e depois outra vez a noite fria e depois a cama e ele sentiu-a demasiado madura como parecia, mas macia, como pétala de rosa, melada, de ventre macio, seios grandes, sem precisar de almofada por baixo das nádegas, e deixou-a antes de ela acordar com ar desprendido aos primeiros raios de luz e apareceu no Pera Palace com um olho negro e o sobretudo de baixo do braço porque lhe faltava uma manga.

Nessa mesma noite partiu para a Anatólia e lembrou-se mais tarde, nessa viagem, de ter cavalgado todo o dia pelos campos de papoilas que eles cultivavam para fazer ópio e como aquilo o fazia sentir-se esquisito, finalmente, e todas as distâncias pareciam estar erradas, para onde eles tinham feito o ataque com os recém-chegados oficiais de Constantino, que não percebiam nada, e a artilharia tinha disparado sobre as tropas e o observador britânico tinha chorado como uma criança.

Foi nesse dia que ele viu pela primeira vez mortos com saias de ballet brancas e sapatos com a pontas reviradas e com pompons. Os turcos tinham vindo com regularidade aos magotes e ele tinha visto os homens de saias a correr e os oficiais a disparar sobre eles e depois a correr, eles também, e ele e o observador britânico tinham corrido também até os pulmões lhe doerem e a boca ficou cheia daquele sabor a dinheiro e pararam atrás de umas rochas e lá estavam os turcos a chegar sempre aos magotes. Mais tarde vira coisas que nunca imaginara e que ainda vira outra vez mais tarde, muito piores. Assim, quando voltou para Paris dessa vez não conseguia falar daquilo nem suportava que referissem o assunto. E naquele café onde ele passou estava aquele poeta americano com uma pilha de pires à sua frente e uma expressão estúpida na cara de batata a conversar sobre o movimento Dada com um romeno que disse chamar-se Tristan Tzara, que trazia sempre um monóculo e estava com dores de cabeça, e, de volta ao apartamento com a mulher, que, acabada a discussão, acabada a loucura, ele agora amava outra vez, feliz por estar em casa, o escritório mandava-lhe o correio para o apartamento. Então a carta em resposta àquela que ele escrevera chegou numa bandeja um dia de manhã e quando ele reparou na caligrafia ficou gelado e tentou esconder a carta debaixo de outra. Mas a mulher disse, “De quem é essa carta, querido?” e foi o fim do princípio daquilo.

Recordou os bons tempos com todas elas, e as discussões. Elas escolhiam sempre os melhores sítios para as discussões. E por que é que elas discutiam sempre quando ele se sentia no melhor? Nunca tinha escrito sobre nada disto, porque, primeiro, nunca queria magoar ninguém e depois parecia-lhe que havia mais sobre que escrever, para além daquilo. Mas sempre pensou que acabaria por escrever. Havia tanto para escrever. Tinha visto o mundo mudar; não apenas os acontecimentos; embora ele tivesse visto muitos deles e tivesse observado as pessoas, mas tinha visto a mudança mais subtil e lembrava-se de como as pessoas eram nas diferentes alturas. Tinha estado por dentro e tinha observado e era seu dever escrever sobre isso; mas agora nunca o faria.

“Como é que te sentes?” disse ela. Já tinha saído da tenda, depois do banho.

“Bem.”

“Já queres comer?” Ele viu Molo atrás dela, com a mesa desdobrável, e o outro rapaz, com os pratos.

“Eu quero escrever,” disse ele.

“Devias comer um pouco de caldo para manter as forças.”

“Eu vou morrer esta noite,” disse ele. “Não preciso de forças.”

“Por favor, Harry, não sejas melodramático,” disse ela.

“Por que é que tu não usas o nariz? Já estou todo podre até à coxa. Para que diabo me hei-de chatear com o caldo? Molo, traz-me o whisky-soda.”

“Toma o caldo, por favor,” disse ela calmamente.

“Está bem.”

O caldo estava quente. Teve de o deixar arrefecer na tigela para o tomar e depois bebeu-o de um trago.

“És uma excelente mulher,” disse ele. “Não ligues ao que eu digo.”

Ela olhou para ele com a sua conhecida cara bem-amada do Spur e Town and Country só um pouco pior na bebida, só um pouco pior na cama, mas Town and Country nunca mostraram aqueles seios tão bons e aquelas coxas tão úteis e aquelas mãos tão acariciadoras, e enquanto olhava e via o seu tão agradável e bem conhecido sorriso, sentiu a morte a aproximar-se de novo. Desta vez não havia pressa. Era um sopro, como de uma aragem que faz a chama da vela tremer e alongar-se.

“Eles podem trazer-me a rede mais tarde e pendurá-la na árvore e fazer a fogueira. Esta noite não vou ficar na tenda. Não vale a pena mudar-me. Está uma noite clara. Não vai chover.

Então era assim que se morria, em sussurros que não se ouviam. Bem, não haveria mais discussões. Podia prometê-lo. Não ia agora estragar a única coisa que nunca experimentara. Se calhar ia. Tu estragavas sempre tudo. Mas talvez não fosse.

“Tu não sabes tomar ditados, pois não?”

“Nunca aprendi,” disse-lhe ela.

“Não tem importância.”

Não havia tempo, claro, embora desse a sensação de que aquilo se comprimia de maneira a poder meter-se tudo num parágrafo se se conseguisse agarrá-lo bem.

Era uma casa de madeira com as juntas calafetadas com argamassa branca numa colina sobre o lago. Havia um sino num poste ao lado da porta para chamar as pessoas para as refeições. Por detrás da casa ficavam os campos e por detrás dos campos a floresta. Uma fila de choupos ia da casa até ao embarcadouro. Mais choupos ao longo do pontão. Uma estrada subia até às colinas acompanhando a orla da floresta e ao longo da estrada ele apanhava amoras silvestres. Depois a casa ardeu e todas as armas penduradas sobre a lareira se queimaram e depois os canos com o chumbo derretido nas câmaras e as coronhas carbonizadas, ficaram sobre o monte das cinzas que foram utilizadas para fazer soda cáustica para as grandes caldeiras de ferro do sabão, e tu perguntavas ao avô se podias brincar com elas, e ele dizia, não. Compreendes, ainda eram as suas armas e nunca mais comprou outras. E também nunca mais caçou. A casa foi reconstruída no mesmo local, aproveitando os destroços, e pintada de branco e da entrada viam-se os choupos e para além deles o lago; mas nunca mais houve armas. Os canos das armas que estavam penduradas na parede da casa estavam ali no monte das cinzas e nunca mais ninguém mexeu nelas.

Na Floresta Negra, depois da guerra, alugámos um ribeiro de trutas e havia duas maneiras de lá chegar. Uma era ir pelo vale abaixo, desde Triberg, rodear a estrada do vale à sombra das árvores que bordejavam aquela estrada branca, e depois subir por um caminho lateral que seguia pela colina acima, passando por muitas pequenas quintas com aquelas grandes casas do Schwarzwald, até o caminho atravessar o ribeiro. Era aí que a pesca começava.

A outra maneira era trepar pela orla escarpada dos bosques e depois atravessar o cume das colinas pelos pinhais e sair para a orla de uma veiga e descer por esta veiga até à ponte. Havia vidoeiros ao longo do ribeiro, e este não era grande, mas estreito, claro e rápido, com pequenos poços nos sítios onde a água tinha escavado a passagem por debaixo das raizes dos vidoeiros. No Hotel em Triberg o proprietário teve uma bela época. Foi muito agradável e éramos todos amigos. No ano seguinte veio a inflação e o dinheiro que ele tinha feito no ano anterior não chegou para comprar as provisões necessárias para abrir o hotel e enforcou-se.

Tu podias ditar isto, mas não podias ditar a Praça Contrescarpe onde as vendedeiras de flores tingiam as flores na rua e a tinta escorria para o pavimento de onde os autocarros partiam e os velhos e as velhas, sempre bêbados de vinho e bagaço ordinários; o cheiro a suor sujo e a pobreza e a embriaguez no Café des Amateurs e as prostitutas no Bal Musette por cima do qual viviam. A porteira que acolhia o soldado da Guarda Republicana no seu apartamento, o capacete emplumado de crinas sobre a cadeira. A locatária da frente cujo marido era corredor de bicicleta e a alegria dela naquela manhã na Leitaria quando abriu o L’Auto e viu que ele se classificara em terceiro lugar no Paris-Tours; a sua primeira grande corrida. Ela corara e rira e subira as escadas a gritar, com aquele jornal desportivo amarelo na mão. O marido da mulher que dirigia o Bal Musette era motorista de taxi e quando ele, Harry, tinha de apanhar um avião muito cedo batia-lhe à porta para o acordar e eles bebiam um copo de vinho branco cada um ao balcão cromado do bar antes de partirem. Ele nessa altura conhecia os moradores daquele bairro porque eram todos pobres.

Naquela Praça havia duas espécies de gente: os bêbados e os desportistas. Os bêbados matavam a pobreza dessa maneira; os desportistas superavam-na com o exercício. Eram os descendentes dos Communards e para eles não era preciso um grande esforço para saberem da sua política. Eles sabiam quem matara os pais, os parentes, os irmãos e os amigos quando as tropas de Versailles entraram na cidade e a tomaram depois da Comuna e executaram quem quer que apanhassem de mãos calosas ou que usasse boina ou exibisse qualquer outro sinal de que era um trabalhador. E naquela pobreza e naquele bairro do outro lado da rua de uma Boucherie Chevaline e de uma cooperativa vinícola ele tinha escrito o começo de tudo o que tinha que fazer. Nunca gostara de qualquer outra zona de Paris como gostava daquela, as árvores esparramadas, as velhas casas rebocadas de branco e pintadas de castanho na parte de baixo, o verde dos autocarros naquela praça quadrada, a tinta purpúrea das flores sobre o pavimento, a descida íngreme da Rua Cardinal Lemoine pela colina abaixo até ao Rio, e do outro lado o estreito mundo da Rua Mouffetard apinhada de gente . A rua que subia em direcção ao Panteão e a outra por onde ele ia sempre de bicicleta, a única rua asfaltada daquele bairro, macia sob os pneus, com as casas estreitas e altas e o edifício alto daquele hotel barato onde morrera Paul Verlaine. Os apartamentos onde eles viviam tinham apenas duas divisões e ele tinha um quarto no último andar desse hotel, que lhe custava sessenta francos por mês, onde ele escrevia, e de lá via os telhados e as chaminés e todas as colinas de Paris.

Do apartamento apenas se via a loja do vendedor de lenha e carvão. Vendia vinho também, vinho ordinário. A cabeça de cavalo dourada na parte de fora da Boucherie Chevaline, onde se viam, penduradas na montra, as carcaças douradas e vermelhas, e a cooperativa pintada de verde onde eles compravam o vinho; vinho bom e barato. O resto eram paredes de estuque e as janelas dos vizinhos. Vizinhos que, à noite, quando algum bêbado, deitado na rua, resmungava e gemia, naquela ivresse tipicamente francesa que nos queriam convencer que não existia, abriam as janelas e depois o murmúrio das conversas.

“Onde está o polícia? Quando não é preciso o gajo anda sempre por aí. Deve estar a dormir com alguma porteira. Chama o Agent.” Até que alguém atirava um balde de água da janela e os gemidos acabavam. “O que é aquilo? Água. Ah, inteligente.” E as janelas a fecharem-se. Marie, a mulher-a-dias dele, a protestar contra o dia de trabalho de oito horas dizendo, “Se o marido trabalha até às seis, embebeda-se só um bocado a caminho de casa e não gasta muito. Se trabalha só até às cinco embebeda-se todas as noites e fica sem dinheiro. É a mulher do trabalhador que sofre com esta redução das horas de trabalho.”

“Não queres mais caldo?” perguntou então a mulher.

“Não, obrigado. Está muito bom.”

“Toma só um bocadinho.”

“Eu queria era um whisky-soda.”

“Isso não te faz bem.”

“Não, faz-me mal. Cole Porter escreveu a letra e a música. O saber que vais ficar louca por mim.”

“Sabes muito bem que eu gosto que bebas.”

“Pois. Só que me faz mal.”

Quando ela se for, pensou ele, vou ter tudo o que quiser. Não tudo o que quiser, mas tudo o que houver. Sim, sim, ele estava cansado. Cansado demais. Ia dormir um pouco. Deixou-se ficar quieto e a morte não estava lá. Deve ter ido a outra rua. Foi aos pares, de bicicleta e deslocou-se em silêncio absoluto sobre os passeios.

Não, ele nunca escrevera sobre Paris. Sobre o Paris de que ele gostava. Mas, e o resto, tudo o resto sobre que ele nunca escrevera?

E o rancho e o cinzento prateado das salvas, a água rápida e clara nas valas de irrigação, e o verde pesado da alfalfa? O caminho subia até às colinas e o gado no verão ficava tímido como os veados. Os gritos e o ruído regular e aquela mole imensa movendo-se lentamente, levantando a poeira quando os traziam para baixo no outono. E por detrás das montanhas, o pico afiado muito claro à luz da tardinha e, a cavalgar ao longo da caravana, à luz do luar muito brilhante no vale. Recordava agora a descida através da floresta, no meio da escuridão, agarrado à cauda do cavalo quando já não se via e todas as histórias que ele tencionava escrever.

Sobre o moço de recados, um pateta, que deixaram no rancho e a quem recomendaram que não deixasse ninguém apanhar feno, e aquele velho patife do Forks que batera no rapaz quando este trabalhara para ele e que lá foi para arranjar umas rações. O rapaz a recusar e o velho a dizer que lhe batia outra vez. O rapaz pegou na espingarda que estava na cozinha e disparou sobre ele quando tentava entrar no celeiro e quando eles regressaram ao rancho já ele estava morto há uma semana, congelado na cerca dos animais, e os cães já lhe tinham comido uma parte do corpo. Mas o que dele restava foi colocado num trenó, embrulhado num cobertor, e amarrado com cordas e tu mandaste o rapaz ajudar-te a arrastá-lo e os dois levaram-no pela estrada, em skis, para a cidade, a sessenta milhas, para entregar o rapaz, sem que ele fizesse ideia de que iria ser preso. Pensando que tinha cumprido com a sua obrigação e que tu eras amigo dele e que seria recompensado. Ele tinha ajudado a arrastar o velho para que toda a gente soubesse como o velho fora mau, e como tinha tentado tirar rações que não lhe pertenciam, e quando o sherife o algemou não queria acreditar. Começara então a chorar. Esta era uma história que ele tinha guardado para escrever. Conhecia pelo menos vinte boas histórias dali e nunca escrevera nenhuma. Porquê?

“Diz-lhes porquê,” disse ele.

“Porquê o quê, querido?”

“Nada.”

Ela já não bebia tanto desde que o tinha com ela. Mas se ele sobrevivesse nunca escreveria sobre ela, e ele sabia disso. Nem sobre qualquer um deles. Os ricos eram maçadores e bebiam demais, ou jogavam demais ao backgammon. Eram maçadores e repetitivos. Lembrava-se do pobre Julian e do romântico horror que ele tinha deles e de como ele uma vez tinha iniciado uma história que começava, “Os muito ricos são diferentes de ti e de mim.” E de como alguém dissera a Julian, sim, têm mais dinheiro. Mas o Julian não achou graça. Ele pensava que eles eram uma raça especial e encantadora e quando descobriu que não eram, isso destroçou-o tanto como qualquer das outras coisas que o destroçavam.

Ele desprezara aqueles que o destroçavam. Não se era obrigado a gostar disso por o compreender. Ele podia vencer qualquer coisa, pensava, porque nada o magoava, se não se preocupasse.

Muito bem. Já não se preocupava com a morte. Uma coisa que sempre receara era a dor. Suportava a dor como qualquer pessoa, enquanto esta não se prolongasse por demasiado tempo e o desgastasse, mas aqui tinha qualquer coisa que o tinha magoado terrivelmente e precisamente quando sentira que isso o estava a quebrar, a dor desaparecera.

Recordou a altura, há muito tempo, em que Williamson, o oficial do bombardeamento, foi atingido por uma granada que alguém da patrulha alemã tinha atirado quando ele ia a atravessar o arame naquela noite e pediu, aos gritos, que o matassem. Ele era gordo, corajoso e um bom oficial, embora com uma certa inclinação para exibições fantásticas. Mas naquela noite ele foi apanhado no arame, com um foguete luminoso a iluminá-lo e as suas entranhas derramadas sobre o arame, e assim, quando o trouxeram para dentro, vivo, tiveram de o cortar para o libertar. Mata-me, Harry. Por amor de deus, mata-me. Tinham discutido uma vez sobre o facto de Nosso Senhor nunca nos mandar qualquer coisa que não possamos suportar e uma teoria dizia que isso queria dizer que em determinada altura a dor provocava automaticamente o desmaio. Mas ele lembrava-se sempre de Williamson naquela noite. Nada o fez desmaiar até que ele lhe deu todos os comprimidos de morfina que tinha guardado para si próprio e não deram resultado imediato.

Contudo, isto que ele agora tinha era fácil; e se não piorasse não era nada que o preocupasse. Excepto que gostaria de estar em melhor companhia.

Pensou um pouco sobre a companhia que gostaria de ter ali.

Não, pensou, quando tudo aquilo que se faz, se faz durante tempo demais, ou tarde demais, não se pode esperar que as pessoas ainda lá estejam. As pessoas foram-se todas embora. A festa acabou e agora fica-se com o anfitrião.

Começo a ficar tão farto da morte como de tudo o resto, pensou.

“É uma chatice,” disse ele alto.

“O quê, querido?”

“Qualquer coisa que se faça durante demasiado tempo.”

Olhou-lhe o rosto, entre ele e a fogueira. Estava encostada para trás na cadeira e a luz da fogueira brilhava-lhe no rosto de linhas agradáveis e ele viu que ela estava com sono.
Ouviu o ruído da hiena mesmo a seguir à zona da fogueira.

“Estive a escrever,” disse ele. “Mas fiquei cansado.”

“Achas que consegues dormir?”

“Com certeza. Por que é que não te vais deitar?”

“Gosto de estar aqui contigo.”

“Sentes alguma coisa esquisita?”

“Não. Apenas tenho sono.”

“Eu sinto.”

Ele sentira a morte a aproximar-se de novo.

“Sabes muito bem que a única coisa que nunca perdi foi a curiosidade,” disse-lhe ele.

“Tu nunca perdeste nada. És o homem mais completo que conheci.”

“Meu Deus,” disse ele. “Que pouco sabem as mulheres. O que é isso? A tua intuição?”
Porque precisamente nessa altura a morte chegara e pousara a cabeça nos pés da cama e ele sentiu o seu hálito.

“Nunca acredites nessa balela da gadanha e da caveira,” disse-lhe ele. “Tanto podem ser dois polícias de bicicleta como um pássaro. Ou pode ter um focinho largo como uma hiena.”
Já tinha subido até ele, mas não tinha forma. Apenas ocupava espaço.

“Diz-lhe que se vá embora.”

Mas ela não se foi embora, antes se aproximou mais.

“Tens um hálito dos diabos,” disse-lhe ele. “Canalha mal-cheirosa.”

Ela aproximou-se ainda mais, mas mesmo assim, ele não conseguia falar com ela, e quando ela viu que ele não conseguia falar aproximou-se mais e mais, e então ele tentou afastá-la sem falar, mas ela trepou para cima dele de modo que o seu peso estava-lhe todo sobre o peito, e enquanto ela ali se instalava e ele não podia mexer-se nem falar, ouviu a mulher dizer, “Bwana já está a dormir. Peguem na cama com muito cuidado e levem-na para dentro da tenda.”

Ele não conseguia falar para lhe pedir que a fizesse ir embora, e ela pesou-lhe ainda mais e ele já não conseguia respirar. E então, enquanto eles levantavam a cama, subitamente, ficou tudo bem, e o peso desapareceu-lhe do peito.

Era já de manhã há algum tempo e ele ouviu o avião. Parecia muito pequenino e descreveu um grande círculo e os rapazes correram a acender as fogueiras com querosene, e fizeram montes de erva de modo que havia duas grandes fogueiras em em cada um dos extremos da planura e a brisa da manhã soprava-as na direcção do acampamento, e o avião descreveu mais dois círculos, mais baixo desta vez, e depois desceu até ao nível do terreno e aterrou suavemente, e, a caminhar na direcção do acampamento, lá vinha o velho Compton, de calças, casaco de tweed e chapéu de feltro castanho.

“O que é que se passa, chefe?” disse Compton.

“Um problema numa perna,” disse-lhe ele. “Não queres tomar o pequeno almoço?”

“Obrigado. Só chá. É o Puss Moth, sabes. Não vou poder levar a Memsahib. Só há lugar para um. A tua camioneta já vem a caminho.”

Helen tinha puxado Compton aparte e estava a falar com ele. Compton voltou mais alegre que nunca.

“Vamos já levar-te,” disse ele. “Depois volto para levar a Mem. Mas acho que terei de parar em Arusha para reabastecer. É melhor irmos já.”

“E o chá?”

“Já sabes que eu não gosto muito de chá.”

Os rapazes tinham pegado na cama e rodeando as tendas verdes levaram-na pela rocha abaixo para a planície até ao avião, passando pelas fogueiras que ardiam agora muito brilhantes, consumida já toda a erva e espevitadas pelo vento. Foi difícil pô-lo lá dentro, mas uma vez lá, ficou sentado no banco de couro, com a perna estendida para um dos lados do banco onde Compton se sentava. Compton arrancou com o motor e entrou. Ele acenou para Helen e para os rapazes e quando aquele ruído se tornou naquele roncar muito familiar deram a volta, o Compie atento aos buracos dos javalis, e aceleraram, aos solavancos, ao longo da faixa entre as fogueiras e, com um último solavanco levantaram voo e ele viu-os todos de pé lá em baixo a acenar, e o acampamento ao lado da colina que agora começava a ficar achatada, e a planície a estender-se, maciços de árvores, e o bosque a ficar achatado, enquanto os rastos dos animais corriam macios até aos charcos secos, e havia uma nova água que ele nunca conhecera. Os costados já pequenos e arqueados das zebras, e os gnus, pequenos pontos de cabeça grande, parecendo trepar quando se deslocavam como que em longos dedos através da planície, espalhando-se agora que a sombra se aproximava deles, eram já muito pequenos e os seus movimentos não eram de galope, e a planície a perder de vista, já amarelo-acizentada, e à frente o tweed do casaco e o chapéu de feltro do velho Compie. Depois sobrevoaram as primeiras colinas e os gnus a correr à sua frente e depois as montanhas com súbitos vales cobertos de florestas verde claras e as sólidas encostas de bambus e depois floresta densa outra vez esculpida em picos e depressões, até as atravessarem, e as colinas desciam e depois outra planície, agora quente, e castanho púrpura, irregular do calor, e o Compie a olhar para trás para ver como ele estava. Depois outras montanhas escuras à frente.

E então, em vez de irem para Arusha, viraram à esquerda, ele evidentemente concluiu que tinham combustível suficiente, e ao olhar para baixo viu uma nuvem cor-de-rosa granulada a deslocar-se sobre a terra e no ar, como as primeiras neves de uma tempestade vinda de parte nenhuma, e ele sabia que os gafanhotos vinham lá do sul. Começaram então a subir e parecia que se dirigiam para leste, e depois escureceu e ficaram no meio de uma tempestade, a chuva tão espessa que parecia que iam a voar no meio de uma queda de água, e depois saíram e o Compie voltou-se e mostrou um largo sorriso e apontou e lá à frente tudo o que ele conseguiu ver, largo como o mundo todo, grande, alto e inacreditavelmente branco da luz do sol, lá estava o cume quadrangular do Kilimanjaro. E então ficou a saber que era para lá que ia.

Precisamente nesse momento a hiena calou-se na noite e começou a produzir um som estranho, humano, quase um choro. A mulher ouviu-a e mexeu-se, inquieta. Não acordou. Em sonhos, estava na casa de Long Island e era a noite da véspera do début da filha. Sem saber como nem porquê, o pai estava lá e fora muito grosseiro. Então o som da hiena era já tão alto que ela acordou e por momentos ficou sem saber onde estava e com medo. Pegou na lanterna e dirigiu-a para a outra cama que eles tinham trazido para dentro depois de Harry ter adormecido. Viu o volume do corpo dele debaixo da rede dos mosquitos, mas ele tinha como que estendido a perna para fora e ela pendia ao longo da cama. Os pensos tinham caído todos e ela não conseguia olhar para lá.

“Molo,” chamou ela. “Molo! Molo!”

Depois disse, “Harry, Harry!” Depois subindo de tom, “Harry! Por favor. Oh, Harry!”

Não houve resposta e ela não o ouvia a respirar.

Fora da tenda a hiena fez aquele mesmo som estranho que a tinha acordado. Mas ela não ouvia nada senão o bater do próprio coração.

Fontes:
http://www.charleskiefer.com.br/oficina/contos/hem_kilimanjaro.htm
Foto
http://home.austarnet.com.au

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Luis Fernando Verissimo (O Apito)

Tudo o que o Mafra dizia, o Dubin duvidava. Eram inseparáveis, mas viviam brigando. Porque o Mafra contava histórias fantásticas e o Dubin sempre fazia aquela cara de conta outra.

— Uma vez…
— Lá vem história.
— Eu nem comecei e você já está duvidando?
— Duvidando, não. Não acredito mesmo.
— Mas eu nem contei ainda!
— Então conta.
— Uma vez eu fui a um baile só de pernetas e…
— Eu não disse? Eu não disse?

O Mafra às vezes fazia questão de provar as suas histórias para o Dubin.

— Dubin, eu sou ou não sou pai-de-santo honorário?

O Dubin relutava, mas confirmava.

— É.

Mas em seguida arrematava:

— Também, aquele terreiro está aceitando até turista argentino…

Então veio o caso do apito. Um dia, numa roda, assim no mais , o Mafra revelou:

— Tenho um apito de chamar mulher.
— O quê?
— Um apito de chamar mulher.

Ninguém acreditou. O Dubin chegou a bater com a cabeça na mesa, gemendo:

— Ai meu Deus! Ai meu Deus!
— Não quer acreditar, não acredita. Mas tenho.
— Então mostra.
— Não está aqui. E aqui não precisa apito. É só dizer “vem cá”.

O Dubin gesticulava para o céu, apelando por justiça.

— Um apito de chamar mulher! Só faltava essa!

Mas aconteceu o seguinte: Mafra e Dubin foram juntos numa viagem (Mafra queria provar ao Dubin que tinha mesmo terras na Amazônia, uma ilha que mudava de lugar conforme as cheias) e o avião caiu em plena selva. Ninguém se pisou, todos sobreviveram e depois de uma semana a frutas e água foram salvos pela FAB. Na volta, cercados pelos amigos, Mafra e Dubin contaram sua aventura. E Mafra, triunfante, pediu para Dubin:

— Agora conta do meu apito.
— Conta você — disse Dubin, contrafeito.
— O apito existia ou não existia?
— Existia.
— Conta, conta — pediram os outros.
— Foi no quarto ou quinto dia. Já sabíamos que ninguém morreria. A FAB já tinha nos localizado. O salvamento era só uma questão de tempo. Então, naquela descontração geral, tirei o meu apito do bolso.
— O tal de chamar mulher?
— Exato. Estou mentindo, Dubinzinho?
— Não — murmurou Dubinzinho.
— Soprei o apito e pimba.
— Apareceram mulheres?
— Coisa de dez minutos. Três mulheres.

Todos se viraram para o Dubin incrédulos.

— É verdade?
— É — concedeu Dubin.

Fez-se um silêncio de puro espanto. No fim do qual Dubin falou outra vez:

— Mas também, era cada bucho!

Fonte:
Luis Fernando Veríssimo. Outras do analista de Bagé. Porto Alegre/RS: L & PM, 1982.

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Baptista Bastos (1934)

Armando Baptista-Bastos (1934), é considerado um dos maiores prosadores portugueses contemporâneos. Iniciou-se como jornalista no jornal “O Século”, tendo trabalhado também no”República,”, “Europeu”, “O Diário”, “Diário Popular” e nas revistas “Cartaz”, “Almanaque”, “Época” e “Sábado”. Foi, igualmente, redator em Lisboa da Agência France Press.

Usando o pseudônimo de Manuel Trindade, trabalhou na RTP – Rádio e Televisão de Portugal, nos tempos do governo de Marcelo Caetano. Foi despedido por ter sido considerado um “adversário do regime”. Porém, é no vespertino “Diário Popular”, onde trabalhou durante vinte e três anos (1965-1988), e no qual desempenhou importantes funções, que deixa sua marca,”com um estilo inconfundível” — no dizer de Adelino Gomes. Foi docente na Universidade Independente, onde lecionou a disciplina de Língua e Cultura Portuguesas. Percorreu, profissionalmente, todo o Portugal Continental e Insular, e viajou e escreveu sobre Espanha, Canárias, França, Itália, Bélgica, Irlanda, Brasil, Uruguai, Argentina, Suíça, Luxemburgo, Grécia, Áustria, Turquia, República Democrática Alemã, República Federal da Alemanha, Checoslováquia, URSS, Marrocos, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Nigéria, Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc.

Baptista-Bastos recebeu, entre outros, os seguintes prêmios:

– Prêmio Feira do Livro de 1966.
– Prêmio Nacional de Reportagem / Prêmio Gazeta de 1985, atribuído pelo Clube de Jornalistas.
– Prêmio O Melhor Jornalista do Ano (1980 e 1983).
– Prêmio Porto de Lisboa de 1988.
– Prêmio Pen Clube de 1987 – «A Colina de Cristal»
– Prêmio Cidade de Lisboa de 1987 – «A Colina de Cristal» .
– Prêmio da Crítica 2002 (Atribuído, em 2003, ao romance “No Interior da Tua Ausência», e como consagração de uma obra literária).
– Grande Prêmio da Crônica da APE (Associação Portuguesa de Escritores), atribuído, em 2003, ao livro «Lisboa Contada pelos Dedos», publicado em 2001.
– Prêmio Gazeta de Mérito, atribuído, por unanimidade, pelo Clube de Jornalistas, em 2004.

Algumas obras do autor:

Ensaios:

– O Cinema na Polêmica do Tempo / 1959
– O Filme e o Realismo / 1962 / Duas edições

Ficção:

– O Secreto Adeus / 1963 / Seis edições
– O Passo da Serpente / 1965 / Duas edições
– Cão Velho entre Flores / 1974 / Oito edições
– Viagem de um pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura / 1981 / Cinco edições
– Elegia para um Caixão Vazio / 1984 / Quatro edições
– A Colina de Cristal / 1987 / Quatro edições (Prêmio Pen Clube e Prêmio Cidade de Lisboa)
– Um Homem Parado no Inverno / 1991 / Quatro edições
– O Cavalo a Tinta-da-China / 1995 / Quatro edições
– No Interior da Tua Ausência / 2002 /Quatro edições

(Entre 2000 e 2002 as Edições ASA publicaram os nove volumes de ficção do autor, sob o título geral de Biblioteca Baptista-Bastos).

Jornalismo:
– As Palavras dos Outros / 1969 / Quatro edições
– Cidade Diária / 1972
– Capitão de Médio Curso / 1979
– O Homem em Ponto / 1984
– O Nome das Ruas / 1993 (Em colaboração com António Borges Coelho)
– José Saramago: Aproximação a um Retrato / 1996
– Fado Falado / 1999
– Lisboa Contada pelos Dedos (Edição do Montepio Geral) / 2001

Disco:

O Sinal do Tempo / 1973 / Crônicas ditas pelo Autor, com música especial do maestro António Victorino d’Almeida (Edições Zip)

Cinema:

Baptista-Bastos é o autor do texto e da entrevista do filme “Belarmino”, realização de Fernando Lopes, geralmente considerado como um dos clássicos do Cinema Novo português. Trabalhou com Rogério Ceitil e Fernando Matos Silva nos documentários “Ribatejo” e “Alentejo”.

Fonte:
http://www.releituras.com

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Baptista-Bastos (Um pouco de ternura)

Nos olhos dela habitava a bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a face transparecia a tranqüilidade interior de quem não fora punida pelo despeito nem agredida pelo ressentimento. Era ainda nova: vivia na linha de sombra que tenuemente divide a idade das pessoas, entre maduras e velhas. De onde viera? Que idade tinha? Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios murchos. Por vezes, exibia largos decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo dos seios, eis os braços roliços, opulentos e sensuais. Era alta, quase imponente; porém, quando subia a rua íngreme, parecia alada, os pés quase não tocavam no chão.

Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente, embebedavam-se.

Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do clube. Gostava de se colocar à varanda, e os homens fitavam-na, gulosos, ávidos e sôfregos. Fingia não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela observava o horizonte, lá, onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstrata, atenta e exposta. Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das outras. Às vezes dançava ao som de uma pequena telefonia. Dançava como se estivesse a dançar com o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em alguém que amara.

As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro era bom e valia tudo o que de ele se dissesse; o resto era mau, e tudo o que de pior se dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas, as suposições pérfidas, as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da postura, a pequena viração de altivez que dela se desprendia.

Suspeitaram de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário de imóveis, que fazia números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a natureza insidiosa desses boatos. Não lhes atribuiu a menor importância, o que ainda mais arreliou as outras.

Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde, ocasionalmente ausentava-se pela noite. Acumulavam-se as suspeições. Até que, certo dia, deixou de aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram ditas, como se de verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou, outra, e outra ainda. Para onde fora? Que seria feito dela? E se ele não regressasse, não pudesse regressar ou não quisesse regressar?

Depois, houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía forte. Desapareceu no cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para descortinar aonde ela ia. Entrou num prédio alto e antigo, de azulejos, e ao perseguidor assaltou a idéia de que a vizinha misteriosa talvez fosse mulher-a-dias (diarista). Este indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar com ela; porém, fora rejeitado com uma frase breve e ríspida. Era o ressentimento que o incitara àquela infausta perseguição.

Horas e horas decorreram. A chuva deixara de cair, o homem encostara-se a uma árvore, sem abandonar a vigilância ao prédio. Até que, finalmente, ela reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente, aproximou-se da árvore onde o outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem. E ela disse:

— Quer saber o que eu faço, não é?

— Bom…bom — Não sabia o que responder.

— Olhe: vendo ternura.

E desandou. Agora, uma brisa mansa, um vento acariciador, um pio de ave, e o silêncio. Era assim: todos os dias, ou quase, ela visitava casas de gente idosa, e recebia escassos euros para lhes ler jornais, revistas ou livros de histórias cordatas com finais felizes. Simplesmente um pouco de ternura.

Voltou à rua para se despedir da rua e ignorar as pessoas. As pessoas juntaram-se, viram-na subir o calçadão, puxar pelas pernas para escalar a escadaria enorme. Durante algum tempo pensaram nela. Nunca ninguém soube o seu nome, nem se foi feliz na vida.

Anos depois, um modesto cronista contou-a numa crônica humilde.
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Fonte:
http://www.releituras.com/

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Luis Rebelo (A camisa do noivado)

(vocabulário de algumas palavras colocadas ao final do texto)

I

Quando Telo, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do castelo de Algouço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens de armas escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Soeiro Lopes; alma negra do senhor, onde alcançara com o braço, deixara sempre vestígios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o vilico (era o seu título naquele tempo) não pôde conter o sorriso, rosnando por entre dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas à porta despediram-no asperamente, respondendo que Sua Mercê repousava, e que ninguém o despertaria para dar audiência a um vilão. A princípio, Telo pôde sopear a ira; mas a pouco e pouco, a alienação irritou-o e levantou a voz. Soeiro Lopes assomou de repente à porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro e perguntou:

— A que vens aqui?

— Trazer o que mandaste e pedir o cumprimento da promessa! — redargüiu ele, friamente.

O senhor empalideceu. Um estremecimento, que não soube vencer, sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvíssima e transparente, que vira na choupana de Aldonça, e tremeu pela primeira vez na sua vida. Depressa se recobrou e, medindo o mancebo com indizível escárnio, replicou:

— Pedi-te duas camisas fiadas e tecidos com os fios das urtigas da sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de cavaleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de faltar. As camisas?!

— Ei-las! — acudiu o besteiro. — Urtigas deram o fio e fadas teceram o pano.

Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admirável bem mostrava não ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha, D. Soeiro tremia. Sobre o peito, em letras cor de sangue, viu as iniciais do seu nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das três esposas que tinham passado ao túmulo do seu leito.

— Bem! — exclamou. — Silvana é tua se a achares. Quanto à mortalha.. Veremos esta noite quem a veste!

Não esperou por mais o besteiro, e partiu apressando o passo, caminho da choupana de Aldonça. Um pressentimento vago advertia-o de perigo incerto. A tristeza oprimia-lhe o peito; todavia, a boa nova, que levava, devia alegrá-lo. A noite fechou-se escura. O tempo mudado. Rugindo no pinhal, o vento arrancava por entre as ramas das árvores gemidos lúgubres. No céu apagavam-se as estrelas uma após outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima do último outeiro. Sem saber por que, sentiu-se Telo desalentado. Ele, o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando chegou à choupana, achou a casa erma e a porta arrombada, e acabou de crer que os presságios não mentem. Bastava olhar para dentro para adivinhar uma cena violenta. A lâmpada ardia ainda junto do lar, e luz mortiça deixava ver os escaninhos partidos, os vasos de barro pisados, as arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em um feixe. O mancebo parou e debalde quis ligar as idéias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrado as forças. Nem o ânimo, nem a razão se prestavam a ajudá-lo.

Fora rapto? Fora vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia! Saltaram-lhe então as lágrimas, e a dor foi tão penetrante, que, a não se encostar, cairia desfalecido. Ocorreram-lhe as palavras de Soeiro Lopes, e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do castelo, e àquela hora entrava talvez as portas do A1cácer, que para ela eram as portas do sepulcro. “É tua, se a achares!” — dissera o larápio. A quem iria Telo pedir justiça? Lutando com a agonia, sentiu que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava à donzela senão a morte depois da infâmia? No auge da desesperação, erguendo as mãos, bradou, atribulado:

— Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! Não embainhei a espada da justiça!

No meio destas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no ombro. Olhou. Viu Aldonça. Um sinal imperioso atalhou em seus lábios o grito que iam soltar. Guiando-o calada, a protetora de seus amores chegou a um lugar deserto, e apontando para um cavalo ajaezado, preso ao tronco de uma árvore, disse-lhe rapidamente :

— Monta!

O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha ajuntou:

— O mordomo de Soeiro Lopes entrou aqui e levou roubada a tua noiva. Corre, que por tua felicidade corres e não pares senão na vila de Miranda. Busca os paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, dize que procuras o senhor. Já o viste. É o monteiro desta manhã. Dá-lhe a trompa, conta-lhe o sucedido e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas terão cumprido o seu fado.

O mancebo, atônito, viu-a desaparecer, e, largando as rédeas, partiu direto à vila.

II

Como o Douro vai fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os penedos do seu leito! Que trovões rebramam as águas despenhadas em cascatas contra as penhas que lhe oprimem a fúria corrente! Como a noite se cobre de luto quase de repente, de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde o estampido longínquo da tempestade. Os relâmpagos fuzilam sobre as eminências.

Lá em cima, nos penhascos fragosos, que vila é aquela cujas torres negras estrelam vivas luzes pelas frestas pontiagudas? Seguindo a margem do rio, Telo Vasques não sente fadiga; o brioso corcel devora a distância. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo atravessa pontes e estradas, enfia ruas e vilas, e pára no terreiro, defronte dos paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e dois até ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detê-lo; mas, sem voltar a cabeça, e continuando responde:

— Busco o senhor.

Ninguém o suspende. De corredor em corredor, de aposento em aposento, chega à sala de armas. Entre os cavaleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-cós ainda.

Grossas tochas em anéis de ferro iluminavam a vasta quadra. Corpos de armas brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos ornatos enfeitam as colunas, cujos capitéis lavrados sustentam os fechos da abóbada. O monteiro, apercebendo Telo, encaminhou-se para ele. O mancebo vinha tão sufocado, que pôde apenas dobrar o joelho e oferecer-se a trompa. Foi preciso que ele sorrisse para o besteiro narrar o sucesso que o trazia àquela hora. Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com vista inflamada bradou:

— Levai-me aos pés de El-Rei D. Pedro. Dizem que ele não conhece grandes, nem pequenos. A donzela que roubaram é pura e santa como a mais pura e nobre de vossas filhas. Não deixeis sem castigo o rico-homem por ela ter nascido no berço de um vilão!

À medida que o besteiro falava, a fisionomia do desconhecido mudava de aspecto. Os olhos pretos dilatados chamejavam, e o semblante, rosado e jovial, empalidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo até nos que se acham distantes. Quando Telo pôs termo as suas queixas e levantou a vista, recuou assustado. A expressão dos olhos do seu protetor era terrível. Ensangüentados e delirantes, mais se assemelhavam às pupilas encadeadas do tigre, do que ao olhar humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, falava tão convulsa que pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes brados:

— Lourenço Gonçalves! Acudi! Um rico-homem furtou a mais linda de minhas filhas!

O brado e a imensa cólera revelaram tudo ao mancebo. Lourenço Gonçalves era o corregedor da corte. Ninguém ousaria chamá-lo assim senão El-Rei. Telo prostrou-se cheio de esperança.

— Segue-me! Afonso Madeira! o meu cavalo enfreado à porta! A minha capelinha de aço. Gonçalo Vasques de Góis, escrivão da Puridade! Chamai os desembargadores, relatai-lhes o feito e lavrai a sentença. Por alma de Inês de Castro!… Pelo seu amor! — murmurou mais baixo. — Antes de nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino e mais uma justiça de minhas mãos no livro das suas crônicas!

Falando assim, enlaçava a capelinha, calçava as luvas de gamo, e, com o açoite cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.

O besteiro seguiu sem proferir palavra. Os cavaleiros montavam, e uns após outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atrás o cavalo do próprio Telo Vasques, e cego de ira metia-se pelas terras de Algouço. Por cima desta vertiginosa carreira a chuva caía em torrentes. A procela abria os céus em clarões lívidos, desarraigando as árvores anosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castelo, um vulto surgiu, que lhe tomou as rédeas, convidando-o a apear-se. De um salto estava em terra e levantando a cabeça viu as frestas da torre iluminada. O vulto travou-lhe do braço, e disse:

— É ali!

— Vamos! — redargüiu o príncipe. E seguiu-o sem desconfiança.

Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu à chave e ao impulso.

— Ide agora e Deus seja convosco! — disse a mesma voz.

Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Inês de Castro subiu. No topo da escada de caracol, a cena que se lhe representou excitou-lhe ainda mais a cólera. Perderia o salutar do nome de “Justiceiro”, se perdoasse aquele crime.

Era espaçoso o aposento. Um lampadário alumiava parte dele; o resto mergulhava-se em profunda escuridão. No centro da sala, num leito, com as mãos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a boca até os ais lhe sufocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados em lágrimas, pediam a Deus a morte, remédio extremo da infâmia. Soeiro Lopes, defronte, sorria medindo com a vista a queda lenta da areia duma ampulheta. A seu lado o vilico silencioso corria os dados sobre a mesa. A teia da mortalha, fiada e tecida com as urtigas do túmulo, estava nas mãos do cavaleiro, e suas palavras, irônicas como punhais, atravessam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos senhores de Biscaia cevava na formosura cativa o furor dos zelos.

— Por que choras, Silvana? Dera ontem o melhor arnês e o melhor cavalo por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor, respondeste não. A tua prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos por que chamavas! Brada pelo besteiro vilão, que preferiste ao rico-homem! Grita! Grita por El-Rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço, as portas chapeadas deste castelo ainda são mais fortes. Em esta areia, que está por instantes caindo toda…

Faltou-lhe a voz. A mão erguida do vilico deixou também rodar o último dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos dele brilhava um clarão terrível. A pesada acha reluzia em suas mãos.

— Traidor! — bradou o príncipe. — Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe todas portas. Vais ver!… Vilão! — ajuntou, falando ao vilico. — Solta as mãos e a boca a essa donzela. Ninguém se mova! Soeiro Lopes, conta bem os grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais comparecer na presença de Deus!

O orgulho indômito do cavaleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto que pálido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redargüiu:

— Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pedro Coelho e de Álvaro Gonçalves? O rei carrasco; falso à sua alma e à alma do seu pai? Imaginas que farei como os outros cavaleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e à má fé chamo-lhe inimigo. Vilico! Aperta os laços da cativa. No alto e no baixo, irado e pagado, não entrego o castelo senão a Deus. A mim, homens de armas!

— Deus é justo! — clamou El-Rei, cuja fúria não conhecia limites. — O matador de três mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor cruel de donzelas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como vilão às mãos dos teus vilãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha acha. Vilãos! — bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. — Sou D. Pedro! Sou rei! Esse que aí está, rebelde e traidor, prendei-mo enquanto os meus não chegam!

A presença e a voz do filho de Afonso IV infundiam terror. Os homens de armas temiam, mas não amavam Soeiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de curta e desesperada resistência, o cavaleiro ficou à mercê de El-Rei.

— Passai um laço na cadeia do lampadário, pondes um escano para ele subir e cingi-lhe o nó na garganta! prosseguiu o soberano, indignado.

— Sou rico-homem por foro de Espanha. A afronta da morte vil cairá sobre vós e sobre todos os filhos de algo. Pedir-te-ão contas dela, verdugo! — gritou o cavaleiro, estorcendo-se.

— A Deus as darei e a mais ninguém! O desleal que violenta donzelas não é cavaleiro. Quebro-te a espada e o foro com meu cetro.

Momentos depois, Soeiro estava em cima do escano e o vilico enrolava-lhe o laço. Comovida e trêmula, Silvana lançou-se suplicante aos pés do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:

— Pedes perdão a Deus e ao teu rei?

— Não!

O pé do príncipe tombou o escano e a morte cortou as últimas palavras do cavaleiro.

III

A tropeada de muitos cavalos, soando a par do alarido e vozes do castelo, anunciou à aldeia, alvoroçada, a vinda do monarca. Telo Vasques aparecia à porta quando Soeiro Lopes expirava.

— Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro. Corrias como noivo e como esposo… apesar disso cheguei primeiro! A justiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor!

Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Soeiro, na capela, e os noivos recebiam a bênção, tendo El-Rei D. Pedro por seu padrinho.

Falou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não se esqueceu nunca foi a Justiça que fizera em Algouço a severidade do monarca.

O castelo devolveu-se à coroa e parece que fora doado depois ao primogênito de Telo e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade ou fábula, não sei. El-Rei D. Pedro era tão capaz de fazer cavaleiro um vilão, como de justiçar como vilão um cavaleiro.
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Vocabulário:
– Besteiro = fabricante de bestas.
– Besta = Arma antiga de arremesso, usada para disparar setas e pelouros, consistente de um arco de aço ou de madeira, cuja corda se retesa por meio de uma mola que pode ser solta ao se premir um gatilho.
– Escano = espécie de assento destinado em atos públicos às pessoas de mais elevada hierarquia.
– Menagem – Prisão fora do cárcere, concedida sob promessa do preso de não sair do lugar onde se acha ou que lhe foi designado.
– Rebramam = repetir o bramido.
– Sopear = Subjugar, dominar, reprimir, sofrear, vencer, domar.
– Vilico = regedor de lugar onde se arrecadavam os impostos e onde se administrava justiça: O vilico do século XII… correspondia não só ao moderno administrador ou mordomo de rico fidalgo, mas também representava a autoridade administrativa, e ainda, em certos casos, a judicial, dentro dos limites da honra… ou senhorio respectivo.
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Fonte:
Contos e Novelas de Língua Portuguesa. Seleção e organização de Yolanda Lhullier dos Santos e Nádia Santos. 8 ed. São Paulo: Logos, 1962. http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

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3º Concurso Literário Guemanisse de Minicontos e Haicais / 2008

Objetivando incentivar a literatura no país, dando ênfase na publicação de textos, a Guemanisse Editora e Eventos Ltda. promove o 3º Concurso Literário Guemanisse de Minicontos e Haicais, composto por duas categorias distintas:
a) Minicontos;
b) Haicais,

o qual será regido pelo seguinte Regulamento

1. Podem concorrer quaisquer pessoas, de qualquer nacionalidade, desde que os textos inscritos sejam em língua portuguesa. Os trabalhos não precisam ser inéditos e a temática é livre.

2. As inscrições se encerram no dia 13 de outubro de 2008. Os trabalhos enviados após esta data não serão considerados para efeito do concurso, e, assim como os demais, não serão devolvidos. Para tanto será considerada a data de postagem (correio e internet).

3. O limites de cada MINICONTO é de até 2 (duas) páginas. Os HAICAIS se prendem à sua forma tradicional.

4. Os textos devem ser em folha A4, corpo 12, espaço 1,5 e fonte Times ou Arial.

5. As inscrições podem ser realizadas por correio ou pela internet da forma seguinte:

a) Via postal (correio): os trabalhos podem ser enviados em papel, CD ou disquete 3 ½ para Guemanisse Editora e Eventos Ltda. CAIXA POSTAL 92.659 – CEP 25.953-970 – Teresópolis – RJ;

b) Internet: os trabalhos devem ser enviados em arquivo Word para o e-mail editora@guemanisse.com.br ou guemanisse@globo.com

6. Tanto os MINICONTOS quanto os HAICAIS devem ser remetidos em 1 (uma) via, devendo, em folha (ou arquivo) separada, conter os seguintes dados do concorrente:
nome completo / nome com o qual assina a obra e que será divulgado em caso de premiação; data de nascimento / profissão endereço (com CEP) / e endereço eletrônico (e-mail).

7. Cada concorrente pode realizar quantas inscrições desejar.

8. Para a categoria MINICONTOS, o valor de cada inscrição é de R$ 20,00 (vinte reais), podendo o autor inscrever até 3 (três) textos por inscrição. Para a categoria HAICAIS, o valor de cada inscrição é de R$ 20,00 (vinte reais) podendo o autor inscrever até 5 (cinco) textos por inscrição. Os valores devem ser depositados em favor de GUEMANISSE EDITORA E EVENTOS LTDA, na Caixa Econômica Federal, Agência 2264, Oper. 003 Conta Corrente Nº 451-7 ou no BRADESCO, Agência 2801-0, Conta Corrente Nº 8582-0.

9. Os comprovantes de depósito (nos quais os concorrentes escreverão o nome) devem ser remetidos para Guemanisse Editora e Eventos Ltda. pelo correio, pela internet (escaneados) ou para o fax (0XX – 21) 2643-5418 (lembramos que os moradores da Cidade do Rio de Janeiro também devem discar o código de área). Nenhum valor de inscrição será devolvido.

10. Os resultados serão divulgados pelo nosso site http://www.guemanisse.com.br pela mídia e individualmente (por e-mail) a todos os participantes, no dia 29 de dezembro de 2008.

11. Cada Comissão Julgadora será composta por 3 (três) nomes ligados à literatura e com reconhecida capacidade artístico-cultural. Ambas as Comissões podem conceder menções honrosas ou especiais.

12. As decisões das Comissões Julgadoras são irrecorríveis.

13. Para cada Categoria (Minicontos e Haicais), a premiação será nos seguintes valores.

1º lugar: R$ 3.000,00 (três mil reais) e publicação do texto em livro;
2º lugar: R$ 2.000,00 (dois mil reais) e publicação do texto em livro;
3º lugar: R$ 1.000,00 (mil reais) e publicação do texto em livro.

Os textos premiados, inclusive os que forem agraciados com menção honrosa, serão publicados em livro (sem ônus para seus autores, inclusive de remessa postal) e cada um destes autores receberá dez exemplares, em troca do que cedem os direitos autorais apenas para esta edição específica que não poderá ultrapassar a tiragem de 2.000 (dois mil) exemplares. Os exemplares restantes desta edição serão preferencialmente distribuídos por bibliotecas e escolas públicas.

14. A inscrição no presente concurso implica na aceitação plena deste regulamento.

Fonte:
E-mail enviado pela Editora Guemanisse. http://www.guemanisse.org/

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Caldeirão Literário do Estado do Sergipe

Araripe Coutinho (1968)

XLII

Adentro avesso e o reto
É vulva aberta, mucosa
No inferno de nossos dentros.

Espeto o desejo como quem
Procura o risco, o medo, a coragem
De avançar perdido por algo que sei
Desde a infância, aurido.

Homem é sempre treva. Mas pode
Trazer o mundo para dentro de nós.
E a arte nessa selva é sempre
A morte.

Invento de muros. Paredes altas.
Consumo de felicidades mortas
E a maçã no escuro é Clarice
Sem decifrar GH, seu mito.

Estou apodrecendo como
Quem constrói uma catedral
Sem missa. Assim rendido no portal
Avanço sempre que me vejo.

Sou um mesmo homem
Que não conhece deus, mas que o ama.
Seria o amor assim? Este nunca vir.

Sim. É desejo o que me mata.
São negros e azuis e o quarto cabe
Cada um com seu poder.

Eu sempre rendido.

XL

Aparecer no espelho e dizer: morra!
Este é o meu tempo. Fantasmas visitando
O quarto escuro. Uma mulher de unhas longas
Tez avermelhada, sombrancelhas de chagas
Mal dormidas. É a morte. Ainda que o dia
Amanheça a noite nunca chega.
Estou tateando a ogiva de um amor sem matéria.
Carregando o andor de um santo sem fé.
É minha esta prece. É vasta, solene, quase muda.
Entendo a morte como a um copo de café.
Sirvo as compotas de frutas uma a uma.
É jambo, ameixas e morangos.
Nenhum sabor
Decifra esta ira. Estou incendiado
Desde amor.

XLIV

Tenho dito sempre
Que genet e Jeanne moreau
Estão certos: “todo homem mata aquilo que ama”.
Os negros na vidraça ensaboados
E o quarto aguardando bater seis horas.
É deu visitando a estrebaria.
Pondo fogo no feno, impedindo que se durma
Ao longo de uma costela larga.
Mas pode o desejo fraturado
Acender outra chama? Pode.
Desce as escadarias. Põe o colchão
De sombras na varanda. Deixa os glúteos
À mostra. Concentra o verde da vida
Entre os lábios. Deserta a última
Claridade. É ele quem ama.
Mesmo escuro põe vida nas coisas.
E inflama.
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Sobre o Autor
Nasceu no Rio de Janeiro em 1968 mas vive em Aracajú, Sergipe, desde 1979, onde é articulista de jornais e apresentador de programa de TV. É autor de meia dúzia de livros de poesia. Recebeu os títulos de Cidadania Aracajuana e Sergipana e é membro da Academia Sergipana de Letras. Foi diretor da Biblioteca Pública Municipal.
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Gizelda Santana de Morais (1939)

Viola de Gamba

Nossas mãos juntas
construirão gestos insuspeitados
nossos passos juntos caminharão
dobro dos caminhos
nossos corpos juntos
suportarão o peso das pressões
elevado ao quadrado
nossos mentes juntas
nossos pensamentos
nossos momentos
se esticarão como cordas
de viola de gamba
nos ouvidos dos séculos.

Pela rua

Caminho pela rua…
quantos destinos cruzam-se comigo,
quantas vidas diferentes de outras vidas,
quantas faces diferentes de outras faces…

Vou passando por muitos
(enquanto eles também passam por mim)
e perscruto seus gestos, seus modos, seus olhares.
Vejo gente sorrindo,
vejo gente cansada,
gente altiva, gente humilde, gente triste…
não vejo alguém chorando,
mas, quanta gente choraria o pranto
guardado, se não fosse a vergonha
de chorar pela rua.

Na rua passa tudo, passam todos
passa a noite, o silêncio, o barulho,
até os mortos passam pela rua.
E suas casas, suas luzes, suas pedras
também olham, perscrutam e testemunham
a tudo e todos que passam
pela rua.

Baladas do inútil silêncio

I

se há por quês
é porque não se cansam
as andorinhas de voar

nem os mágicos
de tirarem coelhos da cartola

e o tempo é o gesto
e o espaço um pedaço de pão

Quero o tato

Quero o tato
limpo como o espelho
quero o dólmen
e o anel
quero as alpargatas
para correr mundo
e a lança para cruzá-la no caminho
quero o fruto
colhido com a boca
e quero o amargo
pois também sou humano.

Interrogações

Onde a clareza
a certeza
perdidas nesse momento?
será o sono o microfone
ou o medicamento?

por que me dói
tão físico o coração
se mesmo toda físico
não me dói a mão?

por que decorre desse grito
o grito atravessado
e na esteira dos planetas
navegam tantos nadas?

de onde veio
essa louca antevisão
de perceber o futuro
sem ter de hoje os cordões?
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Sobre a Autora
Nasceu em Campo do Brit, Sergipe em 1939 e mora atualmente em Maceió. Seu primeiro livro de poesias, Rosa do Tempo (1958), foi publicado aos 18 anos, pelo Movimento Cultural de Sergipe. No ano seguinte ganha o 1° prêmio no Concurso Universitário de Poesia em Belo Horizonte. No mesmo gênero publicou, Acaso (Salvador/1975), Cantos ao Parapitinga (Aracaju/1991), Poemas de Amar (edição pessoal, 1995); em parceria com N. Marques e C. Fontes, Baladas do Inútil Silêncio (Salvador/1964) e Verdeoutono (Aracaju/ 1982); participa de coletâneas, Palavra de Mulher (Rio/1979), Aperitivo Poético (Aracaju, edições de 1986/87/88/89), NORdestinos (Lisboa/1994); entre os ensaios literários, Esboço para uma análise do significado da obra poética de Santo Souza (Aracaju/1996). Reúne sua poesia, publicada e inédita, em ROSA NO TEMPO, Scortecci Editora, São Paulo, 2003.

Doutora em Psicologia pela Universidade de Lyon (França), com a tese L’Ecriture et la Lecture, 1970); lecionou nas universidades federais de Sergipe e da Bahia e, como convidada, na Universidade de Nice. Tem vários trabalhos científicos em livros e revistas, entre os quais Pesquisa e Realidade no Ensino de 1° Grau (Cortez Ed. São Paulo/1980). É membro da Academia Sergipana de Letras.
Romances já publicados: JANE BRASIL, Aracaju/1986; IBIRADIÔ, 1ª ed. Aracaju/1990, 2ª ed. Scortecci Ed. SP. 2003, ed. francesa: Editions du Petit Véhicule, Nantes, 1999; PREPAREM OS AGOGÔS, Ed. Bagaço, Recife/1996, (Menção Honrosa no concursos nacional de romance do governo do Paraná ,1994); ABSOLVO E CONDENO, Vertente editora, SP, 2000 (menção especial, UBE, 2002); FELIZ AVENTUREIRO, Scortecci Ed. SP, 2001 (prêmio AJC, Especial do Júri, 2002).
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João Ribeiro (1860 – 1934)

MUSEON
II
Helés, a formosíssima das gregas,
Róseo trecho de mármor sob escombros
Dum Panteon que as divindades cegas
Soterraram depois de tê-lo aos ombros,

Helés, um dia, sobre a praia chegas …
Inclinam-se extensíssimos os combros
E o vento alarga em frêmitos de assombros
Da túnica do mar as verdes pregas.

E tu reinas, tu só! Debalde, vagas
Sobre outras vagas se atropelam, correm,
Uma por uma, indiferente esmagas:

Como as paixões na tua vida ocorrem,
Uma e mais outra, nas desertas plagas
Chegam e morrem, e chegam e morrem.

IV

Este vaso quem fez, por certo fê-lo
Folhas de acanto e parras imitando.
É de ver-se a asa fosca o setestrelo
De saboroso cacho alevantando.

Que desejo viria de sorvê-lo
Os gomos todos um a um sugando,
Quando, contam, dos pássaros o bando
Do céu descia prestes a bebê-lo.

Examina este vaso. N’um momento
Crê-se vê-lo a voar, o movimento
D’asa soltando, como aéreo ninho …

Será verdade que este vaso voa
Ou porventura à mente me atordoa
Seu capitoso odor de antigo vinho?

VIII

Foi com esta maçã d’ oiro polido
Que as ambições movendo de Atalanta,
Pôde Hipomenes alcançá-la. E quanta
Vitória a essa em tudo parecida!

Ao ideal aspira! à estrela aspira! à vida
Aspira ó nada, ó turba agonizante,
Ou chores quando a terra alegre cante
— Ou cantes quando a lágrima vertida

Desça-te à boca. E bastaria, apenas,
Para galgar essas regiões serenas,
A maçã de Hipomenes, flébil, louro …

E chegarás ao ideal e à vida, O pomo
Áureo atirando à própria estrela, como
Lá chega a l,:!z – por uma escada de ouro.

XI

Do mar e das espumas tu nasceste,
Ó forma ideal de rodas as belezas,
lnda teu corpo, mal vestindo-o, veste
Um colar de marítimas turquesas.

Milhares d’anos há que apareceste,
Outros milhares d’almas-sempre acesas
No teu amor, lá vão seguindo presas
Da rua garra olímpica e celeste.

Beijo-te a boca e sigo embevecido
Ondas sobre ondas, pelo mar afora,
Louco, arrastado qual os mais têm sido.

Ora te vendo as formas nuas, ora
Toda nua e sentir-te em meu ouvido
Do eterno som dos beijos meus sonora.
==============================
Sobre o Autor
João batista Ribeiro de Andrade Fernandes, jornalista, crítico, filólogo, historiador, pintor, tradutor, nasceu em Laranjeiras, província de Sergipe e faleceu no Rio de janeiro, onde fez carreira depois de cursar Medicina, sem concluir o curso, na Bahia. Por concurso público, trabalhou na Biblioteca Nacional e depois no renomado Colégio Pedro II, na cadeira de Português. Estudioso de filologia, o que o levou a ter um papel decisivo nas reformas da própria língua nacional. Chegou a fazer estudos de pintura na Europa e a expor seus quadros mas foi no jornalismo e na literatura onde recebeu o reconhecimento por sua contribuição. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.

Obra poética: Tenebrosa lux (1881), Dias de sol (1884), Avena e cítara (1885) e Versos (1885).
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Joel Silveira (1918)

Poema

Porque não há trégua na quotidiana amargura,
os versos nascem todos desgraçados
e possivelmente maus.

Os caminhos estão gastos,
as mulheres se repetem
e é ridículo dar amor a alguém que amanhã estará murcho
e que jamais devolverá nossas cartas.
Para as horas, tão inúteis,
vale apenas a solução dos bêbedos.

Onde estão os perigos desta vida?
Quero-os todos para mim, aqui ou longe,
a eles o melhor estilo e o melhor entusiasmo.
E que sobre eles o amor e a alegria se debrucem
como rosas abertas num campo minado.
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Sobre o autor
Poeta e jornalista, nasceu em Aracaju, em 1918. Conhecido por seus livros de reportagens e ficção – entre eles o célebre Meninos eu vi (1965) e o romance Você nunca será um deles (1988), foi incluído por Manuel Bandeira em sua antologia Poetas brasileiros bissextos contemporâneos (1946).

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/

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Carlos Leite Ribeiro (A Lei da Vida)

A Lei da Vida, é um conto que teve adaptação radiofónica, e com assinalado êxito em Marinha Grande, Portugal.

(A cena passasse numa rua e numa casa modesta da Marinha Grande)

Padre – Bom dia Doutor!

Doutor – Bom dia, padre Henrique. Por cá tão cedo?

Padre – Passei por aqui perto e quis saber qual a situação clínica do nosso querido amigo José Mateus, a que muito chamam “o Inventor”.

Doutor – O que é que quer que lhe diga, padre Henrique ?

Padre – A verdade, pois esta, apesar de ser muitas vezes cruel aos nossos olhos, deve ser sempre dita.

Doutor – Será vontade de Deus ?

Padre – Como lhe queira chamar, doutor …

2ª Pers. – A situação clínica do sr. José Mateus, tem muito a ver com a sua idade, com o seu desgaste natural …

Padre – Só?…

Doutor – E mais um problema cardiovascular, que se está a agravar.

Padre – Quer então o doutor dizer que o caso apresenta-se muito complicado, não é ?

Doutor – Dir-lhe-ei mesmo mais do que isso – apresenta-se muito crítico.

Padre – Pobre amigo, José Mateus ! Bem, é a LEI DA VIDA – quem nasce tem de morrer.

Doutor – Nós, os cá da terra, nestes casos, pouco ou nada podemos fazer …

Padre – O filho, o sr. Engº. Hugo Mateus, já foi avisado?

Doutor – Ontem, tentei entrar em contacto com ele. Mas não se encontrava em casa, pois, tinha ido a Espanha tratar de uns assuntos da empresa que dirige, no norte. Mandei há pouco a criada telefonar para a fábrica – o que já deve ter feito.

Padre – Vamos então aguardar a chegada do eng. Hugo Mateus …

( toque de campainha de telefone )

Olívia – … Bom dia, Empresa Industrial da Marinha Grande … neste momento, o sr. Engº. Hugo Mateus, não se encontra na Empresa … não sei, mas estou a contar que ele não se demore muito. Quem fala ?… Hááá , é da Marinha Grande. Diga-me por favor se o pai do sr. Engº. , está melhor ? … Hóó, lamento muito a sua situação e desejo-lhe as melhoras … pois é, é a Lei da Vida … nestes casos é muito mais fácil dizer aos outros que tenham coragem … pode estar descansada, sim, que eu darei o seu recado ao sr. Engº. Quando ele chegar … pode ficar descansada … Bom dia!

Olívia – Senhor engenheiro Hugo Mateus. Bom dia!

Engenheiro – Bom dia, Olívia. Há algum recado?

Olívia – Há vários, mas o mais importante, é um da Marinha Grande, que veio de casa de seu pai …

Engenheiro – O que quer dizer que o velhote está em apuros – não é, Olívia?

Olívia – Pedem o favor para o sr. Engº. telefonar urgentemente para lá.

Engenheiro – Olívia, faça a ligação para o meu gabinete. Atenderei de lá …

5ª Pers. – Já repararam que está muita gente a entrar para a casa do sr. José Mateus ? possivelmente, o velhote morreu …

6ª Pers. – Não, ainda não deve ter morrido, pois, a sobrinha da criada, a Pureza, ainda esteve aqui há pouco e disse-me que o velhote ainda vivia.

5ª Pers. – Nestes casos, os amigos vão juntando à espera que o amigo dê o último suspiro.

6ª Pers. – Pois é. Estão à espera que o homem morra, mas como ele dizia: “Sou muito teimoso !”.

5ª Pers. – Ao fundo da rua, vem o padre Henrique …

6ª Pers. – O que quer dizer que a situação clínica do sr. José Mateus, deve estar a complicar-se …

5ª Pers. – Sim, para o padre ir lá a casa a esta hora …

6ª Pers. – O padre Henrique, é amigo daquela família, já há muitos anos. Foi ele quem ensinou as primeiras letras ao sr. Engº. Hugo Mateus.

5ª – Pers. – Por falar no filho – ainda não o vi por cá …

6ª Pers. – Eu também não. Mas não admira, pois, o sr. Eng. é administrador de uma empresa da Marinha Grande. Mas, se a situação estiver a complicar-se, não deve tardar aí.

5ª Pers. – Reparem, quem vem de lá a sair é a D. Albertina. Também uma velha amiga daquela família, já do tempo da mulher do sr. José Mateus.

6ª Pers. – Da D. Áurea, santa senhora, recordo-me bem. A D. Albertina, está a falar com aquelas vizinhas e a chorar muito. O que terá acontecido?

5ª Pers. – Ela vem agora para este lado… D. Albertina, D. Albertina …

Albertina – Bom dia, vizinhas. Querem saber como está o sr. José Mateus, não é assim ?

5ª Pers. – É verdade. Como é que ele está, D. Albertina?

Albertina – Ora, como é que o pobrezinho está! … está na última, mas ainda bastante lúcido.

6ª Pers. – Ainda não vi o filho, o sr. Engº. Hugo Mateus…

Albertina – Ele ainda não chegou, mas, como já está avisado da situação do pai, não deve tardar a chegar. Bem, tenho que me ir embora, pois tenho que ir fazer o almoço ao meu marido e também mudar de roupa. Até logo, vizinhas …

5ª Pers. – Até logo, D. Albertina e muito obrigada pela sua atenção. Coitado do velhote !

6ª Pers. – Ainda me lembro quando o sr. José Mateus provocou aquela grande explosão de gás, quando pretendia que um foguetão que ele tinha inventado, subisse ao espaço !

5ª Pers. – Eu também me lembro pois fiquei com a roupa que tinha a secar, toda chamuscada. Aquele homem nunca parou com os seus inventos, e com alguns deles, teve êxito.

6ª Pers. – Como aquele saca-rolhas que com um sopro tirava as rolhas.

5ª Pers. – Reparem, ou eu me engano muito, ou é o carro do filho que vem aí … é ele é !

6ª Pers. – Olha lá, o sr. Engº. Hugo Mateus, não é casado?

5ª Pers. – Ainda não é.

6ª Pers. – Mas ele é bastante jeitoso. Admiro-me não ter casado ainda …

5ª Pers. – Ele é muito fino e diz que ainda tem muito tempo para se casar.

6ª Pers. – Olha, o médico também está a chegar. É aquele que está a falar com o engº. Hugo.

5ª Pers. – E neste momento, vão entrar para a casa do velhote …

Engenheiro – Então, pelo que me diz, a situação clínica de meu pai, é muito crítica ?

Doutor – Direi mesmo que é muito crítica. Está medicamentado e, só por isso encontra-se, neste momento, calmo. Deve acordar daqui a pouco.

Engenheiro – Obrigado por tudo o que tem feito a meu pai. Mas, agora reparo: o padre Henrique está cá. Com licença, doutor …

Doutor – Vá, vá engenheiro, enquanto eu vou ver o doente.

Engenheiro – Por cá, padre Henrique?!

Padre – Então eu não devia de estar cá, nesta hora tão difícil para todos nós ?! não te esqueças de que teu pai é um grande amigo que tenho !

Engenheiro – Não o quis ofender, padre Henrique – até lhe agradeço o seu cuidado e interesse!

Padre – E tu, meu rapaz, como estás? … não queres que eu te trate pelo teu título académico – pois não?…

Engenheiro – Claro que não, padre Henrique! eu estou bem, mas como é lógico, muito preocupado com o meu pai.

Padre – Tens de ter resignação, meu filho … como tu sabes, a idade não perdoa. Teu pai nunca parou de trabalhar, de inventar coisas.

Engenheiro – O meu pai e os seus inventos ! ele ainda deve estar a descansar – não é padre?

Padre – Está sob o efeito dos medicamentos, mas segundo o médico me disse, o seu efeito deve estar quase a acabar.

Engenheiro – E o meu pai já perguntou por mim?

Padre – Pois claro que sim, meu filho. O teu pai está lúcido. Ainda ontem me disse que queria falar contigo sobre outro seu invento. Mas não me disse do que se tratava.

Engenheiro – Nem às portas da morte, o meu pai descansa ! o que será desta vez ? – o pai e os seus inventos!

Padre – Olha lá, aquele invento contra os assaltantes de aviões, deu resultado ?…

Engenheiro – Entreguei o projecto às companhias de aviação. Ainda não me disseram nada.

Padre – E na tua opinião, como técnico, esse projecto é viável?

Engenheiro – Sim, talvez. O problema é encontrar um gás adequado para adormecer, momentaneamente, os assaltantes e os passageiros. Além do antídoto para a tripulação …

Padre – Então, digamos, que a ideia é válida e, no futuro, até poderá ser útil …

Engenheiro – Pois é. Até poderá ser útil, como o padre Henrique diz: se os técnicos desenvolverem a ideia.

Albertina – Desculpem interromper. Sr. Engº., o seu pai acordou agora e perguntou logo por si. Diz que lhe quer falar …

Padre – Então vamos lá, meu filho, pois, infelizmente, teu pai não deverá ter muito tempo de vida.

Engenheiro – Passe, passe padre Henrique. Vá à frente, pois também conhece bem o caminho …

Padre – Vamos então entrar … olá, velho amigo! como é que tu estás, meu velho?…

Mateus– Eu … estou bem … vivo … e ainda … não preciso … de um padre …

Padre – Olha José, eu estou aqui como um amigo que vem visitar outro, e não como padre. Mas, se tu não me quiseres aqui dentro, vou-me já embora …

Engenheiro – Desculpe, padre Henrique, mas meu pai quer falar comigo em particular. Por favor, não leve a mal e desculpe-me …

Padre – Eu compreendo, eu compreendo, meu rapaz. Vou já sair. Até já …

Mateus – O padre … Henrique … ele … já saiu … ?!

Engenheiro – Já sim, pai. Mas não te canses, tem calma.

Mateus – Eu … nunca … nunca … me canso … quero … falar contigo … pois … inventei …

Engenheiro – Pai, não te canses, por favor. Podemos falar depois, quando tu estiveres menos cansado.

Mateus – Falar … comigo … depois ?! … olha que será difícil … naquela … naquela … escrivaninha … está … está … uma projecto … de transístor … para evitar … evitar o roubo … de … automóveis …

Engenheiro – Pai, pai não te canses mais. Eu vou já buscar esses planos …

Mateus – Ai … aiiii…. iii…

Engenheiro – Pai, já vou chamar o médico …

Mateus – Vai … vai … meu … filho … lho …

Engenheiro – Doutor, doutor … o meu pai está a sentir-se muito mal …

Doutor – Vou já, vou já. Saia então por favor. Deixe-se sozinho com o seu pai …

Padre– Então, meu filho ? …

Engenheiro – O meu pai, está mesmo muito mal !…

Padre – Tens de te conformar, é a Lei da Vida … Olha, o doutor vem aí …

Engenheiro – Então, doutor ?!…

Doutor – Aquilo que nós esperávamos, aconteceu agora mesmo – seu pai, morreu …

Padre – Sei que estás a passar um momento, digamos, dramático. Mas tens de ir descansar, meu filho, Aqui na Terra, já está tudo terminado para teu pai.

Engenheiro – Ainda me parece um sonho … Meu pai morreu. Meu pai morreu …

Padre – Queres passar agora lá por casa de teu pai ?

Engenheir – Sim, tenho que passar por lá para dar as minhas ordens à criada e, trazer o dossier do último invento de meu pai.

Padre – Eu acompanho-te, meu filho.

Engenheiro – Obrigado, padre Henrique …

… … …

Engenheiro – Olívia, faz hoje um ano que meu pai morreu. Telefona para a Marinha Grande e diga à criada que não se esqueça de comprar flores, muitas flores … para ele.

Olívia – Não me esquecerei, sr. Engº.

Engenheiro – Há algum recado para mim?

Olívia – Telefonaram da Associação das Companhias de Aviação a comunicarem que o invento de seu pai, foi aprovado e, que dentro de pouco tempo, começará a ser utilizado. Dizem que querem comunicar com o sr. Eng., para tratarem dos direitos de patente …

Engenheiro – “Já dizia o grande mestre Almada Negreiros: “Podem não considerar ou até mesmo destruir a vida de um homem – mas nunca conseguem destruir a sua obra !”. Pai, se me estás a ouvir, deves de estar contente, pois, conseguiste VENCER – embora depois de morto !”.

Fonte:
E-mail enviado por Carlos Leite Ribeiro. Portal CEN.

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XXV Jogos Florais de Bandeirantes (Premiação)

Poetas residentes em seis estados participaram da festa de premiação dos XXV Jogos Florais de Bandeirantes-PR. O evento foi promovido pela Secretaria da Educação e Cultura do município, em parceria com com a seção local da UBT – União Brasileira de Trovadores.

A programação teve destaque em quatro momentos especialmente marcantes:

1. a inaguração de um obelisco em homenagem ao Jubileu de Prata dos Jogos Florais de Bandeirantes, no qual foram afixadas cerca de 100 trovas em placas metálicas.

2. a eleição da Musa dos XXV Jogos Florais.

3. A solenidade de entrega dos troféus aos trovadores premiados em âmbito estudantil (local), em âmbito estadual e em âmbito nacional.

4. A Missa em trovas, que contou com a participação da cantora lírica Domitilla Borges Beltrame, presidente estadual da UBT São Paulo.

Relação dos premiados

ÂMBITO NACIONAL – LÍRICAS E FILOSÓFICAS
TEMA = “AUDÁCIA”

VENCEDORES: (por ordem alfabética)
Almira Guaraci Rabelo – Belo Horizonte/MG
Carolina Ramos – Santos
Darly O. Barros – São Paulo
João Freire Filho – Rio de Janeiro
Milton Nunes Loureiro – Niterói/RJ.

MENÇÕES HONROSAS:
Campos Sales(02) – São Paulo
Éderson Cardoso de Lima – Niterói
Milton Nunes Loureiro – Niterói
Pedro Mello – São Paulo.

MENÇÕES ESPECIAIS:
Arlindo Tadeu Hagen – Belo Horizonte
Carolina Ramos – Santos
Edmar Japiassú Maia – Rio de Janeiro
Marcelo Zanconato Pinto – Cuiabá/MS
Renata Paccola – São Paulo
Terezinha Dieguez Brisolla – São Paulo
Wanda de Paula Mourthé(02) – Belo Horizonte.
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ÂMBITO NACIONAL – HUMORÍSTICAS
TEMA = “TRABALHO”

VENCEDORES: (também por ordem alfabética)
Clenir Neves Ribeiro – Nova Friburgo
Élbea Priscila S. e Silva – Caçapava/SP
Héron Patrício – São Paulo
João Paulo Ouverney – Pindamonhangaba

MENÇÕES HONROSAS:
Ademar Macedo – Natal/RN
Antonio Carlos Teixeira Pinto – Brasília/DF
Marilúcia Rezende – São Paulo
Martha Maria O. P. de Barros – São Paulo
Olympio Cruz Simões – Belo Horizonte.

MENÇÕES ESPECIAIS:
Arlindo Tadeu Hagen – Belo Horizonte
Clarindo Batista de Araújo – Natal/RN
Francisco Neves Macedo – Natal/RN
Jaime Pina da Silveira – São Paulo
José Antonio de Freitas – Pitangui/MG
Marilúcia Rezende – São Paulo
Renato Alves – Rio de Janeiro
Ruth Farah Lutterback – Cantagalo/RJ
Selma Patti Spinelli – São Paulo
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ÂMBITO ESTADUAL – LÍRICAS E FILOSÓFICAS
TEMA: “VIDA”

Vencedores
A. A. de Assis – Maringá
Janete A. Guerra (2) – Bandeirantes
Maria Helena O. Costa – Ponta Grossa
Vanda Fagundes Queiroz – Curitiba

Menções Honrosas
A. A. de Assis – Maringá
Arlene Lima – Maringá
Dari Pereira – Maringá
Vanda Fagundes Queiroz (2) – Curitiba

Menções Especiais
Amália Max – Ponta Grossa
A. A. de Assis – Maringá
Fernando Vasconcelos – Ponta Grossa
Istela Marina G. Lima – Bandeirantes
Lucília A. T. Decarli – Bandeirantes
Maria da Conceição Fagundes – Curitiba
Maria Helena Cristovo (2) – Bandeirantes
Maria Helena O. Costa (2) – Ponta Grossa
Neide Rocha Portugal – Bandeirantes
Sônia M. Dietzel Martelo – Ponta Grossa
Vanda Alves da Silva – Curitiba
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ÂMBITO ESTADUAL = HUMORÍSTICAS
Tema ALARME (H)

Vencedores
A. A. de Assis (3) – Maringá
Dari Pereira – Maringá
Vanda Alves da Silva – Curitiba

Menções Honrosas
Dari Pereira – Maringá
Janske N. Schlenker – Itupava
Lucília A. T. Decarli – Bandeirantes
Maria da Conceição Fagundes – Curitiba
Maurício Fernandes Leonardo – Ibiporã

Menções Especiais
Amália Max – Ponta Grossa
Fernando Vasconcelos – Ponta Grossa
Istela Marina G. Lima – Bandeirantes
Janete A. Guerra – Bandeirantes
Maria Helena Cristovo (2) – Bandeirantes
Maurício Fernandes Leonardo – Ibiporã
Neide Rocha Portugal – Bandeirantes
Nei Garcez – Curitiba
Vanda Alves da Silva – Curitiba
Vanda Fagundes Queiroz. – Curitiba

..
Fonte:
E-mail enviado por A. A. de Assis

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2ª Expo Literária

No último sábado (13/09) foi realizado uma reunião no Auditório da Biblioteca Municipal para orientar os escritores com relação à 2ª Expo Literária que será realizada nos dias 30, 31 de outubro e 01 de novembro. Na reunião estavam presentes Tânia Kalil e Margarete Moreno Comitre Silveira responsáveis pela Biblioteca, escritores e interessados em participar do evento. A partir desta semana, os escritores deverão comparecer à biblioteca para fazerem suas inscrições e combinarem sobre a participação no evento. Também presente o escritor José Verdasca dos Santos, presidente da Ordem Nacional dos Escritores que conversou com os presentes.

Participe da 2ª Expo Literária

O evento literário patrocinado pela Prefeitura, por meio das secretarias da Cultura e da Educação, abre espaço para escritores de toda a região

A Expo Literária, em sua segunda edição, está recebendo inscrições de escritores interessados em divulgar suas obras. É um evento literário que reúne importantes escritores de toda a região em três dias de exposições, palestras, bate-papos e workshops. Neste ano, a Expo homenageia os 100 anos de falecimento do escritor Machado de Assis com uma tenda para 500 pessoas onde serão ministradas palestras e contações de histórias. Haverá também uma tenda de cinema com ar condicionado onde serão exibidos vários filmes. Para as crianças e os jovens, haverá também uma tenda no parque de diversões do Paço Municipal com ensinamentos de literatura, pintura de rosto e didática para crianças. Os estandes dos livros serão montados em uma tenda onde também haverá a “Mostra da Educação”, exposição dos trabalhos de alunos da rede de ensino Municipal. Neste ano, o evento não será dentro da Biblioteca Municipal como no ano passado, será em tendas montadas ao redor para não atrapalhar os leitores da biblioteca.

O autor interessado poderá participar com três títulos e também terá acesso ao auditório para palestras e lançamentos, desde que, agendado com antecedência.

A Expo Literária acontecerá ao redor da Biblioteca Municipal “Jorge Guilherme Senger”, localizada na Rua Ministro Coqueijo Costa, 180, Alto da Boa Vista – Sorocaba/SP. Os horários são: quinta-feira e sexta-feira das 8h às 20h e no sábado das 10h às 17h.

Informações pelo telefone (15) 3228-1955 com Tânia Kalil.
Cintian Moraes – jornalista
(15) 8119.2476
cintian.moraes@yahoo.com.br

Observações:
1. O regulamento para participação dos escritores sorocabanos na 2ª Expo Literária de Sorocaba poderá ser retirado na Biblioteca Municipal com a Tânia Kalil.

2. Gostariamos de explicar que o Prêmio Anual Sorocaba de Literatura foi instituído através da Lei nº 2395 de 02 de julho de 1985. A partir do ano passado a entrega foi realizada na Expo, portanto este ano também fará parte da programação de abertura.
Esse Prêmio é dado ao melhor lançamento de livro de 2007, formado por uma comissão de representantes de várias entidades. Quanto ao Prêmio, conforme consta no processo, o ganhador receberá uma medalha, um diploma (não é da Expo) e um valor estipulado mais ou menos de R$500,00. Os prêmios não são vinculados ao projeto da Expo Literária.

Fonte:
Douglas Lara. In
http://www.asorocaba.com.br/acontece

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João do Rio (1881 – 1921)

Filho de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática e positivista, e da dona-de-casa Florência dos Santos Barreto, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto nasceu a 5 de agosto de 1881, na rua do Hospício, 284 (atual rua Buenos Aires, no Centro do Rio). Estudou Português no Colégio São Bento, onde começou a exercer seus dotes literários, e aos 15 anos prestou concurso de admissão ao Ginásio Nacional (hoje, Colégio Pedro II).

Em 1 de junho de 1899, com 18 anos incompletos, teve seu primeiro texto publicado em A Tribuna, jornal de Alcindo Guanabara. Assinado com seu próprio nome, era uma crítica intitulada Lucília Simões sobre a peça Casa de Bonecas de Ibsen, então em cartaz no teatro Santana (atual Teatro Carlos Gomes).

Prolífico escritor, entre 1900 e 1903 colabora sob diversos pseudônimos (Claude; José Antônio José, Caran D’Arche; Joe) e heterônimo com vida própria (Godofredo de Alencar) com vários órgãos da imprensa carioca, como O Paiz, O Dia, Correio Mercantil, O Tagarela e O Coió. Em 1903, é indicado por Nilo Peçanha para a Gazeta de Notícias, onde permaneceria até 1913. Foi neste jornal que, em 26 de novembro de 1903 nasceu João do Rio, seu pseudônimo mais famoso, assinando o artigo “O Brasil Lê”, uma enquete sobre as preferências literárias do leitor carioca. E, como indica Gomes (1996, p. 44), “daí por diante, o nome que fixa a identidade literária engole Paulo Barreto. Sob essa máscara publicará todos os seus livros e é como granjeia fama. Junto ao nome o nome da cidade”.

Segundo seus biógrafos, ao profissionalizar-se, Paulo Barreto representou o surgimento de um novo tipo de jornalista na imprensa brasileira do início do século XX. Até então, o exercício do jornalismo e da literatura por intelectuais era encarado como “bico”, uma atividade menor para pessoas que possuíam muitas horas vagas à disposição (como funcionários públicos, por exemplo). Paulo Barreto move a criação literária para o primeiro plano e passa a viver disso, empregando seus pseudônimos (mais de dez) para atrair diversos públicos consumidores.

Entre fevereiro e março de 1904, realizou uma série de reportagens intituladas “As religiões do Rio”, que além de seu caráter de “jornalismo investigativo”, constituem-se em importantes análises de cunho antropológico e sociológico, cedo reconhecidas como tal, particularmente no tocante as quatro matérias pioneiras sobre os cultos africanos na Pequena África, que antecedem em mais de um quarto de século as publicações de Nina Rodrigues sobre o tema (além de que, a obra de Rodrigues ficou praticamente restrita aos círculos acadêmicos baianos).

Estudiosos apontaram semelhanças entre “As religiões do Rio” e o livro “Les petites réligions de Paris” (1898), do francês Jules Bois. Todavia, a semelhança parece estar muito mais na idéia geral (uma investigação sobre as manifestações religiosas minoritárias numa grande cidade) do que no plano da realização formal.

A série de reportagens despertou tamanha curiosidade que Paulo Barreto a publicou em livro, tendo vendido mais de oito mil exemplares em seis anos. A proeza é ainda mais impressionante levando-se em conta o restrito público leitor da época, num país com elevadas taxas de analfabetismo.

Alguns biógrafos criticam o cronista pelo fato de que, ao perceber o filão representado pela publicação de coletâneas (algo que se tornaria comum na segunda metade do século XX), Paulo Barreto tenha descoberto uma “fórmula” para inflacionar a própria bibliografia. Todavia, uma análise das coletâneas publicadas ao tempo de sua curta vida repele tal afirmação. Primeiro, ele fazia uma seleção dos textos que iriam ser publicados; e, segundo, os textos selecionados possuíam unidade entre si, concordante com o título geral da obra e previamente justificados por um parágrafo introdutório.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras em sua terceira tentativa, em 1910, Paulo Barreto foi o primeiro a tomar posse usando o hoje famoso “fardão dos imortais”. Anos depois, com a eleição de seu desafeto, o poeta Humberto de Campos, ele se afastou da instituição. Conta-se que, quando informada de sua morte, a mãe avisou expressamente que o velório não poderia ser feito lá, pois o filho não aprovaria a idéia.

As preferências sexuais de Paulo Barreto desde cedo constituíram-se em motivo de suspeita (e, posteriormente, de troça) entre seus contemporâneos. Solteiro, sem namorada ou amante conhecidas, muitos de seus textos deixam transparecer uma inclinação homoerótica bastante explícita. As suspeitas praticamente se confirmaram quando ele se arvorou em divulgador na terra brasileira, da obra do “maldito” Oscar Wilde, de quem traduziu várias obras.

Figura ímpar, que se vestia e se comportava como um “dândi de salão” (Rodrigues, 1996, p. 239), Paulo Barreto jamais ousou desafiar os estereótipos com os quais a sociedade rotula os homossexuais. Todavia, ao se propôr a defender novas idéias nos campos político e social, sua figura “volumosa, beiçuda, muito moreno, lisa de pêlo” (como registrou Gilberto Amado) tornou-se um alvo perfeito para toda sorte de racistas e homofóbicos reacionários, dentre eles, Humberto de Campos.

É nesse contexto que se insere seu suposto “flirt” com Isadora Duncan, que apresentou-se no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1916. Duncan e Barreto já haviam se conhecido anteriormente, em Portugal, mas foi somente durante a temporada no Rio que se tornaram íntimos. O grau dessa intimidade é um mistério. Especula-se que tudo poderia não ter passado de uma “jogada de marketing” para atrair a atenção da imprensa, embora outras fontes citem um suposto diálogo em que a bailarina teria interpelado Barreto sobre sua pederastia, ao que ele teria respondido: Je suis trés corrompu (“Sou completamente corrupto”).

Em 1920, Paulo Barreto fundou o jornal A Pátria (chamado ironicamente de A Mátria por seus detratores), no qual buscou defender os interesses dos “poveiros”, pescadores lusos oriundos em sua maioria de Póvoa de Varzim, e que abasteciam de pescado a cidade do Rio de Janeiro. Ameaçados por uma lei de nacionalização do governo brasileiro, que exigia que a pesca fosse exercida apenas por nacionais, e os obrigava a naturalizar-se para poder continuar na profissão, os “poveiros” entraram em greve.

A atividade de Barreto em prol da colônia portuguesa granjeou-lhe grande quantidade de inimigos, um sem-número de ofensas morais (“manta de banha com dois olhos” foi uma das mais leves) e até mesmo um covarde episódio de agressão física, quando, surpreendido enquanto almoçava sozinho num restaurante, foi surrado por um grupo de nacionalistas.

Obeso, Paulo Barreto sentiu-se mal durante todo o dia 23 de junho de 1921. Ao pegar um táxi, o mal-estar aumentou e ele pediu ao motorista que parasse e lhe trouxesse um copo d’água. Antes que o socorro chegasse, no entanto, ele faleceu, vítima de um enfarte do miocárdio fulminante.

A notícia de que João do Rio havia morrido espalhou-se por toda a cidade rapidamente. Estima-se que cerca de 100 mil pessoas tenham comparecido para o último adeus ao escritor que certa feita, sob o pseudônimo de Godofredo de Alencar, havia registrado sua opção preferencial pela diversidade:

Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e a ausência de escrúpulos. (Gomes, 1996, p. 69).

O nome Paulo Barreto batiza uma rua inexpressiva no bairro aristocrático de Botafogo. Como apontou Graciliano Ramos, “a homenagem que lhe tributaram é modesta: ofereceram-lhe uma rua curta” (Gomes, 1996, p. 11). A Póvoa de Varzim, em Portugal, também deu o seu nome a uma pequena rua mesmo no centro da cidade, junto à Câmara Municipal.

João do Rio é patrono da cadeira número 1 da Academia Irajaense de Letras e Artes (AILA) ocupada pelo escritor e poeta acadêmico Agostinho Rodrigues, fundador da entidade, em 1993.

Cronologia
– 1881: nasce em 5 de agosto.
– 1896: presta concurso para o Ginásio Nacional (Colégio Pedro II).
– 1898: morre Bernardo Gutemberg, irmão caçula de Paulo Barreto.
– 1899: em 1 de junho publica seu primeiro texto.
– 1900: começa a escrever para vários órgãos da imprensa carioca.
– 1902: tenta entrar para o Itamarati, mas é “diplomaticamente” recusado pelo Barão do Rio Branco por ser “gordo, amulatado e homossexual” (Gomes, 1996, p. 114).
– 1903: indicado por Nilo Peçanha, começa a trabalhar na Gazeta de Notícias, onde permaneceria até 1913.
– 1904: entre fevereiro e março, realiza para a Gazeta a série de reportagens “As religiões do Rio”, posteriormente transformadas em livro.
– 1905: em novembro, torna-se conferencista.
– 1906: estréia sua primeira peça teatral, a revista Chic-Chic (escrita em parceria com o jornalista J. Brito).
– 1907: o drama Clotilde, de sua autoria, é encenado no teatro Recreio Dramático. No mesmo ano, ele se candidata pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras.
– 1908: em dezembro, faz sua primeira viagem à Europa, tendo visitado Portugal, Londres e Paris.
– 1909: em março, morre o pai e Paulo e sua mãe mudam-se para a Lapa (em casa separadas, contudo). Em novembro, lança o livro de contos infantis Era uma vez…, em parceria com Viriato Correia.
– 1910: é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Em dezembro, faz sua segunda viagem à Europa e visita Lisboa, Porto, Madri, Barcelona, Paris, a Riviera e a Itália.
– 1911: com um empréstimo de 20 contos de réis fornecido por Paulo Barreto, Irineu Marinho deixa a Gazeta e lança em junho o jornal A Noite. Um ano depois, ele quitou totalmente o empréstimo.
– 1912: é lançado o livro Intenções, de Oscar Wilde, em tradução de Paulo Barreto.
– 1913: torna-se correspondente estrangeiro da Academia de Ciências de Lisboa. Em novembro, faz sua terceira viagem à Europa, tendo visitado Lisboa (onde sua peça A bela Madame Vargas é encenada com grande sucesso), Paris, Alemanha, Istambul, Rússia, Grécia, Jerusalém e Cairo.
– 1915: viaja à Argentina e se encanta com o país. Declara que “Buenos Aires é a Londres gaúcha” (Gomes, 1996, p, 120).
– 1916: torna-se amigo de Isadora Duncan, durante a temporada dela no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ao lado de Gilberto Amado, teria testemunhado a bailarina dançar nua na Cascatinha da Tijuca.
– 1917: em 22 de maio, escreve para O Paiz uma crônica intitulada “Praia Maravilhosa” onde exalta as maravilhas da praia de Ipanema. É presenteado com dois terrenos no futuro bairro, onde passa a residir neste ano. Funda e passa a dirigir a SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).
– 1918: viaja à Europa para cobrir a conferência do armistício em Versalhes, após a I Guerra Mundial.
– 1919: publica o livro de contos “A mulher e os espelhos”.
– 1920: funda o jornal A Pátria, onde defende a colônia portuguesa. Por causa disso, é vítima de ofensas morais e agressão física.
– 1921: em 23 de junho, morre de enfarte fulminante. Seu enterro é acompanhado por mais de 100 mil pessoas.

Representações na cultura

João do Rio já foi retratado como personagem no cinema, interpretado por José Lewgoy no filme Tabu (1982). No filme Brasília 18% (2006), Otávio Augusto interpreta uma personagem homônima, que no entanto pouco ou nada se relaciona à figura histórica.

Obras do autor

– As religiões do Rio. Paris: Garnier, 1904?
– O momento literário. Paris: Garnier, 1905?
– A alma encantadora das ruas. Paris: Garnier, 1908.?
– Era uma vez… (em co-autoria com Viriato Correia). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909.
– Cinematographo: crônicas cariocas. Porto: Lello & Irmão, 1909.
– Fados, canções e danças de Portugal. Paris: Garnier, 1910.
– Dentro da noite. Paris: Garnier, 1910.?
– A profissão de Jacques Pedreira. Paris: Garnier, 1911.
– Psicologia urbana: O amor carioca; O figurino; O flirt; A delícia de mentir; Discurso de recepção. Paris: Garnier, 1911.
– Vida vertiginosa. Paris: Garnier, 1911.
– Portugal d’agora. Paris: Garnier, 1911.
– Os dias passam…. Porto: Lello & Irmão, 1912.
– A bela madame Vargas. Rio de Janeiro: Briguiet, 1912?
– Eva. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1915.
– Crônicas e frases de Godofredo de Alencar. Lisboa: Bertrand, 1916?
– Pall-Mall Rio: o inverno carioca de 1916. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1917.
– Nos tempos de Venceslau. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1917.
– Sésamo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917.
– A correspondência de um estação de cura. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro & Maurílio, 1918.
– A mulher e os espelhos. Lisboa: Portugal-Brasil, 1919?
– Na conferência da Paz. 3 v. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1919-20.
– Adiante!. Paris: Aillaud; Lisboa: Bertrand, 1919.
– Ramo de loiro: notícias em louvor. Paris: Aillaud; Lisboa: Bertrand, 1921.
– Rosário da ilusão…. Lisboa: Portugal-Brasil; Rio de Janeiro: Americana, 1921?
– Celebridades, desejo. Ed. póstuma. Rio de Janeiro: Centro Luso-Brasileiro Paulo Barreto, 1932.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://www.releituras.com
– Foto: http://www.joaodorio.com
– Academia Brasileira de Letras
– João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. SP: Martin Claret, 2007. Contra-capa.

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João do Rio (O homem de cabeça de papelão)

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares…

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal…

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma “relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão”. Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem…

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça…

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo… Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim…

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

Fontes:
R. Magalhães Junior (org.) Antologia de Humorismo e Sátira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1957.
Imagem http://caio.ueberalles.net

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João do Rio (Aventura de Hotel)

Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade heteróclita mas toda bem colocada. O proprietário orgulhava-se de ter o senador Gomes com as suas sobrecasacas imundas, o ex-vice-presidente da ex-missão do México, a primeira ex-grande atriz de revista, com o seu cachorro, Mme de Santarém, divorciada pela quarta vez em diversas religiões, o barão de Somerino do Instituto Histórico, um negociante tuberculoso chegado das altitudes suíças com o fardo enorme da esposa, o engenheiro Pereira mais a mulher, mais sete filhos, mais a criada, a notável trágica Zulmira Simões em conclusão da sua última peregrinação provincial em companhia do elegante Raimundo de Souza, duas senhoras entre viúvas, solteiras ou estritamente casadas, enfim, todo um mundo variado, mas que pagava bem. De resto, o proprietário, como assegurava a ex-estrela de revista, correspondia, isto é, servia com cuidado. Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês.

Ao almoço era curioso ver toda aquela gente na sala de baixo, ornada de palmeiras e de flores comuns, entre os metais polidos das guarnições das mesas. A sala era baixa, com uma luz baça de recanto submarino Parecia um aquário. A mim pelo menos. As atrizes tomavam ares graves de peixes evoluindo cerimoniosamente no fundo d’água para cumprimentar as damas sem palco; os homens eram reservadíssimos. Tudo aquilo mastigava calado, cada um na sua mesa, batendo o talher. Só quando havia hóspede novo é que surgiam frases breves.

– Quem é?

– O deputado Gomensoro.

– Ah!

Sempre grandes nomes, gente importante, um complexo armorial de celebridades funcionárias e de titulares empastilhados. E à noite, no saguão guarnecera de um indizível mobiliário hesitante entre o estilo otomano, os belchiors e o confortável inglês, podia-se ver os representantes de todas as classes sociais desde a diplomacia até o trololó.

Precisamente tínhamos mais dois hóspedes, o velho ministro do Supremo, Melchior, e seu sobrinho Raul Pontes, rapaz elegante, vivaz, espirituoso, com vinte anos irresistíveis. Todos no hotel respeitavam Melchior e gostavam do Raul, e ainda ninguém esquecera a sua verve quando o deputado Gomensoro, depois de apertar-lhe a mão, dera por falta do relógio. Onde se fora o relógio? No bonde? Roubado? Saíra Gomensoro com ele? O Dr. Raul Pontes ria a bom rir. O relógio evaporara-se decerto. Era o calor. E ficou muito bem aquele estouvamento, tanto mais quanto o velho Melchior representante da justiça, mostrava-se incomodado.

No dia seguinte, ao vestir-me para o almoço, lembrei que na minha gravata creme ficava bem um alfinete de turmalina azul com brilhantes do Cabo, linda jóia e lindo presente. Abri a gaveta onde deixara à noite. Não estava lá. Abri outras gavetas, procurei, remexi malas e bolsas. O alfinete desaparecera. Quis descer, prevenir o gerente. Mas contive-me. Podia tê-lo atirado para qualquer canto. Quando se quer achar um objeto, a gente está vendo-o e é como se não o visse. Depois uma queixa sem provas contra o criado acirra a má vontade. Menos talvez que as queixas com provas, mas sempre o bastante para sermos malservidos. Eu sou prudente. Três ou quatro dias depois, no saguão, o senador Gomes, que só tinha livros e roupas velhas no seu aposento, perguntou-me de repente:

– Você tem um alfinete de turmalina azul, não?

Além de prudente, sou inteligente. Por que diabo naquele distinto hotel, o senador indagava de um alfinete desaparecido? Tê-lo-ia apanhado por farsa? Era pouco próprio para o alto cargo legislativo, mas para mim uma confiança simpática. Fez-me o efeito de um piparote no ventre. Respondi:

– Tenho sim. Por que pergunta? Ainda hoje sai com ele…

Gomes travara com a genial Zulmira Simões, oráculo teatral de aquém e de além-mar, uma discussão superior sobre Calderon de la Barca, a quem, aliás, ambos imputavam várias peças de Lope de Vega. Em tão elevada esfera da dramaturgia espanhola, Gomes não respondeu à minha pergunta, e eu que nessa noite não saí de casa, ao subir antes do chá, encontrei no corredor apenas o velho Melchior meio abatido, fechei a porta por dentro, dormi e no dia seguinte dei por falta do meu porte-monnaie de prata. Coisa estúpida afinal!

O gatuno – porque era o gatuno, não havia dúvida, – o gatuno ou farsista sem graça deixara a minha carteira e deixara até os níqueis, certo para mostrar que aquilo era seu, que aquilo estava ali porque ele voltaria. Que fazer? Prevenir o proprietário? Mas eu estava num hotel tão distinto! Era pouco correto e estabeleceria o desequilíbrio na confiança geral. Não! seria melhor esperar.

No dia seguinte, como voltasse de ouvir o D. Cesar de Bazan com Zulmira Simões e o brumeliano de Sousa, enquanto de Sousa subia à frente, a atriz murmurou:

– Ah! meu amigo, este hotel tem casos curiosos… Sabe que fui roubada?

– Sério?

– Sim. O objeto tinha um valor todo estimativo, era um berloque que me dera o Raimundo logo no começo da nossa ligação. Não lhe diga nada que o incomodaria. De resto, não sou eu a única. O Dr Pontes foi também roubado no seu porte-monnaie.

– Como eu!

– O Sr. também? Mas estamos na caverna de Ali-Babá.

Horas depois felizmente rebentava o escândalo. Pela manhã, Mme. de Santarém dera queixa por lhe terem roubado um face â mam de madrepérola com incrustações de ouro sob desenhos, dizia ela, de um pintor húngaro. E o gerente pôs fora o criado Antônio, porque a ele faltavam também passadores de guardanapos – dois, três por dia. Antônio saiu protestando, furioso. Falou até de processo por perdas e danos. Era um ladrão cínico. E durante o almoço a conversa generalizou-se. Ninguém escapara. O que acontecera comigo acontecera com de Sousa, com o barão de Somerino, com o negociante tuberculoso, com o ex-vice-presidente da ex-missão do México, com a estrela revisteira, com o Dr. Melchior. Todos tinham sido roubados e confessavam por desabafar. Havia até mesmo recordações. O Dr. Pontes, o nosso caro Raul, indagava da genial Simões:

– V. Excia. andava à cata do ladrão naquele dia em que a encontrei no corredor?

– Não; ainda não sabia. Tive apenas um pressentimento. Acho que deviam prender o homem.

– Mas não há provas! exclamava Mme. de Santarém. Não encontraram nada! Era esperto. No dia em que desapareceu o meu face â mam, não saí do quarto.

– Roubos excepcionais…

– Estamos no domínio dos ladrões geniais.

– Precisamos de um grande agente dedutivo para resolver o crime…

– E prender o Antônio copeiro? Ora para ladrões desse gênero basta a nossa polícia!

Aliás o tal Antônio gatuno parecia mais um doente. O homem afinal não tirara nunca dinheiro, e as argolas de guardanapos do hotel eram lastimáveis como valores. Mas, fosse gatuno genial ou doente, Antônio partira e a confiança renascia. Passamos assim uma semana e, com grande pasmo nosso, Mme. de Santarém e a atriz Zulmira Simões, no mesmo dia, à mesma hora, encontraram em cima do lavatório, uma o seu face â mam, outra o seu berloque.

É uma aventura! É um caso de diabolismo! sentenciava o negociante tuberculoso.

O hotel convulsionava-se. Só o senador Gomes resmungou:

– Que besta!

E aquela frase dita tristemente preocupou-me. No fundo, porém, o sujo e ilustre homem tinha razão. O gatuno, ou o sportman da ladroeira não era Antônio, era outro, existia, anunciava a sua presença, estava ali, ao nosso lado. Audácia? Loucura? Estupidez? No dia seguinte deu-se por falta do colar de ouro com pedras finas da atriz Simões, os brincos da mulher do tuberculoso sumiram-se. Foi o terror. Os hóspedes trancavam o quarto e saíam levando os valores no bolso, mesmo para almoçar. A limpeza era feita na presença dos respectivos locatários. Já ninguém se falava direito, já ninguém conversava. Havia entre nós um ladrão. Um ladrão! O medo prendia as senhoras aos quartos. Ninguém saía sem necessidade urgente, com receio de ser apontado pelo menos um segundo, como o fora o Antônio. Éramos os forçados daqueles crimes; tínhamos que chegar à tragédia. O gerente, lívido, armava uma polícia interna ferocíssima; os criados serviam, coitados! com uma humildade dolorosa, temendo a suspeita, o ex-vice-presidente da ex-missão do México teimava em escrever ao chefe de polícia, em varejar os quartos.

– Pelo amor de Deus! gemia o proprietário.

– É outra tolice, acrescentava Gomes. Nós temos aqui gente respeitável.

– Pois está claro! dizia logo Mme de Santarém, divorciada pela quarta vez.

E, apesar da vigilância, continuaram a desaparecer objetos. Não era possível! Ou sair, ou dar queixa à polícia.

Uma vez encontrei na cidade Melchior e Pontes, acompanhando Mme de Santarém a uma confeitaria. Eram duas horas da tarde. Voltei à pensão. Por uma coincidência, morava no mesmo corredor que essas três pessoas, mesmo pegado ao senador Gomes. Estava a despir-me, quando senti passos abafados. Abri a porta devagar. Era o alegre e sempre espirituoso Pontes. Vinha para o seu quarto. Mas não. Parou no quarto de Mme. de Santarém, experimentou uma chave, torceu, entrou. Oh! a imoralidade dos hotéis honestos! O felizardo ia gozar as delícias de um aprês-midi amoroso com a honestíssima senhora! Pouco depois, porém, ouvi um leve rumor, espiei de novo. Era Pontes, com o ar mais natural, que fechava o quarto e andava ligeiro. Quis fazer-lhe uma pilhéria, gritar; – aí maganão! ou outra parvoice qualquer – porque eu sou de natural pândego. Mas deixei para o jantar, recolhi. E no jantar Mme de Santarém, que chegara momentos antes, apareceu transmudada: tinham-lhe roubado o broche de rubis.

Estávamos todos no salão e sustiveram-se todos num pasmo raivoso, quando a gentil senhora bradou:

– Acabam de roubar o meu broche de rubis! Mais um!

Os meus olhos cravaram-se no Dr. Pontes. Tinha o mesmo pasmo dos outros, o mesmo ar, o mesmo olhar.

Uma idéia atravessou-me o espírito. Era ele o gatuno! Não havia dúvida. Era agarrá-lo ali, logo… Mas se fosse apenas o amante? Afinal era um homem que devia respeitar a família e o tio!

As provas eram contra ele, absolutamente contra. No hotel ninguém poderia lembrar-se de sair depois daqueles roubos. A situação precisava ficar clara. Eu cometeria um escândalo, diria ali que o vira entrar no quarto de Mme de Santarém e as explicações viriam depois.

Ia falar, ia contar tudo, quando senti que pesavam em mim os dois olhos do senador Gomes, enquanto este, balançando a cabeça, balançando a faca entre os dedos, parecia por todos os modos pedir-me para não dizer nada. Gomes sabia! Desde o dia em que falara do meu alfinete! Contive-me. Mesmo porque entravam a Pepita, mais o seu cachorro, ambos desesperados com o desaparecimento de um anel marquise, admirável, segundo a opinião da estrela.

O engenheiro Pereira ergueu-se.

– Gerente! Não fico mais um dia no seu hotel. A situação é delicada para o primeiro que sair do ergástulo, mas eu arrosto-a. Tenho família, tenho uma esposa nervosa e tenho valores. Sou o engenheiro Salústio Pereira. As minhas malas passam pelo seu balcão, para o exame. Tire-me a conta…

O diplomata, que, entretanto, devia cinco semanas, teve um esforço:

– Eu também saio.

Os outros ficaram quietos, incapazes, mas com grande admiração minha, o Dr. Pontes falou:

– Vivemos nesta aflição há já algum tempo. Há um gatuno aqui, ou um gatuno de fora que possui a chave.

– É isso, a chave… atalhei eu.

– Mas apesar do mútuo respeito que nos devemos, a desconfiança existe. Ora, eu já pensei mal de meu tio. Proponho, pois que ao sair daqui, façamos uma passeata pelo hotel, entrando e varejando todos os quartos. Serve?

Eu tinha acabado de sorver o café e admirei Pontes: ou um gatuno esplêndido ou um inocente. Em compensação, o senador Gomes olhava a porta absolutamente pálido. Que se iria passar?

– Serve? tornou a dizer Pontes.

– Mas está claro, fez o Gomes. Partimos todos para a passeata lá da entrada. É o meio alegre de acabar com uma pressão séria.

– Apoiado! Este Pontes sempre o mesmo!

Mas Gomes erguia-se no rumor das exclamações.

Erguia-me, alcancei-o no corredor Estávamos sós. Sussurrei-lhe:

– O gatuno é ele. Vi-o entrar no quarto da Santarém…

– Não é.

– Então quem é?

– Não sei.

– É impossível negar mais tempo. Ou o senhor diz-me ou eu explico tudo em público. Só o muito respeito…

Gomes teve um gesto alucinado, junto à escada que dava para os aposentos superiores.

– Nada de palavras inúteis. Jura segredo?

– É um crime.

– Jura?

– Juro.

– Pois salvemos uma pobre mulher, salvemos uma desvairada, meu amigo, salvemo-la! Não, pergunte por quê. Amo-a como pai, como amante, como quiser.

É ela que rouba, é ela. Não há meio de impedir Vou mandá-la embora e ao mesmo tempo tremo de vê-la no cárcere. É louca. Neste momento mesmo estamos à mercê da sorte e do disparate do Pontes, a quem eu devia odiar Mas vamos salvá-la. É preciso salvá-la. Tudo será restituído. Já tenho feito isso. Psiu! Esconda-se, esconda-se. Aí debaixo da escada. Não a veja, não a veja…

Alguém descia a escada sutilmente. Escondi-me com o coração batendo, enquanto Gomes amparava-se ao corrimão. O silêncio parecia aumentar a vastidão da escada. A voz do Gomes indagou:

– Tudo?

– Sim, meu medroso, sim, eu tinha tudo junto. Toma. E agora, até…

O vulto passou para o saguão de entrada. Da sala de jantar vinham vindo os hóspedes, excitados com aquela investigação policial aos quartos. Trêmulo, lívido, Gomes meteu-me na mão um embrulho, enquanto empurrava nas vastas algibeiras da sobrecasaca e da calça outros pequenos rolos, a dizer:

– Amanhã, restituiremos pelo correio, amanhã saem muitos. Sê bom, salva-a!

Era atroz, era trágico, era ridículo ver aquele homem ilustre e honesto a guardar os roubos de uma cleptomaníaca satânica e era estúpido o que eu fazia! Mas irresistível.

Fosse quem fosse essa gatuna inteligente, era de uma ousadia, de um plano, de uma afoiteza, de um egoísmo diabolicamente esplêndidos. Estiquei o pescoço na ânsia da curiosidade, a saber quem era, a ver quem podia ser no hotel tão cheio de hóspedes, aquela de que me fazia cúmplice, aquela que misteriosamente, impalpavelmente, durante um mês, trouxera ao hotel atmosfera de dúvida, de crime, de infâmia. E, contendo um grito de pasmo, vi Mme de Santarém entrar no saguão sorridente e calma.

Fonte:
http://www.biblio.com.br/

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João do Rio (Dentro da Noite)

— Então causou sensação?

— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela coitadita! parecia louca por ti e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora… Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.

— Contra mim?

Podia ser contra a pureza da Clotilde.

Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio com o ar desvairado…

— Eu tenho o ar desvairado?

— Absolutamente desvairado.

— Vê-se?

— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra, num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?

O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados d’água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima – o que falava mais – dizia para o outro:

— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?

O outro sorriu desanimado.

— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise.

E como o gordo esperasse:

— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.

— Mas que é isto, Rodolfo?

— Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.

— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto…

O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais – a não ser eu, e eu dormia profundamente… Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.

— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher – a beleza dos braços das Oreadas pintadas por Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los… Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei – uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraizou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.

— Que horror!

— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de Lajes, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços – oh! que braços, Justino, que braços! – estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: “Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?” Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. – “Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço.” Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: – “Se não quer que eu mostre os braços por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?” – “É , é isso, Clotilde.” E rindo – como esse riso devia parecer idiota! – continuei: “É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete.” — “Está louco, Rodolfo?” — “Que tem?” — “Vai fazer-me doer” — “Não dói.” — “E o sangue?” — “Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento.” E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as fontes a bater, a bater… Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: “Bem. Rodolfo, faça… mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!”. E os seus dois braços tremiam.

Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: “Mau!”

— Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo em que forçava o pensamento a dizer: nunca mais farei essa infâmia! todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror..

Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.

— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida de que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Tereza não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? É mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. É um Jack hipercivilizado, contenta-se com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.

O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.

— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. E lúgubre.

— Então continuaste?

— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: — “Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa.”

Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir… Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei. Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?…

Então depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: – “Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “Fez”… Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios… Justino, que tristeza!…

De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado e indagou:

— Mas então como te saíste?

— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te.” E ela de dentro: “Já vou, mãe”. Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.

— E fugiste?

— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras idéias. Assisto-me endoidecer Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, freqüentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.

A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. E muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.

A voz do desvairado tomara-se metálica, outra.

De novo porém a envolveu um tremor assustado.

— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou… O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco…

De repente, num entrechocar de todos os vagões o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loira com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.

— Adeus.

— Saltas aqui?

— Salto.

— Mas que vais fazer?

— Não posso, deixa-me! Adeus!

Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loira. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, no que estava a menina loira. Mas o comboio rasgara a treva com o outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.

Fontes:
http://www.biblio.com.br/
Imagem
http://www.revista.agulha.nom.br

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João do Rio (O Bebê De Tarlatana Rosa)

(Tarlatana: Tecido muito fino e engomado, usado em forros de vestidos, saias, aparelhos de gesso etc. – Fonte: Caudas Aulete)

– Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto… Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventura não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura. .

E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.

Havia no gabinete o barão Belfort, Anatolio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autêntico parecia absorto:

– É uma aventura alegre? indagou Maria.

– Conforme os temperamentos.

– Suja?

– Pavorosa ao menos.

– De dia?

– Não. Pela madrugada.

– Mas, homem de Deus, conta! – suplicava Anatolio. – Olha que está adoecendo a Maria.

Heitor pegou um largo trago à cigarreta.

– Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ância e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma…

– Nem com um, – atalhou Anatolio.

– Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a porneia da cidade, saio como na Finícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.

– Muito bonito! – ciciou Maria de Flor.

– Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champanhe aos clubs de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio. “Nossa Senhora! disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge, um cheiro atroz, rolos constantes…” – Que tem isso? Não vamos juntos?

Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era uma desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparramando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros da ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos em frascos d’álcool, que têm as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel de arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parava diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tartalana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quando ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro: – Ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e ser sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma freqüentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chic e mais secante da cidade.

– E o bebê?

– O bebê ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado do chauffeur, no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e uma voz rouca dizer: “para pagar o de ontem.” Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo de indagar: onde vais hoje?

– A toda parte! – respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.

– Estava perseguindo-te! – comentou Maria de Flor.

Talvez fosse um homem… – soprou desconfiado o amável Anatolio.

– Não interrompam o Heitor! – fez o barão, estendendo a mão.

Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, sorriu, continuou:

– Não o vi mais nessa noite, e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e caí no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a honra um cacetação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.

Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.

– A quem dizes!… – suspirou Maria de Flor.

– Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!

– É quando se fica mais nervoso!

– Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda a gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de bengala, caíam em sombras – sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços… E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo largo do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do Interior, quando o vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.

Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei. – “Os bons amigos sempre se encontram”- disse. O bebê sorriu sem dizer palavra. – Estás esperando alguém? – Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. – Vens comigo? – Onde? – Indagou a sua voz áspera e rouca. – Onde quiseres! – Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.

– Por pouco…

– Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica: – “Aqui não!” Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado o jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua, escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem em baixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva espancada um pouco pela luz de combustões distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela austeridade da noite. – Então, vamos? Indaguei. – Para onde? – Para a tua casa. – Ah! não, em casa não podes… – Então por aí. – Entrar, sair, despir-me. Não sou disso! – Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. – Que tem? – Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. – Que máscara? – O nariz.- Ah! Sim! E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.

Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal. – Tira o nariz! – Ela segredou: Não! Não! Custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne de chama.

O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal estar curioso, um estado de inibição esquisito. – Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. – Disfarça sim! – Não! Procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu; o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente – uma caveira com carne…

Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. – Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Fosse tu que quiseste…

Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da Luxuria… Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semi treva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo o mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo em febre.

Quando parei à porta de casa para tiver, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tartalana rosa…

Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatolio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes, e resumiu:

– Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.

E foi sentar-se ao piano.

Fonte:
http://www.biblio.com.br/

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João do Rio (No Mundo dos Feitiços = Os Feiticeiros)

Antônio é como aqueles adolescentes africanos de que fala o escritor inglês. Os adolescentes sabiam dos deuses católicos e dos seus próprios deuses, mas só veneravam o uísque e o schilling. Antônio conhece muito bem N. S.ª das Dores, está familiarizado com os orixálas da África, mas só respeita o papel-moeda e o vinho do Porto. Graças a esses dois poderosos agentes, gozei da intimidade de Antônio, negro inteligente e vivaz; graças a Antônio, conheci as casas das ruas de São Diogo, Barão de S. Felix, Hospício, Núncio e da América, onde se realizam os candomblés e vivem os pais-de-santo. E rendi graças a Deus, porque não há decerto, em toda a cidade, meio tão interessante.

Vai V.S. admirar muita coisa! – dizia Antônio a sorrir; e dizia a verdade.

Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o Rio no tempo do Brasil colônia e do Brasil monarquia, restam uns mil negros. São todos das pequenas nações do interior da África, pertencem ao igesá, oié, ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se consideram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendência brasileira à África para estudar a religião, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mistérios e as feitiçarias. Todos, porém, falam entre si um idioma comum: – o eubá.

Antônio, que estudou em Lagos, dizia:

– O eubá para os africanos é como o inglês para os povos civilizados. Quem fala o eubá pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio. Só os cambindas ignoram o eubá, mas esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil. Quando os cambindas falam, misturam todas as línguas… Agora os orixás e os alufás só falam o eubá.

– Orixás, alufás? – fiz eu, admirado.

– São duas religiões inteiramente diversas. Vai ver.

Com efeito. Os negros africanos dividem-se em duas grandes crenças: os orixás e os alufás.

Os orixás, em maior número, são os mais complicados e os mais animistas. Litólatras e fitólatras, têm um enorme arsenal de santos, confundem os santos católicos com os seus santos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cada erva, uma alma e um espírito. Essa espécie de politeísmo bárbaro tem divindades que se manifestam e divindades invisíveis. Os negros guardam a idéia de um Deus absoluto como o Deus católico: Orixa-alúm. A lista dos santos é infindável. Há o orixalá, que é o mais velho, Axum, a mãe dágua doce, Ie-man- já, a sereia, Exu, o diabo, que anda sempre detrás da porta, Sapanam, o Santíssimo Sacramento dos católicos, o Irocô, cuja aparição se faz na árvore sagrada da gameleira, o Gunocô, tremendo e grande, o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, a Dadá, a Orainha, que são invisíveis, e muitos outros, como o santo do trovão e o santo das ervas. A juntar a essa coleção complicada, têm os negros ainda os espíritos maus e os heledás ou anjos da guarda.

É natural que para corresponder à hierarquia celeste seja necessária uma hierarquia eclesiástica. As criaturas vivem em poder do invisível e só quem tem estudos e preparo pode saber o que os santos querem. Há por isso grande quantidade de autoridades religiosas. Às vezes encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem cessar. São babalaôs, matemáticos geniais, sabedores dos segredos santos e do futuro da gente; são babás que atiram o endilogum; são babaloxás, pais-de-santos veneráveis. Nos lanhos da cara puseram o pó da salvação e na boca têm sempre o obi, noz de cola, boa para o estômago e asseguradora das pragas.

Antônio, que conversava dos progressos da magia na África, disse-me um dia que era como Renan e Shakespeare: vivia na dúvida. Isso não o impedia de acreditar nas pragas e no trabalhão que os santos africanos dão.

– V. s. não imagina! Santo tem a festa anual, aparece de repente à pessoa em que se quer meter e esta é obrigada logo a fazer festa; santo comparece ao juramento das Iauô e passa fora, do Carnaval à Semana Santa; e logo quer mais festa… Só descansa mesmo de fevereiro a abril.

– Estão veraneando.

– No carnaval os negros fazem ebó.

– Que vem a ser ebó?

– Ebó é despacho. Os santos vão todos para o campo e ficam lá descansando.

– Talvez estejam em Petrópolis.

– Não. Santo deixa a cidade pelo mato, está mesmo entre as ervas.

– Mas quais são os cargos religiosos?

– Há os babalaôs, os açoba, os aboré, grau máximo, as mães-pequenas, os ogan, as agibonam…

A lista é como a dos santos, muito comprida, e cada um desses personagens representa papel distinto nos sacrifícios, nos candomblés e nas feitiçarias. Antônio mostra-me os mais notáveis, os pais-de-santo: Oluou, Eruosaim, Alamijo, Adé-Oié, os babalaôs Emídio, Oloô-teté, que significa treme-treme, e um bando de feiticeiros: Torquato requipá ou fogo pára-chuva, Obitaiô, Vagô, Apotijá, Veridiana, Crioula Capitão, Rosenda, Nosuanan, a célebre Chica de Vavá, que um político economista protege…

– A Chica tem proteção política?

– Ora se tem! Mas que pensa o senhor? Há homens importantes que devem quantias avultadas aos alufás e babalaôs que são grau 32 da Maçonaria.

Dessa gente, poucos lêem. Outrora ainda havia sábios que destrinçavam o livro sagrado e sabiam porque Exu é mau – tudo direitinho e claro como água. Hoje a aprendizagem é feita de ouvido. O africano egoísta pai-de-santo, ensina ao aboré, as iauô quando lhes entrega a navalha, de modo que não só a arte perde muitas das suas fases curiosas como as histórias são adulteradas e esquecidas.

– Também agora não é preciso saber o Saó Hauin. Negro só olhando e sabendo o nome da pessoa pode fazer mal, diz Antônio.

Os orixás são em geral polígamos. Nessas casas das ruas centrais de uma grande cidade, há homens que vivem rodeados de mulheres, e cada noite, como nos sertões da África, o leito do babaloxás é ocupado por uma das esposas. Não há ciúmes, a mais velha anuncia quem a deve substituir, e todas trabalham para a tranqüilidade do pai. Oloô-Teté, um velho que tem noventa anos no mínimo, ainda conserva a companheira nas delícias do himeneu, e os mais sacudidos transformam as filhas-de-santo em huris de serralhos.

Os alulás têm um rito diverso. São maometanos com um fundo de misticismo. Quase todos dão para estudar a religião, e os próprios malandros que lhes usurpam o título sabem mais que os orixás.

Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua, sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.

– Só os alufás ricos sentam-se em peles de tigre, diz-nos Antônio.

Essas criaturas contam à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de porco, escrevem as orações numas taboas, as atô, com tinta feita de arroz queimado, e jejuam como os judeus quarenta dias a fio, só tomando refeições de madrugada e ao pôr-do-sol.

Gente de cerimonial, depois do assumy, não há festa mais importante como a do ramadan, em que trocam o saká ou presentes mútuos. Tanto a sua administração religiosa como a judiciária estão por inteiro independentes da terra em que vivem.

Há em várias tribos vigários gerais ou ladamos, obedecendo ao lemano, o bispo, e a parte judiciária está a cargo dos alikaly, Juizes, sagabamo, imediatos de juizes, e assivajiú, mestre de cerimônias.

Para ser alufá é preciso grande estudo, e esses pretos que se fingem sérios, que se casam com gravidade, não deixam também de fazer amuré com três e quatro mulheres.

– Quando o jovem alufá termina o seu exame, os outros dançam o opasuma e conduzem o iniciado a cavalo pelas ruas, para significar o triunfo.

– Mas essas passeatas são impossíveis aqui, brado eu.

– Não são. As cerimônias realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares afastados, e os alufás, vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.

Naturalmente Antônio fez-me conhecer os alufás:

Alikali; o lemano atual, um preto de pernas tortas, morador à rua Barão de S. Félix, que incute respeito e terror; o Chico Mina, cuja filha estuda violino, Alufapão, Ojó, Abacajebú, Ginjá, Manê, brasileiro de nascimento, e outros muitos.

Os alufás não gostam da gente de santo a que chamam auauadó-chum; a gente de santo despreza os bichos que não comem porco, tratando-os de malés. Mas acham-se todos relacionados pela língua, com costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da feitiçaria. Os orixás fazem sacrifícios, afogam os santos em sangue, dão-lhes comidas, enfeites e azeite-de-dendê.

Os alufás, superiores, apesar da proibição da crença, usam dos aligenum, espíritos diabólicos chamados para o bem e o mal, num livro de sortes marcado com tinta vermelha e alguns, os maiores, como Alikali, fazem até idams ou as grandes mágicas, em que a uma palavra cabalística a chuva deixa de cair e obis aparecem em pratos vazios.

Antes de estudar os feitiços, as práticas por que passam as iauô nas camarinhas e a maneira dos cultos, quis ter uma impressão vaga das casas e dos homens.

Antônio levou-me primeiro à residência de um feiticeiro alufá. Pelas mesas, livros com escrituras complicadas, ervas, coelhos, esteiras, um calamo de bambu finíssimo.

Da porta o guia gritou:

– Salamaleco.

Ninguém respondeu.

– Salamaleco!

– Maneco Lassalama!

No canto da sala, sentado numa pele de carneiro, um preto desfiava o rosário, com os olhos fixos no alto.

– Não é possível falar agora. Ele está rezando e não quer conversar. Saímos, e logo na rua encontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer de nós, ternos claros e usa suíças cortadas rentes. Já o conhecia de o ver nos cafés concorridos, conversando com alguns deputados. Quando nos viu, passou rápido.

– Está com medo de perguntas. Chico gosta de fingir.

Entretanto, no trajeto que fizemos do Largo da Carioca à praça da Aclamação, encontramos, a fora um esverdeado discípulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duas mães-de-santo, um velho babalaô e dois babaloxás.

Nós íamos à casa do velho matemático Oloô-Teté.

As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão cheias de negros baianos e de mulatos. São quase sempre rótulas lobregas, onde vivem com o personagem principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos; por cima das mesas, terrinas, pucarinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de oleado onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal, quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.

Há na atmosfera um cheiro carregado de azeite-de-dendê, pimenta-da-costa e catinga. Os pretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. Não fosse a credulidade, a vida ser-lhes-ia difícil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.

Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.

– Está pensando! – dizem os outros.

De repente, os pobres velhos ingênuos acordam, com um sonho mais forte nessa confusa existência de pedras animadas e ervas com espírito.

– Xangô diz que eu tenho de fazer sacrifício!

Xangô, o deus do trovão, ordenou no sono, e o opelê, feito de cascas de tartaruga e batizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer com que sacrifício se contenta Xangô.

Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá. As filhas-de-santo, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar dá-lhes o supérfluo. A preocupação destes é saber mais coisas, os feitiços desconhecidos, e quando entra o que sabe todos os mistérios, ajoelham assustados e beijam-lhe a mão, soluçando:

– Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!

À tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em alguma pedreira. Os feiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos outros, falam com intimidade das figuras mais salientes, do país, do imperador, de que quase todos têm o retrato, de Cotegipe, do barão de Mamanguape, dos presidentes da República.

As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopéas sinistramente doces. Essas melopéas são quase sempre as preces, as evocações, e repetem sem modalidade, por tempo indeterminado, a mesma frase.

Só pelos candomblés ou sessões de grande feitiçaria, em que os babalaôs estão atentos e os pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocações diante dos fogareiros com o tessubá na mão, é que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de acassá com azeite-de-dendê.

Quando entramos na casa de Oloô-Teté, o matemático macróbio e sensual, uma velha mina, que cantava sonambulicamente, parou de repente.

– Pode continuar.

Ela disse qualquer coisa de incompreensível.

– Está perguntando se o senhor lhe dá dois tostões, ensina-nos Antônio.

– Não há dúvida.

A preta escancara a boca, e, batendo as mãos, põe-se a cantar:

Baba ounlô, ó xocotám, o ilélê.

– Que vem a ser isso?

– É o final das festas, quando o santo vai embora. Quer dizer: papai já foi, já fez, já acabou; vai embora!

Eu olhava a réstia estreita do quintal onde dormiam jabotis.

– O jaboti é um animal sagrado?

– Não, diz-nos o sábio Antônio. Cada santo gosta do seu animal. Xangô, por exemplo, come jaboti, galo e carneiro. Abaluaié, pai de varíola, só gosta de cabrito. Os pais-de-santo são obrigados pela sua qualidade a fazer criação de bichos para vender e tê-los sempre à disposição quando precisam de sacrifício. O jaboti é apenas um bicho que dá felicidade. O sacrifício é simples. Lava-se bem, às vezes até com champanha, a pedra que tem o santo e põe-se dentro da terrina. O sangue do animal escorre; algumas das partes são levadas para onde o santo diz e o resto a roda come.

– Mas há sacrifícios maiores para fazer mal às pessoas?

– Há! para esses até se matam bois.

– Feitiço pega sempre, sentencia o ilustre Oloô-Tetê, com a sua prática venerável. Não há corpo-fechado. Só o que tem é que uns custam mais. Feitiço para pegar em preto é um instante, para mulato já custa, e então para cair em cima de branco a gente sua até não poder mais. Mas pega sempre. Por isso preto usa sempre o assiqui, a cobertura, o breve, e não deixa de mastigar obi, noz de cola preservativa.

Para mim, homem amável, presentes alguns companheiros seus, Oloô-Tetê tirou o opelé que há muitos anos foi batizado e prognosticou o meu futuro.

Este futuro vai ser interessante. Segundo as cascas de tartaruga que se voltavam sempre aos pares, serei felicíssimo, ascendendo com a rapidez dos automóveis a escada de Jacó das posições felizes. É verdade que um inimigozinho malandro pretende perder-me. Eu, porém, o esmagarei, viajando sempre com cargos elevados e sendo admirado.

Abracei respeitoso o matemático que resolvera o quadrado da hipotenusa do desconhecido.

– Põe dinheiro aqui – fez ele.

Dei-lhe as notas. Com as mãos trêmulas, o sábio a apalpou longamente.

– Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede o que tiveres vontade à concha, dizendo sim, e à pedra dizendo não.

Assim fiz. O opelé caiu de novo no encerado. A concha estava na mão direita de Antônio, a pedra na esquerda, e Oloô tremia falando ao santo, com os negros dedos trêmulos no ar.

– Abra a mão direita! ordenou.

Era a concha.

– Se acontecer, ossumcê dá presente a Oloô?

– Mas decerto.

Ele correu a consultar o opelé. Depois sorriu.

– Dá, sim, santo diz que dá. – E receitou-me os preservativos com que eu serei invulnerável.

Também eu sorria. Pobre velho malandro e ingênuo! Eu perguntara apenas, modestamente, à concha do futuro se seria imperador da China… Enquanto isso, a negra da cantiga entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos.

O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé
O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé

– E esta, o que quer dizer?

– É uma cantiga de Orixalá. Significa: O homem do dinheiro está aí. Vamos erguê-lo…

Apertei-lhe a mão jubiloso e reconhecido. Na alusão da ode selvagem a lisonja vivia o encanto da sua vida eterna…

Fonte:
João do Rio. As Religiões no Rio. Editora Nova Aguilar, 1976.

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