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Alvaro de Campos (Poemas Sem Fronteiras)

SÍMBOLOS?
 Símbolos? Estou farto de símbolos…
 Mas dizem-me que tudo é símbolo.
 Todos me dizem nada.
 Quais símbolos? Sonhos. –
 Que o sol seja um símbolo, está bem…
 Que a lua seja um símbolo, está bem…
 Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
 E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
 Para o azul do céu?
 Mas quem repara na lua senão para achar
 Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
 Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
 Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
 Por uma diminuição instintiva,
 Porque o mar também é terra…
 Bem, vá, que tudo isso seja símbolo…
 Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
 Mas neste poente precoce e azulando-se
 O sol entre farrapos finos de nuvens,
 Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
 E o que fica da luz do dia
 Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
 Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
 Símbolos? Não quero símbolos…
 Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –
 Que o namorado voltasse para a costureira.

SOU EU

 Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
 Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
 Arredores irregulares da minha emoção sincera,
 Sou eu aqui em mim, sou eu.

 Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
 Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
 Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

 E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
 Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
 De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
 Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

 E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
 Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
 De haver melhor em mim do que eu.

 Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
 Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
 De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
 De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
 De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

 Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
 Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
 De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
 A impressão de pão com manteiga e brinquedos
 De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
 De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
 Num ver chover com som lá fora
 E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

 Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
 O emissário sem carta nem credenciais,
 O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
 A quem tinem as campainhas da cabeça
 Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

 Sou eu mesmo, a charada sincopada
 Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

 Sou eu mesmo, que remédio! …

DOMINGO IREI

 Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros
 Contente da minha anonimidade.
 Domingo serei feliz — eles, eles…
 Domingo…
 Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo…
 Nenhum domingo. —
 Nunca domingo. —
 Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
 Assim passa a vida,
 Sutil para quem sente,
 Mais ou menos para quem pensa:
 Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
 Não no nosso domingo,
 Não no meu domingo,
 Não no domingo…
 Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo…

 – O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona d’água,
 Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva.
 E a vasta humilhação de existir um amor taciturno –
 Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,
 Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria –

 Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma
 A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.

 Meus versos são a minha impotência.
 O que não consigo, escrevo-o;
 E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.

 A costureira estúpida violada por sedução,
 O marçano rato preso sempre pelo rabo,
 O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
 – Não distingo, não louvo, não (…) –
 São todos bichos humanos , estupidamente sofrentes.

 Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,
 Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,
 E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.

 Meu coração esquife, meu coração (…), meu coração cadafalso –
 Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.

 Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,
 Bebedeira da servilidade altruísta,
 Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo…

COMEÇA A HAVER MEIA-NOITE

 Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
 Por toda a parte das coisas sobrepostas,
 Os andares vários de acumulação da vida…
 Calaram o piano no terceiro andar…
 Não oiço já passos no segundo andar…
 No rés-do-chão o rádio está em silêncio…

 Vai tudo dormir…

 Fico sozinho com o universo inteiro.
 Não quero ir à janela:
 Se eu olhar, que de estrelas!
 Que grandes silêncios maiores há no alto!
 Que céu anticitadino! –
 Antes, recluso,
 Num desejo de não ser recluso,
 Escuto ansiosamente os ruídos da rua…
 Um automóvel – demasiado rápido! –
 Os duplos passos em conversa falam-me…
 O som de um portão que se fecha brusco dói-me…

 Vai tudo dormir…

 Só eu velo, sonolentamente escutando,
 Esperando
 Qualquer coisa antes que durma
 Qualquer coisa.

CONTUDO

 Contudo, contudo,
 Também houve gládios e flâmulas de cores
 Na Primavera do que sonhei de mim.
 Também a esperança
 Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
 Também tive quem também me sorrisse.
 Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
 Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
 Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

 Caí pela escada abaixo subitamente,
 E até o som de cair era a gargalhada da queda.
 Cada degrau era a testemunha importuna e dura
 Do ridículo que fiz de mim.

 Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
 Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
 Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
 Sou imparcial como a neve.
 Nunca preferi o pobre ao rico,
 Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

 Vi sempre o mundo independentemente de mim.
 Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
 Mas isso era outro mundo.
 Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
 Acima de tudo o mundo externo!
 Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

TRAPO

 O dia deu em chuvoso.
 A manhã, contudo, esteve bastante azul.
 O dia deu em chuvoso.
 Desde manhã eu estava um pouco triste.

 Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
 Não sei: já ao acordar estava triste.
 O dia deu em chuvoso.
 Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
 Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
 Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
 Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
 Dêem-me o céu azul e o sol visível.
 Névoas, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.

 Hoje quero só sossego.
 Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
 Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
 Não exageremos!
 Tenho efetivamente sono, sem explicação.
 O dia deu em chuvoso.

 Carinhos? Afetos? São memórias…
 É preciso ser-se criança para os ter…
 Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
 O dia deu em chuvoso.

 Boca bonita da filha do caseiro,
 Polpa de fruta de um coração por comer…
 Quando foi isso? Não sei…
 No azul da manhã…

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesia Completa de Álvaro de Campos. SP: Companhia das Letras, 2007.

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Marco Antonio Orsi / RS (Poemas Sem Fronteiras)

TEATRO DA VIDA

São abismos de sonhos onde caio lentamente,
que nem chego a sentir como são profundos.
Tão inconseqüentes diante desse nosso mundo,
que se revela mais promíscuo e decadente.

Até quando serei apenas um mero figurante,
desse teatro burlesco encenado todo o dia?
Em qual dos atos encontrarei a minha alegria?
Tal qual o palhaço neste cenário ambulante.

Sei que saio de cena cada vez que eu desperto,
deste sono invulgar, que invoca a nostalgia,
pois, quando olho em minha volta está deserto.

São os pesadelos que contemplam a fantasia,
de que possa ser, entre muitos, o mais esperto,
entretanto, no fim o que encontro é melancolia.

O ANJO MULHER

Não sei bem como, mas notadamente usas,
perfeitas palavras crescentes, em profusão.
Expões tu’ alma e não escondes o teu coração,
e, ainda por cima, com tua beleza abusas…

Vais ao rumo do amor e não ficas confusa.
Concedes a vida bem mais do que emoção.
Nunca aos que te cercam mostras desilusão.
És mulher de escol, e de alguns poetas, musa.

Confortas o fraco, sem deixar de enaltecer
os fortes que te cercam, para ter o carinho
o qual, jamais negas a quem o pretender.

Às vezes, penso que és um anjo que sozinho,
perambulas na terra, por teu proceder.
Consolas a todos que cruzam teu caminho.

CRIANÇAS INOCENTES

Somos cúmplices neste amor,
Que nos devora a alma e clama
Ao corpo por uma ardente chama,
Que nos envolva com todo o calor.

Quem poderá a nós argumentar,
Da inconveniência dessa paixão,
Que arde e queima de excitação,
E que expõe todo o nosso desejar.

Como saídos de um novo ritual.
Insinuamos passos envolventes,
Buscando, a rigor, outro visual.

Neste delírio estamos coniventes,
Envoltos que somos ao natural,
Parecemos crianças inocentes.

SIMBIOSE VIRTUAL

Tu vives em mim, como eu vivo em ti,
nesta simbiose insana e virtual.
Postulamos da vida, cada qual,
poder ficarmos para sempre aqui.

Somos pioneiros da ordem que vi,
desabrochar num plano digital.
No início parecia ser irreal,
Mas, agora, acredito no que li.

Amamos e vivemos por anseios.
O ciúme acelera a impaciência.
E rodamos em meio a devaneios.

A cibernética criou um mundo,
onde o espírito supera a aparência,
e vive-se uma vida num segundo…

MENSAGEM DE AMOR

Esqueças que é mulher,
pois és uma flor.
Esqueças também,
de como eu sou,
e assim poderás
saber aonde estou,
quando receberes
esta minha mensagem
de amor.
Escuta a minha voz,
pausada e calma,
que vai do meu,
ao teu coração.
É uma mensagem
de amor, que mostra,
uma grande paixão,
transmitindo com calma,
o meu amor a tua alma.

SINGELO PRESSÁGIO

As asas douradas, o perfume agreste,
d’aurora celeste, que o vento me traz.
Suspiro profundo, minha ânsia incontida
pelo tempo retido, que já não vem mais.
Restou tão somente meu olhar antigo,
tal como um amigo que ficou para trás.
Relíquias do tempo, antigas saudades
que tem na verdade seu refúgio capaz.
Singelo o presságio dessa esperança,
como uma lança em meu peito cravou.
Deixou meus sonhos ao pé do caminho,
e o teu carinho o vento levou.

ALMA ALFORRIADA

A alma é do sonho uma prisioneira,
que clama por amor e liberdade,
quer ficar junto da felicidade,
e assim tornar-se sua companheira.

Mesmo que isso lhe traga ansiedade,
procura com afinco outra maneira,
pra poder chegar e ser a primeira,
num patamar onde ninguém invade.

Ecos, visões a tornam dependente,
Da chegada de um novo anoitecer,
Tornando-a mais uma penitente.

Talvez ela possa reconhecer,
a trilha que a tornará finalmente,
alforriada do seu padecer.

LENDA DA PAIXÃO

Ele foi caminhando por entre os túmulos silenciosamente,
pouco a pouco, sua memória voou, percorreu todo espaço.
Então, de repente, ele sentiu como se estivesse nos braços,
de sua inesquecível amada. E continuou, vagarosamente.

Foram amantes, muito antes, no tempo em que o romance,
perseguia àqueles que queriam viver mais do que fantasia.
Em lentas passadas, percorreu para onde ele mais queria,
ao encontro daquela que amou com inacreditável alcance.

Haviam, eles vivido, bem mais, do que uma ligação amorosa,
Viveu um épico, no qual o amor foi a sua figura principal.
E agora, mostrava-se como uma lenda, essa paixão sensual,
Porém, à época fora, sem duvida, uma das mais ardorosas.

Aos poucos ele se recupera e começa a voltar ao seu normal.
Com as mãos alisa seus brancos cabelos de forma vagarosa,
Dá-se conta, que o tempo passou com velocidade assombrosa.
Olha em volta e percebe que logo, logo, estará com ela, afinal.

PONTEIROS FEITICEIROS

Vou abrir as janelas d’alma,
e deixar o vento entrar,
para dar-me a calma
da qual eu vou precisar,
para o tempo incessante,
deixar-me mais confiante
quando a luz no ocaso brilhar.
Posso guiar-me pelas estrelas,
e as minhas amarras soltar,
e ainda que não possa vê-las,
sentir a tranqüilidade do ar.
Levo comigo o vento,
as lembranças e o sentimento,
que só de longe vi passar.
Canto o silêncio agora,
onde os sonhos não se calam.
E busco nas retinas, na hora,
em que as imagens não se apagam.
Mas, o tempo com seus ponteiros,
movendo-se como feiticeiros,
por meus pensamentos falam.

PORTO DAS ALMAS
Vens buscar-me em teu barco,
para navegarmos mar a fora?
Ah, com meus conhecimentos parcos,
como eu te entendo agora.
Porque fazias tantas juras de amor,
e depunhas-te assim a meu dispor,
mesmo antes de irmos embora.
Por que em meus braços tremias,
somente hoje que eu entendi.
Pois de grande paixão padecias,
tal qual um desamparado colibri.
Procuravas beijar a cada flor,
na busca do alimento do amor,
que era vital para ti.
Não fiques mais preocupada,
pois vou contigo navegar.
Tomes o leme do teu barco
quem sabe nós poderemos chegar,
por águas tranqüilas e calmas,
a um porto, onde todas as almas,
resolveram habitar.

A ÚLTIMA ROSA VERMELHA
 

Ofereço-te esta última rosa vermelha,
na hora da minha definitiva partida.
Guarde-a e deixe que fique esquecida,
como a fonte donde o amor se espelha.

Já nada mais tenho para te oferecer,
foi tudo arrasado pelo furor da vida,
e de roldão levou os sonhos na saída,
deixou apenas a marca do meu sofrer.

Um vento forte, tal como um furacão,
varreu as plagas verdes e os caminhos,
onde andamos levando nossa paixão.

Agora sigo nessa trilha, de mansinho,
levando comigo o meu velho coração,
cansado da luta, que eu travei sozinho.

Fontes:
1 – http://antologiamomentoliterocultural.blogspot.com.br/2012/07/marco-antonio-orsi-entrevista-n-416.html
2 – http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=7195&categoria=Z

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