Arquivo da categoria: criticas literarias
Machado de Assis (Francisco de Castro: Harmonias Errantes)
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Machado de Assis (Raimundo Correia: Sinfonias)
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Machado de Assis (Porto Alegre: Colombo)
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Machado de Assis (A Crítica Teatral. José de Alencar: Mãe)
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Machado de Assis (Magalhães de Azeredo: Procelárias)
Magalhães de Azeredo não é um nome recente. Há oito para nove anos que trabalha com afinco e apuro. Prosa e verso, descrição e critica, idéias e sensações, a várias formas e assuntos tem dado o seu espírito. Pouco a pouco veio andando, até fazer-se um dos mais brilhantes nomes da geração nova, e ao mesmo tempo um dos seus mais sisudos caracteres. Quem escreve estas linhas sente-se bastante livre para julgá-lo, por mais íntima e direta que seja a afeição que o liga ao poeta das Procelárias. Um dos primeiros confidentes dos seus tentâmens literários. estimou vê-lo caminhar sempre, juntamente modesto e ambicioso, daquela ambição paciente que cogita primeiro da perfeição que do rumor público.
Já nesta mesma Revista, já em folhas quotidianas, deu composições suas, de vária espécie, e não há muito publicou em folheto a ode A Portugal, por ocasião do centenário dos Índias, acompanhada da carta a Eça de Queirós, a primeira das quais foi impressa na Revista Brasileira.
Este livro das Procelárias mostra o valor do artista. Desde muito anunciado entre poucos, só agora aparece, quando o poeta julgou não lhe faltar mais nada, e vem apresentá-lo simplesmente ao público. Desde as primeiras páginas, vêem-se bem juntas a poesia e a verdade: são as duas composições votivas, à mãe e à esposa. A primeira resume bem a influência que a mãe do poeta teve na formação moral do filho. Este verso:
Não me disseste: Vai! disseste: Eu vou contigo!
conta a história daquela valente senhora, que o acompanhou sempre e a toda parte, nos estudos e nos trabalhos, onde quer que ele estivesse, e agora vive a seu lado, ouvindo-lhe esta bela confissão:
Tu é tudo o que bom e nobre em mim existe,
e esta outra, com que termina a estrofe derradeira da composição, a um tempo bela, terna e bem expressa:
Duas vezes teu filho e tua criatura!
Eis por que me confesso, enternecidamente,
Ao pé de tais versos vêm os que o poeta dedicou à noiva: são do mesmo ano de 1895. O poeta convida a noiva ao amor e à luta da existência. Nestes, como naqueles, pede perdão dos erros da vida, fala do presente e do futuro, chega a falar da velhice, e da consolação que acharão em si de se haverem amado.
Ora, o livro todo é a justificação daquelas duas páginas votivas. Uma parte é a dos erros, que não são mais que as primeiras paixões da juventude, ainda assim veladas e castas, e algumas delas apenas pressentidas. O poeta, como todos os moços, conta os seus meses por anos. Em 1890 fala-nos de papéis velhos, amores e poesias, e compõe com isso um dos melhores sonetos da coleção. Já se dá por um daqueles que “riem só porque chorar não sabem”. Certo é que há raios de luz e pedaços de céu no meio daquela sombra passageira. A sinceridade de tudo está na sensibilidade particular da pessoa, a quem o mínimo dói e o mínimo delicia. Uma das composições principais dessa parte do livro é a “Ode Triunfal”, em que a comoção cresce até esta nota:
Ah! como fora doce
Morrer nesse delírio vago e terno,
Em teu seio morrer, — morrer num trono;
E ter teus beijos, como sonho eterno
Do meu eterno sonho…
E até esta outra, com que a ode termina:
Deixa-me absorto, a sós contigo, a sós!
Lá fora, longe, tumultua o mundo,
Em baldas lutas… Tumultue embora!
Que vale o mundo agora?
O mundo somos nós!
As datas, — e alguma vez a própria falta delas, — poderiam dar-nos a história moral daquele trecho da vida do poeta. Os seus mais íntimos suspiros antigos são de criança, como Musset dizia dos seus primeiros versos; assim temos o citado soneto dos “Papéis Velhos” e outras páginas, e ainda aquela dos “Cabelos Brancos”, uns que precocemente encaneceram, cabelos de viúva moça, objeto de uma das mais doces elegias do livro. Há nele também várias sombras que passam como a do Livro Sagrado, como a da menina inglesa (Good Night), que uma tarde lhe deu as boas noites, e com quem o poeta valsara uma vez.
Um dia veio a saber que era morta, e que a última palavra que lhe saiu dos lábios foi o seu nome, e foi também a primeira notícia do estado da alma da moça; a sepultura é que lhe não deu, por mais que a interrogasse, senão esta melancólica resposta:
E eu leio sobre a sua humilde lousa:
Graça, beleza, juventude …. e Nada!
Cito versos soltos, quisera transcrever uma composição inteira, mas hesito entre mais de uma, como o “Carnaval”, por exemplo, e tantas outras, ou como aquele soneto “Em Desalento”, cuja estrofe final tão energicamente resume o estado moral expresso nas primeiras. Podeis julgá-lo diretamente:
Ando de mágoas tais entristecido.
Por mais que as minhas rebeldias dome …
Tanta angústia me abate e me consome,
ue do meu próprio senso ora duvido.
Tudo por causa deste amor perdido,
Que a ti só, para sempre, escravizou-me;
Tudo porque aprendi teu caro nome,
Porque o gravei no peito dolorido.
Vês que eu sou, dizes bem, uma criança,
E já de tédio envelhecer me sinto,
E a mesma luz do sol meus olhos cansa;
Pois, como absorve um lenho o mar faminto,
Um corpo a tumba, a morte uma esperança,
Tal teu ser absorveu meu ser extinto.
Belo soneto, sem dúvida, feito de sentimento e de arte. Todo o livro reflete assim as impressões diferentes do poeta, e os versos trazem, com o alento da inspiração, o cuidado da forma. Fogem ao banal, sem cair no rebuscado. As estrofes variam de metro e de rima, e não buscam suprir o cansado pelo insólito. A educação do artista revela-se bem na escolha e na renovação. Magalhães de Azeredo dá expressão nova ao tema antigo, e não confunde o raro com o afetado. Além disso, — é supérfluo dizê-lo, — ama a poesia com a mesma ternura e respeito que nos mostra naquelas duas composições votivas do intróito. Pode ter momentos de desânimo como no “Soneto Negro”, e achar que “é triste a decadência antes da glória”, mas o espírito normal do poeta está no “Escudo”, que
andou pela Terra Santa, e agora ninguém já pode erguer sem cair vencido; tal escudo, no conceito do autor, é o Belo, é a Forma, é a Arte, que o artista busca e não alcança, sem ficar abatido com isso, antes sentindo que, embora caia ignorado do vulgo, é doce havê-los adorado na vida.
Aqui se distinguem as duas fontes da inspiração de Magalhães de Azeredo, ou as duas fases, se parece melhor assim. Quando as sensações, que chamarei de ensaio, ditam os versos, eles trazem a nota de melancolia, de incerteza e de mistério, alguma vez de entusiasmo; mas a contemplação pura e desambiciosa da arte dá-lhe o alento maior, e ainda quando crê que não pode sobraçar o escudo, a idéia de havê-lo despegado da parede é bastante à continuação da obra. Será preciso dizer que esse receio não é mais que modéstia, sempre cabida, posto que a reincidência do esforço traz a esperança da vitória? E será preciso afirmar que a vitória é dos que têm, com a centelha do engenho, a obstinação do trabalho, e conseguintemente é dele também? Assim, ou pelas sensações do moço ou pela robustez do artista, este livro “é a vida que ele viveu” —como o poeta se exprime em uma página que li com emoção. Na composição final é o sentimento da arte que persiste, quando o poeta fala à musa em fortes e fluentes versos alexandrinos, tão apropriados à contemplação longa e mística da idéia.
Não quero tratar aqui do prosador a propósito deste primeiro livro de versos. De resto, os leitores da Revista Brasileira já o conhecem por esse lado, e sabem que Magalhães de Azeredo será em uma e outra forma um dos primeiros espíritos da geração que surge. Neste ponto, a ode A Portugal com a carta a Eça de Queirós, publicada em avulso, dão clara amostra de ambas as línguas do nosso jovem patrício.
Felizes os que entre um e outro século podem dar aos que se vão embora um antegosto do que há de vir, e aos que vêm chegando uma lembrança e exemplo do que foi ou acaba. Tal é o nosso Magalhães de Azeredo por seus dotes nativos, paciente e forte cultura.
Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.
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Machado de Assis (Junqueira Freire: Inspirações do Claustro)
Nem todos os poetas podem ter a fortuna de Junqueira Freire, que atravessou a vida cercado de circunstâncias romanescas e legendárias. A sua figura destaca-se no fundo solitário da cela comprimindo ao peito o desespero e o remorso. Como dizem de Mallebranche, poderia dizer-se dele que e uma águia encerrada no templo, batendo com as vastas asas as abóbadas sombrias e imóveis do santuário. Rara fortuna esta, que nos arreda para longe dos tempos atuais, em que o poeta, depois de uma valsa de Strauss, vai chorar uma comprida elegia; este é decerto o mais infeliz: qualquer que seja a sinceridade da sua dor, nunca poderá ser acreditado pelo vulgo, a quem não e dado perscrutar toda a profundidade da alma humana.
Junqueira Freire entrou para o claustro, levado por uma tendência ascética; esta nos parece a explicação mais razoável, e é a que resulta, não só da própria natureza do seu talento, como do texto de alguns dos seus cantos. Três anos ali esteve, e de lá saiu, após esse tempo, trazendo consigo um livro e uma história. Todas as ilusões desesperos, ódios, amores, remorsos, contrastes, vinham contados ali, página por página. Não é palestra de sacristia, nem mexerico de locutório; é um livro profundamente sentido, uma história dolorosamente narrada em versos, muitas vezes duros, mas geralmente saídos do coração. Compreende-se que um livro escrito em condições tais, devia atrair a atenção pública; o poeta vinha falar da vida monástica, não como filósofo, mas como testemunha, como o observador, como vítima. Não discutia a santidade da instituição; reunia em algumas Páginas a história íntima do que vira e sentira. O livro era ao mesmo tempo uma sentença e uma lição; não significava uma aspiração Poética, pretendia ser uma obra de utilidade; a epígrafe de P.-L. Courrier, inscrita no prefácio, parece-nos que não exprime senão isto. De todasestas circunstâncias nasceu, antes de tudo, um grande interesse de curiosidade.
Que viria dizer aquela alma, escapa do mosteiro, heróica para uns, covarde para outros? Essa foi a nossa impressão, antes de lermos pela primeira vez as Inspirações do Claustro. Digamos em poucas palavras o que pensamos do livro e do poeta, a quem parece que os deuses amavam, pois que o levaram cedo.
No prefácio que acompanha as Inspirações do Claustro, Junqueira Freire procura defender-se previamente de uma censura da crítica: a censura de inconseqüência, de contradição, de falta de unidade no livro, censura que, segundo ele, deve recair sobretudo no caráter diferente dos “Claustros”, a apologia do convento, e do “Monge” condenação da ordem monástica. Teme, disse ele, que lhe chamem o livro uma coleção de orações e blasfêmias. Caso raro! O poeta via objeto de censura exatamente naquilo que faz a beleza da obra; defendia-se de um contraste, que representa a consciência e a unidade do livro. Sem esse dúplice aspecto, o livro das Inspirações perde o encanto natural, o caráter de uma história real e sincera; deixa de ser um drama vivo. Contrário a si mesmo, cantando por inspirações opostas, aparece-nos o homem através do poeta; vê-se descer o espírito da esfera da ilusão religiosa para o terreno da realidade prática; assiste-se às peripécias daquela transformação; acredita-se na palavra do poeta, pois que ele sai, corno Enéias, dentre as chamas de Tróia. O escrúpulo portanto era demasiado, era descabido; e a explicação que Junqueira Freire procura dar ao dúplice caráter das suas Inspirações, sobre desnecessária e confusa.
A poesia dos “Claustros” é uma apologia da instituição monástica; estava então no pleno verdor das suas ilusões religiosas. O convento para ele é o refúgio único e santo às almas sequiosas de paz, revestidas de virtude. A voz do poeta é grave, a expressão sombria, o espírito ascético. Não hesita em clamar contra o século, a favor do mosteiro contra os homens, a favor do frade. Confundindo na mesma adoração os primeiros solitários com os monges modernos, a instituição primitiva com a instituição atual, o poeta levanta um grito contra a filosofia, e espera morrer abraçado à cruz do claustro.
O que faz interessar esta poesia é que ela representa um estado sincero da alma do poeta. uma aspiração conscienciosa; a designação do século XVIII, feita por ele, para tirar os seus versos do círculo das impressões atuais e constituí-los em simples apreciação histórica, nada significa ali, e se alguma coisa pudesse significar, não seria a favor do prestígio do livro. Os “Claustros”, o “Apóstolo Entre as Gentes”, e algumas outras páginas, exprimindo o estado contemplativo do poeta, completam essa unidade do livro que ele não viu, por virtude de um escrúpulo exagerado.
Não diz ele próprio algures, saudando a profissão de um religioso:
Eu também ideei a linda imagem
Da placidez da vida;
Eu também desejei o claustro estéril
Como feliz guarida.
Pois bem, as páginas aludidas representam nada menos que a imagem ideada pelo poeta; dar-lhes outra explicação é mutilar a alma do livro.
O poeta canta depois o “Monge”. É o anverso da medalha; e a decepção, o arrependimento, o remorso. Aqui já o claustro não é aquele refúgio sonhado nos primeiros tempos; é um cárcere de ferro, o homem se estorce de desespero, e chora suas ilusões perdidas. Quereis ver que profundo abismo separa o “Monge” dos “Claustros”, ligando-o todavia, por uma sucessão natural? O próprio monge o diz:
Corpo nem alma os mesmos me ficaram.
Homem que fui não sou. Meu ser, meu todo
Fugiu-me, esvaeceu-se, transformou-se.
Vivo, mas acabei meu ser primeiro.
………………………………
Dista, dista de mim minh’alma antiga.
Aquele ser primeiro, aquela alma antiga, é o ser, é a almados “Claustro”. A transformação do poeta fica aí perfeitamente definida no livro. E para avaliar a tremenda queda que a alma devia sentir basta comparar essas duas composições, tão diversas entre si, na forma e na inspiração; elas resumem a história dos três anos de vida do convento, aonde o poeta entrou cheio de crença viva, e donde saiu extenuado e descrente, não das coisas divinas, mas das obras humanas. Da comparação entre essas duas poesias, fruto de duas épocas, é que resulta a autoridade de que vem selada aquela sentença contra a instituição monacal. Sem excluir da comparação o “Apóstolo Entre as Gentes”, devemos todavia lembrar que há nessa poesia um tom geral, um espírito puramente religioso, que não deriva da inspiração dos “Claustros”, nem se prende à existência dos mosteiros. O poeta canta simplesmente a missão do apóstolo; a história e a religião são as suas musas. Falando a um sentimento mais universal, pois que a filosofia não tem negado até hoje a grandeza histórica do apostolado cristão, Junqueira Freire eleva-se mais ainda que em todas as outras poesias, e acha até uma nova harmonia para os seus versos que são os mais perfeitos do livro. Aí é elemais poeta e menos frade: alguns versos mesmo deviam produzir estranha impressão aos solitários do Mosteiro; o poeta não hesita em proclamar a unidade religiosa de todos os homens, a mesma divindade dominando em todas as regiões, sob nomes diversos. Os últimos versos, porém, resumem a superioridade do sacerdote cristão; superioridade que o poeta faz nascer da constância e do infortúnio:
Nos, áditos do místico pagode
O ministro de Brama aspira incensos.
O áugure de Teos assentado
Na trípode tremente auspícios canta.
O piaga de Tupá, severo e casto,
Nas ocas tece os versos dos oráculos.
E o sacerdote do Senhor, — sozinho, —
Coberto de baldões, a par do réprobo,
Ante o mundo ao martírio o colo curva,
E aos céus cantando um hino sacrossanto,
Como as notas finais do órgão do templo,
Confessa a Deus, e — confessando — morre.
A sentença de impiedade que o poeta antevia, se lhe deram, não teve nem efeito nem base. Combatendo o anacronismo e a ociosidade de uma instituição religiosa,
Junqueira Freire não se desquitava da fé cristã. A impiedade não estava nele, estava nos outros Veja-se, por exemplo, os versos a “Frei Bastos”, um Bossuet, na frase do poeta, que se afogava, ébrio de vinho:
No imundo pego da lascívia impura
……………………………….
Desces do altar à crápula homicida,
Sobes da crápula aos fulmíneos púlpitos.
Ali teu brado lisonjeia os vícios,
Aqui atroa apavorado os crimes.
E os lábios rubros dos femíneos beijos
Disparam raios que as paixões aterram.
Ora, vejamos: este espetáculo era próprio para avigorar o espírito do poeta, na sua dedicação à vida monástica? Imagine-se uma alma jovem, de elevadas aspirações, ascética por índole, buscando na solidão do claustro um refúgio e um descanso, e indo lá encontrar os vícios e as paixões cá de fora; compare-se e veja-se, se a elegia do “Monge” não é o eco sincero e eloqüente de uma dor eloqüente e sincera.
“Meu Filho no Claustro” e a “Freira” exprimem o mesmo sentimento do “Monge”; mas aí o quadro é mais restrito, e a inspiração menos impetuosa. o monólogo da “Freira” é sobretudo lindo pela originalidade da idéia, e por uma expressão franca e ingênua, que contrasta singularmente com a castidade de uma esposa do Senhor.
Fora dessas poesias que compõem a história do monge e do poeta, muitas outras há nas Inspirações do Claustro, filhas de inspiração diversa, e que servem para caracterizar o talento de Junqueira Freire: “Mílton”, o “Apóstata”, o “Converso”, o “Misantropo” , o “Renegado” várias nênias a morte de alguns religiosos. Todas nascem do claustro; pelo assunto e pela forma; vê-se que foram compostas na solidão da cela; esta observação precede mesmo em relação ao “Renegado”, canção do judeu. Uma só poesia faz destaque no meio de todas essas: é a que tem referência a uma mulher e a um amor. Entraria o amor, por alguma coisa, na resolução que levou Junqueira Freire para o fundo do mosteiro? Ou, pelo contrário, precipitou ele o rompimento do monge e do claustro? A este respeito, como de tudo quanto diz respeito ao poeta, apenas podemos conjeturar; nada sabemos de sua vida, senão o que ele próprio refere no prefácio. Qualquer que seja, porém, a explicação dessa página obscura, nem por isso deixa ela de ser uma das mais dolorosas da vida do poeta, uni elemento de apreciação literária e moral do homem.
Tratamos até aqui do frade; vejamos o poeta. Junqueira Freire diz no prefácio que não é poeta, e não o diz para preencher essa regra de modéstia literária, que é comum nos prólogos; sentia em si, diz ele, a reflexão gelada de Montaigne, que apaga os ímpetos. Teria razão o autor das Inspirações? Achamos que não. Não e inspiração que lhe falta, nem fervor poético; colorido, vigor, imagens belas e novas, tudo isso nos parece que sobram em Junqueira Freire. O seu verso, porém, às vezes incorreto, às vezes duro, participa das circunstâncias em que nascia; traz em si o cunho das impressões que rodeavam o poeta; Junqueira Freire pretendia mesmo dar-lhe o caráter de prosa medida, e por honra da musa e dele devemos afirmar que o sistema muitas vezes lhe falhou. Tivesse ele o cuidado de aperfeiçoar os seus versos, e o livro ficaria completo pelo lado da forma. O que lhe dá sobretudo um sabor especial é a sua grande originalidade, que deriva não só das circunstâncias pessoais do autor, mas também da feição própria do seu talento; Junqueira Freire não imita ninguém; rude embora, aquela poesia é propriamente dele; sente-se ali essa preciosa virtude que se chama — individualidade poética. Com uma poesia sua, uma língua própria, exprimindo idéias novas e sentimentos verdadeiros, era um poeta fadado para os grandes arrojos, e para as graves meditações. Quis Deus que ele morresse na flor dos anos, legando à nossa bela pátria a memória de um talento tão robusto quanto infeliz.
Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.
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Machado de Assis (Magalhães de Azeredo: Horas Sagradas e Versos)
Um ponto, além de outras afinidades, mostra o parentesco dos dois espíritos. Não é o amor da glória, que o primeiro canta, confessa e define, por tantas faces e origens, na última composição do livro, e o segundo não ousa dizer nem definir. Mas aí mesmo se unem.. Porquanto, se Mário de Alencar confessa: “o autor é um incontentado do que faz” e, aliás, já Voltaire dissera a mesma coisa de si: “Je ne suis jamais content de mes vers”, Magalhães de Azeredo nas várias definições da glória, chega indiretamente a igual confissão, quando põe na perfeição a glória mais augusta, e cita os anônimos da Vênus de Milo e da Imitação, até exclamar como Fausto:
Átomo fugitivo, és belo, és belo, pára!
Isto, que está no fim do livro de Magalhães de Azeredo, está também no princípio, quando ele abre mão das Horas Sagradas. Confessa que as guardou por largo tempo:
Guardei-vos. Ide para o tumulto
Das gentes. Quer-vos a sorte ali.
Colhereis louros? Mas ah! que louros
Os vossos gozos, que eu conheci?
E cá vieram as Horas Sagradas, título que tão bem assenta no livro. Elas são sagradas pelo sentimento e pela inspiração, pelo amor, pela arte, pela comemoração dos grandes mortos, pela nobreza do cidadão, da virtude e da história. A religião tem aqui também o seu lugar, como no coração do poeta. Tudo é puro. No “Rosal de Amor”, primeira parte do livro, não há flores apanhadas na rua ou abafadas na sala. Todas respiram o ar livre e limpo, e por vezes agreste. Um soneto, Ad Purissimam, mostra a castidade da musa, uma das musas, devemos dizer, porque aqui está, nas estrofes “Mamãe”, a outra das suas musas domésticas. É um basto rosal este a que não faltará porventura alguma flor triste, mas tão rara e tão graciosa ainda na tristeza, que mal nos dá essa sensação. A música dos versos faz esquecer a melancolia do sentido.
“Matinal”, “Ao Sol”, “Crepuscular” dão o tom da vida universal e do amor, a terra fresca e o céu aberto. Os Bronzes Florentinos é uma bela coleção de grandes nomes de e do mundo, páginas que (não importa a distância nem o desconhecimento da cidade para os que lá não foram), produzem na alma do leitor cá de longe uma vibração de arte nova e antiga a um tempo, ao lado do poeta, a acompanhá-lo:
Através do Gentil e do Sublime.
Não quiséramos citar mais nada; seria preciso citar muito, transportar para fora do livro estrofes que desejam lá ficar, entre as que o poeta ligou na mesma e linda medalha. Mas como deixar de repetir este fecho de bronze de Dante:
Da pátria, viu o inferno, e chorou tanto,
Já não é criatura deste mundo.
E muitos outros deliciosos sonetos, fazendo passar ante os olhos Petrarca, Giotto, Leonardo da Vinci, Miguel Angelo, Boccacio, Donatello, Frei Angélico, e tantos cujos nomes lá estão na igreja de Santa Cruz, onde o poeta entrou em dias caros às musas brasileiras. Cada figura traz a sua expressão nativa e histórica; aqui está Leão X, acabando na risada pontifícia; aqui Cellini, cinzelando o punhal com que é capaz de ferir; aqui Savonarola, a morrer queimado e sem gemer por esta razão de apóstolo:
Ardia mais que as chamas a tua alma!
Não poderia transcrever uns sem outros, mas o último bronze dará conta dos primeiros: é Galileu Galilei:
Entre árvores vetustas escondida,
No entardecer da trabalhada vida
O potente ancião medita e estuda.
Já nos olhos extinta é a luz aguda,
Que os céus sondava em incessante lida:
Mas inda a fronte curva e encanecida
Pensamentos intrépidos escuda.
Sorrindo agora das neqüícias feras,
Que, por amor do ideal sofrido tinha,
Ele a sentença das vindouras eras
Invoca, e os seus triunfos adivinha,
Ouvindo, entre a harmonia das esferas
O compasso da Terra, que caminha.
Nem só Florença ocupa o nosso poeta, amigo de sua pátria. As “Odes Cívicas” dizem de nós ou da nossa língua.
Magalhães de Azeredo é o primeiro que no-lo recorda, nos versos “Ao Brasil”, por ocasião do centenário da descoberta. O centenário das Índias achou nele um cantor animado e alto. A ode “A Garrett exprime uma dessas adorações que a figura nobre e elegante do grande homem inspira a quem o leu e releu, por anos. Enfim, com o título “Alma Errante” vem a última parte do livro. Aqui variam os assuntos, desde a ode “As Águias “, em que tudo é movimento e grandeza, até quadros e pensamentos menores, outros tristes, uma saudade, um infortúnio social, um sonho, ou este delicioso soneto “Sobre um Quadro Antigo”;
Te ocultam, vaga imagem feminina:
E cada ano, ao passar, tredo elimina
Mais uni resto de tua formosura.
Apenas, no esbatido da pintura,
Algum tom claro, alguma linha fina,
Revelando-te a graça feminina,
Dizem que foste, ó frágil criatura …
Ah! como és! – és mais bela do que outrora.
Seduz-me esse ar distante, esse indeciso
Crepúsculo em que vives, me enamora.
O tempo um gozo intensamente doce
Pôs-te no exangue, pálido sorriso;
E o teu humano olhar divinizou-se …
Em resumo escasso, apenas indicações de passagens, tal é o livro de Magalhães de Azeredo, um dos primeiros escritores da nova -geração. A perfeição e a inspiração crescem agora mais, repetimos. Ele, como os seus pares conjugam dois séculos, um que lá vai tão cheio e tão forte, outro que ora chega tão nutrido de esperanças, por mais que os problemas sé agravem nele; mas, se não somos dos que crêem no fim do mal, não descremos da nobreza do esforço, e sobretudo das consolações da arte. Aqui está um espírito forte e hábil para no-las dar na nossa língua.
Faça o mesmo o seu amigo e irmão, Mário de Alencar, cujo livro, pequeno e leve, contém o que deixamos dito no princípio desta notícia. É outro que figurará entre os da geração que começou no último decênio. Particularmente, entre Mário de Alencar e Magalhães de Azeredo, além das afinidades indicadas, há o encontro de duas musas que os consolam e animam. O acerto da inspiração e a gemeidade da tendência levou-os a cantar a Grécia como se fazia nos tempos de Byron e de Hugo. A sobriedade é também um dos talentos de Mário de Alencar. Quando não há idéia, a sobriedade é apenas -a falta de um recurso, e assim dois males juntos, porque a abundância e alguma vez o excesso suprem o resto. Mas não são idéias que lhe Faltam; nem idéias, nem sensações, nem visões, como aquela “Marinha”, que assim começa:
Intercadente
Soa na praia molemente
A voz do mar.
As coisas dormem; dorme a terra, e no ar sereno
Nenhum ruído
Perturba o encanto recolhido
Do luar pleno.
Ampla mudez. A lua grande pelo céu
Sem nuvens vaga
E cobre o mar, vaga por vaga,
De um branco véu.
Longe, à mercê da branda aragem, vai passando’
Parda falua.
Nas pandas velas bate a lua
De quando em quando…
Lede o resto no livro, onde achareis outras páginas a que voltareis, e vos farão esperar melhores, pedimos que em breve. Que ele sacuda de si esse entorpecimento, salvo se é apenas respeito ao seu grande nome; mas ainda assim o melhor respeito é a imitação. Tenha a confiança que deve em si mesmo. Sabe cantar os sentimentos doces sem banalidade, e os grandes motivos não o deixam frio nem resistente. Ainda ontem tivemos de ler o que Magalhães de Azeredo disse de Mário de Alencar, e dias antes dissera deste J. Veríssimo, nós assinamos as opiniões de um e de outro.
Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.
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Machado de Assis (Enéias Galvão: Miragens)
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