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Guarani, os Filhos do Vento

“Singular e assombroso o destino de um povo como os Guarani!
Marginalizados e periféricos, nos obrigam a pensar sem fronteiras
Tidos como parcialidades, desafiam a totalidade do sistema.
Reduzidos, reclamam cada dia espaços de liberdade sem limites
Pequenos, exigem ser pensados com grandeza.
São aqueles primitivos cujo centro de gravitação já está no futuro.
Minorias, que estão presentes na maior parte do mundo.”
(Bartomeu Meliá)

Respeito às pessoas e à natureza“, esse é o lema dos índios guaranis.
Eles, desde cedo, recebem os ensinamentos de sua cultura pelos pais e depois pelo cacique, que lhes explica que os guaranis foram eleitos pelo Deus Nhanderú para serem os guardiães das almas dos seres humanos.

Guarani quer dizer: guerreiro indomável, filho de “Curupi” com Céa-Yari, povo livre com tempestade, que se espalha irregularmente pela vasta planície das várzeas lamacentas dos três grandes rios do Prata (o Paraná, o Paraguai e o Uruguai), atingindo quase toda a Bolívia e grande parte da Argentina até as mesetas da Patagônia.

Com o objetivo de reivindicar o que se supõe deveria ser na história o verdadeiro sentido da civilização guarani, surgiu, entre alguns escritores, uma corrente que inaugurou uma série de discussões polêmicas.

Uma destas correntes, entende que pertence ao patrimônio histórico da raça guarani a invejável civilização dos astecas do México e dos Incas do Peru e que todo esse monumento de glórias, criminosa e miseravelmente destruído pelos espanhóis, foi roubado a essa família indígena.

Obedecendo esta ordem de idéias, concebe ela que os guaranis chegaram a fundar, nos demais recantos da América do Sul, uma considerável civilização pré-colombiana e que os europeus a destruíram com tal habilidade que até os vestígios desapareceram.

A Grande Confederação Guaranítica, compreendeu inúmeras nações esparramadas pelo Continente Sul Americano, sendo a capital dessa civilização uma grande cidade denominada “Mbaeveraguasú”. Imaginam os defensores dessa corrente, que os guaranis eram comunistas puros, organizados em Estado, com feição altamente civilizada. Para eles a palavra “guarani”, tinha um sentido amplo e compreendia todos os indígenas de mais da metade do continente americano, excluindo-se, algumas raças que reputavam inferiores, sem as qualidades que ornam o caráter e a inteligência das múltiplas nações guaranis.

Há entretanto, algumas tribos, que não sendo guaranis, acomodaram-se aos costumes destes, em uma fusão regular, sendo por isso mesmo seus parentes, ou vassalos, como aconteceu com os “Aruacás”, que acompanharam os “Caraivés”, desde as Antilhas, como seus escravos.

Percebe-se portanto, que os guaranis correspondem ao homem sul-americano por excelência.

COMO TUDO COMEÇOU…

Para nos assenhorarmos dos verdadeiros pendores que dominam a alma coletiva de tão curiosa civilização, teremos que buscar recursos na história.

A nação guarani à luz do “descobrimento” conglomerava diversos povos. Com a chegada dos espanhóis (1537 em Assunción), foram diferentes as formas de contato e distintas as adaptações históricas-culturais da nação guarani. Podemos dividi-los a partir deste momento, em três grupos, ou três trajetórias.

1. O indígena que sofreu o impacto imediato do colonialismo. Encontramos aqui o índio “civilizado” e o escravo encomendado. Os índios civilizados, foram aqueles que lhes foi roubada a felicidade e convencidos à força de que os donos da civilização era os europeus. Estes foram os que mais sofreram adaptações. Já o índio encomendado, era aquele entregue ao espanhol para a catequese e conversão. Doutrinavam os índios em troca da utilização de seu trabalho. Na verdade, tal troca, acobertava uma disfarçada escravidão. Desse grupo, sobraram muito poucos, pois conduzidos a um cativeiro deshumano, acabaram dizimados, pela intensidade do trabalho forçado ou pelas inúmeras doenças trazidas pelos conquistadores.

2. Os guaranis reduzidos ou missioneiros, que buscavam refúgio da sanha colonial nas reduções jesuíticas. As reduções se constituíam em um Estado dentro do Estado. Neste aldeamentos fechados, os índios aprenderam ofícios tornando-se artesãos, marceneiros, carpinteiros e músicos, o que lhes permitiu dirigirem-se para os centros urbanos, como Montevidéu, Buenos Aires e Santa Fé, após a expulsão dos jesuítas das colônias ibéricas.

No inicio da civilização, os colonos sentiram a necessidade imprescindível do auxílio do missionário para a pacificação indígena. Mas, aos poucos o homem branco, emancipou-se daquela dependência e aliando-se com o mameluco, organizaram-se em bandeiras e, armados em verdadeiros exércitos, passaram a caçar o índio, para explorar e corromper. Eram invencíveis, sobretudo em uma luta com missionários e índios inermes. Ao desejo de enriquecer aliava-se a sede de glória, iniciando-se deste modo, um genocídio. Poucos foram os que conseguiram bater em retirada, único meio de fugir aquela ameaça de destruição. Mas, mesmo experimentando grande regozijo de escapar à sanha de seus agressores, tiveram os heróicos retirantes de enfrentar muitos perigos e sofrimentos durante a sua longa cruzada de fuga.

Alguns dirigiram-se para o Paraguai, onde o Guarani Paraguaio é hoje falado por cerca de 3 milhões de pessoas; para a Bolívia, onde o Guarani Boliviano (ou Chiriguano) é falado por cerca de 50 mil pessoas e para o norte da Argentina. Dos índios capturados, alguns tornaram-se escravos dos bandeirandes (séc. XVIII) e outros tornaram-se empregados de fazendeiros brasileiros e paraguaios, que iniciaram a ocupação destas terras com a extração da erva-mate.

3. O terceiro grupo a salientar, é o guarani que permaneceu fora do alcance da fome colonial, mantendo-se escondido nas densas florestas paraguaias. Os Caaguá foi um grupo que logrou manter sua cultura quase que intacta. Dele descendem os Guarani Mbya, Chiripá ou Ñandeva e os Paitvyterã ou Kaiowá. Eles foram raramente visitados por algum viajante no século XIX e conseguiram passar para o século XX, sem interferências exteriores.

OS MESTRES DAS MISSÕES

Nas reduções, o índio guarani aprendeu a ser pintor, escultor, marceneiro, serralheiro e fundidor. Um padre suíço, Charles Franck, ensinou-lhes até mesmo a fabricar relógios primitivos, mas que funcionavam perfeitamente. E a primeira oficina de impressão que se tem notícia em toda a América Latina foi instalada na República Guarani: ali eram impressos catecismos, dicionários, livros de canto e até mesmo alguns trabalhos sobre os dialetos dos índios. Quase tudo isso foi queimado pelos “civilizadores”, os mesmos que hoje puxam o revólver (ou o talão de cheques) quando ouvem falar na palavra cultura.

Os índios seguiam essa ou aquela profissão, de acordo com suas inclinações e tendências. A maioria dedicou-se à agricultura ou ao pastoreio, porém os que tinham a chamada veia artística podiam cultivar a música, através da harpa, instrumento ainda hoje em moda no Paraguai, ou de violões, violinos, guitarras, tambores, pandeiros espanhóis e até castanholas.

De certa forma, cada missão especializou-se num determinado ramo de produção artística. Em Loreto fizeram-se as melhores esculturas, mas foi em San Francisco Javier que se elaboraram os mais finos tapetes e as mais graciosas rendas. De San Juan vinham os mais perfeitos instrumentos musicais, mas foi em Apósteles que se fundiram os melhores sinos.

As primeiras reduções propriamente ditas são fundadas pelos padres Simón Maceta e José Cataldino. Um velho missionário, de nome Lorenzama, fundou a redução do Paraná.

Mas o grande idealizador do Estado Jesuíta, aquele que era conhecido como o “caminhoneiro de Chaco” e que no futuro seria nomeado o Superior Geral da República Guarani, foi Antonio Ruiz de Montóya.

Nos primeiros anos as coisas foram muito difíceis, pois a vida das reduções jesuítas não ataraia os índios Guarani. Muitas divergências surgiram e até mesmo alguns missioneiros, como o padre Rodriguez, foram executados. Este, depois de discutir com o cacique Niazú, teve sua cabeça espatifada com um golpe de manacá. Na verdade o que levou os índios a se dirigirem para o interior das missões, foi o fato de terem percebido que só elas constituíam um refúgio, um abrigo, uma defesa, uma segurança contra os ataques brutais e escravagistas dos espanhóis e portugueses.

E as reduções cresceram e se multiplicaram: Arcángel, San Tomé, Los Reyes, Tpaes, Yapeyú. Logo se tornou imprescindível que todas elas tivessem governos, tribunais de justiça e até mesmo sistemas rudimentares de contabilidade.

O SOCIALISMO MISSIONEIRO

Em uma espécie de congregação superior eram selecionados os futuros magistrados, sacerdotes e executivos. Existiam arquivos, atas e contabilidade, embora um dia tudo viesse a ser reduzido a cinzas pelos “civilizados”.

Apesar das diferenças culturais que sempre existiram, e sempre existirão, em todas as sociedades, a igualdade material era quase completa. Todos se vestiam da mesma maneira.

O trabalho tinha uma jornada de seis a oito horas, com um período de descanso após ao almoço. Quase todos os índios eram lavradores e durante a época de colheita todas as demais atividades eram suspensas. Iniciava-se um “mutirão”, mutirim, ou pichirum, tradição do trabalho coletivo, ou seja, um ajudando o outro numa alegre animação.

Não havia dinheiro, nem comércio e a profissão de mercador ou traficante era punida com uma surra de vara de marmelo. Praticavam a troca, mas não havia moeda nem usura. O ouro e a prata serviam apenas para enfeitar os altares sagrados.

O principal produto era a erva-mate, que servia de referência para trocas e bargalhas. Eram exportadores e muitos produtos demandavam o exterior, principalmente o Prata. Fumo, algodão, açúcar, rendas, artesanatos, esculturas, arreios, rosários, cruzes, vasilhames, ponchos, peles, chapéus, barbicachos, cerâmicas, tijolos, gamelas, tudo isso era conduzido em lombo de burro ou em canoas para as colônias dos europeus onde seria trocado pelos produtos importados de que mais necessitavam.

Mas tudo pertencia à comunidade. Os bens eram indivisíveis. Chamavam-se “tupam-baé (campo de Tupã): eram propriedade do Deus . Não existia o direito de herança e por isso a terra era indivisível. E os padres jesuítas eram os primeiros a dar o exemplo: a eles nada pertencia, tudo era dos índios (Abámba-é).

É claro que os invasores ibéricos, que haviam construído a riqueza de suas nações sobre montanhas de cadáveres indígenas, não poderiam aceitar, em suas “fronteiras ideológicas”, a existência da república utópica dos índios Guarani e dos padres jesuítas.

De tanto lidarem com aquelas crianças índias, demasiada e ingenuamente acabou por povoar os sonhos dos filhos de Santo Ignácio de Loyola. Fizeram com que os índios Guarani ficassem brincando de “Cavalhada” entre mouros e cristãos, enquanto o inimigo afiava suas adagas em forma de meia lua levantina e encilhava seus cavalos árabes.

Ensinaram os pequenos selvagens a representar em palcos improvisados os dramas que o santo padre José de Anchieta desenhava à beira-mar, enquanto os propostos coloniais do Marquês de Pombal carregavam seus mosquetes nas barrancas do lado direito do Uruguai.

Trabalhavam, brincavam, amavam, jogavam bola, faziam acrobacias, cantavam e compunham guarânias, enquanto os descendentes de Borba Gato preparavam as longas cordas com as quais iriam manoteá-los.

Tudo desapareceu, até mesmo as igrejas monumentais de pedra talhada e madeira ricamente esculpida foram incendiadas, tendo seus ornamentos de ouro e pratarias roubados por bandidos que se diziam “soldados cristãos”.

Porém, a memória dos homens, que sempre sobrevive à noite dos tempos e às madrugadas do demônio, pode dar fé. Mas, o veredicto foi implacável e o povo Guarani se tornou o mais miserável de toda a América do Sul. Mas, apesar de tudo, foi o único povo americano que conseguiu escapar à sanha do colonizador durante longo tempo.

Eles deixaram gravada, nas ruínas de suas Reduções, a maior ata de condenação que se possa fazer aos que enlouqueceram na miragem de riquezas alucinantes. Sua sociedade foi e será estudada por muitos séculos. É uma história dolorosa, que foi assinada com sangue antes que eles submergissem de novo, e para sempre, na floresta virgem das várzeas lamacentas dos rios que formam o Prata.

A ALMA GUARANI

O guarani é um indivíduo profundamente espiritual. Embora haja muitos sub-grupos, todos compartilham de uma religião que enfatiza a terra. O conceito de terra para eles está relacionada a idéia de Terra-Sem-Males, na concepção de “bem viver”, um lugar onde se vive o “ñanderekó” (jeito de ser). Ou seja, não concebem a terra em sua materialidade, mas a consideram como necessária para ser construída e arada culturalmente.

Seguindo mensagens de Nhanderú, eles buscam o que acreditam ser a “Terra Sem Males”, um lugar onde não falta caça, pesca e muita paz. A sua procura, localizada no imaginário dos Guarani, para além do Atlântico, por si só, não minimiza as responsabilidades dos brancos sobre os poucos espaços territoriais que sobraram para esses índios. A sua perambulação, organizados em pequenos grupos familiais, por estradas e rodovias do Sul e Sudeste do país, é uma face trágica dessa diáspora.

TRAJETÓRIA E OBJETIVO

DA MIGRAÇÃO

A causa do êxodo Guarani sempre foi a imperativa necessidade de encontrarem um lugar onde possam viver em segurança, segundo seu antigo modo de ser, ou seja, a busca da “Terra-Sem-Males”.

“Os primeiros que abandonaram a sua pátria, migrando para o leste foram os vizinhos meridionais dos Apapocuva: a horda dos Tañyguá, sob a liderança do pajé chefe Ñanderyquyní, que era temido feiticeiro. Subiram lentamente pela margem direita do Paraná, atravessando a região dos Apapocúva, até chegar à dos Oguauíva, onde seu guia morreu. Seu sucessor, Ñanderuí, atravessou com a horda do Paraná – sem canoas, como conta a lenda – , pouco abaixo da foz do Ivahy, subindo então pela margem esquerda deste rio até a região de Villa Rica, onde cruzando o Ivahy, passou-se para o Tibagy, que atravessou na região de Morro Agudos.

Rumando sempre em direção ao leste, atravessou com seu grupo o rio das Cinzas e o Itararé até se deparar,finalmente com os povoados de Paranapitinga e Pescaria na cidade de Itapetinga, cujos primeiros colonos nada melhor souberam fazer que arrastar os recém-chegados a escravidão. Eles porém, conseguiram fugir, perseverando tenazmente em seu projeto original, não de volta para o oeste, mas para o sul, em direção ao mar. Escondidos nos ermos das montanhas da Serra dos Itatins fixaram-se então, a fim de se prepararem para a viagem milagrosa através do mar à terra onde não mais se morre.” Os Guarani Mbya, começaram a chegar, ao que se sabe, a partir do início do século XX. Em 1921, Nimuendaju, na época funcionário da antigo SPI, teve a ventura de acompanhar de perto a migração de um pequeno grupo Mbya rumo ao mar.

Esta fantástica experiência não modificou apenas o modo desse antropólogo alemão encarar a sociedade Guarani, como a partir de então, iria influenciar de maneira decisiva, o modo como a maioria dos antropólogos passaria a ver os Guarani.

Dizimados por doenças e obcecados com a fuga da destruição do mundo, Nimuendaju alcançou-os perto de Itanhaém/SP. Quando chegaram ao litoral, termina sua viagem horizontal e histórica. Inicia-se então a caminhada que deveria, através da dança, tomar um rumo vertical. Dançaram três dias até a exaustão e então veio a terrível decepção: o fracasso. “Havia ocorrido algum erro, que anulara toda a magia e que, fechara para sempre o caminho para o Além aos peregrinos”. A maioria dos Guarani convenceu-se que já não poderiam alcançar a “Terra-Sem-Mal”, pela falta de um instrumento e pela interpretação incorreta do mito.

Depois partiram “na direção do noroeste, convencidos de que a Terra-Sem-Mal se localizava, não além do oceano e sim no centro da Terra”. Segundo Egon Scahden, somente poderiam ir em sua busca, aqueles que guardavam intactas suas crenças originais.

Hoje existem “aqueles que acreditam que só sua alma retornará a Nhanderú retã.” Mas há ainda aqueles, que acreditam conseguir atravessar o oceano com corpo e alma e superando a prova da morte, serem testemunho da tradição.

Uma alucinada tentativa de alcançar a qualquer custo a Terra-Sem-Mal, pode ser observada entre os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Nos anos entre 1986 a 2000, 337 índios das áreas de Dourados, Amambaí, Caarapó, Porto Lindo e Takuapery, cometeram suicídio. A ampla espoliação de seu território físico e espiritual e a falta de perspectiva de encontrarem a sua prometida Terra-Sem-Mal, os levaram a depressão profunda, o que concorreu para a concretização de tão trágico fim.

Na utopia da Terra-Sem-Mal, o imediatismo histórico ficou frustrado. Em busca da “Terra-Sem-Mal”, vivem hoje os Guarani, ameaçados do Mal sem Terra, em conseqüência do avanço das fazendas sobre os habitantes indígenas originários.

A religião é ensinada, pelo karaí, que é o líder espiritual. Ele cuida dos doentes, recomendando os remédios e curando através da fé, pois, para eles, a doença nada mais é do que uma conseqüência da falta desta.

O artesanato é o maior sustento dessa aldeia. A cestaria e as esculturas de animais são perfeitas e vendidos pelos indígenas no litoral, na temporada de verão. Os índios, além disso, plantam milho, feijão e ervas medicinais.

As crianças guaranis que fazem parte do coral “Nhanderú Jepoverá” (Raio Sagrado de Deus), gravaram um CD em 2005 , que reúne 15 cantos sagrados.

Os guaranis cantam quando rezam, quando brincam, quando acalentam os filhos, quando plantam, quando colhem, quando curam, quando falam com seus deuses. Ninguém canta como eles, e ninguém ouve como eles, porque certamente seus cânticos fazem muito mais sentido em sua cultura.

CONCLUSÕES FINAIS

A batalha dos Guarani pela sobrevivência física e cultural continua nos dias atuais, no Paraguai, Argentina e Brasil (Maranhão, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). A luta pela demarcação ou reconquista de suas terras confundem-se com a recuperação de sua identidade étnica.

A história indígena não é de vencidos, mas uma história viva e presente de avanços e resistência, de fazer renascer um mundo mais humano para todos, irmanados com a nossa Mãe Terra.

Os Guarani somam hoje, aproximadamente, cem mil pessoas em todo o território brasileiro.

“America Ameríndia,
aínda na Paixão:
um dia tua Morte
terá Ressurreição!”

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

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A Fala-Adornada-do-Espírito, as Aldeias da Serra do Mar & a Terra em que Vivemos

por Rubens Zarate

Experimente observar os traços físicos das pessoas à sua volta – conhecidos, desconhecidos – no trabalho, ponto de ônibus, na Praça da Moça ou casas de forró. Aquela loira oxigenada com uns olhinhos meio rasgados, uma dobra diferente no canto dos olhos; aquele senhor evangélico com a ossatura da face meio proeminente; aquele adolescente ouvindo pagode ou tecno, beiçudo & de pele castanho-avermelhada. Costuma-se dizer que o Brasil é um país negro & mulato. Isso é correto até certo ponto. Quando o tráfico negreiro começou a tornar-se significativo já se havia passado meio século de intensa mestiçagem entre ibéricos & indígenas (principalmente guaranis, no sudeste, & jês & tupis, mais ao norte). Darcy Ribeiro, por exemplo, defende a tese de uma protocélula Brasil mameluca ou cabocla, surgida nos primeiros 50 anos de colonização, base das nossas populações camponesas, com ou sem terras. Desse ponto de vista o mais correto seria dizer que o Brasil é um país cafuzo. Na verdade, esse tipo de abordagem fenotípicoracial parece estar um tanto ultrapassado. O século XIX criou, com base nos traços físicos dos indivíduos, uma série de estereótipos, caricaturas a respeito do que viria a ser um “índio”, “negro” ou mestiço. A antropologia contemporânea, inclusive Darcy Ribeiro, prefere entender que indígena é todo aquele que se reconhece & é reconhecido como indígena por uma comunidade indígena. Não vamos então cair naquele tipo de chavão segundo o qual “o brasileiro é musical” por ter um pé na senzala ou “amante da natureza” por ter o outro na taba. Sociedades & indivíduos não são resultado de determinismos genético-raciais, geográficos-ambientais ou sócio-econômicos, mas produções de um imaginário social, de significações simbólicas, de um devir histórico de incessante criação coletiva de imagens, aquilo que Castoriadis chama poiésis – & o homem é antes de tudo um animal poiético, isto é, imaginante & imaginário. Roger Bastide, antropólogo francês & professor da USP, ao pesquisar os terreiros de candomblé procurou enxergar os praticantes do culto com o olhar do Outro – o chamado “olhar antropológico” –, no caso, um olhar afrodescendente. Acabou descobrindo que era filho de Xangô & apresentado ao panteão nagô como membro da linhagem do orixá do trovão & do machado-de-duas-faces. Passou a ser nagô? De certo modo. Nem por isso deixou de ser europeu & lecionar na USP & na Sorbonne. Caso parecido é o de Leon Cadogan, etnólogo paraguaio rebatizado com o nome de Tupã Kuchuvy pelo pajé da aldeia mbyáguarani que pesquisava.

O inverso vale também. Sabe-se que, graças aos mitos & falas sagradas mbyá registrados por Cadogan, muitos indivíduos geneticamente indígenas puderam se tornar indígenas culturalmente, tomando contato com suas tradições através da leitura de textos etnográficos, publicados por editoras ou Universidades. Não existem, portanto, “culturas autênticas”, do tipo “folclore em conserva”. Noções como “autenticidade” ou legitimidade” são entulhos ideológicos, abandonados há décadas pelas ciências sociais. Todo processo cultural é híbrido, sincrético, uma combinação de elementos heterogêneos, endógenos & exógenos, nativos & estrangeiros, “legítimos” ou “espúrios” – como nos cultos da umbanda, do catimbó ou do Santo Daime

Há quatro aldeias mbyá na Grande São Paulo (duas delas à beira da Billings): Tenondé-Porã (Parelheiros), Krukutú (Parelheiros/São Bernardo do Campo), M’Boi Mirim & Jaraguá, que se interligam a pelo menos mais quatro no litoral paulista, em Itanhaém, Peruíbe, Ubatuba & São Sebastião. Seus habitantes vivem como estrangeiros quase invisíveis nas frestas & franjas da área mais capitalizada & cosmopolita da América Latina, estabelecendo relações entre o modo de vida tradicional do interior das aldeias & a periferia & o centro das cidades da Grande São Paulo. É curioso notar que a sociedade brasileira, que nas últimas décadas vem aprendendo a reconhecer seu legado afrodescendente, ainda se recusa a assumir sua face indígena & mameluca. O Brasil finge que o índio (real) não existe – a não ser como avis rara empalhada, museológica & exótica.

Os mbyá, originários do Paraguai oriental, são um dos grupos culturais que formam o povo guarani – os outros dois são os kaiowá & os ñandeva –, aquele que melhor preservou suas tradições originais diante da devastação provocada a partir de 1500 pela pirataria ibérica & pela catequese romana. Antes mesmo da invenção do Brasil pelos europeus, a cultura guarani se caracterizava pelas migrações à procura da terra-sem-mal (yvy marãey), situada do outro lado do mar. Esses êxodos, ocorrentes desde a época pré-cabralina até metade do século XX, eram induzidos por visionários em transe, os karay, uma categoria especial de pajé, que recitando falas sagradas incitavam as aldeias às migrações. O mar, na cosmologia guarani, representa o lugar onde o destino humano pode se cumprir: é ao mesmo tempo um ponto de chegada & um obstáculo a ser transposto para se atingir o éden. A Serra do Mar, nesse contexto, passa a ter um significado especial: é a barragem do mar (yvy paiãry jocoã). Nos antigos mitos ñandeva há menção explícita à Serra do Mar. Talvez por isso os guarani tenham ocupado as encostas da serra, ao invés do litoral como os antigos tupi. Nas tradições mbyá & ñandeva, as terras do leste teriam sido ocupadas por seus antepassados, & sua atual reocupação representa o tekoa, o lugar-onde-se-pode-ser-aquilo-que-se-é.
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Para Curt Nimuendaju, etnólogo alemão que pesquisou as migrações guarani ocorridas do final do século XIX à metade do XX, a busca da terra-sem-mal é um fenômeno fundamentalmente mágico-religioso, esteja ou não relacionada a injunções da vida material, como guerras ou procura de novas áreas de cultivo. É curioso notar que, enquanto os mbyá migraram para o leste (lugar de Karay, o espírito do fogo), indo do Paraguai para o Mato Grosso & Paraná, & dali para a Serra do Mar, os atuais avá-chiriguanos da Bolívia, do grupo ñandeva, migraram para o oeste (lugar de Tupã, espírito das águas & tempestades), chegando a invadir o Império Inca no século XVI.

Em seu clássico A Sociedade Contra o Estado, Pierre Clastres faz uma leitura bastante original sobre a questão, com grande repercussão nos campos da Etnologia & da Política. Sendo as sociedades tribais sociedades sem Estado, o fenômeno dos profetas karay & da busca da terra-sem-mal representariam uma reação contrária ao surgimento
dos cacicados, chefi as políticas centralizadas nas mãos dos líderes guerreiros. Signifi cariam, portanto, uma rebelião mística contra o aparecimento de um proto-Estado monopolizador do poder – & o poder, para os mbyá, é o poder da palavra. “Falar é, antes de tudo, deter o poder de falar”. Os karay, “profetas selvagens”, pregariam as migrações para a terra-sem-mal – isto é, sem Estado – visando a desestabilização das chefias. Essa guerra simbólica entre xamãs & caciques implicaria, para Clastres, na dissolução da própria sociedade mbyá, que, diante da ameaça de dominação social pelo Estado, teria optado (como ocorre hoje com os kaiowá do Mato Grosso) pela auto-extinção.
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A cultura mbyá se define pelo visionarismo xamânico, & este pelo caráter mágico-religioso da palavra mitopoética, recitada ou cantada. Para Mircea Eliade o sagrado é, na religiosidade arcaica, o centro & a origem da realidade, o núcleo a partir do qual se propaga o mundo profano. Assim todo rito & todo mito representam o retorno ao centro
& à origem do real, o regresso ao sagrado. Não há, nas culturas arcaicas, a separação judaico-cristã, platônica ou cartesiana entre essas duas esferas.

Nas cosmogonias indígenas não existe um deus criador apartado do mundo por ele engendrado. Sagrado & profano, deuses & criaturas são estágios ou pólos de um mesmo processo. O universo é visto como um incessante desdobrar-se e redobrar-se, uma continuidade entre a unidade original & a multiplicidade do mundo. Para os mbyá, a criação do mundo se dá quando Ñamandu, o Mistério das Origens, desdobra-se a partir de si mesmo – como um sol que se ilumina, uma semente que irrompe ou uma asa de pássaro que se abre. É o oguero-jerá, conceito fundamental da metafísica mbyá, que poderia ser traduzido como aquilo-quegermina-de-sua-própria-germinação, ou aquilo-quese-desdobra-em-seu-próprio-desdobramento, ou ainda aquilo-que-se-ilumina-da-iluminação-de-si-mesmo. A cosmogênese é uma ereção do avá, força sagrada da verticalidade. Manifesta-se como ayvu, espírito-sompalavra que vem à Terra; individualiza-se como ñe’e, alma-cântico-fala que encarna nos seres viventes. O mundo passa a existir através do ato da poetização, da nomeação, do canto-recitação.
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No idioma guarani não há plural ou conjugação dos tempos verbais. Um único termo pode ser substantivo, verbo ou adjetivo. Para Cadogan, “todo o domínio semântico guarani comprova sua extrema riqueza. Sua linguagem não tem declinações passadas ou futuras. Todo seu falar é no presente: a ação reflete a realidade eterna do ser”. Além da fala comum, cotidiana, há uma linguagem secreta, esotérica, que só os karay sabem proferir & que não se dirige aos homens, mas ao sagrado. As palavras ganham um nível semântico cujo sentido & uso é exclusivamente mágico-religioso. Porã, por exemplo, costuma ser utilizado no sentido de “belo”; mas em seu significado esotérico é, literalmente, aquilo-que-é-adornado-com-plumas.

Sendo as penas dos pássaros signos do sagrado, porã equivale a “adornado, embelezado pelos deuses”. Ayvu comumente signifi ca linguagem, palavra, fala, recitação ou canto; mas em seu sentido mitopoético corresponde ao sagrado, ao espírito, à vida divina ou à música dos deuses. Ñe’e tem os mesmos sentidos, mas refere-se à fala dos seres vivos, humanos ou não. Outro exemplo é o nome Karay, que designa o espírito do leste, o nascer do sol & as chamas. Secretamente a palavra denota também os próprios poetas-visionários, aqueles-que-falam-asfalas- sagradas. Há também palavras-montagens de imagens. Cachimbo é “o esqueleto da névoa”, sendo os ossos considerados a morada da alma imortal dos seres vivos, enquanto a neblina & a fumaça são o hálito de Jakairah, o norte, lugar dos ancestrais & do conhecimento dos anciãos.

Por isso a cerimônia de batismo, ñi-mongaray, talvez seja a mais importante entre os mbyá. Uma criança que nasce é considerada encarnação de uma palavra-alma, um “nome-que-se-assenta-&-ergue”. O pajé pode ler na névoa do tabaco qual é essa palavra, a linhagem espiritual da qual provém aquele a ser batizado – leste, oeste, sul, norte ou zênite –, qual é seu nome, isto é, sua essência & origem. Receber um nome é receber ñe’e, uma alma-vida-fala. Do mesmo modo, o ato de cura é a restituição do ñe’e perdido do enfermo. O pajécurandeiro utiliza o cachimbo & o fumo, lembrando o nevoeiro que Jakairah trouxe à terra junto à palavra & ao pensamento, & opera analogamente ao deus da neblina que infunde a vida como orvalho à vegetação na passagem do inverno à primavera. Voltar à vida, devolver a alma-palavra é também o ato de curar. Há uma relação direta entre o sagrado, a linguagem, a vida & a verticalidade. É verdadeiro aquilo que está ereto, erguido. Avá, que comumente designa a condição humana, esotericamente representa o estado da verticalidade. O milho, planta sagrada & solar, é
avaty, o vegetal-ereto.

Considerando a importância central que os guarani atribuem à palavra, sinônimo de vida, alma & espírito, é significativo que os atuais habitantes da Serra do Mar tenham sido denominados mbyá: Aqueles-que-Vieram-de-Longe, os Estrangeiros, os Outros.
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O mitopoema que traduzo nas páginas seguintes é a parte inicial, o primeiro ciclo da cosmogonia mbyá, Maino Reko Ypy Kue (Os Atos Primeiros de Colibri-o- Pássaro-Primeiro). Há mais quatro traduções deste texto, todas baseadas nas falas sagradas recolhidas em 1953 por Leon Cadogan entre os mbyá do Paraguai: para o espanhol, pelo próprio Cadogan (1959); para o francês, por Pierre Clastres (1974); para o português, por Yara Miowa (1999) & por Kaka Werá Jecupé (2001). Todas elas foram cotejadas em minha versão, que também parte do original, em idioma mbyá paraguaio. É preciso lembrar que toda etnotradução é uma utopia: impossível traduzir a melopéia da recitação guarani para uma língua européia como a nossa.

Maino narra a passagem do araymá, o tempo primeiro do inverno ou caos primordial, ao arapoty, tempo da primavera, ou arapyaú ñemokandyre, tempo da terra-em-que-vivemos & dos sóis-que-nascem-&- morrem-&-nascem-novamente. É possivelmente a essa idade do ouro ou éden terrestre (bem diversa do paraíso cristão) que se referem as migrações para o leste (lugar do sol, primavera simbólica) em busca da terra-sem-mal.

Ñamandu, a Origem-de-Tudo, desdobra-se a partir de si mesmo. As primeiras imagens sugerem ao mesmo tempo o vir-à-luz (invertido) de uma criança & o desabrochar de uma palmeira cujas folhas são um cocar de plumas. Lembram também o popyguá, o cetro adornado com plumas que é portado pelos que falam as falas sagradas. Essas imagens parecem se referir também ao uiraçú ou gavião-real (Harpia harpya), a águia-de-penacho que é a maior animal de rapina do planeta & pássaro sagrado em várias culturas indígenas. Antes de desdobrar-se em gavião-real, ave solar, Ñamandu aparece como coruja, urukure’a, pássaro da noite. O mundo em seu desabrochar é ao mesmo tempo um sol & uma fl or, sobre o qual esvoaça o colibri primordial, maino, o pássaro-primeiro.

A passagem do caos ao cosmos seria então, na tradição mbyá, o despertar de um pássaro cujos olhos, ao se abrirem, fazem o sol nascer pela primeira vez. Uma coruja se solariza ao sol de si mesma & Vê-que-Éum- Gavião. É o primeiro oguero-jerá. O inverno dos primeiros ventos, o araymá ou caos primordial, dá lugar à primavera das fl ores do ipê-amarelo, o arapoty. O tempo-sem-tempo em que tudo é idêntico a si mesmo dá lugar ao arapyaú ñemokandyre, era das madrugadas & primaveras que nascem-&-morrem- &-nascem-novamente. Tempo da temporalidade: dos cânticos da diversidade da Terra: Yvy Piaú, a terra-em-que-vivemos. Mas também a terra que, em nossa condição de estrangeiros em perpétuo fl uxo migratório, buscamos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bartolomé, M.A. – Chamanismo y Religión entre los Ava Katu Ede. Instituto Indigenista, México, s/d
Cadogan, L – Chonó Kybwyrá. Revista Del Ateneo Paraguayo, Assunción, 1968.
– Aywu Rapytá. Boletim 227 de Filosofi a, Ciências e Letras da USP, S. Paulo,1959.
Carneiro da Cunha, M (org) – História dos Índios no Brasil. Cia. Das Letras, S. Paulo, 1998.
Castoriadis, C. – A Instituição Imaginária da Sociedade. Paz & Terra, Rio, 1982.
Clastres, P. – A Sociedade contra o Estado. Francisco Alves, Rio, 1978.
– A Fala Sagrada. Papirus, Campinas, 1990.
Clastres, H. – A Terra Sem Mal. Brasiliense, S. Paulo, 1978.
Eliade, M. – O Sagrado & o Profano. Edições Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
Ladeira, M. I. – Os Índios da Serra do Mar. Nova Stella, S. Paulo, 1988.
Miowa, Y. – Kuarahycorá. Elevação, S. Paulo, 1999.
Nimuendaju, C. – Lenda da Criação do Mundo como Fundamento da Religião dos Apapokuva-Guarani. EDUSP, S. Paulo, 1978.
Ribeiro, D. – As Américas & a Civilização. Vozes, Petrópolis, 1978.
Vainfas, R. – A Heresia dos Índios. Cia. Das Letras, S. Paulo, 1995.
Werá Jecupé, K. – Tupã Tenondé. Peirópolis, 2001.

Fonte:
Laboratório de Poéticas Antenas & Raízes
n.1. Diadema: Ponto de Cultura do Imaginário & da Diversidade. 2007. p.36-39.

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