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Olivaldo Junior (Um trovador)

Todas as horas são horas extremas!
Mário Quintana, in Pequeno Poema Didático
 

            Era uma vez um trovador que se perdeu quando tentou atravessar a própria sombra. Não sabia (coitado) que os trovadores não tem que perguntar, nem se indagar, mas, simplesmente, retratar o que eles veem pelo caminho. O caminho de um trovador não é mais o mesmo de antigamente. E mente quem diz outra coisa. Salvem Jorge, mas também os trovadores, que um trovador tem trovas onde antes não havia quase nada.

            Um trovador, distraído de tudo e de todos, perdeu-se quando foi atravessar a própria sombra e nunca mais voltou de lá. Lá é onde se perdem os que se põem a querer testarem o sim e o não de Deus. Deus não é de brincadeira, embora tenha muito senso de humor. Basta olhar o que Ele cria, sim, pois que o mundo não foi criado, o mundo é criado. Esse trovador sabia disso, e é por isso que ele ia ter com Deus assim que tudo ficasse mesmo insuportável. Leve, como se flutuasse, um trovador, sem cavalo, nem magrela, mesmo sendo gordo, flutuava pelo céu da consciência e não achava quem o trouxesse de volta: Deus. Se bem que teve aquela vez… Não, melhor que isso fique em segredo. O segredo é a alma do negócio, e o negócio é mesmo a alma. Um trovador, voando atrás de Deus, pensava que, finalmente, houvesse ganhado as asas que queria!

            Passado um tempo, depois de muito voar e de mais um tanto pensar sobre o que havia feito ao se atrever a ver além da própria sombra, um trovador resignou-se e pôs-se, enfim, a fazer trovas. Tem uma que ele fez que é bem assim, eu bem me lembro:

Ao perder a minha sombra,
me perdi na minha vida,
pois a morte só me assombra
quando a vida é dividida.

Pondo-se a escrever, ele esquecia um pouco de toda a dor que acumulara. Porém, como tudo tem fim (em todos os casos e sentidos), um trovador, tão jovem quanto um sonho não vivido, ao ver o reflexo dele nas águas de um lago (eram seis horas da tarde) tal e qual Narciso, pulou no sonho que teve, pois vira a sombra, a sombra dele ali. Lírios brancos, indicando a paz sem a virem, soluçaram baixo. E uma libélula, tarde, pousou.


Fonte:
O Autor
Sombra criada por J. Feldman a partir de imagem (colorida) obtida na internet

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Olivaldo Junior (Uma Rosa)

Era uma vez uma rosa que não era rosa. Eu explico: era uma rosa vermelha. Dona de um jardim só dela, não se via nada humilde, nem fazia questão de ser. Nadava em cravos e pousava em flores menos “pop”. Pode ser que tivesse, lá no fundo de suas pétalas, um pouco de humildade, mas não se via mesmo nada que a pudesse salvar. O orgulho é um grande abismo entre a beleza e o dia a dia, pois nem sempre é primavera.
Julgando-se eterna, uma rosa começou a murchar. Já não tinha o mesmo rubro nas bordas, e o verde no caule que a sustinha já nem dava bandeira. As margaridas, bem mais fortes que ela, madrugadoras, já cochichavam, quando a rosa acordou. Era uma rosa preguiçosa e, mais que isso, dormia para ver se a beleza a impregnava de novo com seu rastro de estrela, com seu porte de estátua que não é de mármore, mas se martiriza.
Feinha, com as pétalas por desabar, viu-se nas mãos de uma senhora que passava defronte ao jardim da casa em que morava. Desesperada, viu a porção de cravos envoltos em pobres margaridas, todos lhe dizendo adeus do canteiro em que estavam. De que havia valido a uma rosa tanta pose? A pobre, quase sem pétalas, sem caule, acabou assim, no cemitério mais próximo, dando vida a um túmulo, em preto-e-branco.
Fonte:
O Autor

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Coelho Neto (Mano) Parte 6

SEMPRE
No Dia de Finados
Dia dos mortos, teu dia… Não! O teu dia chama-se “Sempre”, não é um só, de horas contadas, limitando estreitamente o círculo das lembranças, que são os minutos da Saudade.
O dia de hoje é como os demais no tempo; o teu é infindo.
Dentro em pouco o crepúsculo baixará escuro e tudo desaparecerá na sombra solitária e, mais do que sobre os túmulos, a treva se adensará na memória efêmera dos que aguardam um dia para recordar.
Dos círios que alumiaram mausoléus e carneiros nada, em breve, restará senão lágrimas de cera e as flores murcharão na terra como as lembranças nos corações volúveis.
Os círios que te alumiam são os nossos olho cujas lágrimas não se condensam gélidas e são cada vez mais fluentes. As flores que alfombram o teu túmulo são sempre frescas, porque, além das que nascem de ti, das raízes do teu coração de bondade, o nosso amor vela solícito para que te não falte, todas as manhãs, a oferenda da nossa devoção.
Continuas a viver conosco, ainda que separado: nós, no sofrimento; tu, no alívio; nós, onde o sol aclara; tu, onde a noite governa. Há entre nós apenas uma lápide e é tanto, todavia, como o espaço que separa o céu da terra.
Foi-se o teu vulto, mas a tua essência ficou; sentimo-la conosco, como tornada a nós, de regresso ao amor de que saiu.
Teu nome é o estribilho da nossa melancolia: cai-nos, de vez em quando, dos lábios como caem das árvores no outono as folhas mortas.
A Vida é a respiração da Natureza; um ir e vir continuo. O bafejo que exalamos reentra-nos em fôlego purificado. Assim tu: foste e tornaste ao nosso coração e nele assistes.
Vivo, saías, passavas horas longe de nós, mas estavas preso à vida e vinhas por ela à casa com o teu passo senhoril e espalhavas por ela o som da tua voz, a alegria do teu sorriso. Dividias-te com os amigos que te disputavam. 
Agora és todo nosso, não sais de nós, és nós mesmos, como é mar a água que regressa ao oceano lançada pela nuvem que a sorveu.
Teu dia! Como se pudéssemos destacar um dia entre tantos, só respirar, só ver luz, ouvir vozes, viver, enfim, um só dia!
Sendo, como sempre foste, e és, o nosso amor, estás constantemente conosco e continuamos a chamar-te filho, como se andasses entre os teus irmãos.
Se eu não te houvesse assistido na agonia, recolhendo, num beijo, a lágrima derradeira que choraste, não acreditaria na tua morte, tão rápida foi ela…
Onde se viu o céu anoitecer antes da tarde?
Se a natureza regula o tempo, não extinguindo a Luz senão quando lhe chega o instante de apagar-se, por que havia a Morte de abater um jovem no verdor da esperança, quando nele mais ardia a mocidade?
Custaste tanto a crescer! Primeiro entre nós, aninhado entre dois corações, vigiado por olhos vígilos, aquecido a beijos; depois no berço ajoujado ao nosso leito e quando menino, tiveste a tua cama em quarto próprio. Quanta vez, alta noite, fomos, medrosamente, pé ante pé, escutar o teu coração, sentir teu hálito como se adivinhássemos a traição que havia de arrebatar-te!
Na cama de menino sonhaste os teus primeiros sonhos, meditaste os teus primeiros pensamentos e, começavas, talvez, a sentir a solidão do Paraíso quando a Morte entrou em ti alanceando-te o corpo esbelto.
Pobre filho! O que a tortura fez de ti! Como tu te refugiaste na infância imaginando, assim, com tal meiguice, esconder-te da pérfida!
Ressuscitaram na tua boca ressequida os diminutivos carinhosos com que nos chamavas, à noite, quando temias a escuridão.
Ouvindo-te parecia-me que eras o pequenino que acalentávamos nos braços. Saudoso tempo!
Vinte e quatro anos viveste dentro da nossa vida. Eras como uma torre que construíramos pouco a pouco, dando-lhe eu, de mim, energia e coragem; e ela brandura e fé, e, justamente quando contávamos contigo para nosso amparo, quando nos fiávamos em ti para nossa defesa e sorríamos, um ao outro, contentes em nossa velhice, por possuirmos a tua mocidade, veio a Morte… e deixou-nos sós. Por que?
Se a alma é eterna como se explica que nos morresses, tu que eras a nossa alma?
Como nos iludíamos com a Vida acreditando que a tivesses em nós quando toda ela estava contigo!
Que é da nossa alegria? Não era nossa? Não a tínhamos em sorrisos? Onde estão eles, tais sorrisos?
Ai! de nós! eram reflexos de ti e tanto é isto verdade que, desde o teu desaparecimento, nunca mais se nos descolaram os lábios nem em nossos olhos brilhou mais o lume da felicidade.
A nossa ventura eras tu e jazes num sepulcro.
Vinte e quatro anos de amor esvaídos num suspiro!
E vale a pena construir com tão carinhoso desvelo um ser, depositando nele toda a nossa riqueza para que, a súbitas, a uma rajada do Destino, tudo alua deixando-nos à mercê do tempo e míseros?
Como nos guiaremos doravante na escuridão silente?
Vives, mas vives como um sonho que se desvanece com a manhã. Sentimos-te, mas se te procuramos não estás; és apenas lembrança, rastro na alma, dor na saudade, espinho no coração.
A rosa de Jericó reabre-se se a mergulham na água. Se acontecesse o mesmo com os mortos (tantas têm sido as nossas lágrimas!) já terias ressurgido do túmulo como se emergisses à tona de um oceano. Mas de que servem lágrimas?! Paraste na mocidade. Os teus irmãos menores prosseguirão na vida e tu, que os precedias, quedarás na hora em que caíste, vendo-os passar, transpor a idade em que foste ferido, entrar pelos anos além, envelhecendo, e eles falarão de ti, o irmão mais velho, morto com pouco mais de vinte e quatro anos.
E assim ficarás sempre jovem na saudade dos teus, que te perderam.
Os que buscam consolar-nos tentam convencer-nos de que Deus te chamou tão cedo porque eras bom. E nós!? Por que nos havia Ele de ferir arrancando-te dos nossos corações?
O teu dia, meu filho, há de durar, sem noite, enquanto vivermos para a tua saudade.
O teu dia não terá horas, será toda a nossa existência.
O RETRATO
Como a lâmpada perene das capelas, símbolo da Fé pervígila, o teu retrato, ante meus olhos, alumia-me a memória e, como fica o sacrário entre luz e penumbra, assim jaz o meu coração na saudade.
A imagem do teu corpo airoso, que se desfaz na terra podia desvanecer-se-me na lembrança, posto que eu nela o sinta vivo como outrora. Todavia, como tudo que é efêmero perece, para que o teu semblante e o teu todo me não fujam, como foge a sombra com o corpo que a reflete, tenho a lâmpada que nos aclara e, assim, com a alma que ficou comigo, por ser minha, e o retrato que me acompanha, conservo-te tal qual foste.
Teu túmulo floresce, as flores, porém, ainda que delas cuide, com esmero, o jardineiro, murcham em breve. O teu retrato, esse perdura; é a flor imarcessível que ficou da tua mocidade. 
Pena é que lhe falte o que na flor é perfume e em nós é alma.
Olhamo-nos a fito. Eu vejo-te; e tu? A sombra não vê, não ouve, não sente, é um enigma que nos segue porque, sendo filha da luz, e escura; sendo a projeção de um corpo, é nada.
Vivo em contemplação diante do teu retrato e, de tanto fitá-lo, já se me gravou nos olhos e, quer eu os tenha abertos, quer fechados, vejo-te sempre.
Cego que ficasse ver-te-ia do mesmo modo, como vejo a luz. És como um sentido novo em mim.
E como não há de ser assim, meu filho, se continuas a viver comigo e, agora, mais do que nunca, és a razão de ser da minha vida!
Pobre de mim! Como me iludo! Retratos. Que valem rastros de caminhantes numa estrada sem fim!
Retratos… Miragens… Quando de vivos chamam-se lembranças, sendo como o teu não passam de saudades.
LAMENTO
Antes chorasses tu! Águas primaveris seca-as depressa o sol.
A tua mocidade radiosa reagiria contra a tristeza e, ainda que, por vezes, turvasse o teu coração a nuvem de saudade a sombra seria de eclipse, e não de noite eterna.
A alegria, própria da juventude, é lume que se não apaga.
Abafem-no, embora! quanto maior for o acúmulo de folhagem e troncos mais viva irromperá a chama vitoriosa.
Nos carvões que vasquejam uma gota de orvalho é quanto basta para matar na cinza a brasa trêmula.
O sol na primavera é vida; no inverno é morte.
O que, em ti, faria nascer o esquecimento, em mim mais aviva a lembrança.
O sol, em campo verde, fá-lo rebentar em flores; nos píncaros alpestres, fundindo a neve em torrentes, põe a descoberto abismos, desnuda alcantis, escorcha escarpas, todas as agruras e arestas da montanha merencória.
Quando se é moço o tempo é medicina para as chagas do coração; na velhice…
Que valem ruínas! Só resistem se as sustêm enliços de verdura, presilhas de hera que se emaranhe pelas frinchas; soltas, logo se esboroam.
Antes chorasses tu!
Um coração de moço, ainda na maior tristeza, se a alegria o ronda, ilumina-se e aquece-se.
Em meu coração, se a alegria passa-lhe por perto, a saudade, que está sempre alerta, levanta-se como cão de guarda quando pressente alguém se aproximar.
O que seriam risos em teus lábios correm-me em lágrimas dos olhos.
Antes chorasses tu!
Mal conhecias a vida e, com ânsia de novidades, depressa esquecerias o túmulo do morto.
Eu…
Que posso ver mais na vida se as lágrimas me empanam os olhos e o mundo me aparece, através do pranto, como a paisagem, em dia de chuva, nimbada pelas cordas de água. 
Antes chorasses tu!
––––––––
Continua…
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Olivaldo Junior (Uma Estrela)

A palavra não é minha. Mas a ideia me doma. Então, escrevo.
–––––-
Era uma vez uma estrela. Mas não era uma estrela como outra qualquer que está no céu. Era uma estrela da terra. Tinha caído do céu havia um tempo, mas ainda não estava acostumada com a vida terrestre. Estrela não se acostuma muito fácil com a vida que a gente leva. Vales, selvas e vilas: mas a estrela, caída no meio de um monte de estrume, não brilhava, nem nada. Seu DNA não era dínamo para esgarçar as chinelas pela estrada. A estrela não andava. Portanto, foi preciso esperar. Um dia, sem que esperasse, quase que uma cobra a comeu. Mas, por sorte, passou um carro velho que, espantando o bicho, fez a estrela feliz. O tempo diria se ela sobreviveria ao seu destino. O ninho de uma estrela estava sendo um monturo.
Um dia, sem que a estrela tivesse mais por que esperar, passou uma libélula que, se esgueirando no esterco, tocou a pele da estrela, sujinha de estrume de vaca brava, sem toque, nem truque de excelsa condição. A vida ensina. A mina de estrelas tinha deixado cair uma das suas. As estrelas também caem. Morna, a estrela grudou no inseto transparente que lha sobrevinha, incauto. Atrelada àquela libélula, pôde chegar à cidade e, ao passarem por um poste de iluminação da via pública, saltou de banda das frágeis costas da inocente a salvá-la. Salvadores, muitas vezes, são ingênuos. Socorro também surge sem querer. Bem que alguém podia ser livre.
A estrela estava no alto de um poste de rua, tentando se equilibrar, sondando o terreno. Não estava mais num monte de estrume, sem eira nem beira que a fizesse ser alvo de cobras, nem de aves de rapina. Estava “por cima”. Não estava no céu, mas chegaria lá. Quem não duvida, pode bem alcançar.
A noite avançava. Fazia um tempo de chuva. O vento soprava. A luz daquele poste estava quebrada. Passou um vento mais forte, que empurrou a estrelinha para cima do velho bocal do novo poste. Assim, a luz voltou.
Moji Guaçu, SP, dezesseis de janeiro de 2013.
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Coelho Neto (Mano) Parte 2

SEDE

Na escala dos ásperos tormentos, entre tantos que sofreu Jesus, foi o da sede o mais acerbo e o único de que ele deu queixa.

Não se lhe ouviu palavra quando dos tratos e afrontas com que o aviltaram no Pretório. Nas três vezes que caiu no caminho do Calvário não soltou um gemido: calado suportou a cravação na cruz e calado nela esteve até a hora terça da tarde.

Secaram-se-lhe, porém, os lábios e ele entreabriu-os arquejantemente bradando aos seus algozes:

– Tenho sede!

De tais palavras à rendição do espírito divino mediou apenas o instante breve em que soou o “Consummatum est!”

Mais longa que a de Jesus foi a agonia de meu filho.

Durante dias, a todo o instante, queixava-se ele de sede e eram todos a atendê-lo, cada qual mais solícito,

Que intenso ardor o abrasaria para que se não saciasse, já reclamando água mal lhe retiravam o copo dos lábios ávidos?

Febre? nem tanto acusava o termômetro. Que incêndio lhe arderia nas entranhas para que, apenas sorvia, sôfrego, a água que lhe davam, no mesmo instante fosse ela absorvida, como se caísse em forno caldo?

Não, não era febre, se não a própria vida em luta, que reclamava o que se lhe esvaía a golfos.

Quando o retiramos do leito foi que se nos patenteou a causa da insaciável sede: o colchão, o estrado, ainda o soalho, sob o leito, tudo era púrpura.

E, pois, como havia ele de acalmar-se se a água, assim como lhe descia a goles árdegos, saía-lhe tinta de sangue, dessorando as artérias exauridas?

E, como um vaso partido, de que se extravasa a água que alimenta flor querida, assim pela artéria aberta escoou-se todo o sangue daquele corpo, e a vida, flor que era o nosso encanto, murchando pouco a pouco, feneceu à míngua do que a mantinha.

VOLTA AO NINHO

Pediu-me que o mudasse de leito, e quis o nosso.

Podia alguém imaginar que era o Destino que o fazia retroceder ao ponto onde principiara a sua genitura para encerrar o círculo fatal?

Quem o diria presa da morte vendo-o tio robusto, em pleno viço de saúde, mascarando com o sorriso o ricto do sofrimento?

Alarmando-me o grande aparato de socorros de que se cercava o médico e a solicitude ativa do enfermeiro, interroguei-os aflito.

Sorriram-me tranqüilizando-me. Ele próprio estranhou os meus cuidados impertinentes.

“Era lá possível, diziam, que tão exuberante mocidade perecesse, frágil como uma ruína? Só um desastre.”

Todavia eu procurava ler nos olhos de quantos o visitavam e, desconfiado, tornei-me espião dentro da minha casa, vigilo, atento a tudo e a todos, escutando às portas, caminhando mansinho no silêncio das noites desveladas para surgir, a súbitas, entre os que se lhe revezavam à cabeceira, surpreender cochichos, gestos, ver o que faziam, ouvi-lo, a ele, inquieto, de olhos despertos e ansiosos, gemendo, a pedir alívio ainda que à custa de martírios.

Mísero corpo! Quanto sofreste pungido, de instante a instante, para inoculações de vida efêmera.

Por que não haviam de dizer-me a verdade? Por que não ma disseram, se a sabiam? Ao menos eu não o teria deixado um só instante e, aproveitando-me, sem desperdício de um segundo, do tempo que lhe restava, tanto o havia de prender a mim que… sabe-se lá o que é a vida e como são as raízes que a sustentam e nutrem! – talvez não fosse tão fácil à Morte arrancar-mo do amor.

Mas confiava em todos, nele principalmente e, quando saí da ilusão em que me mantinha a esperança, onde o vira nascer, no leito que ele pedira, o nosso, vi-o, pouco a pouco, aquietar-se, cerrar os olhos, dormir nos braços daquela mesma que, em pequeno, o acalentava e que, então, o abraçava imóvel, sem lágrimas, como se a dor a houvesse petrificado, como faz o inverno intenso com as águas múrmuras e correntias.

Leito de nascimento, ninho; leito de morte, esquife: princípio e fim da mesma felicidade, tu no-lo deste, tu no-lo levaste.

Agora, quando me deito, antes do sono vir, sinto-o comigo, a meu lado, vivo na minha lembrança, em saudade, sombra que me ficou no coração, rastro de uma ventura que passou, sonho com que me consolo dentro da noite triste e eterna, no qual o vejo desde pequenino, quando ali nasceu para tão curta vida, até o doloroso instante em que se foi para o sempre. 

O VIÁTICO

Ao Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães, que o confessou e ungiu

Quando, dissimulando a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo e o vi arfando, imóvel, alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras desfizeram-se-me em balbucios, como se dissolvem em espuma as vagas de encontro às penhas.

Estatelei-me, de mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me, então, na Fé o último clarão de esperança e minh’alma elevou-se, em surto, a Deus.

Fugindo daquele transe, procurei a que não chorava: fria, apática diante da catástrofe, imagem da geleira eterna que não deflui, petrificada em friul.

Expus-lhe o que me inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos para a partida e ela, encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente os olhos espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.

Insisti. Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto ante o adejo de um beija-flor.

Pedi a alguém que fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.

O tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso foi tão breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada do padre fiquei surpreso como de milagre.

Sim, era ele com a maleta em que vinham os sacramentos.

Olhamo-nos sem palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa encheu-a toda. As próprias janelas, largamente abertas, não pareciam respirar.

Pé ante pé tornei ao quarto, certo de encontrar o enfermo na inércia em que o deixara. E que vi eu, arrepiado de horror e no auge da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela janela aberta o céu azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que devassam o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco, doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão sereno, que dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando a preguiça da manhã.

Fora uma crise apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.

Que fazer? Despedir o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio valeria por sentença e ainda havia esperança em nossos corações. E ele nem sequer pensava na gravidade do seu estado, tanto que, momentos antes, ao raiar da alva, quando a passarada começava com os gorjeios, dissera, lembrando-se de passados tempos e pensando em futuros dias:

“Esta é a hora melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando. E eu, aqui! Enfim… ainda pode ser…”

O coração cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se a latejar, a ímpetos; lágrimas ardiam-me nos olhos.

Que fazer? Que dizer?!

Foi ele que me tirou da hesitação angustiosa, perguntando-me, a sorrir, surpreendido com a minha atitude:

– Que tens? Porque me olhas assim?

Que teria ele visto nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão longe. tão longe que chegava à morte?

Animei-me a falar. Não sei que disse, não sei!

De repente vi-o cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante, pálido, de lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso, como se eu o houvesse amaldiçoado: “Papai!”

É que eu rasgara violentamente o véu misterioso mostrando, no fundo da esperança, Deus é que eu lhe anunciara a hora suprema da Religião, hora última da terra, hora que não soa nem declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto da Eternidade.

Houve, então, entre nós, um olhar, e, nesse olhar, como se cruzam no beijo os amores, cruzaram-se desesperos.

Tentei justificar o meu procedimento:

“Que a religião e a medicina que não falha, porque os seus remédios são aviados por Deus, e salvam”.

As lágrimas intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me a mão, atraiu-me a si e, meigo, interrogou-me.

– Você quer?

Solucei, acenando afirmativamente.

– E mamãe?

Respondi com o olhar.

– Pois sim, concordou, suave: então também eu quero.

Todo o meu fôlego afluiu-me à garganta, sufocando-me.

Ele, sentindo a minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera com um gesto de brandura.

Caminhei para a porta. Antes, porém, de sair voltei-me. ele inclinara a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se. Saí. O sacerdote entrou.

Quanto tempo durou a confissão daquela alma em flor? Foi para o meu coração tão longo que ainda nele persiste e durará enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha saudade; durará como espinho na flor da minha ternura.

Quando o padre saiu, fui-me direito a ele. Chorava e sorria.

Chorava como homem, com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria como sacerdote, por haver achado em anos tão tenros coração tão virtuoso.

Então atrevi-me a tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento grandioso e horrível, hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal, levando àquela consciência, ainda clara, a certeza da morte; bem, preparando para Deus quem, já de partida, ainda nos iludia com a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a meiguice e, já desprendido da terra, de asas abertas para o vôo, ainda nos abraçava, animando aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer. 

E, ainda hoje, nos silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro, em dúvida que me excrucia:

“Quem sabe se o não entreguei cedo demais a Deus! É possível que se eu lhe não houvesse quebrado as forças da alma, se não houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela Fé, deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco, amado e amando-nos”.

Mas… E se, por descuido nosso, ele partisse sem a unção que salva?!

Precipitei-me, talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho, fosse, como foi, na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante para o esplendor eterno, que é o próprio olhar de Deus.

–––––––––continua

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Coelho Neto (Mano) Parte I

A INSPIRAÇÃO DO LIVRO

Tendo perdido os primeiros filhos, que foram tantos quantos os que sobreviveram, “como se a Vida apostasse com a Morte em lhe não ceder uma só vitória, tirando de cada túmulo uma ressurreição”, Coelho Netto desistiu do aperreado sistema, tão mal sucedido, de encerrar e atabafar em lãs os pequeninos, decidindo-se pelo da liberdade e dos exercícios físicos. E os outros sete medraram. Emmanuel, o Mano, era o mais velho. Robusto, culto, modesto e bom, ele simbolizava o tipo de atleta perfeito que Coelho Neto, sempre eqüidistante das competições partidárias, idealizou na sua campanha pelo aprimoramento da juventude brasileira.

No Fluminense Football Club, Mano integrou o mais famoso conjunto de amadores da história do football carioca, conquistando o tri-campeonato da cidade em 1917-1918-1919. Sua morte, em conseqüência de séria contusão que sofreu num jogo do Fluminense, ocorreu a 30 de Setembro de 1922, quando contava 24 anos de idade.

Depois da maior desgraça da sua vida, Coelho Neto, como forçado das letras, tendo de escrever sem cessar para manter a subsistência da família, quando tomava lugar à mesa, para começar o trabalho diário, só trazia um pensamento:

“Falando ou escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos. Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu”.

E, procurando derivativo sua imensa desventura, fez da pena um rosário e desfiou em lágrimas, dia a dia, o Livro da Saudade – “Mano”.

Paulo Coelho Neto 
Setembro de 1956

CAPELAS

Ele era bom. Tinha a serenidade dos fortes. A juventude do seu corpo de atleta guardava uma alma antiga, de orgulhosa origem, mas sempre alegre por perdoar e esquecer. Nunca lhe saiu da boca uma queixa. Acostumara os lábios ao ritmo do louvor.

Sabia admirar. Sabia amar.

Mano!

Quem o apelidou assim, de pequenino, adivinhou que, depois de grande, quando olhasse, de olhos abertos, a vida, havia de ser o que foi: o irmão… o Mano, mais moço ou mais velho, dos outros homens que o conheceram, os amigos da sua intimidade e aqueles que, junto de Coelho Netto e da companheira admirável desse nobre artista, aprenderam o culto da beleza e da bondade.
Álvaro Moreyra.

ÚLTIMA VITÓRIA

A Coelho Neto.

Era uma forte e meiga criatura,
Alma infantil em corpo de gigante;
E n’arena o julgáreis sempre ovante,
Da Grécia antiga olímpica figura.

Mas como cá na terra a desventura
Apunhala o valor a cada instante,
Chega-se a Morte ao moço triunfante
P’ra tocá-lo co’a ponta d’asa escura.

Preces da aflita mãe, que a dor crucia,
Prantos do pobre pai, que era um poeta,
Tudo o supremo transe lhe angustia.

Mas tinha o lutador crenças de asceta,
Rompe-se em luz o nimbo da agonia…
Sorri… Mais uma vez vencera o atleta.
Carlos de Laet

A MORTE DO SOL
A Coelho Neto

Rubro clarão no poente…
Desce abrasado o Sol… Por um momento,
Dir-se-ia
Que em sua marcha lenta se detém…
Contempla, a última vez, no firmamento
A estrada percorrida, desde o Oriente,
Numa larga passagem triunfal.

Vai mergulhar no Além,
Penetrar na Agonia,
Perder-se no seu próprio sangue – a Luz…
Sabe que vai morrer… Olha o declive
Que ao túmulo conduz;
Lança depois o último olhar
De saudade final
Sobre a terra distante, sobre o mar,
E rola no horizonte… – É a noite que se eleva…
É a Treva.
Parece que na terra nada vive,
Nada existe
Tudo se esvaiu: a forma, a cor,
Que são a alma das coisas no Universo…
Tudo agora é diverso
No cenário do mundo
Que vai viver sem luz e sem calor.
O sol partiu e o céu, pálido e triste,
Tornou-se mais profundo.

Para que serve a treva? Que razão
A faz surgir assim, tão bruscamente,
Após a fulgurante luz do dia?
Por que a noite, senão para melhor
Destacar o fulgor
Longínquo das estrelas?
Por que a noite, senão
Para aos homens dizer que todas elas
São outros tantos sóis, iguais ao Sol
Que vemos apagar-se no ocidente
Para se erguer de novo no arrebol?
Sóis que não morrem, que desaparecem
Somente ao nosso olhar e, quando descem
No horizonte, à mesma hora da descida,
Que é apenas ilusória,
Estão surgindo em plena glória
E em plena vida
Para outras regiões do espaço infindo…
Porque tudo que é lindo,
Perfeito e forte
Não pode aniquilar-se pela morte.

A existência nos mostra cada dia
Que o fluido da Beleza ou da Energia
Jamais se exala
Para perder-se; apenas se transforma,
Se aperfeiçoa e sobe numa escala
Em que se purifica a essência ou a forma
Das coisas… Vida é apenas harmonia.
Só na aparência alguma coisa ofusca
Esta ascensão contínua. Nada existe
Que, em verdade, a perturbe e a morte não seria
A única exceção
Para a parada brusca
Na evolução fatal da Natureza.
O espírito da Força e da Beleza
Não se dilui: persiste,
Segue em demanda de outra perfeição,
E, se escapa a visão dos nossos olhos,
Deixa d’alma nos íntimos refolhos
Tênues fios de viva claridade
Que, pelo pensamento, e elas nos unem
Por todo o sempre e que, talvez, um dia
Nos servirão de guia
No mistério que envolve a Eternidade,
E onde, vestindo novas existências
As parcelas das coisas, nas essências
De um mesmo todo extinto, se reúnem…

– Por isto quando o Sol desaparece
E o clarão do seu rastro empalidece
E se extingue na sombra, esse repouso
De morte transitória
É o início apenas de uma nova glória!
Octávio Ribeiro da Cunha

AGONIA
A GABY

Se o amor nos aproximou mais fez ele unindo-nos inseparavelmente. Vendo-o, era como se nos víssemos, aos dois, em um só reflexo – tu e eu, e, com tal visão, vivíamos felizes contemplando-a debruçados sobre a correnteza da vida.

Hoje!…

Em vez do espelho límpido, no qual nos mirávamos sorrindo, vejo apenas a água triste das lágrimas que transbordam dos teus e dos meus olhos, água fúnera, turvada pela saudade, limo que assenta no fundo do coração.

Pior que o Letes do esquecimento é, sem dúvida, a memória, fonte onde nasce o rio da saudade, corrente lúrida, toldada de lembranças. E é nesse rio que nos debatemos, tu e eu, descendo juntos para o oceano ilimitado, com esperança de ainda o encontrarmos, como se fosse possível achar no fundo da água morta a sombra que flutuou na sua superfície.

DOR

A alegria dispersa; a dor concentra.

É na dor que, em verdade, sentimos que um filho é carne da nossa carne.

Ao vê-lo sofrer vibramos doloridamente e, se ele geme, o seu gemido ressoa-nos no coração.

Os ais que lhe escapam do martírio são frechas que nos lancinam e, se baixam do clamor à queixa humilde, doem-nos ainda mais, como a punção de uma lanceta aguda que se nos crava paulatinamente.

Se o enfermo sara esquecem-se tais vozes, se elas, porém, se calam suspensas pela morte, então represam-se-nos no íntimo, e nunca mais o coração as esquece e os gemidos nele perduram como fica eterno nas conchas o marulho soturno do mar.

INSONE

A casa não dormia. Era a única na rua sossegada que se mantinha aberta e acesa durante a noite toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos cuidados, o movimento nela era contínuo. Falava-se aos cochichos, e, volta e meia, no quarto em que ele sofria, vígilo, soava a exclamação angustiosa:

“Se eu dormisse uma hora!”

O sono, que enchia a casa, acabrunhando aos que o desvelavam – tantas noites despertos! – só não lhe chegava, a ele.

Os enfermeiros revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em desordem, eram pacotes de algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.

De quando em quando alguém chegava-se à luz com o termômetro.

Em todo o caso havia esperança e, quando os pássaros começavam a cantar nas árvores e o céu desensombrava-se em rosicler e ouro, mais se animavam os corações.

“Se eu dormisse uma hora…!” arquejava, cansado, o pobrezinho.

O sol entrava a jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.

Todos contavam vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado e ele, rolando aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia nas palavras tristes:

“Se eu dormisse uma hora…!”

E, assim, passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em claro, longas, exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde décima, ao lento soar das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos, encheram-se-lhe de lágrimas e, entre nós dois, ela e eu, ele começou a aquietar-se, deixou de gemer para dormir, e adormeceu, enfim, não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca mais!

–––––––––continua

Fonte:

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Luis Fernando Veríssimo (Pexada)

Ilustração: Santiago
O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de “Gaúcho”. Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado.
 — Aí, Gaúcho!
 — Fala, Gaúcho!
 Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?
 — Mas o Gaúcho fala “tu”! — disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.
 — E fala certo — disse a professora. — Pode-se dizer “tu” e pode-se dizer “você”. Os dois estão certos. Os dois são português.
 O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.
 Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.
 — O pai atravessou a sinaleira e pechou.
 — O que?
 — O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.
 A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.
 — O que foi que ele disse, tia? — quis saber o gordo Jorge.
 — Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.
 — E o que é isso?
 — Gaúcho… Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.
 — Nós vinha…
 — Nós vínhamos.
 — Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto.
 A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito.
 “Sinaleira”, obviamente, era sinal, semáforo. “Auto” era automóvel, carro. Mas “pechar” o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que “pechar” vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.
 — Aí, Pechada!
 — Fala, Pechada!
Fonte:
Revista Nova Escola. Ensino Fundamental -1

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José de Alencar (Ao correr da pena) 22 de Outubro: Um Sermão de Monte Alverne

(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

O tempo serenou; as nuvens abriram-se, e deixam ver a espaços uma pequena nesga de céu azul, por onde passa algum raio de sol desmaiado, que, ainda como que entorpecido com o frio e com a umidade da chuva, vem espreguiçar-se indolentemente sobre as alvas pedras das calçadas.
Aproveitemos a estiada da manhã, e vamos, como os outros, acompanhando a devota romaria, assistir à festividade de São Pedro de Alcântara, que se celebra na Capela Imperial!
A igreja ressumbra a severa e impotente majestade dos templos católicos. Em face dessas grandes sombras que se projetam pelas naves, da luz fraca e vacilante dos círios lutando com a claridade do sai que penetra pelas altas abóbadas, do silêncio e das pompas solenes de uma religião verdadeira, sente-se o espírito tomado de um grave recolhimento.
Perdido no esvão de uma nave escura, ignorado de todos e dos meus próprios amigos, que talvez condenavam sem remissão um indiferentismo imperdoável, assisti com o espírito do verdadeiro cristão a esta festa religiosa, que apresentava o que quer seja fora do comum.
Sob o aspecto contido e reservado daquele numeroso concurso, elevando-se gradualmente do mais humilde crente até às últimas sumidades da hierarquia social, transpareciam os assomos de uma  curiosidade sôfrega e de uma ansiedade mal reprimida. Qual seria a causa poderosa que perturbava assim a gravidade da oração? Que pensamento podia assim distrair o espírito dos cismas e dos enlevos da religião?
Não era de certo um pensamento profano, nem uma causa estranha que animava aquele sentimento. Ao contrário: neste templo que a religião enchia com todo o vigor de suas imagens e toda a poesia de seus mitos, neste recinto em que as luzes, o silêncio e as sombras, as galas e a música representavam todas as expressões do sentimento, só faltava a palavra, mas a palavra do Evangelho, a palavra de uma inspiração sublime e divina, a palavra que cai do céu sobre o coração como um eco da voz de Deus, e que refrange aos lábios para poder ser compreendida pela linguagem dos homens.
Era isto o que todos esperavam. Os olhos se voltavam para o púlpito onde havia pregado Sampaio, S. Carlos e Januário; e pareciam evocar dos seus túmulos aquelas sombras ilustres para virem contemplar um dia de sua vida, uma reminiscência de suas passadas glórias.
Deixai que emudeçam as orações, que se calem os sons da música religiosa, e que os últimos ecos dos cânticos sagrados se vão perder pelo fundo dos erguidos corredores ou pelas frestas arrendadas das tribunas.
Cessaram de todo as orações. Recresce a expectação e a ansiedade; mas cada um se retrai na mudez da concentração. Os gestos se reprimem, contêm-se as respirações anelantes. O silêncio vai descendo frouxa e lentamente do alto das abóbadas ao longo das paredes, e sepulta de repente o vasto âmbito do templo.
Chegou o momento. Todos os olhos estão fixos, todos os espíritos atentos.
No vão escuro da estreita arcada do púlpito assomou um vulto. É um velho cego, quebrado pelos anos, vergado pela idade. Nessa bela cabeça quase calva e encanecida pousa-lhe o espírito da religião sob a tríplice auréola da inteligência, da velhice e da desgraça.
O rosto pálido e emagrecido cobre-se desse vago, dessa oscilação do homem que caminha nas trevas. Entre as mangas do burel de seu hábito de franciscano cruzam-se os braços nus e descarnados.
Ajoelhou. Curvou a cabeça sobre a borda do púlpito, e, revolvendo as cinzas de um longo passado, murmurou uma oração, um mistério entre ele e Deus.
Que há em tudo isto que desse causa à tamanha expectação? Não se encontra a cada momento um velho, a quem o claustro seqüestrou do mundo, a quem a cegueira privou da luz dos olhos? Não há aí tanta inteligência que um voto encerra numa célula, e que a desgraça sepulta nas trevas?
É verdade. Mas deixai que termine aquela rápida oração; esperai um momento… um segundo… ei-lo!
O velho ergueu a cabeça; alçou o porte; a sua fisionomia animou-se. O braço descarnado abriu um gesto incisivo; os lábios, quebrantando o silêncio de vinte anos, lançaram aquela palavra sonora, que encheu o recinto, e que foi acordar os ecos adormecidos de outros tempos.
Fr. Francisco de Monte Alverne pregava! Já não era um velho cego, que a desgraça e a religião mandava respeitar. Era o orador brilhante, o pregador sagrado, que impunha a admiração com a sua eloqüência viva e animada, cheia de grandes pensamentos e de imagens soberbas.
Desde este momento o que foi aquele rasgo de eloqüência, não é possível exprimi-lo, nem sei dize-lo. A entonação grave de sua voz, a expressão nobre do gesto enérgico a copiar a sua frase eloqüente, arrebatava; e levado pela força e veemência daquela palavra vigorosa, o espírito, transpondo a distância e o tempo, julgava-se nos desertos de Said e da Tebaida, entre os rochedos alcantilados e as vastas sáfaras de areia, presenciando todas as austeridades da solidão.
De repente, em dois terços, com uma palavra, com um gesto, muda-se o quadro; e como que a alma se perde naquelas vastas e sombrias abóbadas do Mosteiro de São Justo, para ver com assombro Pedro de Alcântara em face de Carlos V, o santo em face da grandeza decaída.
Aqueles que em outros tempos ouviram Monte Alverne, e que podem comprar as duas épocas de sua vida cortada por uma longa reclusão, confessam que todas as suas reminiscências dos tempos passados, apesar do prestígio da memória, cederam a esse triunfo da eloqüência.
Entre as quatro paredes de uma célula estreita, privado da luz, é natural que o pensamento se tenha acrisolado; e que a inteligência, cedendo por muito tempo a uma força poderosa de concentração, se preparasse para essas expansões brilhantes.
O digno professor de eloqüência do Colégio de Pedro II; desejando dar aos seus discípulos uma lição de prática de oratória, assistiu com eles, e acompanhado do respeitável diretor daquele estabelecimento, ao belo discurso de Monte Alverne.
Não me animo a dizer mais sobre um assunto magnífico, porém esgotado por uma dessas penas que com dois traços esboçam um quadro, como a palavra de Monte Alverne com um gesto e uma frase.
Contudo, se este descuido de escritor carece de desculpas, parece-me que tenho uma muito valiosa na importância do fato que preocupou os espíritos durante os últimos dias da semana, e deu tema a todas as conversações.
Parece, porém, que a chuva só quis dar tempo a que a cidade do Rio de Janeiro pudesse ouvir o ilustre pregador, sem que o rumor das goteiras perturbasse o silêncio da igreja.
À tarde o tempo anuviou-se, e a água caía a jorros. Entretanto isto não impediu que a alta sociedade e todas as notabilidades políticas e comerciais, em trajes funerários, concorressem ao enterro de uma senhora virtuosa, estimada por quantos a  tratavam, conhecida pelos pobres e pelas casas pias.
A Sra. Baronesa do Rio Bonito contava muitas afeições, não só pelas suas virtudes, como pela estimação geral de que gozam seus filhos. O grande concurso de carros que acompanharam o seu préstito fúnebre em uma tarde desabrida é o mais solene testemunho desse fato.
Entre as pessoas que carregaram o seu caixão notaram-se o Sr. Presidente do Conselho, o Sr. Ministro do Império e alguns Diretores do Banco do Brasil. É o apanágio da virtude, e o único consolo da morte. Ante os despojos exânimes de uma alma bem  formada se inclinam sem humilhar-se todas as grandezas da terra.
Esses dois fatos, causa de sentimentos opostos, enchem quase toda a semana. Desde pela manhã até a noite a chuva caía com poucas intermitências, e parecia ter destinado aqueles dias para as solenidades e os pensamentos religiosos.
Apesar da esterilidade e sensaboria que produz sempre esse tempo numa cidade de costumes como os nossos, apesar dos dissabores dos namorados privados dos devaneios da tarde, e dos ataques de nervos das moças delicadas, os homens previdentes não deixavam de estimar essas descargas de eletricidade, e essas pancadas d’água, que depuram e refrescam a atmosfera.
Na opinião (quanto a mim estou em dúvida), essas caretas que o tempo fazia aos prognosticadores de moléstias imaginárias, valiam mil vezes mais do que todas as discussões de todas as academias médicas do mundo.
Quanto mais, se soubessem que o Sr. Ministro do Império durante esses dias se preocupava seriamente das medidas necessárias ao asseio da cidade, mostrando assim todo zelo em proteger esta bela capital dos ataques do diabo azul. Sirvo-me deste nome, porque estou decidido a não falar mais em cólera, enquanto não resolverem definitivamente se é homem, se é mulher ou hermafrodita.
Para este fim o Sr. Pedreira consultou o presidente da câmara municipal, e incumbiu ao Sr. Desembargador chefe de polícia a inspeção do serviço, cujo regulamento será publicado oportunamente.
Com as providências que se tomaram, e especialmente com a medida da divisão dos distritos e da combinação da ação policial com o elemento municipal, a fim de remover quaisquer obstáculos, creio que podemos esperar resultados úteis e eficazes.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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José de Alencar (Ao Correr da Pena) 15 de Outubro : Os destinos de uma data

(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).
Encontram-se às vezes na história da humanidade certas coincidências tão notáveis, que parecem revelar uma lei fatal e misteriosa, um elo invisível que através dos anos e dos séculos prende entre si os grandes acontecimentos.
O tempo, dizia Píndaro, é o oceano imenso sobre o qual navega a humanidade. Quem sabe se, como o marinheiro lançado sobre a amplidão dos mares, batido pelos ventos e pelas tempestades, o gênero humano não percorre os caminhos já trilhados, e não atravessa as idades revendo na sua torna-viagem as mesmas plagas, os mesmos climas?
O espírito se confunde desde que intenta perscrutar tão altos arcanos, e se perde numa série de pensamentos elevados, como os que me assaltaram quando me pus a refletir sobre os destinos do dia 12 de outubro, que marca época nos anais do mundo, da América e do Brasil.
Quando se desdobra esta página do calendário, e se volve os olhos para o passado, vê-se surgir entre as sombras das gerações que morreram dois grandes vultos de heróis, que separados por mais de três séculos, parecem estender-se a mão por sobre o espaço, como para consolidar a sua obra.
No mesmo dia um descobriu um novo mundo, o outro fundou um grande império. Um chamava-se Colombo, o outro era Pedro I. Dois nomes que por si só valem uma história.
Entretanto a América e o Brasil deixaram-nos escritos apenas nos livros, como uma simples recordação; e, tomando um nome de empréstimo, nem ao menos copiaram no mármore ou no bronze aquela página de tantas glórias.
O viajante do velho mundo, que contemplou as pirâmides do Egito, as ruínas do Partenon, as abóbadas do Coliseu, os obeliscos e os arcos de triunfo, monumentos de um século, de um povo, ou de um rei somente, não encontra nas plagas americanas nem sequer o nome desse semideus que criou um mundo!
Apenas a espaços, uma palavra perdida, uma exprobração amarga, e mesmo alguns esforços infrutíferos para levar a efeito a idéia de um monumento a Colombo e de uma estátua a D. Pedro.
Tudo isto, porém, passa no turbilhão das idéias que servem de pasto a uma agitação momentânea, e nada resiste a esse esquecimento fatal e prematuro. Dir-se-ia que o presente, temendo ser ofuscado por tão grandes feitos do passado, como que receia transmiti-los às gerações futuras.
Mas o eco das idades, esse brilho que ilumina os séculos, e a que o mundo chama a glória, não há forças que o abafem. Através do tempo ouve-se ainda e sempre esse sublime diálogo que formam, como diz L’Hermenier, as relações do gênio com a humanidade.
Assim, aqueles dois grandes vultos, que parecem perdidos nas sombras do passado, se refletirão com todo o seu brilho na posteridade, principalmente quando o primeiro tem para desenha-lo a pena de um homem como Lamartine, e o outro a história de uma nação como o Brasil.
Talvez que então, quando a marcha dos tempos tiver desvendado altos mistérios do destino, a humanidade possa compreender esse elo invisível que prende dois acontecimentos tão remotos, essa relação inexplicável entre dois homens, essa coincidência providencial de duas revoluções que em épocas diferentes se realizaram no mesmo dia.
Quem sabe se o fato que veio depois de três séculos não era o complemento e o remate do primeiro? Quem sabe se D. Pedro I não foi o continuador de  Colombo? Quem sabe se a fundação do Império do Brasil não devia ser uma condição essencial nos futuros destinos da América?
Estes pensamentos nos levariam muito longe, muito além do presente, e nos fariam esquecer que nestas páginas somos o homem do passado, o simples cronista dos acontecimentos de uma semana. Deixemos, portanto, as altas elocubrações, e voltemos aos fatos da atualidade. 
Falávamos de gênio, de talento, de glórias passadas e destinos futuros. O presente não é menos fértil em qualquer destas coisas, sobretudo em talento.
O talento! Divinae particulam aurae! Não há nada como o talento. Riquezas, honras, nascimento, nobreza, nada disso vale uma pequena dose daquela inspiração divina. Só ela tem o privilégio da divindade, o dom de criar e inventar.
Se duvidam do que estou dizendo, tomem qualquer jornal da semana, e corram-lhe os olhos, que terão a prova desta minha asserção.
O cólera-morbo andava muito sossegado lá pela Europa e nem sequer ainda se tinha lembrado de escrever o Brasil no seu itinerário ou jornal de viagem, quando um homem de  talento necessariamente, teve a feliz idéia de afirmar que a moléstia já estava em caminho e não tardaria a chegar.
Imediatamente fez-se uma revolução, e tivemos uma verdadeira epidemia de cólera-morbo in nomine. Não se falava em outra coisa; não se escrevia sobre outro assunto. Os médicos dissertavam largamente, os profanos gracejavam ou discutiam, a Câmara Municipal trabalhava, e a Academia de Medicina fazia sessões públicas.
Ouvi queixar-se muita gente que de todas essas luminosas discussões nada se concluía; creio porém, que estão mal informados . Se fossem ao escritório de qualquer das folhas diárias desta corte, haviam de ver entrar para a caixa a conseqüência lógica e verdadeira de toda esta argumentação – a paga das correspondências e publicações a pedido.
A epidemia foi tal, que até foram bulir com a pobre gramática, que estava bem sossegada, e chamaram-na a campo para decidir se o cólera-morbo era masculino ou feminino.
Não me devo meter em semelhante questão; mas, a falar a verdade, prescindindo da gramática, creio que aqueles que dão ao cólera o gênero feminino têm alguma razão, por isso que os maiores flagelos deste mundo, a guerra, a morte, a fome, a peste, a miséria, a doença, etc., são representadas por mulheres.
E o que torna-se mais notável ainda é que os gregos, gente sempre tida em conta de sábia, quando inventaram os seus deuses, fizeram homens Apolo e Cupido, e para mulheres escolheram as Parcas, as Fúrias e as Harpias. 
Se as minhas amáveis leitoras não gostaram desta razão, que acho muito natural, chamem a contas os pintores e os poetas, que são os autores de tudo isto. Quanto a mim, não tenho culpa nenhuma das extravagâncias dos outros, e até estou pronto a admitir a opinião do meu colega  A. Karr, que explica aquele fato pela razão de que as senhoras são extremos em tudo, tanto que as mais belas coisas deste mundo são também significadas por mulheres, assim como a beleza, a glória, a justiça, a caridade, a virtude e muitas outras que, como estas, não se encontram comumente pelo mundo, mas que existem no dicionário.
Ora, à vista da razão que apresentei, parecia que não devia haver mais dúvida sobre o gênero do cólera; porém o argumento do –h-, que ainda não tinha lembrado aos gramáticos antigos e modernos, veio mudar a face da questão. Homem, que é o símbolo do gênero masculino, começa por –h-; logo, desde que o cólera for escrito com  -h- é masculino. A isto não há que responder; e por  conseguinte, à vista de um tal argumento, persisto na minha antiga opinião.
Apesar de todas estas discussões interessantes com que se procura entreter o ânimo público, à noite os dilettanti não deixam de se encaminhar para o Teatro Lírico, embora tenham muitas vezes o desgosto de esbarrarem com o nariz na porta fechada, como sucedeu segunda-feira.
Disseram que a Charton estava um pouco incomodada, o que bem traduzindo quer dizer que não tinha nada absolutamente.
Ora, admitindo mesmo o caso do incômodo, desejava sinceramente que os espíritos dados às altas e importantes questões de utilidade pública, como sejam as do gênero do cólera, do contágio da moléstia, da sua antiguidade, etc., me elucidassem, por meio de uma discussão esclarecida, um ponto muito duvidoso para mim: e é se as primas-donas têm o direito de adoecerem em dia de representação, e deixarem-nos desapontados sem sabermos o que fazer da noite.
Na minha opinião entendo que uma prima-dona, quando muito, tem unicamente o direito de adoecer na véspera, a tempo de se publicar o anúncio da transferência do espetáculo; e, quando quiser adoecer no mesmo dia, então deve adivinhar de véspera que na noite seguinte estará incomodada, a fim de se prevenir o público, e evitar-lhe uma desagradável surpresa.
Felizmente o incômodo da Charton foi passageiro, e as soirées Líricas continuaram sem mais transferências até sexta-feira, em que nos deram a Semiramide, em benefício da Casaloni. A noite foi ruidosa: aplausos, rumor, flores, versos, brilhantes, houve de tudo, até mesmo uma pateada solene. Foi por conseguinte uma festa completa.
Para fazer diversão à música italiana, ofereceram-nos, sábado da semana passada, no Teatro de São Pedro, um outro benefício de música alemã clássica, no qual os entendedores tiveram ocasião de apreciar coros magníficos a três e quatro vozes, e de gozar belas recordações dos antigos maestros, hoje tão esquecidos por causa das melodias de Rossini e Donizetti e das sublimes e originais inspirações de Verdi e Meyerbeer.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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Antonio Brás Constante (A Letra Partiu da Mão e Formou o Grão)

A letra partiu da mão e formou o grão. Voou entre rimas, pousando em novas terras a serem descobertas e ali germinou, formando palavras, desabrochando em frases, encantado olhares com sua beleza suave;
O pequeno embrião textual desenvolveu parágrafos profundos, até se transformar em um poema pronto para se mostrar ao mundo. Sob o seio de sua sombra descansaram os sonhadores, que deitados na proteção de seu colo, acalentaram-se em seus versos utópicos, curando eventuais dissabores;
Na beleza projetada por sua linguagem, paixões se incendiaram em centenas de cores. Uma parte desses matizes tomou a forma de amores, enquanto das outras partes sobraram apenas amargas dores;
As suas curvas poéticas encantaram romancistas e trovadores, despertando os próprios talentos sobre a figura escrita que estavam lendo e nelas totalmente se envolvendo.
Do caldo de sua seiva virgem, autores extraíram o bálsamo para a conquista de suas musas adoradas. E no fruto em ti formado, se desenvolveram novas idéias que alimentaram mil escritores;
Restaram suas sementes, leves como a brisa do vento, que enfim voaram pelas memórias de tantos leitores, germinando em novas mentes. Algumas caindo em terreno fecundo, de onde brota toda poesia, pois pousaram com maestria e festa na imaginação louca dos poetas.
Fonte:
O Autor

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Antonio Carlos de Faria (Cardápio Existencial)

-E se a vida for como um cardápio?

A pergunta pegou Rosinha de surpresa. Ela levantou os olhos do menu e se deparou com o marido em estado reflexivo.

-Ora, Alfredo, deixe de filosofar e escolha logo o seu prato. 

Os dois haviam saído para jantar e estavam na varanda do Bar Lagoa, de onde se pode ver um cantinho de céu e o Redentor.

-Rosinha, pense nas conseqüências do que estou dizendo. Se a vida for como um cardápio, nós talvez estejamos escolhendo errado. No lugar da buchada de bode em que nossas vidas se transformaram, poderíamos nos deliciar com escargots. Experimentar sabores novos, mais sofisticados…

-Por que a vida seria como um cardápio, Alfredo? Tenha dó.

-E por que não seria? Ninguém sabe de fato o que é a vida, portanto qualquer acepção é válida, até prova em contrário.

-Benhê, acorda. Ninguém vai aparecer para servir o seu cardápio imaginário. Na vida, a gente tem que ir buscar. A vida é mais parecida com um restaurante a quilo, self-service, entende?

-Boa imagem. Concordo com o restaurante a quilo. É assim para quase todo mundo. Mas quando evoluímos um pouco, chega a hora em que podemos nos servir a la carte. Rosinha, nós estamos nesse nível. Podemos fazer opções mais ousadas. 

-Alfredo, se você está querendo aventuras, variar o arroz com feijão, seja claro. Não me venha com essa conversa de cardápio existencial. Além disso, se a nossa vida virou uma buchada de bode, com quem você pensa experimentar essa coisa gosmenta, o tal escargot? 

-Querida, não reduza minhas idéias a uma trivial variação gastronômica. Minha hipótese, caso correta, tem implicações metafísicas. Se a vida for como um cardápio, do outro lado teria que existir o Grand Chef, o criador do menu. 

-Alfredo, fofo, agora você viajou na maionese. É o cúmulo querer reconstruir o imaginário religioso baseado no funcionamento de um restaurante. Só falta você dizer que nesse seu céu, os anjos são os garçons! 

Nesse momento, dois chopes desceram sobre a mesa. Flutuaram entre as mãos alvas, quase diáfanas, de um dos velhos garçons do Bar Lagoa.

Alfredo e Rosinha trocaram olhares de espanto e antes que pudessem dizer que ainda não haviam pedido nada, o garçom falou com voz grave:

-Cortesia da casa. Já olharam o cardápio?

Fonte:

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Antonio Carlos de Faria (O Mundo Sem Colombo)

 -Não consigo deixar de pensar nisso.

-Nisso o quê?

-Como teria sido o mundo sem Colombo. Nós nem estaríamos aqui nesse botequim bebendo chope e papeando…

-Então, salve Colombo! Deixe de pensar nele. Viva o presente e, principalmente, pague o que me deve. 

-Você não entendeu. Não estou pensando em Colombo. Estou pensando no que teria sido o mundo sem ele.

-Com ele ou sem, os europeus iriam acabar chegando ao Rio de Janeiro e hoje alguém iria estar tomando chope em um botequim como esse. Tudo seria mais ou menos igual. Até um caloteiro como você iria existir.

-Você está enganado. Sem Colombo, nós não estaríamos aqui. Sem ele, iria prevalecer o método de Portugal, que eram as cabotagens em torno da África e da Ásia. Um processo muito mais lento. Em qualquer lugar em que vissem mulher bonita, os portugueses paravam e se punham a fazer versos e a tocar suas guitarras.

-Eles estavam certos, quer coisa melhor do que mulher, poesia e música?

-Mas perceba as conseqüências. Seguindo as cabotagens, os portugueses chegariam ao Japão, como fizeram realmente, mas talvez demorassem muito mais para se arriscar em linha reta ao Oriente. Foi a loucura de Colombo que fez os portugueses virem direto para a América. Se dependesse deles, isso poderia ter demorado mais, quem sabe uns duzentos anos.

-E daí? Um pouco antes, um pouco depois, terminaria tudo como estamos vendo agora.

-De forma alguma. Sem as Américas, não haveria batatas no cardápio da Europa. Sem batatas, a população européia iria continuar passando fome, crescendo devagar. Não haveria o excedente que criou o exército de mão-de-obra de reserva, a mais valia. Não teria havido a Revolução Industrial.

-Você não acha que está exagerando um pouco?

-Claro que não. Sem Colombo, não teria havido luta de classes e as revoluções que balançaram o mundo no último século.

-Aonde você quer chegar com essa conversa?

-Ora, meu ponto de vista é claro. A ousadia de Colombo criou o mundo como o conhecemos. É preciso ser ousado, é preciso ir além do convencional.

-Ainda não entendi o que quer dizer esse papo todo.

-Bom, você mesmo podia ser mais ousado e fazer um gesto inesperado. Por exemplo, poderia perdoar essa dívida que veio me cobrar.

-Tenha paciência. Está me achando com cara de Jesus Cristo? Essa conversa toda é apenas mais uma forma de você adiar o pagamento. Você está me enrolando.

-Longe de mim essa idéia! Mas continuando nosso assunto, como teria sido a história do mundo sem Jesus Cristo? Você já pensou nas conseqüências?

Fonte:
Folha On Line. 27/09/2004

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José de Alencar (Ao correr da pena) 17 de setembro: A Primavera

(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

Estamos na primavera, dizem os folhetins dos jornais, e a folhinha de Laemmert, que é autoridade nesta matéria. Não se pode por conseguinte admitir a menor dúvida a respeito. A poeira, o calor, as trovoadas, os casamentos e as moléstias, tudo anuncia que entramos na quadra feiticeira dos brincos e dos amores.

Que importa que o sol esteja de icterícia, que a Charton enrouqueça, que as noites sejam frias e úmidas, que todo o mundo ande de pigarro? Isto não quer dizer nada. Estamos na primavera. Os deputados, aves de arribação do tempo do inverno, bateram a linda plumagem; a Sibéria fechou-se por este ano, os buquês de baile vão tomando proporções gigantescas, as grinaldas das moças do tom são perfeitas jardineiras, a Casaloni recebe uma dúzia de ramalhetes por noite, e finalmente os anúncios de salsaparrilha de Sands e de Bristol começam a reproduzir-se com um crescendo animador.

Come, gentil spring! Vem, gentil quadra dos prazeres! Vem encher-nos os olhos de pó! Vem amarrotar-nos os colarinhos da camisa, e reduzir-nos à agradável condição de um vaso de filtrar água. Tu és a estação das flores, o mimo da natureza! Vem perfumar-nos com as exalações tépidas e fragrantes da Rua do Rosário, da Praia de Santa Luzia, e de todas as praias em geral!

Doce alívio dos velhos reumáticos, esperança consoladora dos médicos e dos boticários, sonho dourado dos proprietários das casinhas dos arrabaldes! Os sorveteiros, os vendedores de limonadas e ventarolas, os donos dos hotéis de Petrópolis, os banhos, os ônibus, as gôndolas e as barracas, te esperam com a ansiedade, e de suspirar por ti quase estão ficando tísicos (da bolsa).

Esta semana já começamos a sentir os salutares efeitos de tua benéfica influência! Vimos uma estrela do belo céu da Itália eclipsada por uma moeda de dois vinténs, e tivemos a agradável surpresa de ouvir o 1º ato do Trovatore e um epeech da polícia, tudo de graça.

Alguns mal intencionados pretendem que a noite não foi tão gratuita como se diz; mas deixai-os falar; eu, que lá estive, posso afiançar-vos que o espetáculo foi todo de graça, como ides ver,

A autoridade policial depois de participar que ficava suspensa a representação e que os bilhetes estavam garantidos, sendo por conseguinte aquela noite de graça, como esta notícia excitasse algum rumor, declarou formalmente, e com toda a razão, que se acomodassem, porque a polícia, quando tratava de cumprir o seu dever, não era para graças.

Os namorados que tiveram duas noites de namoro pelo custo de uma, os donos de cocheira que ganharam o aluguel por metade do serviço, o boleeiro que empolgou a sua gorjeta sem contar as estrelas até a madrugada, aqueles que lá não foram, não só riram-se de graça, como acharam nisto uma graça extraordinária.

Muito olhar suplicante vi eu nos últimos momentos, humilhando-se diante de um rostozinho orgulhoso e ofendido, clamar com toda a eloqüência do silêncio: grazia! grazia! É preciso advertir que o olhar estava no Teatro Provisório, e por isso não se deve admirar que falasse italiano; além de que, o olhar é poliglota e sabe todas as línguas melhor do que qualquer diplomata.

Finalmente, para completar a graça deste divertimento, as graças com os seus alvos vestidinhos brancos se reclinavam sobre a balaustrada dos camarotes, cheias de curiosidade, para verem o desfecho da comédia. E a este respeito lembra-me uma reflexão que fiz a tempos, e da qual não vos quero privar, porque é curiosa.

Os gregos, como gente prudente e cautelosa, inventaram unicamente três graças, e consta que viveram sempre muito bem  com elas. Nós, de mal avisados que somos, queremos ter em todos os divertimentos, nos bailes, nos teatros e nos passeios uma porção delas, sem refletir que, logo que se ajuntarem muitas, podem formar necessariamente um grupo de dez graças.

Maldito calembur! Não vão já pensar que pretendo que as graças tenham sido a causa de tudo isto, nem também que todo aquele desapontamento fosse produzido por alguma graça da Charton. A prima-dona estava realmente doente, e, aqui para nós, suspeito muito os meus colegas folhetinistas de serem a causa daquela súbita indisposição com o formidável terceto de elogios que entoaram domingo passado. Lembrem-se que os elogios e os aplausos comovem extraordinariamente um artista. Ainda ontem vi como ficaram fora de si as tímidas coristas, unicamente porque lhe deram duas ou três palmas!

Em toda esta noite, porém, o que houve de mais interessante foi o fato que vou contar-vos. Um velho dilettante do meu conhecimento, ainda do tempo do magister dixit, e para quem a palavra da autoridade é um evangelho, teve a infeliz lembrança de justamente nesta noite encomendar um magnífico buquê para oferecer à Charton no fim da representação. Apenas se declarou o relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o que foi pior, com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, que lá deixou ficar com os ares de novo um chapéu comprado pela Páscoa.

No outro dia, o homem, que tinha seus hábitos antigos de comércio, viu-se em sérias dificuldades. Não podia deixar de acreditar, à vista da declaração da polícia, que o espetáculo da noite antecedente fora de graça; mas, ao mesmo tempo, tinha de dar saída no livro de despesas ao dinheiro que gastara com o aluguel do carro, com a gorjeta do boleeiro, com o par de luvas, com o buquê da Charton, o custo da bengala e o estrago do chapéu. Coçou a cabeça, tomou a sua pitada, e afinal escreveu o seguinte assento: Importe de um espetáculo gratuito no Teatro Provisório – 26$000!

O meu dilettanti ainda não sabia que a palavra grátis é um anacronismo no século XIX, e, quando se fala em qualquer coisa de graça, é apenas uma graça, que muitas vezes torna-se bem pesada, como lhe sucedeu. Provavelmente, depois deste dia, o velho lhe aditou ao seu testamento um codicilo proibindo terminantemente ao seu herdeiro os espetáculos gratuitos.

Assim a crônica futura desta heróica cidade consignará nas suas páginas que, pelo começo da primavera do ano de 1854, tivemos um divertimento de graça. Os nossos bisnetos, não falo dos militares de boca aberta , hão de pasmar quando lerem um acontecimento tão extraordinário, e, se nesse tempo ainda estiver em uso o latim, clamarão com toda a força dos pulmões: Miserabile dictu!

Depois de uma semelhante noite, era natural que os dias da semana corressem, como correram, monótonos e insípidos, e que o baile do Cassino estivesse tão frio e pouco animado. Entretanto aproveitei muito em ir, pois consegui perder as minhas antipatias pela valsa, a dança da moda. É verdade que não era uma mulher que valsava, mas um anjo. Um pezinho de Cendrillon, um corpinho de fada, uma boquinha de rosa, é sempre coisa de ver-se, ainda mesmo em corrupios.

Fiz a amende honorable de minhas opiniões antigas, e, vendo nos rápidos volteios da dança voluptuosa passar-me por momentos diante dos olhos aquele rostinho iluminado por um sorriso tão ingênuo, não pude deixar de fazer uma comparação meio sentimental e meio cosmogônica, que talvez classifiqueis de original, mas que em todo o caso é verdadeira.

Quando o mar, que Shakespeare disse  ser a imagem da inconstância, revolveu o globo num cataclisma e cobriu a terra com as águas do dilúvio, foi uma pomba o emblema da inocência, que anunciou aos homens a bonança, trazendo no bico um raminho de oliveira. Se algum dia uma paixão de loureira vos revolver a alma, e deixar-vos o desgosto e a desilusão, há de ser um anjinho inocente como aquele quem vos anunciará a paz do coração, trazendo nos lábios o sorriso do amor o mais casto e mais puro.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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Olivaldo Junior (Maria, as Moedas e um Menino em Dúvida)

Escrevo, para o Dia de Nossa Senhora Aparecida e das Crianças, breve história que me ocorreu à noite.

A música Romaria foi a primeira que aprendi a cantar, quando eu tinha um ano de idade, mais ou menos.

Não tenho sentido vontade de aprender novas músicas, pois que as velhas ainda resistem ao tempo. Meu tempo é o de fechar as cortinas e arrumar os papéis (coisa que não faço faz tempo), arrumando, também, minha alma. Não sei. Os papéis, amarelos, deixaram rastros na alma, bagunçada demais, desde criança, Maria. 

MARIA, AS MOEDAS E UM MENINO EM DÚVIDA

Era igreja pequena, mas cheia de afrescos, sinais do talento de gente do povo, tão cheia de fé que nem sabe que a tem. A igreja, embora singela, trazia nela um bom nome, o de Nossa Senhora, Aparecida, em louvor. Louvor a quem? A Nosso Senhor. 

A cidade onde ficava essa igreja também era mini, mas super feliz com a ideia de que Nossa Rainha guardava os fiéis. Um deles era um pobre menino que não tinha quase nada a perder. Os pobres hão de ter mais de uma chance de aprender sobre o Céu e suas coisas divinas, porque têm muito pouco a perder. Perdido, perambulava e só.

Um dia, onze de outubro de um ano qualquer, quando a fome apertava cada fibra do estômago daquela criança, teve a súbita imagem da caixinha dourada que abrigava as moedas de Nossa Senhora, bem aos pés de Maria. Não pensou duas vezes. Roubar!

A igreja estava quase vazia. Os olhos de cada imagem, sucintos, caíam sobre as costas do pobre enquanto ele catava as mais de vinte moedas do claustro de ofertas. 

Na rua, com as moedas cantando nos bolsos, calava no peito uma dúvida atroz: onde iria comer? Gastaria, ou guardaria o dinheiro para quando tivesse mais fome que a fome sentida nos últimos dias? Não sabia. Os passos, mais rápidos que sempre os soubera, corriam nas beiras do asfalto, querendo chegar. Não tinha parada. Chorou.

Assim, ao cruzar outra esquina, deu de cara com a triste mulher, de longo vestido, com criança nos braços, parecendo chorar, pois não dava para ver os seus olhos pedintes com a cabeça materna junto ao pobre bebê. A mulher não pediu. Ele não pararia! Mas, nos bolsos, cantando sem letra, as moedas pediam como se rogassem a ele que as deixasse com ela, vã mendiga no olho da rua. Cego de fome, deu de ombros, mas não “fugiu”. Parou, dando as moedas à pobre, que, num gesto sem força, fez menção de sorrir. A vida é sem jeito!, pensou ele, faminto, chorando. Chorava, mas era bondoso.

Caindo o sol, à tardinha, numa praça sem nome, o menino deitou-se. Não sabia rezar, mas olhou para o céu. Cada estrela era um sopro de luz sobre um triste e apagado menino. A fome doía. O corpo penava. O menino morreu. A mesa, no Céu, à espera dos justos e de quem amou, não seria, àquela noite de festa, mais um sonho sem nexo. A mendiga (meu Deus!) tinha dado ao menino franca entrada pra o Céu, aparecendo ali.

Fonte:
O Autor

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Olivaldo Junior (Um Menino, a Solidão e um Par de Asas com Frágeis Penas de Seda)

Este texto me foi enviado ontem, 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, mas me chegou tarde às mãos (mais precisamente, aos olhos). Quando Olivaldo se refere a Hoje, será na verdade ontem, e ao falar Amanhã, é hoje.

Hoje é Dia de São Francisco de Assis e, também, dos Animais. Animais são mais que figuras em volta de nós. Nossa vida é reanimada por eles. Amanhã é Dia das Aves. Aves são a chave da inspiração à liberdade. Não somos livres, mas levamos jornais, diria Drummond… Somos o Sonho, que Rodrigo Maranhão tão bem cantou. Cantar é minha forma de amar. E, se também toco, é porque não há quem o faça por mim. Minha solidão não tem se sentido acompanhada, como diria Chico Buarque à bela Iolanda. Ando, que as asas, suas penas, têm frágeis penas de seda e logo cedem.

UM MENINO, A SOLIDÃO E UM PAR DE ASAS COM FRÁGEIS PENAS DE SEDA

Era uma vez um menino que nasceu numa pequena cidade do interior. Altamente introspectivo, admirava os carros e pessoas que passavam na rua, sempre impossível para ele. O maior medo era o maior desejo, pois o Medo é o Desejo arruinado, sem jeito. Até que era bom, como, em potencial, são bons todos os homens. 

O menino tinha pai, mãe e um irmão mais novo, o qual queria muito que houvesse, pois sempre se sentia só. Coitado… O menino dessa história não sabia que a Solidão, sempre atenta, à espreita, em todos nós se ajeita com o passar do Tempo. O Tempo é grande amigo dela e sempre lha reserva um lugar legal no futuro. A Solidão, em alguns, nem precisa esperar tanto, pois, desde cedo, passa a ter todos. 

Passou-se o tempo, e os carros da rua ficaram mais rápidos, tanto quanto os passos, lépidos, de todos que conhecia. Meio tonto, tão tolo quanto um par de asas com frágeis penas que se tem como seus, o menino foi ficando triste. A Tristeza é uma prima do Tempo, que, em certos casos, também ama a Alegria. Não, o menino não era amigo de festas, de coisas da moda, mas de coisas do tempo em que as rodas rondavam as noites de inverno, ou verão, das casas de então. Fora do tempo, e cansado de tantas por que havia passado na vida, o menino, quase um rapaz, trancou-se no quarto e, de lá, não saiu por longo tempo. O Tempo vinha bater palmas à porta do quarto, mas nada. O menino, irredutível, reduziu-se a isto: um triste jovem com um par de asas com frágeis penas, que jamais serviam de chaves para outros ares de vida. A Morte, até mesmo a Morte, por diversas vezes, cantou seu cântico de mortandade para o triste amigo de nem um amigo. Amigos… eis o que sempre esperou aquele pobre coração vadio, vazio como um ponteiro de relógio marcando o tempo para o fim das roseiras.

O par de asas com frágeis penas de seda sempre esteve no quarto, bem ao lado do pobre. Mas os olhos nem sempre dão conta de enxergar o que existe. Existir era uma luta constante com flores e estrelas em volta da cama, no canto das portas, em cima das telhas, vermelhas, de casa onde mora um rapaz que esteve, desde cedo, atrasado.

Foi que um dia, de tanto chorar, teve secas suas lágrimas, vendo livre a sua estrada, porque há léguas que somente os pés que temos podem, ainda que não se tenha carro, ter no velocímetro em nós. As horas são mais que ponteiros.

Acordando para a vida, vendeu o Medo sem nada ter em troca e partiu. Esse pobre rapaz, tão pobre quanto quem tem o chão sem nada como seu, esse homem partiu para a vida, videira nem sempre em uvas, mas sempre em vívidas folhas. A folha em que o menino se via não era nem verde, era branca. O branco das folhas carregava o que ele mais tinha e mantinha no cerne de árvore nascida gente, gente com ares de pássaro, pássaro passando um tempo entre os presos. Presa fácil para sonhos, o homem conhecera o amor que não se pode, nem se deve tocar, mas, nem por isso, é menor. O Amor nunca é mínimo, sempre é o máximo. No entanto, cansado de nunca ser correspondido, o homem foi ficando escuro como um domingo sem sol, até que a Solidão pousasse outra vez em suas asas, tão frágeis, no quarto. O quarto de um homem é seu parto para o mundo lá fora. Fora isso, tinha sempre um por que não parar. Vai que, um dia, faz sol, e ele, lá fora, possa, enfim, se iluminar… Tinha um amigo, sim, alguém que lhe dera um raio de luz entre as horas de bruma. Mas também triste era essa estrita amizade com quem sequer, quase nunca, estava. O Tempo, suspeitoso, era sempre vão.

Queria, enfim, que o par de asas funcionasse e, Deus do Céu, ali ao lado houvesse alguém voando além. Mas nada, qual nada, nunca nada! O som da Solidão, impregnando os sons da vida em torno dele, impulsionava o coração a ser mais Ícaro e a ganhar o ar. O ar pode ser muito para um par de asas com frágeis penas de seda confundindo os ventos, se arrastando à toa para qualquer canto. Cantar era o bastante? Não sabia. Mas cantava e tocava um pouco, mesmo só, para que alguém, mesmo não lá, pudesse ouvi-lo, pudesse olhá-lo e, quem sabe, levantá-lo e devolvê-lo para ele ao fim.

Fonte:
O Autor

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Franz Kafka (Comunicado a uma Academia)

FRANZ KAFKA
(1883-1924 – Checoslováquia)

Pode parecer surpreendente, mas Franz Kafka costumava ler em voz alta e às gargalhadas alguns de seus contos para um grupo de amigos. 

Excentricidade de um gênio ou um humor tão pessoal que passa quase desapercebido do leitor comum? É possível achar graça lendo A Metamorfose, por exemplo? Kafkianamente, parece que sim. O humor de Franz K. não é cômico nem muito menos hilariante: é um fino humor racional, quase filosófico. E às vezes cruel, como esta sátira ao antropomorfismo antiecológico do homem moderno, onde a ironia subjacente ao texto é tão fundamental que sem ela o conto não poderia ser compreendido em sua profundidade.
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Eminentíssimos senhores,

Destes-me a honra de me solicitar que apresentasse eu à Academia um relatório sobre o meu passado de símio.

Não poderei infelizmente atender a tal convite, nos precisos termos em que me foi formulado. Separam-me da minha vida de macaco cerca de cinco anos, período de tempo talvez curto no calendário, mas que se torna infinitamente longo quando passado, como aconteceu comigo, pulando daqui para ali pelo mundo, acompanhado de excelentes homens, de conselhos, aplausos, músicas de orquestra, e no fundo sozinho, já que a minha companhia, para nada perder do espetáculo, se mantinha afastada dos palcos. 

Tivesse eu me obstinado a cismar em relação às minhas origens e recordações da juventude, e as proezas por mim praticadas teriam sido impossíveis. A primeira regra que me impus era exatamente a de renunciar a qualquer tipo de obstinação; ali estava eu, macaco livre, impondo a mim mesmo uma submissão. Em contrapartida a isto, minhas recordações progressivamente foram-se dissipando. No começo poderia ainda ter regressado, se assim tivessem desejado os homens, pela porta que o céu forma sobre a Terra: mas ela ia se tornando cada vez mais baixa e mais estreita à medida em que se processava a minha evolução, ativamente estimulada; melhor me sentia, mais integrado ao mundo dos homens; a tempestade que soprava do meu passado aquietou-se. Hoje não passa de uma corrente de ar que me sopra ligeiramente aos calcanhares e ao buraco do horizonte por onde ela entra e por onde passei um dia e que tornou-se tão pequeno que para o atravessar teria de ficar sem pele, admitindo que tinha eu ainda força e vontade suficientes para o tentar. Falando francamente – nestes assuntos gosto de usar imagens -, falando francamente, a vossa vida como macacos, meus senhores, se acaso vivestes já uma existência desta espécie, não pode estar mais longe de vós do que a minha está de mim. Mas acompanha de perto todos aqueles que vivem sobre a Terra, desde o pequeno sagüi até ao grande Aquiles. 

No entanto, num sentido bastante restrito, posso talvez corresponder ao vosso convite, e é até com prazer que o estou fazendo. A primeira coisa que me ensinaram foi o aperto de mão. O aperto de mão é um gesto de franqueza: assim, naquele dia em que atingi o ponto mais alto da minha carreira, que a franqueza das minhas palavras acompanhe sempre este primeiro aperto de mão. Uma tal franqueza não trará nada de novo a vossa Academia, e as minhas palavras muito aquém ficarão do que me foi pedido e do que eu não saberia dizer, independente da minha melhor vontade; irão mostrar, por outro lado, o caminho pelo qual um antigo macaco ingressou no mundo dos homens e aí se fixou. Mas nem sequer conseguiria eu dizer o pouco que se segue se não estivesse inteiramente seguro de mim mesmo e se não tivesse consolidado a minha posição em todas as cenas de cabaré do universo civilizado, de maneira a não conseguir ser abalada.

Sou originário da Costa do Ouro. Como fui capturado? Neste aspecto, fico reduzido ao testemunho dos outros. Um grupo de caçadores da empresa Hagenbeck – com cujo chefe depois esvaziei muitas garrafas – estava de emboscada numa mata junto ao rio onde eu costumava beber com o meu bando. Dispararam: fui o único atingido. Recebi duas balas. Uma no rosto, ferimento sem gravidade; mesmo assim me deixou uma cicatriz vermelha, sem um só pêlo, o que me deu o apelido de Peter, o Vermelho – epíteto repugnante, perfeitamente injusto e inventado por um verdadeiro macaco -, como se fosse somente essa marca avermelhada que me distinguisse do outro Peter, o macaco sábio recentemente falecido e que gozava naquelas regiões de uma merecida reputação. Isto apenas cá entre parênteses.

A segunda bala me atingiu na parte inferior da anca. Ferimento grave que é a causa de eu coxear um pouco até hoje. Li recentemente num artigo de uma destas dez mil aves de rapina que se lançaram nos meus encalços pelos jornais, que a minha natureza de macaco não estava ainda completamente domada e que a melhor prova disso era que, quando recebo visitas, costumo tirar as calças para mostrar o buraco da bala. Só desejava que saltasse das mãos, um a um, os dedos do sujeito que escreveu isto. 

Quanto a mim, tenho o direito de tirar as calças diante de quem bem entender; nada mais irão ver do que um pêlo cuidado e a cicatriz, vestígio de uma ação criminosa. 

Tudo isso se pode mostrar em plena luz do dia, nada há para esconder. Quando se trata da verdade, os mais altivos deixam o protocolo de lado. Se o escriba em questão tirasse as calças sempre que recebesse uma visita o quadro é claro seria totalmente diferente, e também admito, lógico, que a razão lhe impeça tal gesto. Mas a este respeito, ele e sua falta de tato que me deixem em paz.

Após os referidos tiros, acordei – e aqui é que começam minhas verdadeiras lembranças – numa jaula no porão da Hagenbeck. Não eua uma jaula propriamente, gradeada por todos os lados. Contentaram-se em adaptar grades sobre três dos lados de uma grande caixa. A própria caixa, portanto, formava o quarto lado. Era baixa demais para se ficar em pé e demasiada estreita para ficar sentado. Ali permaneci, acocorado os joelhos voltados para dentro e sempre tremendo, a cara virada para o lado da caixa, as barras das grades me ferindo a pele das costas, pois no princípio não queria ver ninguém e desejava simplesmente ficar no escuro. Este tipo de enjaulamento em geral é considerado como vantajoso nos primeiros tempos de captura de animais selvagens. Hoje, depois de toda a experiência que vivi, não posso negar a veracidade disto, sob o ponto de vista humano.

Mas naquela hora não me preocupava com isso. Pela primeira vez na minha vida, eu me encontrava num beco sem saída, por assim dizer. Ou se saída houvesse, eu é que não a via; diante de mim surgia apenas a parede da caixa com suas grandes tábuas solidamente unidas. Para falar a verdade, havia uma fenda de alto a baixo; quando a descobri, saudei-a com um grito de alegria, mas a fenda não servia sequer para passar o rabo – e eu não consegui alargá-la apesar de toda a minha força de macaco.

Conforme consegui avaliar pelo que me disseram depois, eu devia então não ser nem um pouco barulhento, donde concluíram que logo, logo, eu ia passar desta para melhor ou, se ultrapassasse o momento critico, me tornaria perfeitamente domesticável. Sobrevivi. As primeiras ocupações da minha nova existência eram soluçar contidamente, catar penosamente as pulgas, lamber com lassidão um pedaço de coco, bater com a cabeça na parte de madeira da jaula ou botar a língua para fora quando alguém se aproximava de mim. Mas no meio de tudo isso, um só sentimento: não havia saída. É claro que não consigo agora reproduzir em palavras humanas o que sentia como macaco naquela época, e o que eu disser sai forçosamente deformado, mas embora não consiga jamais reencontrar a verdade dos símios de outrora, nem por isso a minha narração deixa de assinalar a verdadeira direção por onde ela deve ser procurada. Disto não tenho a menor dúvida.

Tantas andanças tivera eu até aquele momento! Eis-me agora sem nenhuma. Fora apanhado. Se me tivessem crucificado, a minha liberdade domiciliar não teria sido mais restrita. E por quê? Por mais que me arranhasse até sangrar nos artelhos, não conseguia saber a razão. Por mais que fizesse força com as costas contra as grades, até ficar quase cortado em dois, nada conseguia descobrir. Não tinha saída e precisava de uma, não era possível viver sem uma saída. Encostado dentro daquele cubículo da jaula ia acabar estourando. Mas os macacos de Hagenbeck são destinados justamente a viver atrás das grades… Pois bem, eu deixaria então de ser macaco! Belo pensamento, raciocínio luminoso que se formou não sei como bem no fundo da minha barriga, pois os macacos pensam com a barriga.

Não sei se vocês compreendem bem o que entendo por “uma saída”. Uso a palavra no sentido comum e em toda a sua amplitude. Propositadamente evito falar em “liberdade”. Não é nesse grande sentimento de liberdade em todos os sentidos que eu penso. Como macaco, eu bem o conhecia e vi homens que por esse sentimento ansiavam. Todavia, no que me diz respeito, nunca exigi nem exigirei a liberdade. Com ela, diga-se de passagem, é que muitas vezes os homens trapaceiam entre si. Como a liberdade se encontra entre os mais sublimes ideais, e o logro que se lhe corresponde passa também por sublime. Quantas vezes não vi, em espetáculos de variedades, artes da minha apresentação, artistas trabalhando no trapézio voador! Projetam-se, balançam, saltam, voam para os braços um do outro e um deles segura o companheiro pelos cabelos. 

“Aquilo ali também é liberdade humana”, pensava eu, “é um movimento de soberania”. Oh, santa ilusão! O riso da categoria simiesca ante este quadro seria o suficiente para abalar o mais sólido dos prédios.

Não, não era pela liberdade que eu ansiava. Uma simples saída, à direita, à esquerda, fosse lá onde fosse. Não tinha outra exigência, mesmo que a própria saída fosse um logro. Pequena era a minha exigência, não poderia ser maior o meu logro. Avançar, avançar! Principalmente não ficar no mesmo lugar, de braços erguidos, colado às grades de uma jaula.

Vejo hoje nitidamente que, sem a maior calma interior, não teria conseguido fugir. E de fato, tudo aquilo que me tornei, devo talvez à calma que de mim se apossou ainda a bordo passados os primeiros dias. E esta tranqüilidade, sem dúvidas, fiquei devendo à tripulação do barco.

Apesar de tudo, era um pessoal admirável. Hoje ainda gosto de me lembrar o barulho pesado dos seus passos, ressoando na minha semi-sonolência. Tinham eles o hábito de tudo fazerem com grande lentidão. Quando precisavam esfregar os olhos, levantavam a mão como quem levanta um saco de areia. Suas brincadeiras eram pesadas mas cordiais. O seu riso acabava se misturando com uma tosse que poderia parecer perigosa mas que era sem nenhuma importância. Tinham sempre alguma coisa na boca pronta para ser escarrada e sem cuidado algum para onde a cusparada poderia cair. Passavam o tempo todo se queixando que pegavam pulgas de mim, mas nunca de fato me quiseram mal. Sabiam que as pulgas abundavam nos meus pêlos e que elas tinham necessidade de saltar: esta explicação lhes era suficiente. Quando não estavam de serviço, acontecia às vezes de sentarem-se em semicírculo à minha volta, sem falar, apenas se dirigindo uns aos outros através de surdos grunhidos. Fumavam cachimbo, deitados por cima das caixas; ao menor movimento da minha parte, eles davam uma palmada nos joelhos; de vez em quando um deles pegava um pedaço de pau e me coçava no lugar certo onde eu gostava. Se me convidassem hoje para fazer uma viagem naquele barco, com certeza que eu declinaria o convite, mas com certeza também que nem todas as lembranças daquela viagem seriam ruins.

A tranqüilidade que consegui em meio àquele pessoal me impediu de tentar fugir. Me parece, vendo tudo pelos olhos de hoje, que eu tinha pelo menos pressentido que necessitava encontrar uma saída se quisesse viver, mas que essa saída não podia estar na fuga. Não sei se a fuga seria possível, mas acredito que sim; para um macaco, a fuga deve ser sempre possível. Com os meus dentes atuais preciso de prudência até mesmo para quebrar uma simples noz, mas naquele tempo teria conseguido despedaçar a dentadas a fechadura da porta. Não o fiz. O que teria ganho cm isso? Assim que pusesse a cabeça de fora, eles teriam logo me recapturado e me encerrado numa jaula ainda pior; a menos que fugisse sem ser visto para o meio dos outros animais, como as boas serpentes ali em frente que me teriam dado a morte com um simples abraço. 

Talvez eu conseguisse escapar até o convés e dele saltar fora, caso em que eu teria boiado por alguns momentos na superfície do oceano, acabando logo por me afogar. 

Atos de desespero. Eu não raciocinava tão humanamente assim, mas a influência do entusiasmo me fazia crer que eu tivesse raciocinado. No entanto, se não raciocinava, pelo menos tranqüilamente ia observando tudo. Via as idas e vindas daqueles homens, sempre com as mesmas caras, sempre com os mesmos movimentos, muitas vezes me pareciam ser apenas um. Este homem, ou estes homens, moviam-se pois livremente. Mas diante de mim começava a surgir uma grande possibilidade. 

Ninguém me prometera abrir as grades, caso eu me tornasse como eles; nada se promete em troca de realizações que parecem impossíveis; mas uma vez realizadas estas realizações, as promessas aparecem imediatamente onde antes as tínhamos procurado em vão. Na verdade, nada havia naquelas pessoas que me seduzisse. Fosse eu partidário da famosa liberdade de que falávamos antes, teria com certeza preferido o oceano à saída que se entrevia no olhar turvo daqueles homens. Observara-os detidamente muito antes de pensar nestas coisas, e foram mesmo essas observações repetidas que me impeliram na direção que acabei optando.

Era tão fácil imitar os humanos! Logo nos primeiros dias eu já tinha aprendido a escarrar. Escarrávamos mutuamente um na cara do outro; a única diferença era que em seguida eu me limpava lambendo-me e eles não. Não demorei a fumar cachimbo como um veterano; se acontecia de eu pôr o polegar na parte acesa, eles deliravam como espectadores. Logo passei a distinguir um cachimbo cheio de fumo de outro vazio.

O que me causou maior repugnância foi a garrafa de aguardente. O cheiro me martirizava, eu me sentia terrivelmente agredido; levei semanas para conseguir me dominar. 

Era curioso que as pessoas levavam muito mais a sério estas lutas morais do que todas as outras distrações que eu lhes proporcionava. Não consigo distinguir estes homens, nem mesmo nas minhas lembranças, mas havia um que vinha sempre, só ou com seus camaradas, de dia ou de noite, nas horas mais desencontradas, alojava-se com a garrafa na minha frente e me dava uma aula. Ele não conseguia me compreender, mas parecia querer resolver o enigma do meu ser. Desenrolhava lentamente a garrafa e me olhava em seguida para ver se eu tinha compreendido. 

Confesso que eu olhava para ele sempre com uma atenção apaixonada e ansiosa; nenhum professor de homens terá jamais encontrado aluno como eu em todo o mundo; desarrolhada a garrafa, erguia-a na direção da boca; eu o seguia com o olhar até o gargalo; satisfeito comigo, hei-lo levando a garrafa aos lábios, com um aceno de cumplicidade; então eu, encantado por pouco a pouco ir compreendendo tudo, coçava-me e emitia pequenos guinchos ao acaso e pelo corpo; e ele, contente, emborcava o gargalo e bebia um gole; eu, desesperadamente impaciente para fazer que nem ele, jogava-me pela imundície da minha jaula, o que lhe trazia novamente uma grande satisfação, e então, afastando a garrafa com um gesto largo e trazendo-a para junto de si novamente com um movimento rápido e cheio de vigor, esvaziava-a de um só trago, inclinando-se para trás de um modo exageradamente didático. Esgotado pelos excessos do meu desejo, não conseguia mais segui-lo com os olhos e ficava ali, vacilante, encostado às grades, enquanto ele acabava minha instrução teórica e esfregava a barriga com uma careta de prazer.

Só então começavam os exercícios práticos. Não estava eu já cansado de tanta teoria? Com certeza, cansado e bem cansado. Era o meu destino. Mas agarro a garrafa que ele me estende da melhor maneira que posso; tiro-lhe a rolha, tremendo, mas o resultado obtido faz com que eu ganhe novas forças; ergo a garrafa e praticamente não me distingo mais do meu modelo; levo-a à boca e… afasto-a horrorizado, com repugnância, embora ela esteja vazia, exalando apenas seu odor característico; jogo-a no chão, cheio de asco. Para grande consternação do meu professor; para grande consternação minha. Nem aos olhos dele nem aos meus consigo reabilitar-me pele fato de, após ter jogado a garrafa fora, acariciar a barriga com uma careta de prazer.

Quantas vezes a aula não terminava assim! E devo dizer, em honra do meu professor, que ele não me levava a mal; às vezes encostava o cachimbo aceso nos meus pêlos em algum ponto difícil de eu alcançar, até ficar vermelho, mas ele imediatamente apagava com sua mão enorme e bondosa; até que ele gostava de mim, percebendo a sua maneira que combatíamos ambos do mesmo lado contra a natureza simiesca e que era a mim que cabia a parte mais dura de roer.

Mas a vitória, para ele quanto para mim, aconteceu quando uma noite, diante de um círculo de espectadores – talvez fosse dia de festa, um gramofone tocava, um oficial passeava por entre eles -, quando uma noite, dizia eu, em que não era observado, peguei inadvertidamente numa garrafa de aguardente deixada ao lado da minha jaula, tirei-lhe a rolha de acordo com todo o meu aprendizado e, diante de uma sociedade cuja atenção foi desperta pelo meu ato, levei-a aos lábios e sem hesitação, sem uma única careta. Assim, como um verdadeiro profissional, rolando os olhos, a goela tremendo, esvaziei-a de fato, literalmente, e atirei-a fora, ainda não em desespero mas com requintada arte; é verdade que me esqueci da carícia na barriga, mas em contrapartida, porque se impunha, porque era uma necessidade, porque já tinha os sentidos inebriados, em suma, por uma razão ou por outra, soltei um “ahhh! bem humano, entrei de imediato com esta exclamação na comunidade dos homens e o eco que me foi devolvido – “Ouçam só, ele está falando!” – espalhou-se como um beijo sobre meu corpo coberto de suor.

Repito: não me seduzia a idéia de imitar os humanos; se imitei foi porque procurava por uma saída e não por outra razão qualquer. Esta  vitória, aliás, não representou para mim qualquer tipo de progresso; imediatamente a voz me faltou; não a recuperei senão depois de meses; a repulsa pela garrafa de aguardente voltou com força redobrada. Mas de uma vez para sempre, tinha percebido a direção que deveria seguir.

Quando fui entregue em Hamburgo ao meu primeiro adestrador, não demorei para reconhecer as duas possibilidades que se abriam diante de mim: jardim zoológico ou espetáculo de variedades. Não hesitei Disse a mim mesmo: trata, com todas as tuas forças, de fazer com que te levem para o mundo dos espetáculos; é aí que está a saída, o jardim zoológico é apenas uma nova jaula. Estarás perdido neste último caso.

E aprendi, senhores! Ah, como se aprende quando é mais do que necessário encontrar uma saída! Aprende-se sem consideração por mais nada! A gente fica se vigiando de chicote em punho; à menor resistência, lá vai chicotada. A minha natureza simiesca distanciava-se de mim a olhos vistos, entrava na primeira cabeça que me aparecesse, de tal modo que o meu professor tornou-se ele próprio simiesco e se viu obrigado a renunciar às lições ingressando num manicômio. Felizmente não ficou muito tempo por lá.

Mas eu consegui muitos professores e, às vezes, vários ao mesmo tempo. Quando as minhas capacidades se afirmavam um pouco, quando o público começou a acompanhar os meus progressos e o futuro começou a se desanuviar, eu próprio escolhi meus mestres e coloquei-os de enfiada em cinco salas diferentes e tomei minhas aulas com todos ao mesmo tempo, correndo sem descanso de uma sala para a outra.

Ah, quanto progresso! Esta penetração no conhecimento cujos raios vêm de todos os lados iluminar um cérebro que desperta! Não nego: era nisso que residia a minha felicidade. Mas confesso também que, de maneira nenhuma eu me superestimava mesmo naquela época, e muito menos agora! Através de um esforço do qual não surgiu outro na face da terra, adquiri a cultura média de um europeu. Não seria grande coisa em si mesmo, mas já era um progresso no sentido em que me ajudou a sair da jaula e me ofereceu essa saída, uma saída humana. Todos vós conheceis com certeza a expressão “Pôr-se à vontade”; foi o que fiz, pus-me à vontade, não tinha outro caminho, já que decidira não optar pela liberdade.

Quando olho a minha evolução e os objetivos que a guiaram até aqui, não me lamento nem fico contente. Mãos nos bolsos, garrafa na mesa, mantenho-me meio sentado, meio deitado na cadeira de balanço e olho pela janela. Quando chega uma visita, recebo-a conforme a etiqueta. O meu empresário fica na sala de entrada: quando toco a campainha, ele aparece e escuta o que tenho para dizer. À noite, quase sempre tem espetáculo, e, sem dúvida, os meus sucessos nunca serão ultrapassados. Quando volto para casa, tarde da noite, vindo de banquetes, de sociedades eruditas ou de alguma conversa íntima agradável, está à minha espera uma jovem macaca com a qual me entrego aos prazeres da nossa raça. De dia, não quero nem vê-l:a; efetivamente, ela traz nos olhos a expressão perdida do animal evoluído; só eu consigo ver isso e não consigo suportar tal visão.

No conjunto, cheguei ao que eu queria conseguir. Não posso dizer que não tenha valido a pena. Aliás, não preciso de julgamento dos humanos, procuro a divulgar conhecimentos, contento-me em relatá-los; mesmo convosco, eminentíssimos acadêmicos, contentei-me em relatar.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa (org.). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

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Lima Barreto (Queixa de Defunto)

Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, na Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tomar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la:

“Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que sé chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não.

“Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem coisa alguma de reivindicações e revoltas, mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.

“Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte no sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensamento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.

“Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos ‘bíblias’, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.

“Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda a eloqüência em galego ou vasconço.

“Segui-as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. É bom meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.

“Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.

“Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a rua José Bonifácio, em Todos os Santos.

“Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e largura, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola, sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.

“Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche, machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranhaduras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:

“- Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem comportado – como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?

“Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.

“Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc.”

Posso garantir a fidelidade da cópia e aguardar com paciência as providências da municipalidade.

Careta, 20-3-1920

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Antonio Brás Constante (Zero a Esquerda ou Fora de Série?)

“Ninguém cometeu maior erro, do que aquele que errou ao fazer tudo errado”.
Antonio Brás Constante

Números. Números. Números. Não passamos de um conjunto numérico, perdido em uma equação qualquer. Uma equação ainda não totalmente resolvida, conhecida como vida. O ser humano na sua essência é feito de números. Somos compostos orgânicos com bilhões de células disto, sei lá mais quantos bilhões de outras células formando aquilo, etc.

Os números determinam padrões na sociedade. Somos classificados por um número variável chamado: “idade”, e nos dizem que devemos agir conforme esta idade. Ou seja, em alguns casos somos muito velhos, em outros nos acham muito novos e ainda em outros temos a idade certa, mesmo que seja para algo que naquele momento não nos interessa.

Apesar de não nos darmos conta, nós somos geralmente atraídos pelos números que compõe as outras pessoas. Por exemplo, na busca por relacionamentos amorosos, muitos procuram saber sobre a altura, peso, quadril, busto, idade e até conta bancária de seus pretendentes.

Ainda na parte dos relacionamentos, podemos imaginar a seguinte situação: você sai para passear com sua amada. Resolve levá-la a um lugar especial, onde possam namorar, trocando beijos e carícias. Então você, aproveitando aquele momento lindo, totalmente enlouquecido de amor, dá uma, duas, três, até quatro idéias de como o futuro seria maravilhoso se vocês ficassem juntos para sempre. É a matemática do amor, agindo nos pensamentos do enamorados.

Também no trabalho somos um mero número, conhecidos no sistema como o funcionário de matricula tal, que tem o RG tal e o CPF etecétera e tal. Em qualquer novo plano diretor, onde haja necessidade de cortes para maximizar custos, o fator humano é logo substituído por algum índice matemático, e de um instante para outro passamos de nove para seis, ou seja, nossa vida vira de cabeça para baixo.

A própria empresa é um emaranhado de números, que aparentemente parece ser feita de tijolos e movida através de carne e sangue, mas que no fim de cada semestre passa a ser um relatório contábil repleto de números e indicações positivas ou negativas, traçando geralmente perfis pouco amistosos sobre ações futuras.

Um assunto como este pode até causar insônia, algo que tentamos amenizar contando carneirinhos lanosos, que para desespero de qualquer fazendeiro, conseguem pular cercas com extrema facilidade. Em outros casos apenas contamos com algum tipo de calmante. Então percebemos que nossa saúde também é vista através de números, que medem pressão, batimentos cardíacos, taxa de glicose, entre outros tantos pontos que flutuam em nossos exames. Se notarmos, a própria política começa com a escolha de números, onde muitos se elegem apenas para fazer número e, principalmente, desviar números.

Sua classe social, sua localização em sua rua ou mesmo no universo (latitude e longitude), ou o máximo de caracteres que devo digitar neste texto, tudo é formado por números. Podemos dizer que Deus é um número. Talvez o número mais básico que exista e por isso tão complexo. Algo similar ao computador, que é capaz de efetuar maravilhas, feitas a partir da combinação de dois únicos dígitos (0s e 1s) que formam o código binário.

Enfim, na matemática da vida, não devemos ser apenas mais um número. Devemos somar esforços, dividir os problemas na busca de soluções, subtrair pensamentos negativos, e elevar a enésima potência às energias e ações positivas, passando a ser multiplicadores de algo melhor, deixando de ser um zero a esquerda para nos tornamos pessoas fora de série.

Fonte:

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Artur Azevedo (O Telefone)

Isto passou-se nos últimos tempos do Segundo Império:

O Chagas, moço de vinte e cinco anos, amanuense numa secretaria de estado, era tímido, o que, aliás, não o impediu de corresponder prontamente aos olhares libidinosos que certa noite – por sinal que era domingo – lhe atirou de um camarote, no Recreio Dramático, uma bonita mulher, um pouco mais velha que ele, acompanhada pelo marido, muito mais velho que ambos.

Este parecia interessado pelo espetáculo: tinha os olhos pregados no palco, sem desconfiar nem de leve que a sua cara-metade namorava escandalosamente às suas barbas, um jovem espectador da platéia.

Depois de castigado o vício e premiada a virtude, o Chagas acompanhou, a certa distância, o casal, até o Largo de São Francisco e, apesar de tímido, teve a coragem de sentar ao lado da senhora.

Dali até São Cristóvão, como não se pudessem falar, entenderam-se ambos, a principio com os cotovelos e os joelhos, depois com os pés e afinal com as próprias mãos, que se apertaram furtivamente, quando, nas alturas do canal do Mangue, o marido deixou de fazer considerações críticas sobre o dramalhão que ouvira, e começou a cochilar, como todos os maridos confiantes.

Alguns metros antes de chegar ao domicílio conjugal, ela preveniu o Chagas com uma joelhada mais enérgica e, voltando-se para o sonolento, disse-lhe:

– Acorda, Barroso, que estamos quase!

Apearam-se, e o Chagas tomou nota do número da casa.
***
No dia seguinte, o ditoso mancebo colheu todas as informações desejáveis. O Barroso era um honrado negociante, estabelecido perto do Mercado; saía de casa às seis da manhã e só voltava à noitinha – o que facilitou ao Chagas os meios de escrever a Clorinda, que assim se chamava a bela.

Pediu-se uma entrevista, e escusado é dizer que ela não opôs a esse pedido a menor resistência; exigiu apenas, depois do primeiro encontro, que os outros se efetuassem longe do bairro, e que o Chagas a esperasse no campo de São Cristóvão dentro de um carro fechado. Este os transportaria para um retiro longínquo e discreto.

O venturoso amante em pouco tempo se convenceu de que as mulheres mais caras são justamente as que se dão de graça. Os seus magros cobres de amanuense não chegavam 
para aquele carro escandalosamente misterioso e para o hotel com duas entradas, onde se escondiam aqueles amores ignóbeis. O pobre rapaz recorreu ao prego e ao usurário: encalacrou-se deveras.

Demais, o namoro estragou o funcionário. Como estivesse profundamente impressionado por Clorinda, e não pensasse noutra coisa que não fosse ela, e só ela, amanuense começou a meter os pés pelas mãos, errando os trabalhos mais insignificantes que lhe confiavam, tornando-se incapaz até de extrair uma simples cópia.

Junte-se a isto a circunstância de faltar pelo menos uma vez por semana repartição – nos dias em que, metido no carro, suando por todos os poros, trêmulo de impaciência e com o coração aos saltos, esperava que ela entrasse também, para voarem ambos ao miserável ninho das suas poucas-vergonhas.

Algumas vezes Clorinda faltava à entrevista, porque uma circunstância qualquer a impedia de sair de casa. Nessas ocasiões o Chagas passava por tormentos incríveis.

– Ainda nada, ó Maciel? – perguntava de vez em quando ao cocheiro, sempre o mesmo, que o servia naquelas arriscadas aventuras, homem já maduro, pai de filhos, e tão discreto que não encarava Clorinda quando esta apontava ao longe e vinha na direção do carro, protegida pela sombrinha e pelo véu, arregaçando a saia com muita elegância, e apressando os passinhos miúdos, lépida, saltitante como se houvesse saído de casa para boa coisa.

– Nada!

Mas, desde que a via, o cocheiro voltava-se para o Chagas e o avisava:

– Agora!

E o Chagas esperava-a com a portinhola entreaberta.

Um dia Clorinda deu-lhe uma notícia desagradável: o marido tinha mandado colocar em casa um aparelho telefônico.

– É um perigo – observou ela – mas por outro lado é bom, porque posso falar-te quando estiveres na secretaria. Vocês têm lá telefone?

– Naturalmente.
***

Poucos dias depois, estava o Chagas, sentado à sua mesa de amanuense, copiando pela terceira vez um aviso, quando se aproximou dele um contínuo e lhe disse:

– O sr. ministro chama-o.

– A mim?!

– Sim, senhor.

– Ora essa! Você não está enganado?…

– Não, senhor. S. Exª me perguntou: – Há aqui na casa algum empregado chamado Chagas? – Respondi-lhe que sim, ele disse-me: – Pois vá chamá-lo. 

– Que diabo será? – perguntou o amanuense aos seus botões. 

E foi para o gabinete do ministro.

Tremia que nem varas verdes.

O conselheiro, homem enfatuado e rebarbativo, estava sentado à secretária, com as barbas metidas numa papelada que o absorvia.

– Estou às ordens de V. Exª – gaguejou o Chagas.

Não teve resposta.

Dois minutos depois, repetiu:

– Estou às ordens de V. Exª.

S. Exª, sem se dignar erguer os olhos, perguntou em tom áspero: 

– É o sr. Chagas?

– Sim, senhor.

– Estão o chamando no telefone.

E, sempre de olhos baixos, e carrancudo, apontou para o telefone, que ficava a alguns passos de distância, e fazia ouvir o seu impertinente e desrespeitoso tiin-tiin-tiin.

O Chagas sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés; entretanto, conseguiu aproximar-se do aparelho, e dizer engasgado pela comoção:

– Alô! Alô!

– Quem fala?

– É o amanuense Chagas.

– Ah! Bom! Sou eu, a tua Clorinda. Quem foi o sujeito que falou antes de ti? É um malcriado! Então? Não respondes?

– Não sei.

– Ele disse que era o ministro.

– Era. Que deseja a senhora?

– Por que me tratas por senhora?

– Não posso dizer neste momento!

– Por quê?

– Por… por nada… estou muito ocupado… a ocasião é imprópria.

– Já não me amas?

– Sim!

– Como sim? Já não me amas?

– Não… isto é, não posso… Diga o que deseja.

– Estás zangado comigo?

– Não.

– Então dize: não estou zangado e amo-te!

– Isso não posso. Depois explicarei por quê.

– Não vás amanhã: o Barroso faz anos e janta em casa… eu não me lembrava… mas dize ao menos que ainda me amas!

– Não posso agora.

– Por quê?

– Depois saberá.

O ministro, sem levantar os olhos da papelada:

– Veja se acaba com isso, meu caro senhor; quero trabalhar!

O Chagas estremeceu, largou das mãos o telefone, que ficou pendurado, e saiu do gabinete fazendo muitas mesuras.

O conselheiro ergueu-se para desligar o aparelho, mas levou o fone ao ouvido e ainda ouviu:

– Que modos são esses? Nunca me trataste assim! Já não me amas! E eu que por tua causa enganei o meu pobre marido! Está tudo acabado entre nós!…

– Tenha juízo, senhora! – bradou o ministro com a sua bela voz parlamentar.

E desligou o aparelho, sem suspeitar que ao mesmo tempo desligava dois amantes.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa (org.). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

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Paulo Mendes Campos (Apanhadas no Chão)

 – De um amigo meu, no bar: “Trabalho tanto que não tenho tempo para nada; à noite, bebo um pouco para lembrar as minhas mágoas.”

 – De um vendedor de cinzeiros de barro em Belém: “Se eu escrever com C, em vez de S, ninguém vai comprar.”

 – De um conhecido meu, quando lhe disse que certo homem público, embora de poucas luzes, era grave e honesto: “O jumento também é grave e honesto.”

 – Do mais preto, passando por mim, quando o menos preto lhe disse que ele só pensava em mulher: “Ué, pensar então em quê?”

 – De uma expressão mineira: “Fala mais que pobre na chuva.”

 – Do finado Humphrey Bogart: “Um homem está sempre duas doses abaixo do normal.”

 – De um forjador de provérbios: “Caranguejo idoso pensa muito e brinca pouco.” 

 – De um velhinho, ante o ar conjectural do caixeiro, quando pediu na livraria um manual sobre limitação de filhos: “Não é para mim; é para papai.”
  

– Do matuto para o médico: “Foi tiro e queda, doutor: a pílula desceu e parou direitinho na casa da dor.”

 – De um velho do interior ao provar soda pela primeira vez: “Tem um gostin de pé dormente.”

 – De Jaime Ovalle: “O importante não é saber se a pessoa gosta de uísque, mas se o uísque gosta da pessoa.”

 – De Camilo Paraguassu, em um poema: “Vista de Paquetá, a lua é linda.”

 – De Garrincha, muito absorto, meio segundo antes de ser dada a saída no jogo do Brasil com o selecionado soviético em 1958: “Olha ali, Nilton, aquele bandeirinha é a cara de seu Carlito…”

 – Do mesmo, contando ao colega onde comprara uma gravata (Roma): “Foi naquela cidade onde seu Zezé levou aquele tombo no vestiário.”

 – Do mesmo para um companheiro de pelada: “Quer parar de driblar!” 

 – De Osvaldo Cabeça de Ovo, no dia em que seu time de areia perdia de cinco a zero: “Arrecui os arfe para invitar a catastre.”

 – Do treinador, também de praia, Trindade: “A missão do centrefór é atrapaiar os beque.”

 – De um outro treinador para o goleiro: “Carambolou, arreia.”

 – De um torcedor a meu lado, vendo uma jogada magistral do enciclopédia Nilton Santos, errando, paroxismado, na tônica: “Dá-lhe, catédra!”

 – De Graciliano Ramos, quando ouviu pela primeira vez um rouxinol: “Eta passarinho chato!”

 – Do cabo Firmino, na revolução de 30, promovido pelo comandante da Força Pública Mineira, por ato de bravura em batismo de fogo: “Uai, seu coronel, tava pensando que era manobra.”

 – De Hemingway sobre a famosa modelo Kiki de Montparnasse: “A única mulher que nunca dormiu em sua própria cama.”

 – De um estudante para mim: “Escritor é o Euclides! Olha só: O sertanejo é — vírgula! — antes de tudo — vírgula! — um forte — ponto!”

Fonte:
Rir é o único jeito.SP: Editora Tecnoprint,, 1976.

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Antonio Roberto De Paula (Meu Lugar)

Tela  de Edgar Werner Osterroht
(retrata o Maringá Velho em 1952) 
Foi um tempo bom. Em que não havia tantas casas, não havia tanta gente. Você identificava um a um. Nas noites quentes, as pessoas colocavam cadeiras em frente à rua e ficavam até altas horas da noite quente conversando com os vizinhos.

O tempo não corria. Correr pra quê? Ia gostosamente devagar. A gente saboreava cada estação, cada jardim que renascia, cada chuva… A vida havia privilegiado todos nós. Pode parecer exagero, mas hoje é possível dizer que fizemos parte de um paraíso sem termos tido a noção disso.

O tempo foi passando. A máquina do tempo foi acelerando cada vez mais. Bruscas mudanças foram ocorrendo. Nosso lugar, uma perfeita obra de arte, foi sendo alterado até perder quase que completamente a identidade. De original ficamos nós, acuados.

Hoje, as casas estão coladas umas nas outras. Os carros aceleram no asfalto. Pessoas vêm e vão e eu não as conheço. E vez de cercas de balaústres, muros altos e grades. Na noite, estamos todos entricheirados.

O tempo corre. Já não consigo acompanhá-lo com a mesma eficiência. Vasculho recordações para tornar mais leves os dias. Deito na cama e sonho. Dou risadas com os amigos olhando para a rua vazia e o céu límpido. Uma buzina me acorda. O barulho me avisa que o paraíso ficou só na memória.
Fonte:
Da minha janela – 2003

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Ambrose Bierce (O Capitão do Camelo)

Tradução de Octávio Marcondes

Ambrose Bierce (1842-1914 – Estados Unidos)
Criativo e crítico, escritor e aventureiro (ele foi lutar na Revolução Mexicana e acabou desaparecendo. Carlos Fuentes transformou-o em personagem no seu romance Nuestro Gringo), Bierce deixou uma obra diversificada, como o livro de humor em forma de dicionário (The Devils Dictionary), muito popular, além de fábulas modernas, contos e outros relatos. Aqui, escolhemos uma amostra de sua criatividade um conto de puro non-sense, no melhor tradição anglo-saxã.

–––––––––––-
O nome do navio era Camelo. Sob certos aspectos tratava-se de um barco extraordinário. “Media” 600 toneladas; mas depois de embarcar lastro suficiente para impedir que emborcasse como um pato morto, mais as provisões necessárias para uma viagem de três meses, era preciso ser muito meticuloso na escolha, tanto da carga, quanto dos passageiros. Uma vez, só para ilustrar, quando estava para zarpar veio um bote do porto com dois passageiros, um homem e sua mulher; eles haviam feito reservas no dia anterior, mas ficaram em terra para fazer mais uma refeição decente antes de se sujeitar ao “pé sujo de bordo”, como o homem chamava a mesa do capitão. A mulher veio a bordo, e o homem se preparava para segui-la, quando o capitão, se inclinando na amurada, o viu.

– Bem – disse o capitão -, que é que o senhor pretende?

– Que é que eu pretendo? – disse o homem, se agarrando à escada. – Embarcar neste navio é o que eu vou fazer.

– Não, gordo deste jeito, o senhor não vai – gritou o capitão. – O senhor pesa no mínimo 120 quilos, e eu ainda não levantei a âncora. Ou vai querer que eu abandone minha âncora?

O homem disse que a âncora não era problema dele – que era como Deus o tinha feito (embora, pela sua aparência, desse a impressão que um cozinheiro tivesse dado uma mão ao Criador), e, por bem ou por mal, ele se propunha a embarcar no navio. Uma bela discussão se seguiu, mas finalmente um dos marinheiros jogou-lhe um colete salva-vidas, e o capitão, dizendo que assim ele ficaria mais leve, deixou-o embarcar.

Este era o Capitão Abersouth, anteriormente no comando do Atoleiro, o melhor marinheiro que alguém possa imaginar, sentado na murada da popa e lendo uma trilogia. Nada podia se igualar à paixão daquele lobo do mar pela literatura. Em cada viagem ele vinha com tantos pacotes de livros que não havia espaço para a carga. Eram romances no porão, romances no convés, romances no salão e ainda havia romances nos beliches dos passageiros.

O Camelo fora desenhado e construído por seu proprietário, um arquiteto do centro de Londres, e se parecia tanto com um navio quanto a Arca de Noé. Tinha sacadas e varanda; um beiral e portas na linha d’água. As portas tinham sinetas e campainhas. Em uma área tinha havido até uma tentativa fútil de se construir um navio. O salão dos passageiros era na ponte e coberto de telhas. A esta estrutura, com a aparência de uma corcova, o barco devia seu nome. Seu arquiteto havia construído várias igrejas (a de Santo Ignotus ainda é usada por uma cervejaria em Hotbath Meadows) e, possuído pela inspiração eclesiástica, dera ao navio um casco em forma de cruz, mas, descobrindo que as laterais atrapalhavam seu deslocamento na água, as removera, o que enfraquecera bastante a estrutura da quilha a meia nave.

O mastro principal era como um pedestal e no topo havia um cata-vento em forma de galo, de sua gávea se descortinava uma das mais belas vistas da Inglaterra.Era assim o Camelo quando me juntei à sua tripulação, em 1864, para uma viagem de descoberta ao Pólo Sul. Uma expedição sob os auspícios da Real Sociedade pela Promoção do “Fair Play”. Numa reunião desta excelente associação, ficara decidido: 1 – que o favoritismo da ciência pelo Pólo Norte era uma indevida diferenciação entre dois objetivos igualmente meritórios, pela qual a Natureza já havia mostrado sua desaprovação castigando Sir Jonh Franklin e tantos outros de seus imitadores (o que era bem feito para eles); 2 – que esta empresa seria uma forma de protesto contra tal preconceito; e, finalmente, 3 – que nenhuma despesa ou responsabilidade devia reverter para a dita sociedade como corporação, mas que se criaria um fundo para o qual qualquer membro de forma pessoal poderia contribuir, se alguém fosse suficientemente idiota para isto (o que, justiça seja feita, ninguém foi). Aconteceu apenas que o cabo de amarração do Camelo arrebentou, num dia em que eu estava nele. O barco deixou o porto vagando com a corrente rumo ao Sul, debaixo dos insultos e imprecações de quantos o conheciam e, como eu, já não podiam voltar. Em dois meses ele cruzou o Equador, e o calor se tornou insuportável.

De repente começou uma calmaria. Tivéramos uma brisa perfeita até as três da tarde, e o navio vinha fazendo quase dois nós por hora quando, sem um aviso, as velas se inflaram ao contrário, isto devido ao ímpeto com que vínhamos, e então, quando ele parou de todo, as velas caíram, mais lisas que saia de mulher magra.

O Camelo não só parou por completo como começou um lento movimento de ré, rumo à Inglaterra. O velho Ben, nosso mestre, disse que calmaria igual só tinha visto mesmo uma, e esta, ele explicou, foi quando Pregador Jack, o marinheiro regenerado, se excitou demais num sermão e gritou que Miguel, o Arcanjo, sacudiria o Dragão de dentro do barco e faria o maldito provar a ponta de uma corda!

Nós permanecemos nesta situação deplorável boa parte do ano, até que, com impaciência crescente, a tripulação me delegou poderes de representação para procurar o capitão e ver se alguma coisa podia ser feita. Eu o encontrei, sob a coberta, entre um convés e outro, num canto empoeirado e coberto de teias de aranha, com um livro nas mãos. De um lado ele tinha, recém desembrulhados, três pacotes de “Ouida”, do outro lado uma pilha de Miss M. E. Braddon que chegava à altura de sua cabeça.

Havia terminado “Ouida” e começara a atacar Miss Braddon. Ele estava muito mudado.

– Capitão Abersouth – eu disse, na ponta dos pés para poder ver por cima dos picos montanhosos de Miss Braddon -, o senhor poderia, por gentileza, me dizer até quando isso vai durar?

– Não tenho certeza – me respondeu sem tirar os olhos do livro. – Provavelmente eles vão transar pela metade do livro. Enquanto isso o jovem Monshure de Boojower vai entrar na posse de uma fortuna milionária. Então, se a bela e orgulhosa Angélica não vier atrás dele, depois de abandonar o advogado naval, então, pelo de Deus, eu não entendo nada do profundo e misterioso coração humano.

Eu me sentia incapaz de relatar aos homens de bordo a forma esperançosa que o capitão encarava nossa situação e subi para o convés bastante desanimado, mas foi só botar a cabeça para fora para notar que o navio movia-se com uma velocidade incrível.

Nós tínhamos a bordo um touro e um holandês. O touro estava preso ao mastro, pelo pescoço, com uma corrente, já o holandês tinha bastante liberdade e só era trancado à noite. Havia uma desavença entre eles – uma antipatia que tinha suas raízes no apetite do holandês por leite e no senso de dignidade pessoal do touro; seria penoso e cansativo relatar aqui o incidente específico que deu origem ao ódio. Aproveitando a siesta, que seu inimigo fazia depois do almoço, o holandês conseguira passar pelo mastro sem ser visto, e chegar até a proa, para pescar. Quando o animal, acordando, viu a outra criatura na sua frente pescando, deu uma folga na corrente, para pegar impulso, abaixou os chifres e atacou seu desafeto. O mastro era firme, a corrente era forte e com o touro rebocando o navio, como diria Byron: “caminhar sobre as águas foi coisa normal”.

Depois disso nós deixamos o holandês exatamente onde estava, noite e dia. O velho Camelo andava como nem mesmo um furacão o faria andar. A bússola mostrando sempre o rumo Sul.

Nosso problema agora era outro. Há algum tempo não tínhamos comida suficiente, faltava carne em especial. Nós não podíamos sacrificar nem o touro nem o holandês; e o carpinteiro de bordo, tradicionalmente o primeiro recurso dos esfomeados no mar, era magro como um esqueleto. Os peixes nem mordiam nem se deixavam morder. Quase todos os cabos já haviam sido usados numa macarronada; tudo que era de couro, inclusive nossos sapatos, tinha acabado dentro de uma omelete; com trapos e betume fizéramos uma salada bastante razoável, e depois de uma breve carreira como dobrada à moda do Porto, nossas velas haviam dado adeus ao mundo para sempre. Só restavam duas alternativas, ou comíamos uns aos outros, como manda a etiqueta naval, ou lançávamos mão dos romances do capitão Abersouth. Terrível alternativa! – mas sempre uma escolha. E raramente, creio, marinheiros esfomeados têm o privilégio de encontrar à sua disposição um inteiro carregamento de nossos melhores autores contemporâneos já fritos pela crítica. Nós comemos toda aquela ficção.

As obras que o capitão já terminara de ler duraram seis meses, a maioria eram best-sellers e bastante substanciais. Depois que elas acabaram (é claro que alguma coisa tinha de dada ao touro e ao holandês) nós apertamos o capitão, tomando os livros de suas mãos assim que ele os acabava de ler. Algumas vezes, quando parecia que nós estávamos nas últimas e já nada podia nos salvar, ele saltava uma página inteira de considerações éticas, ou aquelas partes chatas com descrições monótonas, que eram imediatamente devoradas; e sempre, assim que ele começava a prever o desenvolvimento da trama (o que em geral acontecia pela metade do segundo volume), ele nos entregava o final do livro sem uma reclamação.

Os efeitos desta dieta não só não eram desagradáveis, mas ao contrário bastante interessantes. Nos sustentava fisicamente, nos exaltava o intelecto e moralmente não nos tornava muito piores de que já éramos. Nós falávamos como nunca ninguém falou, antes de nós. Coisas de uma absoluta falta de sentido eram ditas com muito espírito. Como na coreografia óbvia de um duelo de palco, onde cada golpe tem seu previsível contragolpe, nas nossas conversas, cada observação era a deixa para a outra fala que, por sua vez, provocava o seu preciso retorno. Uma seqüência que, quando interrompida, fazia perceber o vazio de que era feita; como um colar que, rompido o fio, deixasse ver suas contas, uma a uma, brilhantes e ocas.

Nós fizemos amor, uns com os outros, e conspiramos sombrios pelos cantos mais escuros do porão. Cada grupo de conspiradores tinha seus espiões e traidores que às vezes brigavam entre si. Às vezes havia confusão entre eles, dois ou mais indivíduos disputando o direito de espionar a mesma conspiração. Lembro-me quando o cozinheiro, o carpinteiro, o segundo cirurgião assistente e um marinheiro brigaram com ferros na mão pela honra de trair minha confiança. Outra vez, eram três os assassinos mascarados do segundo turno de vigia, debruçando-se ao mesmo tempo sobre o vulto adormecido do grumete que mencionara na semana anterior possuir: Ouro! Ouro! – acumulado durante oitenta anos (pois é, oitenta) de pirataria enquanto parlamentar pelo distrito de Zaccheus-cum-down e ia à missa todos os domingos. Vi o capitão no alto da ponte cercado de pretendentes à sua mão enquanto ele mesmo tentava adivinhar, sem desembrulhar, o conteúdo de um pacote de livros olhando pela fresta do papel e, ao mesmo tempo, fazia uma serenata para sua amada que se barbeava num espelho.

Nossas falas compunham-se de partes iguais, de alusões dos clássicos, citações diretamente das tabernas, amostras de fofoca copa-e-cozinha, do código de iniciados dos clubes esnobes e do jargão técnico da heráldica. Nós nos vangloriávamos muito de nossos ancestrais e admirávamos a brancura de nossas mãos, sempre que se pudesse ver alguma coisa através da camada de sujeira e graxa que as cobriam. Depois de amor, botânica, assassinato, incêndio, adultério e liturgia, o que mais ocupava nossa conversação eram as artes. A figura de proa do Camelo, representando um negro da Guiné sentindo um mau cheiro, e dois golfinhos corcundas pintados na popa assumiram uma nova importância. O holandês quebrara o nariz do negro com um pontapé e os restos da cozinha haviam praticamente coberto os golfinhos. Mas as duas obras eram objeto de peregrinações diárias de amantes das artes que a cada vez descobriam belezas ocultas, tanto na concepção quanto na excelente e sutil execução. Nós mudáramos muito; e se o suprimento de ficção contemporânea fosse igual à demanda, eu acho que o Camelo seria pequeno para conter as forças morais e estéticas despertadas pela maceração da imaginação dos autores no suco gástrico dos marinheiros.

Tendo conseguido transferir do seu cérebro para os nossos toda a literatura a bordo, o capitão apareceu na ponte de comando pela primeira vez desde que havíamos deixado o porto. Nós continuávamos no mesmo curso, e, fazendo sua primeira observação do sol com o sextante, o capitão constatou que estávamos a 83º de latitude Sul. O calor era insuportável; o ar como o bafo de uma fornalha dentro de uma fornalha. O mar fervia como um caldeirão e no seu vapor nossos corpos eram cozidos – nossa última ceia estava sendo preparada. Empenado pelo sol, o navio tinha popa e proa fora d’água; o convés da proa estava tão inclinado que o touro corria ladeira acima e o holandês se equilibrava precariamente no pico da proa em vertical. Havia um termômetro no mastro principal e nós nos reunimos em volta dele enquanto o
capitão fazia a leitura.

– Oitenta graus centígrados! – ele murmurou com evidente assombro. – Impossível! – virando-se rapidamente, ele correu os olhos sobre nós, e perguntou em voz alta:

– Quem ficou no comando enquanto eu passava os olhos nos livros?

– Bem, capitão – eu respondi, o mais respeitosamente possível -, no quarto dia no mar eu me vi, infelizmente, envolvido numa disputa, no meio de um jogo de cartas, com o imediato e o segundo oficial. Na falta desses excelentes marinheiros, senhor, eu me senti na obrigação de assumir.

– Matou eles, hein?

– Eles se suicidaram, capitão, questionando a eficácia de quatro reis e um ás.

– Bem, seu trapalhão, como é que você justifica esta temperatura absurda?

– Não é minha culpa, capitão. Nós estamos no Sul, muito ao Sul mesmo, e sendo agora o meio de julho, a temperatura é desconfortável, eu admito, mas, considerando a latitude e a estação, não chega a ser absurda.

– Latitude e estação! – ele gritou, pálido de raiva. – Latitude e estação! Sua besta emplumada, quadrúpede, alimária, você não sabe nada? Ninguém nunca disse a você que as latitudes ao Sul são mais frias que ao Norte, ou que julho é o meio do inverno aqui? Considere-se confinado ao seu alojamento, saia da minha frente agora mesmo, seu filho de uma égua, ou eu arrebento você.

Oh! Muito bem – respondi. – Eu não vou ficar aqui de qualquer forma, que não sou homem de aturar esse tipo de insultos, estou avisando. Faça como achar melhor.

Eu mal acabara de falar, quando um vento frio e cortante me fez olhar o termômetro. Segundo as novas noções de ciência geográfica o mercúrio vinha caindo rapidamente; no próximo segundo o instrumento estava completamente coberto por uma nevasca que impedia a visão. Enormes icebergs se levantavam do mar por todos os lados, erguendo-se monstruosamente dezenas de metros acima do mastro e nos cercando por completo. O navio se contorceu e tremeu, empurrado para cima; cada peça de madeira nele rangeu, e o barco fez um último balanço, como o coice de uma pistola. O Camelo congelou rápido. A parada brusca partiu a corrente atirando ao mar o touro e o holandês, que assim continuaram no gelo sua guerra pessoal.

Tentando descer para minha cabine, como me ordenara o capitão, ao passar pelos homens eu os vi caírem, à esquerda e à direita, como bonecos de boliche. A tripulação estava rigidamente congelada. Passando pelo capitão, eu perguntei com certa dose de ironia o que ele estava achando do tempo segundo o novo regime. Ele me respondeu com um olhar vago. O frio tinha chegado a seu cérebro e afetado suas faculdades. Ele disse:

– Nesse delicioso lugar, contentes e estimados por todos, cercados de tudo aquilo que torna a vida tranqüila, eles viveram felizes até o fim de seus dias. FIM.

Sua boca ficou aberta. O capitão do Camelo estava morto.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa (org.). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

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Arquivado em Estados Unidos, O Escritor com a Palavra

Ignácio de Loyola Brandão (O Que Há Depois do Além?)

Museu de Paris exibe o mítico rolo em que Jack Kerouac escreveu On The Road, o ícone beat que acenava para um horizonte a ser descoberto; filme de Walter Salles sobre o livro já estreou lá

Um livro inteiro escrito em um rolo de papel. Foi espantoso saber disso. Jack Kerouac sentou-se entre 2 e 22 de abril de 1951, e datilografou sem parar e sem precisar tirar o papel da máquina em nenhum momento. Mais de 60 anos atrás, aquele jovem de 29 anos não sabia que tinha inventado o formulário contínuo que só entraria em cena mais de 40 anos depois. Como seria esse rolo? Estávamos acostumados a usar o papel sulfite A-4, cuja largura era a mesma do rolo das máquinas de escrever comuns. Escrevia-se cerca de 20 a 30 linhas, em espaço duplo e acabava a lauda, era preciso trocá-la. O gesto se repetia em casa, nas redações, escritórios, faculdades, escolas, por toda a parte. Puxada a lauda, colocava-se outra, girava-se o rolo e recomeçava. Nunca imaginei que precisasse explicar este processo banal, a fim de que as novas gerações crescidas com o computador, entendessem a questão. Por esta razão, ter escrito de uma vez só, em um rolo de papel, se tornou um fato mítico, único na literatura. Vinha em seguida o que o livro significou, o impacto que provocou, o espanto que ocasionou.

As notícias, naqueles anos 1950, diziam que o livro On The Road, que abalaria o mundo, teria sido escrito em um rolo de papel para teletipo, o que também poucos das novas gerações sabem o que é. Um aparelho existente em redações, escritórios, bolsas de valores, que recebia informações, notícias, cotações, vivia ligado 24 horas, parecia funcionar sozinho, uma vez que era acionado a distância. De uma cidade para outra, de um Estado, de um país. Funcionava o tempo todo, portanto necessitava ser alimentado por um rolo de papel que devia durar horas.

Em seguida, divulgou-se que On The Road não tinha sido datilografado em rolo de teletipo. Como seria então? Passaram anos até vermos a primeira foto de Jack Kerouac, o escritor, segurando o rolo na mão. Eu vi pela primeira vez na contracapa da edição integral de On The Road publicada pela L&PM, em 2008. Mas que rolo seria esse?

A batida do jazz em uma narrativa. No entanto, fosse apenas isso, um livro escrito em um rolo de papel, tudo não passaria de mera curiosidade, uma bossa criada por um autor, nada mais. Quando On The Road foi publicado em 1957 – exatamente o ano em que cheguei a São Paulo, foi como se um tsunami tivesse acontecido na literatura. Normas caíam por terra, regras eram desobedecidas, uma nova maneira de narrar estava em curso, a palavra beat, que vinha tanto de beatitude quanto da batida do jazz, entrou em circulação. Era o grito (usou-se muito essa palavra) da geração que fumava maconha, usava benzedrina, cocaína, peyote, álcool, e não colocava limites para o sexo.

Acreditávamos que era a revolta de uma geração contra o establishment americano e ficávamos confusos. Onde brasileiros e americanos se igualavam? Contra o que eles brigavam exatamente? De que modo poderíamos seguir on the road? Teria sentido? Descobriríamos com os anos a nossa estrada. Mas o início estava ali na linguagem, na soltura, na liberdade.

Roberto Muggiati em seu artigo Kerouac, os beats e o bop (C2+Música, aqui no Estado, no último dia 9 ), diz que a expressão “on the road” já era usada nos anos 1930 no jargão dos músicos de bandas que “viviam na estrada”. O que era novo para nós? A linguagem que, no dizer de Kerouac (sempre citado por Muggiati), era “o fluxo mental tranquilo, de ideias e palavras pessoais secretas… pausas marcadas que são a essência de nossa fala… satisfazer primeiro a si mesmo e o leitor também receberá o choque telepático e o significado-excitação pelas mesmas leis que operam na sua mente”. Era um novo formato de narrativa, anticonvencional.

À minha frente, o lendário scroll. Descobri a realidade do rolo no dia 31 de maio deste ano, em Paris. Cheguei tarde, deitei, no dia seguinte, pulei da cama, tomei café da manhã e voei pelo Boulevard Saint-Germain em busca do Musée des Lettres et Manuscrits. O rolo do On The Road estava lá. Corria ao encontro de Jack Kerouac e de mim mesmo no número 222. Atravessei a “cour”, empurrei uma porta modesta e penetrei no museu. Estava em meio a tudo o que gerou On The Road, o mais emblemático romance de uma época, que bateu de frente contra tudo o que era estabelecido, careta, quadrado, square, burguês (palavras hoje deterioradas). Quem queria escrever, naquele tempo, queria escrever o On The Road de seu país.

O mundo transfigurou. Em um segundo, me vi em São Paulo na Alameda Santos, 93, nos meus 23 anos. Era a pensão da Nina. Mais do que pensão, aquela casa foi o ponto de partida de um grupo pertencente à mesma geração. Ali nos reuníamos, conversávamos, discutíamos Sartre, Simone, Camus, Marx, Stanislavski, Grotowski, Carson Mccullers, Henry Miller. Ali bebíamos, brigávamos, escrevíamos, tocávamos violão e cantávamos. Havia ainda tantos mundos a serem percorridos ao longe.

Como sair do nada e ver lá na frente?. Aqueles quartos de pensão, minúsculos, com três ou quatro, às vezes mais, jovens empoleirados, eram tão sufocantes quanto nossa cidade natal tinha sido, quanto São Paulo era, e o Brasil também. Em que país estreito vivíamos? Como sair disso? Líamos demais, víamos filmes e teatro demais, roubávamos revistas e jornais estrangeiros das bancas e livrarias (não tínhamos como pagá-las, eram caras) e tínhamos uma certeza, o mundo ia além daquilo. Queríamos saber o que havia para a frente, queríamos buscar lugares distantes, pessoas longínquas, línguas estranhas, não queríamos repetir a mesmice e não sabíamos o que sonhávamos criar.

Os sábados eram particularmente excitantes quando o caderno de variedades do Jornal do Brasil chegava com artigos do Nelson Coelho, então o especialista em literatura americana. Não se passava semana sem uma notícia sobre a beat generation. Correspondente do Jornal do Brasil em Nova York, Nelson estava no olho do furacão. E o JB era dos mais importantes e lidos do Brasil.

Eu era o primeiro que acordava, trabalhava das 10 ao meio-dia. Corria à Praça Osvaldo Cruz e comprava dois JB. Na praça, tomava o café da manhã, média de café com leite e um misto. Lia ali no balcão, sonhando com as mesas dos cafés que víamos nos filmes e nas fotos de Paris, de Nova York, das “cidades” civilizadas. Na volta, o caderno de variedades corria de mão em mão, depois era guardado no quarto do Zé Celso Martinez que enchia os artigos de frases sublinhadas.

Um dia, essa loucura será publicada integral. Havia uma febre para ler On The Road, de maneira que a primeira edição legível que nos chegou (era difícil comprar livros americanos por aqui) foi a da editora argentina Sudamericana: Por La Carretera, um título que nos soava horrível, mas sabíamos que seria complicado ler Kerouac no original. Linguagem coloquial, gírias, expressões do jazz, havia de tudo. Também em espanhol não foi fácil, perdíamos o ritmo. Somente duas décadas depois leríamos On The Road em português, com o título Pé na Estrada, editado na Brasiliense por um Caio Graco inquieto, ousado, mente aberta. Foi em 1984. A Brasiliense tinha Luiz Schwarcz, que ali começou. On The Road teria a sua mãozinha?

Sabe-se que a primeira edição americana, na qual se basearam, por décadas, todas as traduções, sofreu cortes e interferências do editor Malcolm Cowley. Informam as legendas da exposição que Kerouac, pressionado, edulcorou o texto, fez cortes, cedeu, estava cansado de batalhar e ser derrotado. Em uma carta, exibida no museu, Allen Ginsberg, outro ícone da beat generation, previa: “Um dia, On The Road será publicado integralmente, em toda sua loucura.” Foi. Em 2007, finalmente a Viking Press lançou o texto original, no Brasil lançado em 2008 pela L&PM, em tradução de Eduardo Bueno e Lúcia Brito. Na contracapa, Jack Kerouac segura o célebre rolo.

O manuscrito que é uma “estrada” também. Já se sabe tudo o que o livro é, foi, será. O que estava ainda em minha cabeça – e na de muitos – era a questão do rolo. Como se fosse um papiro sagrado, uma Torá. Assim entrei no Musée des Lettres et Manuscrits, paguei e desci correndo, tinha avistado a vitrine onde repousava o rolo. Naquela hora da manhã, não havia ninguém no museu. A vitrine tem nove metros de extensão e o rolo de 36, 5 metros repousa (estará ali até agosto) sobre um tecido macio para não ser machucado. Ao olhar, entendi. Não era papel de teletipo e sim papel vegetal, de desenho, que Kerouac montou página a página, colando com durex. Uns dizem que Kerouac comprou o papel, outros que foi um amigo dele, desenhista, Bill Cannastra, que lhe deu de presente.

Para caber na máquina de escrever, uma Underwood (exposta no museu), Kerouac acertou as margens. Pode-se ver ainda o picotado da tesoura em certos pontos. Para economizar, o espaçamento entre as linhas é o mínimo possível, acho que o 1, de modo que as frases praticamente se amontoam, apertadas. Imaginei o editor com aquele rolo na mão, tentando ler. Legendas explicam que o final do rolo inexiste. Segundo o autor, ele foi comido pelo seu cachorro Potchky. Cada detalhe alimenta uma lenda. Há uma imagem usada pelos que viram o rolo na vitrine: ele simboliza a estrada, the road. Datilografado a toda velocidade, sem parágrafos, 6 mil palavras por dia (12 mil no primeiro dia, tal a febre, e 15 mil no último, tal a ânsia de terminar), Kerouac confessou que foi alimentado a café. Como Balzac fazia?

Imenso banner num canto do museu traz as edições pelo mundo. Línguas estranhas, indefiníveis para mim naquele momento e que prefiro deixar assim, como um mistério: Kelije – Op weg – Na Gestei – Vejene – Naputu – Pe Drum – B Dopoze – Uton – Kepyak – Aopote – Á Vegum Út. Sabe-se que o livro foi traduzido para 95 línguas. Não vi a capa de nenhuma das edições brasileiras.

Numa das vitrines estão as cadernetinhas de capa preta envernizada que Kerouac usava para suas anotações. Centenas delas, todas iguais. Emocionei-me ao ver como ele trabalhava, anotando sem parar. Organizado, comprava sempre as mesmas cadernetas. Em Na Estrada, filme de Walter Salles, o personagem usa um bloco semelhante. Produziram para a filmagem ou tais cadernetas ainda existem nos Estados Unidos? Essa permanência das coisas me fascina

Cinco anos de trabalho para um longa-metragem. O filme está em cartaz em Paris simultaneamente. Fui ver em uma de minha salas prediletas, o cinema Pagode, na Rue Babylone. Foi um templo chinês decorado com dourados, e brocados, cheio de charme em sua decadência. Ali está sendo a exibida a versão original com legendas em francês. Quando o livro saiu, em 1957, Kerouac escreveu a Marlon Brando, tido como um ator da contestação, oferecendo a adaptação e o papel, Brando jamais respondeu. Os direitos foram comprados por Francis Ford Coppola em 1968. Godard recusou, depois também Gus Van Saint. Finalmente, Walter Salles entrou na estrada. Foram cinco anos de versões e revisões, de viagens e busca de locações. Walter Salles imprimiu o ritmo duplo que domina o livro: movimento, velocidade, e momentos de introspecção e contemplação. Pausas e acelerações. Num entrevista, o cineasta fez uma declaração que me emocionou: “A modernidade de Kerouac estava em seu desejo de explorar tudo, de viver, de sentir tudo à flor da pele. De não recusar o momento.” Um dia, Walter e Lawrence Ferlinghetti, 93 anos, ícone majestoso da época beat (a sua livraria e editora City Lights era o ponto de convergência dos beatniks), circulando por São Francisco, pararam na ponte de Berkeley, imobilizada pelo congestionamento. Nesse momento, o poeta exclamou:

– You see, there’s no more away!

Algo como: veja só, não há mais nada depois do além. E o cineasta comenta: “Naquela época do On The Road ainda havia um mundo a ser descoberto, cartografado. Borges dizia que o grande prazer da literatura era nomear o que ainda não havia sido nomeado. Hoje, temos a impressão de que tudo está visto, fotografado, documentado, repertoriado… On The Road é um antídoto contra o imobilismo e isto é que me fascinou no livro.” Ou seja, não há mais nada a se procurar. Mais de 50 anos depois, Ferlinghetti e Walter Salles respondiam àquela inquietação que tivemos aos 20 anos

Kerouac, que morreu aos 47 anos, faria neste ano 90. Os expoentes da beat morreram: Allen Ginsberg, Gregory Corso e William Burroughs. Resta Ferlinghetti, hoje com 93 anos. Estranha foi a morte de Kerouac, vivendo ao lado da mãe, mergulhado em programas estúpidos de televisão, reacionário, alcoólatra, inchado, deprimido, desiludido com tudo, negando ter provocado uma revolução na literatura. Enquanto hoje desesperadamente procura-se a mídia e a exposição, a imensa visibilidade funcionou ao contrário para Jack. Levou-o ao inferno.

Fonte:
O Estado de São Paulo. Caderno 2. 23 de junho de 2012

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Dalton Trevisan (Penélope)

Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta  os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

— Que vai fazer?

— Queimar.

Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.

— Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.

O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

— Não vai ler?

Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

— Já sei o que diz.

— Por que não queima?

É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.

Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.

Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?

No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras… Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou.

Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão —  no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente… Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.

Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca… Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.

Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.

Afinal compra um revólver.

— Oh, meu Deus… Para quê? — espanta-se a companheira.

Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha.

Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher.

De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?

Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.

Havia um primo no passado… Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma.

Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la.

No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.

Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia? Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca.

Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto.

Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.

Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.

Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas… Por engano na sua.

Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova.

Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta…

Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.
Fonte:
Dalton Trevisan. Vozes do Retrato. SP: Editora Agir, 1998.

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Lúcio Saretta (O Vendedor de Cocadas)

Lembro-me ainda do dia em que jurei a bandeira. Já faz bastante tempo, mas uma das figuras que, assim como eu, “escapou” do serviço militar ficou gravada na minha memória. Isso aconteceu provavelmente pelo fato do cara estar usando uma blusa branca com mangas cheias de franjas, tipo aquelas usadas pelos caubóis dos filmes de antigamente. A aparência estranha do rapaz completava-se nas feições do rosto. Os ossos do maxilar eram saltados e a sua dentadura de alguma forma teimava em escapar para fora da boca, como se fossem presas de um vampiro. Realmente, não era uma criatura bonita de se olhar.

Os anos foram passando e eu, vez por outra, avistava o sujeito pelas ruas da cidade, sempre do mesmo jeito, carregando pés-de-moleque em uma grande cesta de vime para vender. Sentia pena pela sua pobreza, pela sua triste condição de andarilho e falta de sorte melhor na vida. É bem verdade que eu, nas duas décadas que se passaram desde o momento em que solenemente (e um pouco apavorados) declaramos nosso compromisso de lutar pela pátria no caso de alguma emergência, não fiz nada de extraordinário, além de concluir uma faculdade e trabalhar em um ramo bem diferente daquele para o qual estudei durante quatro anos, sem obter fortuna nem um ótimo salário. Entretanto, a visão do vendedor de cocadas sempre foi algo chocante, uma lembrança viva e incômoda das desigualdades sociais que existem no mundo, da falta de oportunidades que se abate sobre uma porção de gente. Estranhos desígnios do destino… Por que ele teve que enfrentar essa infausta realidade enquanto eu, nascido em berço de ouro, tive uma juventude confortável?

Um dia, tomei coragem para abordar o meu ex-futuro-colega de farda. Seu ponto de descanso, estrategicamente escolhido entre as caminhadas com a pesada cesta embaixo do braço, é a pequena praça que fica na frente das garagens da prefeitura, ali na rua Visconde de Pelotas, em Caxias do Sul. Com seus bancos de cimento e a sombra farta das árvores, o local decerto rende alguma venda ao rapaz, tendo em vista o grande número de funcionários públicos que por ali passa. Como a praça faz parte do meu caminho para o trabalho, não tive problemas em alcançar meu intuito. O vendedor de cocadas mal conseguia falar, quando eu lhe perguntei o preço do pé-de-moleque levantou a ponta do indicador como quem diz “um real”. Talvez o rapaz estivesse embriagado, ou tivesse uma debilidade mental qualquer (não vamos esquecer que ele foi dispensado do quartel).

Enquanto me afastava dali, tendo adquirido um pé-de-moleque, comecei a pensar sobre aquela situação. De uma certa forma, mais uma vez eu me parecia com o cara. Senão, vejamos. Além do fato de termos jurado a bandeira juntos, dependemos da boa vontade de alguma alma generosa para vender nossas guloseimas. Os doces que eu faço são os livros, digamos assim. Como escritor, encontro uma avalanche de dificuldades para progredir. São os livreiros que te ignoram, editoras que não te dão resposta sobre originais enviados para análise, a mídia que se fecha. As próprias escolas, onde deveria reinar o intuito de ensinar, negam oportunidades para o escritor local mostrar o seu trabalho. Afinal, um dos anseios do escritor é cativar os mais jovens, cumprindo seu papel de cidadão e ajudando na criação de uma sociedade melhor. Se houvesse estímulo e caminhos para incentivar a leitura e, consequentemente, a educação, talvez não houvesse a pobreza que produz vendedores de cocada e tantos outros sub-empregos.

A verdade é que são muitas portas fechadas para quem começa (embora no meu caso já com três títulos na praça) e poucas portas abertas. A torre de marfim do bom-gosto cultural e as engrenagens do “show business” literário vão te colocar numa espécie de limbo, do lado de fora da festa, olhando para dentro sem poder entrar. E assim vamos vivendo, ganhando merrecas de amigos, parentes e conhecidos que solidários compram nossos livros. É claro que a estrada é árdua e longa, o ramo da literatura é como qualquer outro, o trabalho tenaz vale mais do que o talento puro e simples.

O artista que se preza, contudo, deve perseverar com seus projetos, valorizando sua própria identidade criativa, sem desistir nunca. Nem que seja vendendo as obras no afã das ruas, dentro de uma mochila, ao modo de um doceiro mambembe, com sua cesta cheia de cocadas e ilusões.
Fonte:
Artistas Gaúchos.

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Arquivado em O Escritor com a Palavra, Rio Grande do Sul

Ignácio de Loyola Brandão (A Sala dos Livros Mortos)

No seu primeiro dia como funcionária daquela biblioteca pública, Ana Lygia foi levada pela diretora para conhecer o prédio. Subiram e desceram escadas, o elevador há muito tinha sido desativado por falta de verba de manutenção, por sorte eram apenas três andares, mais o porão. Secretaria, diretoria e salas e salas repletas de livros em estantes de metal, uma pequena sala de convívio, uma saleta para os jornais. Existia até uma quantidade razoável de volumes, ainda que o acervo estivesse desatualizado em relação à atual literatura brasileira. Quanto à mundial, a atualização era sentida pelos best-sellers, por aqueles que tinham sido os mais vendidos nas revistas semanais. Finalmente, desceram ao porão, havia montes de caixas com doações de livros ainda em fase de estudos, o que valia e o que não valia a pena, porque os doadores em geral entregam à biblioteca o que não querem em casa e o que ninguém quer e não presta para nada. Duas saletas com material de limpeza e uma sala com porta de ferro, trancada.

– E aqui?

– Ninguém entra. É a sala dos mortos.

– Mortos?

– Sim, a sala dos livros retirados de circulação.

– Retiram? E qual o critério?

– Se em cinco anos ninguém retirou o livro, ele é descartado do mundo dos livros vivos.

– E ficam aqui? Quanto tempo?

– Para sempre.

– Não podem ser doados a outras bibliotecas, ao público? Avisam: quem quiser livros venha buscar? Assim talvez continuem vivos!

– A lei não permite. É um bem público. Pertence ao patrimônio. É a situação mais complicada que existe, porque a burocracia impede essa doação, é preciso montar um processo jurídico e, como todo processo jurídico, se eterniza. Nem vale a pena, o melhor é esquecer.

– Posso ver a sala?

– Melhor não entrar. Aliás, tem um problema, a chave foi perdida, para mandar fazer outra monta-se um processo administrativo.

– Talvez tenha livros interessantes que eu queira ler.

– Não adianta, a lei diz que devemos inutilizar. Quando o livro vem para cá, tem uma determinada página arrancada, ou duas, uma do começo, outra do final.

Leitora desde a infância, Ana Lygia lembrou-se do Barba-Azul e do famoso cômodo no qual suas esposas não podiam entrar e quando entravam eram assassinadas. Sua curiosidade aumentou. Ela começou a trabalhar e meses mais tarde foi designada para um plantão de domingo, uma experiência nova. Aconteceu de ser dia chuvoso e ninguém foi à biblioteca. Ana Lygia lembrou-se da sala dos mortos, desceu, experimentou, trancada. Subiu, perguntou a uma auxiliar se sabia onde estava a chave, ela apontou para uma gaveta, disse que ali havia umas cem chaves, talvez fosse uma delas. Ana Lygia colocou-as em uma caixa e desceu. Começou a experimentar uma a uma.

Algumas ela descartou pelo tamanho, outras entravam, não giravam, ela não forçava, com medo de quebrar. Exercício de paciência. Também, ela não tinha nada a fazer. Finalmente, a chave 83 funcionou. Veio de dentro um cheiro abafado de mofo e umidade, ela abriu totalmente a porta, esperou. Procurou o interruptor e uma luz amarelada inundou o cômodo de fantasmas. Havia pilhas de livros amontoados até o teto. E, em volta, junto à parede, uma coleção de extintores de incêndio. Contou 35, cada um de um modelo, percebeu que alguns eram velhos, outros pré-históricos. Poderiam ser alinhados em um museu, ali estava a evolução dos extintores, os mais antigos enormes, desajeitados, para manobrar aquilo seriam necessárias duas pessoas.

Havia ainda relógios de ponto, alguns estapafúrdios, palavra que ela associou à idade do equipamento. Também fariam o encanto do velho Dimas de Melo Pimenta, um ícone da relojoaria nesta cidade. Ela experimentou mexer nas alavancas, umas travadas pela ferrugem, outras funcionaram com um ruído seco. Quantos teriam sido pontuais, quantos o relógio teria punido? Gostava de imaginar coisas assim, afinal, havia um quê de ficcionista dentro dela, daí sua paixão pelos livros e por ter escolhido a profissão. Ana Lygia percorreu aquele porão empoeirado contemplando escovas, vassouras, rodos, baldes furados, panos de chão podres, latas de cera, tubos de desinfetantes, detergentes, latas com pedacinhos de sabão, escovões. Nossa, há quantas décadas o escovão desapareceu da cena doméstica, quem ainda encera a casa? Tudo que devia ser descartado, porém era impossível, tratava-se de patrimônio.

Afinal, dedicou-se aos livros. Estendeu a mão, curiosa, puxou um. A Menina Morta, de Cornélio Penna. Puxa, esqueceram o Cornélio? Ninguém o leu por cinco anos? Foi folheando, livro grosso, talvez isso tenha assustado. Lendo. De repente percebeu a página arrancada. Apanhou outro livro, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. E José de Alencar, Lúcio Cardoso, Ibiapaba Martins, Osman Lins, Mário Donato (puxa, fez tanto sucesso nos anos 50), José Geraldo Vieira, John dos Passos, Romain Gary, Malcolm Lowry, Oscar Wilde, Maria Alice Barroso. Todos mutilados. Apanhou um deles, escondeu debaixo da blusa. Levou para casa. Na biblioteca de um amigo encontrou um exemplar completo, digitou a página faltante, colou dentro do volume doente. A cada semana, leva um embora, recupera. Ela imagina que em alguns anos terá recuperado todos. Leva para bibliotecas comunitárias, existem várias. A simples idéia de ver um livro reciclado, ou queimado, a deixa doente. Mais fácil comprar outro? Sim. Mas e o prazer de salvar um livro?

Fonte:
O Estado de São Paulo Caderno 2. 4 de julho de 2008

Imagem obtida em http://www.zazzle.com, autoria de Koalakola

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Arquivado em Araraquara, O Escritor com a Palavra

Mia Couto (O Homem da Rua)

Ainda o dia andava à procura do céu, vinha eu em vagaroso carro que mais a mim me conduzia. De repente, um homem atravessou a calçada, desavultado vulto avulso. Uma garrafa o empunhava. E ele, todo súbito e poentio, se embateu frentalmente na viatura. Saltou pelos ares, se aplacando lá mais adiante, onde se iniciava o passeio. Saí do susto para inspeccionar sua sobrevivência.

Me debrucei sobre o restante dele, seu rolado enrodilhado. Não havia sangue nem quebradura de osso. O maltrapalhado estava a salvo, salvo erro. Todavia, me meteu pena: suas vestes eram a sujidade. Havia quase nenhuma roupa em seu sarro. Mesmo o corpo era o que menos lhe pesava. Os olhos estavam parados, na grade do rosto. Me pareciam pedir, o quê nem sei.

De inesperado, o vagabundo se ergueu e apressou umas passadas para encalçar o longe. Se entrecruzou com sua sombra, assustado de haver escuro e luz. Em muito zig e pouco zag ele acabou por se devolver ao chão. Voltei a acudir, cheio dessa culpa que não cabe na razão. Apanhei o vulto, desarranjado, sem estrutura. Pareceu tontolinho, sempre agarrado ao arregalado gargalo. Me deitou olhos muito espantados e pediu desculpa por incómodos. Apalpou o lugar onde se deitava, e disse:

– Um de nós está morrendo- .

Entreolhei-me a mim e ao restante mundo. Ele se precisou:

– Estou falando da terra, parece ela está moribundando- .

Lhe disse que o levaria dali para um sítio que fosse dele. Ajudei-lhe a entrar no meu carro. Ele recusou com terminância:

– Não entro em coisa que serve para levar morto- .

Amparei o desandrajoso. Se sustentou em meu ombro e me foi levando pelo passeio sombrio, através dessa desvastidão onde o negro escurece a preto.

– Agora o senhor me entorne aqui…

– Aqui?-

Esfregando-se no pescoço como se as mãos fossem de outrem, acrescentou:

– Aqui, sim. Quero acordar com dormência de lua- .

Dali ele passou a esbanjar conversa. Quem sabe o homem desjejuava palavra? E dizia sem aparência nenhuma:

– Bem hajam as folhas, minha cama!-

E explicava-se enquanto alisava as folhagens mortas: quando se deitava lhe doía a curva da terra, a costela quebrada do próprio universo. Assim deitadinho, todo simetrado com o planeta, um subterrâneo rio falava com suas veias.

– Até foi bom me aleijar um bocado. Ri-se? Nem sabe como é bom haver um chão para a gente ter onde cair- .

E nos trocamos nessa conversa com vontade de ser corpo, encosto, adormecimento. Ficámos a ver as luzinhas da cidade, lá em baixo, a lembrar que o homem sofre de incurável medo de ser noite. O país daquele homem seria a noite. Meu território era o dia, com sua luminesciência tanta que serve mais é para deixarmos de ver.

E pensei: o primeiro alimento é a luz. Nos invade logo quando nascemos. Depois, a luminosidade, com suas infinitas cascatas, nos fica a engordar a alma. Em mim, pelo menos, a primeira saudade é da luz. Direi, então: me falta a minha luz natal? Quem sabe a alma deste homem, sempre ninhado no escuro, emagrecera assim a olhos não-vistos? O homem é bicho diurno. O dia é bicho humano?

Me foi descendo, espesso, o sono. Avancei despedida não sem retirar do bolso algumas notas que estendi em direcção ao desastrado:

– Deixo o senhor com algum dinheiro. Quem sabe lhe virão, mais tarde, as dores do acidente?-

Para meu espanto ele recusou. Sem veemência, sem nenhum ênfase. Era recusa verdadeira.

– Posso pedir uma qualquer coisa?

– Peça.

– Me dê um pouco mais da sua acompanhia. Só isso: acompanhia- .

Ainda hesitei, inesperando aquele pedido. O homem nem me fitava, estivesse envergonhado. E assim, de cabeça baixa, insistiu:

– É que, sabe, eu não tenho ninguém. Antes ainda tinha quem me dispensasse migalha de conversa. Mas, agora, já nem. E me dá um medo de me sozinhar por esses aís- .

Quase que falava para dentro, eu devia baixar orelha para o entender. Assim, cabismudo, prosseguiu:

– Sabe o que faço? Vou dizer… mas o senhor me prometa que não zanga…

– Prometo.

– O que eu faço, agora, é me deixar atropelar. É. Ser embatido num resvalo de quase nada. Indemnização que peço é só esta: companhia de uma noite- .

Fiquei quieto sem me achar conveniência. Nem gesto nem palavra me defendiam. O atropelado centrou esforço em se erguer, mão sobre o joelho. Já de pé me segurou o cotovelo:

– Pode ir, à vontade. _nem imagina como senhor me faz bem, me bater e, depois, me falar. Agora já nem sinto dor nem dentro nem fora- .

Anda fiz menção de ficar, perdido entre garganta e coração. Mas o andrajoso levantou o braço, em serena sentença:

– Vá, meu amigo, vá na sua vida- .

Regressei ao carro. Arranquei-me dali, devagar. Olhei no espelho para retrover o vagabundo. Me lembrei então que nem o nome dele eu anotara. Lhe chamo agora: o homem da rua. Seu nome ficará assim, inominável, simplesmente: homem da rua. Lembrando este tempo em que deixou de haver a rua do homem.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

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Paulo Mendes Campos (O Canarinho)

Atacado de senso de responsabilidade, num momento de descrença de si mesmo, Rubem Braga liquidou entre amigos, há um ano, a sua passarinhada. Às crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro não agüentou a crise da puberdade, morrendo logo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade dos passarinhos: não morrera, afirmou-nos com um fanatismo que impunha respeito ou piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme com a sua fé. A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, chamados chapinha ou da-terra, e que mais cantam por boa vontade que por vocação. Não importa, conseguiu depressa um lugar em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido neste apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é quase de todo virado para o Sul.

Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um pássaro comum, um cachorro vira-lata, o gato popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça há uma afetação que envenena um pouco o sentimento; com os bichos comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem.

Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, mesmo encabulado perante mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia, mas, que havia de fazer!

Como nas fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é verdade, perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a posição do edifício não deixa o sol bater aqui, principalmente nesta época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro de casa e sentir logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do canarinho, relegado agora à área onde pelo menos ficava ao abrigo da viração marinha. Às vezes, quando sinto frio, vou à esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol. Ao mesmo tempo que compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos, mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas.

E o canarinho, pois? Levá-lo comigo dentro da gaiola, isso não, eu não tinha coragem. Não devo ter reputação de muito sensato, e lá se iria (como diz Mário Quintana) o resto do prestígio que no meu bairro eu ainda possa ter. Assim, vendo o passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo comum, nosso e dos passarinhos, dono de um sítio. A comunicação foi feita às crianças depois do café. Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o canarinho. A empregada viu e veio contar-nos.

Mas, cadê o menino? Voando? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois não o achávamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, atrás da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá estava ele, quieto e encolhido no escuro como no útero materno, com uma cara de expressão tão dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas.

O canário também tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua impossibilidade de ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca mais.

Mas voltou. Na hora do almoço a empregada veio dizer-nos que ele estava na janela do edifício que se constrói ao lado, muito triste. É verdade. Lá está o canarinho, sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, arrepiado e com fome. Um ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso canário-da-terra a doer em nossos olhos.

Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de corvo, dizendo never more. Esse refrão (never more) me deixa meio esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui em casa está triste, ridiculamente triste, nesta manhã luminosa de junho.

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Monteiro Lobato (Fitas da Vida)

Perambulávamos ao sabor da fantasia, noite a dentro, pelas ruas feias do Brás, quando nos empolgou a silhueta escura duma pesada mole tijolácea, com aparência de usina vazia de maquinismo.

– Hospedaria dos imigrantes – informa o meu amigo.

– É aqui então…

Paramos a contemplá-la era ali a porta do Oeste Paulista, essa Canaã em que ouro espirra do solo, era ali a ante sala da Terra Roxa – essa Califórnia do rubídio, oásis dor de sangue coalhado onde cresce a árvore do Brasil de amanhã, uma coisa um pouco diferente do Brasil de ontem, luso e perro; era ali o ninho da nova raça, liga, amálgama, justaposição de elementos étnicos que temperam o neobandeirante industrial, antijeca, antimodorra, vencedor da vida à moda americana.

Onde pairam os nossos Walt Whitmans, que não vêem estes aspectos do país e os não põem em cantos? Que crônica, que poema não daria aquela casa da esperança e do Sonho! Por ela passaram milhares de criaturas humanas, de todos os países e de todas as raças miseráveis, sujas, com o estigma das privações impresso nas faces – mas refloridas de esperança ao calor do grande sonho da América. No fundo, heróis, porque só os heróis esperam e sonham.

Emigrar: não pode existir fortaleza maior. Só os fortes atrevem-se a tanto. A miséria do torrão natal cansa-os e eles se atiram à aventura do desconhecido, fiando na paciência dos músculos a vitória da vida. E vencem.

Ninguém ai vê-los na hospedaria, promíscuo, humildades, quase muçulmanos na surpresa da terra estranha, imagina o potencial da força neles acumulado, à espera de ambiente propício para explosões magníficas.

Cérebro e braço do progresso americano, gritam o Sésamo às nossas riquezas adormecidas. Estados Unidos, Argentina, São Paulo devem dois terços do que são a essa verredura humana, trazida a granel para aterrar os vazios demográficos das regiões novas. Mal cai no solo novo, transforma-se, floresce, dá de si a apojadura farta com que se aleita a civilização.

Aquela hospedaria… Casa do Amanhã, corredor do futuro…

Por ali desfilam, inconscientes, os formadores duma raça nova.

– Dei-me com um antigo diretor desta almanjarra – disse o meu companheiro -, ao qual ouvi muita coisa interessante acontecida cá dentro. Sempre que passo por esta rua, avivam-me na memória vários episódios sugestivos, e entre eles um, romântico, patético, que até parece arranjo para terceiro ato de dramalhão lacrimogêneo. O romantismo, meu caro, existe na natureza, não é invenção dos hugos; e agora que se faz cinema, posso assegurar-te que muitas vezes a vida plagia o cinema escandalosamente.

Foi em 1906, mais ou menos. Chegara do Ceará, então flagelado pela seca, uma leva de retirantes com destino à lavoura de café, na qual havia um cego, velho de mais de sessenta anos. Na sua categoria dolorosa de indesejável, por que cargas d’água dera com os costados aqui? Erro de expedição, evidentemente. Retirantes que emigram não merecem grande cuidado dos propostos ao serviço. Vêm a granel, como carga incômoda que entope o navio e cheira mal. Não são passageiros, mas fardos de couro vivo com carne magra por dentro, a triste carne de trabalho, irmã da carne de canhão.

Interpelado o cego por um funcionário da hospedaria, explicou sua presença por engano de despacho. Destinavam-no ao Asilo dos Inválidos da Pátria, no Rio, mas pregaram-lhe às costas a papeleta de “Para o eito” e lá veio. Não tinha olhar para guiar- se, nem teve olhos alheios que o guiassem. Triste destino o dos cacos de gente…

– Por que para o Asilo dos Inválidos? – perguntou o funcionário. – É voluntário da Pátria?

– Sim – respondeu o cego – , fiz cinco anos de guerra no Paraguai e lá apanhei a doença que me pôs a noite nos olhos. Depois que cheguei caí no desamparo. Para que presta um cego? Um gato sarnento vale mais.

Pausou uns instantes, revirando nas órbitas os olhos esbranquiçados. Depois:

– Só havia no mundo um homem capaz de me socorrer: o meu capitão. Mas, esse, perdi-o de vista. Se o encontrasse – tenho a certeza! – , até os olhos me era ele capaz de reviver. Que homem! Minhas desgraças todas vêm de se ter perdido me capitão…

– Não tem família?

– Tenho uma menina que não conheço. Quando veio ao mundo, já meus olhos eram trevas.

Baixou a cabeça branca, como tomada de súbita amargura.

– Daria o que me resta de vida para vê-la um instantinho só. Se o meu capitão…

Não concluiu. Percebera que o interlocutor já estava longe, atendendo ao serviço, e ali ficou, imerso na tristeza infinita da sua noite sem estrelas.

O incidente, entretanto, impressionara o funcionário, que levou ao conhecimento do diretor. O diretor da imigração era nesse tempo o major Carlos, nobre de paulista dos bons tempos, providência humanizada daquele departamento. Ao saber que o cego fora um soldado de 70, interessou-se e foi procurá-lo.

Encontrou-o imóvel, imerso no seu eterno cismar.

– Então, meu velho, é verdade que fez a campanha do Paraguai?

O cego ergueu a cabeça, tocado pela voz amiga.

– Verdade sim, patrão. Vim no 13, e logo depois de chegar ao império do Lopes entrei em fogo. Tivemos má sorte. Na batalha de tuiuti nosso batalhão foi dizimado como milharal em tempo de chuva de pedra. Salvamo-nos eu e mais um punhado de camaradas. Fomos incorporados ao 33 paulista para preenchimento dos claros, e neles fiz o resto da campanha.

O major Carlos também era veterano do Paraguai, e por coincidência servira no 33.

Interessou-se, pois, vivamente pela história de cego, pondo-se a interrogá-lo a fundo.

– Quem era o seu capitão?

O cego suspirou.

– Meu capitão era um homem que, se eu o encontrasse de novo, até a vista me era capaz de dar! Mas não sei dele, perdi-o – para mal meu…

– Como se chamava?

– Capitão Boucault.

Ao ouvir esse nome o major sentiu eletrizarem-se-lhe as carnes num arrepio intenso; dominou-se, porém, e prosseguiu:

– Conheci esse capitão, foi meu companheiro de regimento. Mau homem, por sinal, duro para com os soldados, grosseiro…

O cego, até ali vergado na atitude humilde do mendigo, ergueu o busto e, com indignação a fremir na voz, disse com firmeza:

– Pare aí! Não blasfeme! O capitão Boucalt era o mais leal dos homens, amigo, pai do soldado. Perto de mim ninguém o insulta. Conheci-o em todos os momentos, acompanhei- o durante anos como sua ordenança e nunca o vi praticar o menor ato de vileza.

O tom firme do cego comoveu estranhamente o major. A miséria não conseguira romper no velho soldado as fibras da lealdade, e não há espetáculo mais arrebatador do que o de uma lealdade assim vivedoura até os limites extremos da desgraça. O major, quase rendido, sobresteve-se por um instante. Depois, firmemente, prosseguiu na experiência.

– Engana-se, meu caro. O capitão Boucalt era um cobarde…

Um assomo de cólera transformou as feições do cego. Seus olhos anuviados pela catarata revolveram-se nas órbitas, num horrível esforço para ver a cara do infame detrator. Seus dedos crisparam-se; todo ele se retesou, como fera prestes a desferir o bote. Depois, sentindo pela primeira vez em toda plenitude a infinita fragilidade dos cegos, recaiu em si, esmagado.

A cólera transfez-se-lhe em dor, e a dor assomou-lhe aos olhos sob forma de lágrimas. E foi lacrimejado que murmurou em voz apagada:
– Não se insulta assim um cego…

Mal pronunciara estas palavras, sentiu-se apertado nos braços do major, também em lágrimas, que dizia:

– Abrace, meu amigo, abrace o seu velho capitão! Sou eu o antigo capitão Boucalt…

Na incerteza, aparvalhado ante o imprevisto desenlace e como receoso de insídia, o cego vacilava.

– Duvida? – exclamou o major. – Duvida de quem o salvou a nado na passagem do Tebiquari?

Àquela palavras mágicas a identificação se fez e, esvanecido de dúvidas, chorando como criança, o cego abraçou-se com os joelhos do major Carlos Boucalt, a exclamar num desvario:

– Achei meu capitão! Achei meu pai! Minhas desgraças se acabaram!…

E acabaram-se de fato.

Metido num hospital sob os auspícios do major, lá sofreu a operação da catarata e readquiriu a vista.

Que impressão a sua, quando lhe tiraram a venda dos olhos! Não se cansava de “ver”, de matar as saudades da retina. Foi a janela e sorriu para a luz que inundava a natureza. Sorriu para as árvores, para o céu, para as flores do jardim. Ressurreição!…

– Eu bem dizia! – exclamava a cada passo – , eu bem dizia que se encontrasse o meu capitão estava findo o meu martírio. Posso agora ver minha filha! Que felicidade, meu Deus!…

E lá voltou para a terra dos verdes mares bravios onde canta a jandaia. Voltou a nado – nadando em felicidade.

A filha, a filha!…

– Eu não dizia? Eu não dizia que se encontrasse o meu capitão até a luz dos olhos me havia de voltar?

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

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P. Preto (As Lembranças dos Velhos Carnavais)

Carnaval de Rua, em 1954, na Cinelândia
Este espaço despretensioso das quintas-feiras é lido, aqui em Jahu, entre outros, pelo ilustre mestre Sebastião Antonio da Silva Neto, o conhecido Professor Sebá, profundo conhecedor da língua portuguesa. Em São Paulo, pelo Otacílio Gomes, filho do autor da bem elaborada letra do hino “Asas do Jahu”. Também na capital, meus textos são lidos pelo maestro Julio Medaglia, uma autoridade em música clássica, sob cuja batuta estiveram grandes orquestras, inclusive a Sinfônica do Estado de São Paulo.

O carnaval – ou o que resta dele – está aí, batendo em nossas portas, anunciando o seu fim quase melancólico, pelo menos em muitas cidades que não o exploram como atração turística. Aqui ele já foi bem cultivado. Aos poucos – como em outras localidades – foi se apagando. Os bailes rarearam em razão da falta de público, o afastamento progressivo das famílias, custo das bandas e orquestras, que, com os anos, deixaram de existir, além de outros detalhes que influíram nas decisões dos diretores de clubes. Sinal dos tempos e mudanças de costumes trazidos pela modernidade.

Só os mais velhos conseguem lembrar-se dos antigos “corsos”, ou seja, aqueles desfiles de carros pelas ruas centrais, que aconteceram entre as décadas de 40 e 60, com pessoas nas carroçarias de caminhotes, caminhões ou até sentadas nos para lamas, distribuindo confetes, serpentinas, além das trocas de jatos dos lança-perfumes. Claro, tudo isso apenas para os poucos possuidores de veículos. Nós, os moleques do início dos anos 50, moradores da rua Humaitá, pegávamos carona na Chevrolet verde da família Santana Galvão e fazíamos a festa. O povo permanecia em pé, nas calçadas, parecendo divertir-se com tudo aquilo. Não existiam exageros. Tá bem, de vez em quando algum adulto saia da linha. Mas, afinal de contas, era carnaval. E as histórias rapidamente corriam a cidade. Aos poucos, tudo foi acabando. E nem poderia ser diferente. Depois, era só ir confessar com o Padre Serra e receber as cinzas na quarta-feira e tudo voltava à normalidade.

Os quatro bailes noturnos eram assunto desde o início do ano. Esperados por muitos, evidentemente, pelas oportunidades que ofereciam, começando pelas fantasias de havaianas, que possibilitavam visões paradisíacas. Tomemos um exemplo, já em pleno 1968, com os ventos da modernidade varrendo os tradicionalismos para baixo do tapete. O Aeroclube prometia “Uma Noite no Inferno”, com cadência da Orquestra Continental que, dividida em duas, também seria a responsável pela animação no Grêmio Paulista, com a sua “Noite das Brasas”. O Caiçara Clube também abria seus amplos salões, contando com os tradicionais acordes da Orquestra Capelozza. Era uma espécie de canto do cisne do carnaval nos clubes. Eles ainda permaneceriam por quase duas décadas, alegrando os foliões. O que aconteceu? Isso talvez não importe agora. Os jovens de hoje tem outras visões e opiniões. Talvez aqueles repertórios tradicionais de marchinhas e sambas não lhes digam nada.

Em 1974, Momo ainda mantinha seu reinado. O carnaval de rua havia se tornado grandioso, com as disputas entre as escolas de samba Faixa Branca, Ponte Preta e Acadêmicos do Samba, além dos carros alegóricos bolados por um gênio chamado Francisco Canhos. Maria Claudete Tiete, candidata do Grêmio Paulista conquistava o título de rainha, enquanto o clube promovia uma noite especial, com a presença do cantor Djalma Pires, além da cadência do conjunto Original Som, trazido da cidade de São José do Rio Preto. No Aeroclube, o pessoal da Capelozza mantinha um ritmo imbatível, aquele que a tornou inesquecível para várias gerações. A Sociedade Recreativa José do Patrocínio, instalada bem ao lado da Praça Siqueira Campos, onde hoje funciona uma loja, contava com a arte do jauense Nadinho, uma autoridade em música e que, com sua partida, deixou uma eterna saudade.

Em breve Momo reinará. Lá do fundo dos corações virão “as lembranças dos velhos carnavais…”

Fonte:
União Brasileira de Escritores
http://www.ube.org.br/espaco-do-autor-detalhe.asp?ID=1249

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Arquivado em Estado de São Paulo, Jaú, O Escritor com a Palavra

Walcyr Carrasco (A Saga dos Carecas)

 Ser careca é um drama. Pessoalmente, não acredito que, por falta de cabelos, alguém seja mais ou menos charmoso. Mas as pessoas adoram fiscalizar. Tenho duas entradas desde os 20 anos de idade. Nunca aumentaram. Basta ficar sem ver alguma amiga alguns meses para ouvir:

– Ih… Você está ficando careca?

– Não, sempre fui assim.

Ganho um sorrisinho de dúvida. Piadas não faltam. Tive um tio com uma calva pronunciada. Passou a vida toda recebendo mimos:

– E aí, como vai o aeroporto de mosquito?

– Já lustrou?

Durante muito tempo não imaginei o desconforto. Só minha tradicional falta de tato me apontou a seriedade da questão. Um amigo estava passando um remédio caríssimo, último lançamento. Três fios solitários espetados no alto da cabeça. Todos os dias ele se mirava no espelho, esperançoso.

– Estão nascendo, estão nascendo!

Até que eu disse:

– Por que não junta os três e faz uma chuquinha, bem para cima?

Olhar de ódio absoluto. Nunca mais brinquei. Passei os anos seguintes tentando ser solidário.

– Puxa, já tem quatro fios! Que bom, parabéns!

Ou:

– Tenha paciência. É que nem horta. Tem de plantar, adubar, esperar crescer… Um dia a colheita vem!

Na praia o dito-cujo passava protetor solar na pele reluzente!

Em compensação, há quase um MSC – Movimento dos Sem Cabelos. Outrora criaram um refrão: “É dos carecas que elas gostam mais…”. Propaganda, sem dúvida. Falando francamente, nem sempre os carecas ajudam. Inventam estratagemas.

Alguns deixam o cabelo crescer de um lado e depois penteiam por cima da calva. Fica estranhíssimo, com os ralos fios tentando superar o deserto do topo. Outros apelam para uma franja comprida, que começa atrás das orelhas e cobre toda a frente. Se bate vento, é uma revelação! E os que botam aquelas meias perucas modernas? Depois de instaladas, recebem um corte semelhante ao dos cabelos, para dar a impressão de uma única e viçosa plantação. Sempre há uma franja juvenil, mas milagre ninguém faz. Com o tempo, os cabelos normais crescem. A peruca, não. Resta o topo certinho. Em torno, um jardim selvagem!

Massagens. Estímulos para abrir os vasos capilares. Extratos vegetais capazes de deixar um odor estranho por semanas! Implante? A calva é preenchida com uns tufos ralos, à espera de que floresçam. Deve ser mais fácil plantar soja! Um tratamento puxa a pele de trás para a parte da frente da cabeça. O redemoinho fica na altura da testa! Um amigo lançou mão de um artifício trágico: pintou a calva de preto. Encontrei-o de noite e fui enganado:

– Como conseguiu?

Da vez seguinte nos cruzamos em um shopping, de tarde. Vi a tinta! Parecia quase… piche! De perto, era horrendo. Procurei agir educadamente, o que é horrível nesse tipo de situação. Tentava desviar os olhos. Quando dava por mim, estavam pregados na área asfaltada!

Admiro quem assume a calva. Vários amigos raspam a cabeça toda. É um estilo. Também não fica mal quem deixa a careca aparecer, rodeada por cabelos. Sem disfarce.

Depois de certa idade, os pêlos nascem por todos os lados. Nas orelhas. No nariz. As sobrancelhas transformam-se em taturanas. Para muitos homens, dá para fazer trancinhas rastafári no peito! Sem falar de outras áreas inomináveis. Só não nasce cabelo na cabeça!

Eu me solidarizo com os carecas. A genética, de fato, é bem injusta para com a vaidade humana!        

 Fonte:
http://veja.abril.com.br/vejasp/250106/cronica.html

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Arquivado em Bernardino de Campos, Estado de São Paulo, O Escritor com a Palavra

Elias José (Um Pássaro em Pânico)

 Era sempre aquele pânico antes da luz do dia se anunciar. Muita gente falava em solidão noturna, outras a sofriam de madrugada. Uma amiga (no tempo em que ela tinha amigos) até lhe dizia que a dela chegava sempre às sextas-feiras. Antes do dia, intervalo entre a madrugada e a manhãzinha, é que ela ia sentindo sufocar-se, uma vontade imensa de ter alguém para ouvir o ronco ou trocar algumas frases sonolentas. Sozinha no mundo e não adiantava fechar os olhos, não dormiria mais.

Não adiantava contar as tábuas do forro, tentar reconstituir o hábito antigo. Não havia tábuas, só a laje, o lustre e a lâmpada. Inútil inventar cantos de galos ou pássaros, coisas de manhãs distantes. No passado, ela ouviu sempre estórias de medos ou mitos, mas não chegou a sentir-se envolvida em nenhuma das duas coisas. Talvez um medo, muito forte, fosse preferível ao pânico real, tocável, que estava ali em seu corpo, nas carnes, na alma. Nenhum deus a quem pudesse pedir socorro, nenhum mito ou herói em quem acreditar.

Sabia que havia chegado a tal estado de depuração que os sonhos eram analisados e estava podada qualquer possibilidade de se iludir. Não alimentava mistérios, mas não sabia também arrancar aquele peso por dentro. As interrogações se intrometiam sem ela perceber. Havia um telefone e vários números que poderiam servir de socorro. Não discaria nenhum número, enfrentaria o cotidiano peso de amanhecer solitária num leito de casal. Em outros tempos, inventaria fugas, drogas, bebida, fumo.

Agora, conhecia todos os perigos do abismo e não estava mais perdida em nenhum abraço, em sonho nenhum. Era preciso inventar um mundo real, onde só ela coubesse, sem intromissões. Não naufragaria mais, tentando salvar os outros ou salvar-se. As pessoas devem aprender o valor de serem sós. Até acreditavam que havia aprendido, mas naquela hora do dia, só ela sabia da dor, das serpentes picando o corpo, das mãos pedindo abrigo como as aspas suspensas no ar. Do banheiro vinha aquele cheiro forte do desinfetante de eucalipto e era vida que a brisa trazia ao quarto.

Não seria mais interessante abrir todos os sentidos e buscar companhia na vida e não nas pessoas. O cheiro era nítido, provocante, ia além do olfato. A empregada poderia fazer limpeza no banheiro todas as tardes e, assim, teria o cheiro bom todas as manhãs. Era melhor mudar as coisas de seus lugares, encher o quarto de quadros, capas de discos, colagens, coisas que atingissem mais fundo que a visão.

Mas não seriam formas diferentes de cultuar pessoas, mitos, deuses? Na falta da música antiga que os pássaros traziam, num tempo em que havia pássaros e árvores e a casa, poderia ligar o toca-fitas. Não, a música pioraria tudo. A música sempre traz fantasmas, com seus vultos estranhos e pouco nítidos. Música não alivia ninguém, música excita, provoca, mexe por dentro, destrói fingindo que está construindo. Um livro, quem sabe um bom livro de poemas? De poemas, nunca! Os poetas nos destroem mais que a música.

Todos os versos trazem cargas sintéticas e poderosas de amargura e necessidades de integração. Não queria saber de nada que lembrasse integração. Não sabia por que, mas, naquela hora, estava lembrando-se de quando atendeu à porta e era a moça que havia lido o anúncio e procurava o emprego.

A moça mal conseguia articular uma frase, uma grande qualidade, bem dentro das exigências do anúncio: moça que não durma no emprego, alfabetizada, que seja discreta e fale pouco. Com o tempo, começou a querer soltar a língua e houve toda aquela repreensão: nada de conversas, de intimidades, pagava para que não entrassem em sua vida, não queria saber de estórias e problemas, detestava a mania que as domésticas tinham de querer se envolver nas estórias dos patrões e, ao mesmo tempo, fazendo com que eles também se sentissem envolvidos nas vidinhas delas.

Agora, o que doía era o silêncio pleno, o apenas: “bom-dia, posso servir o almoço?, posso servir o jantar?, até amanhã, às ordens, patroa, sempre às ordens, obrigada”.

As horas que passava no apartamento, fora do serviço, eram de paz, apenas quebradas pelo ruído da enceradeira, do liquidificador ou barulho que vinha da rua. Era bom sentir-se assim, ter um lugar onde não precisasse conversar tanto como no trabalho. O bom seria nem trabalhar, para não ter que tolerar aquelas conversas estranhas, que provocam náuseas. Triste não ter o direito de não ouvir coisas supérfluas.

As palavras deveriam custar dinheiro, ser bastante caras, assim não as gastariam com futilidades. Se cada pessoa procurasse ficar mais dentro dela mesma, sem esperar pelos sorrisos do vizinho, a vida seria mais densa. Era preciso selecionar cada frase, economizar os sorrisos, só dizer um elogio ou fazer um carinho quando houvesse uma necessidade interior muito intensa. Não suportava os sorrisos e falas fáceis das colegas de trabalho. Elas conseguiram esgotar a linguagem e vivem dizendo, mostrando, sem conseguir comunicação. E como possuíam rótulos para classificá-la! Era a fera, a orgulhosa, a perfeita, a feita de pedra, a insensível, a fria, a calculista. Por dentro, só ela sabia o peso e o preço de se fazer assim. Seria mais fácil fingir e ser também usada por todos.

Ela sabia, por experiência, como era duro não se pertencer, sorrir para todos, satisfazer os chefes, dar presentinhos nos aniversários de todas as colegas, ser sociável até que chegue a um ponto que nem o estômago perceba mais. Era preferível sentir a náusea, reagir. Afinal, não tinha o menor sentido aquele tempo em que suas mãos, quentes e ávidas, percorriam aqueles corpos todos, procurando neles facilidades econômicas ou posições não merecidas.

E naquele tempo, tudo lhe mostrava a verdade, o lado torpe das transações. As coisas pesavam e não davam nenhum prazer. O único homem que amou, que tentou fazer dele coisa só dela, foi o que mais a humilhou, o que lhe jogou na cara o que não percebia, tão iludida estava. Sem perguntas, sem respostas, fechou-se, certa que só há compensação quando se cria um mundo só da gente, sem fantasia, sem planos, sabendo de cada atitude, dos outros e da gente.

Era interessante aceitar, vez por outra, um galanteio, sair com alguém para um jantar ou boate, sem envolvimentos maiores de pele ou alma. Era bom, pois dava uma certeza de que a beleza ainda existia e, se quisesse, provocaria sede e fome. Não seria água nem comida fácil. Sua carne de fêmea em idade de cios doía, apunhalava fundo. Era preciso usar o corpo sem atingir a essência e aquelas horas de aceitação eram horas de aprendizagem.

Ontem, a aprendizagem foi longa e a entrega quase se deu. Agora, com a manhã se anunciando, a solidão doía muito, provocava um desejo estranho no corpo, uma vontade de gritar, pedir socorro. Agora, não queria apenas alguém deitado ao lado, roncando ou ouvindo palavras sonolentas. Queria amanhecer nos braços de um homem, braços fortes, ombros em que ela pudesse arranhar com a fúria acumulada em tantas manhãs de mentiras e vazios.

Mordeu os próprios braços, sentiu na boca um gosto quente de água e sal. Era apenas um corpo quente e inútil, estátua sem vida, uma serpente sem veneno, carregada de ternura. Não adiantava fantasiar um mundo lógico, seria o mesmo engano, uma fuga com infiltrações invisíveis que acabariam por estourar mais doloridamente. Entre aquelas duras horas de insônia e a noite, haveria muito tempo para estudar uma maneira de conceder ao corpo alguma saída para a satisfação.

Amanheceu por completo. Levantou-se, o café estava pronto e, sem sentir, chamou a moça para sentar-se com ela, fazer companhia. Ela sentiu que não era um pedido, era quase uma ordem e sentou-se.Dois minutos depois, olhava surpresa para a moça e teve vontade de mandá-la para o serviço. Mas os olhos, assustados e inutilmente olhando para a cafeteira, fizeram com que ela retomasse o fio dos acontecimentos. Teve ódio de estar cedendo.

Mas não podia negar que a empregada, mesmo calada, dava-lhe ma: 0″> Mas não podia negar que a empregada, mesmo calada, dava-lhe mais segurança, uma pequena certeza interior de que as coisas não estavam totalmente perdidas. Sem querer, sentiu muita ternura pela moça e, pela primeira vez, tentou examiná-la melhor.

Descobriu um rostinho infantil e sofrido, dois olhos inexplicavelmente medrosos, alguém que estava tomando café, mas que deixava claro que preferia estar muito distante dali, dela. Quis puxar assunto, perguntar a idade, saber alguma coisa daquela criatura que vivia naquela mesma casa há quase um ano. O orgulho foi maior.

Apressou-se, tomou o copo de leite, não tocou no pão, na manteiga, na geléia, apenas mais uma xícara de café e saiu da mesa, fingindo estar atrás de um fósforo.

Mais uma vez, ficou com a empregada a impressão de estar trabalhando com uma biruta. Pela primeira vez saiu com a patroa a imagem da mocinha e a certeza de que estava lidando com gente e era preciso ter o máximo cuidado para não se queimar outra vez.

E o que doía mais é que se via como uma serpente, enquanto a moça parecia um pássaro em pânico, perplexo, assustado.

Fonte:
Elias José. Pássaro em Pânico. Editora Ática.

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Manoel Vicente da S Neto (Minha Poltrona Favorita)

Um dia, eu acho que foram vários, talvez anos, bem não me lembro exatamente quando eu escutei, parecia-me que alguém estava a gritar, mas achava que era fantasia de minha cabeça, o grito parecia um sonho desses que nós temos de manhã e tende-se logo a esquecê-lo, você tenta lembrar, mas não lembra, e fica sensação do sonho, bem o tempo foi passando e aquele grito continuava como algo longínquo, como um eco a reverberar, difícil de entender, inaudível, mas o grito não era normal, era com certeza de alguém desesperado e isso me afligia um tormento sem fim que estava ficando insuportável naqueles dias, não me deixava dormir, o grito que eu escutava era inaudível, um sussurro gritado, como um grito abafado pelos travesseiros, aquele grito estava inundando minha cabeça, estava me deixando louco, cada vez mais alto e ao mesmo tempo inaudível, o grito continha um choro bem baixo, um choro perturbador de angústia ou de medo que apertava meu peito.

 No final de semana resolvi sair, beber com meus amigos para me distrair, talvez o fato de morar só e viver uma vida reclusa estava me afetando, no bar aquele papo de sempre futebol, mulher, carro, mulher, futebol…

 Mas entre um gole e outro os gritos estavam lá, o grito desta vez estava bem alto, o grito eu escutei o grito claramente que dizia:

 – ajude-me, por favor.

 Um pavor percorreu todo meu corpo, um suor frio desceu de minha fronte e deixei o copo cair no chão, e ele quebrou-se em vários pedaços ainda com o reflexo do meu medo e falei:

 – vocês ouviram esse grito?

 Meus amigos olharam para mim espantados e começaram a rir e disseram:

 – acho que você bebeu demais!Vamos, nós te levamos para casa.

 Mas eu não estava bêbado, eu sei quando estou bêbado, mesmo assim fui para casa contrariado, um grito desses como ninguém ouviu?Será que dei para escutar vozes agora?

 Chegando em casa sento-me na minha poltrona favorita e a mais cara também, pois um homem que se preze tem uma poltrona macia e confortável para assistir seu futiba e seus programas favoritos ou mesmo para ler um bom livro depois de oito horas de trabalho, demorei doze meses para paga-la, mas valeu cada centavo,enfim sento-me na minha poltrona, respiro fundo e acendo um cigarro e escuto o silêncio como eu nunca o tinha escutado antes, mas o silêncio durou apenas alguns segundos, de repente eu escuto o grito estou com a sensação de que alguém estar esmagando meu peito, um sussurrar ensurdecedor de gritos abafados como se alguém estivesse morrendo, torturado e pedindo para ajudar-lhe.ligo a tevê rapidamente na tentativa de me distrair, em vão entre um comercial e outro os gritos estão lá.

 O tempo está passando muito devagar são duas e trinta e cinco da manhã, desligo a tevê, vou a cozinha tomar um gole de café para manter-me acordado, eu não posso dormir, não agora!

 Minha visão está ficando turva, será que bebi demais mesmo?

 Minha cabeça eu não agüento mais, aquele grito inundando minha cabeça, não me deixa pensar aquele grito, aquele choro, sinto-me desfalecer, não consigo manter meus olhos abertos, quanto mais eu tentava não escutar os gritos, eles ficavam cada vez mais altos, acho que vou vomitar sinto-me desfalecer…

 Sinto alguém atrás de mim e os gritos estourando alto-falantes, estou apavorado, não consigo abrir meus olhos, meus deus tem alguém aqui!

 Os gritos estão mudos somente o choro eu escuto, e as lágrimas estão caindo sobre mim lágrimas mornas e amargas como sangue, não mais pingavam, mas jorravam sobre mim ensopando-me de sangue ou lágrimas.

 Tinha que ver quem gritava, chorava e sofria a quem eu ignorei por tantos anos, não sei como, mas ele estava ali bem atrás de mim, tremendo de medo tentei abrir os olhos e consigo um arrepio percorreu todo meu corpo, e vi uma luz fúnebre que iluminava toda a sala, como se apenas uma vela a iluminasse, a luz tremia, o resto era sombras e escuridão.

 Quase desmaiando, virei-me de vez para ver quem chorava aquele choro familiar, mas não consegui me lembrar aonde eu escutara, ao olhar para a figura atrás de mim um grito de horror eu dei ao ver-me morto, sentado na minha poltrona favorita.

Fonte:
Garganta da Serpente

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Abilio Terra Junior (O Mundo de Maíra)

Sim, perdera o sono, não havia dúvida. O cachorro do vizinho latia, talvez porque percebera que ele havia acendido a luz do quarto! Essa não!

 Passou a mão na lapiseira e em uma folha de papel em branco, colocou os óculos.

 Lembrou-se, então, da mestria com que Maria Luiza Ramos analisava “Maíra”, de Darcy Ribeiro, em seu livro “Interfaces”, que estava lendo. Dois universos distintos, o indígena e o urbano/branco, os conflitos de Alma e de Isaías, a mulher branca que se lança de corpo e alma à vida entre os índios, sem volta, e o índio aculturado que perdeu o rumo, sente o chamado das origens, mas perdera a sua alma no contato com o mundo do racionalismo e do dogma.

 Não seria esse um conflito dele também, e, em última instância, inerente à psique de todo o seu povo? A luta íntima entre o cotidiano mágico, místico e ritualístico, que lhe chamava das profundezas do passado, e a dura realidade, cartesiana, em parte, opressora e polarizada, em outra, que se apresentava ante seus olhos, mente e sentidos.

 Não estava ele lutando todo o tempo nesse multifário mundo sinistro e desordenado, com sua alma decomposta em duas, ou em três faces distintas, que, angustiadas, gritavam, na pungente busca de se expressar?

 O mundo ancestral mítico fora rompido violenta e tragicamente, dando lugar a um novo sistema de valores, patriarcal, apoiado em rotinas econômicas, com um poder centralizado, e uma religião severa e seca, regida por dogmas estreitos, que ensinavam o medo e a subserviência.

 Daí a sua timidez peculiar ante os desafios do destino e a sua frágil relação com o poder, fosse ele hierárquico – profissional, familiar, exógeno, religioso… e não era o mesmo que percebia em muitos dos seus conterrâneos?

 E aquela sua busca dionisíaca, poética, barroca, do substrato vital, como uma correnteza sensorial que percorria o seu sangue e batia sincopada em suas têmporas.

 Os passarinhos cantavam e o novo dia prometia, como sempre, boas novas. Ele respirava fundo e ainda escrevia.

 Tentaria dormir agora. Repousaria o seu corpo e a sua alma em um sono sereno. Sonharia com as antigas eras, voando em forma de pássaro pelos céus lendários, tentando vislumbrar o deus Maíra, amigo da humanidade.

Fonte:
Garganta da Serpente

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Affonso Romano de Sant’Anna (Belafonte e Mister Ibidem)

Olhem que estorinha mais comovente narrada por Harry Belafonte num documentário sobre sua vida feita em Cuba quando ele lá esteve.

 Quando garoto, no Harlem, não tinha uma vida diferente dos outros garotos pobres. Sua mãe trabalhava heroicamente e ele mesmo livrava algum levando daqui para ali listas com resultados do jogo. Isto lhe dava uma sensação ambígua. Ao mesmo tempo em que se sentia útil ganhando algum dinheiro, também tinha um secreto prazer em transgredir a lei. Sentia-se, como os negros, ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade.

 Sua vida passou por uma mudança súbita quando entrou para o Exército. Chegou às suas mãos um livro escrito por um famoso lutador de boxe negro. Ficou imediatamente seduzido pelas palavras do autor e pelas suas idéias. Pela primeira vez teve noção de que os negros também podiam ter certa dignidade diante da vida. Ia lendo e se maravilhando. O autor contava suas experiências pessoais para sobreviver na sociedade controlada pelos brancos, mas, ao mesmo tempo, despertava uma consciência de luta. Aquilo tudo era novo para Belafonte. Falar dessas coisas ainda não era permitido, como nos anos 60, abertamente.

 Lendo o livro, deu-se conta de algo curioso. No meio das frases, às vezes aparecia um número. Um número em cima de certas palavras. Achava aquilo estranho, mas não tinha coragem de perguntar ao seus colegas de armas sobre o significado de tais números. Ia lendo, e, de repente, surgia aquele número lá em cima.

 É claro que acabou descobrindo que havia uma relação entre esses números e uma série de observações que vinham no pé da página. Às vezes era algum comentário, outras vezes apenas a indicação de um livro.

 Então ele pensou: se esse homem que é tão importante está citando esses livros e esses autores, é sinal que esses autores e livros também são importantes.

 Não teve dúvidas. Anotou todos aqueles autores de livros e resolveu também lê-los. Foi assim fazendo a sua bibliotecazinha particular.

 Belafonte, no entanto, notou uma outra coisa intrigante nas leituras que fazia. Entre os muitos autores citados pelo seu ídolo, havia um tal de Ibidem.

 Pensou: esse Ibidem deve ser realmente importante, pois aparece em quase todas as páginas. E se ele é o mais citado, é esse o autor que devo ler com mais cuidado e carinho.

 Quando regressou da guerra, resolveu então comprar todos os livros que encontrasse desse senhor Ibidem. Além do mais, pela legislação amaericana, os que foram para a guerra (e especialmente os negros) teriam acesso à universidade sem nenhuma exigência. Era uma forma de o sistema pagar seus remorsos e gratificar seus defensores.

 O que fez, então, o nosso Belafonte?

 Não teve dúvidas. Numa das primeiras manhãs em Nova York começou a percorrer as livrarias procurando livros do seu autor favorito: o senhor Ibidem.

 Entrava nas lojas meio sem jeito, começava a fuçar daqui e dali e nada. Passava das estantes de história para as estantes de psicologia e depois para as de filosofia e artes e nada.

 Procurava, procurava e não dava com nenhum livro assinado pelo tal Mr. Ibidem.

 Vencendo o natural constrangimento do negro na sociedade dos brancos, ousou perguntar a uma velhinha, que trabalhava numa dessas livrarias, se ela tinha livros de um escritor chamado Ibidem. Ela lhe disse que tal escritor não existia. Ele, furioso, chamou-a de racista, acusou-a de sonegar-lhe informação porque era preto. Brigou e saiu.

 Contando isto aos amigos, eles caíram na sua pele e lhe explicaram que ibidem não era autor, era uma informação nas notas dos livros significando: do mesmo autor, da mesma obra. Arrependido, voltou correndo à livraria para se desculpar com a velhinha. E ela não estava mais lá. Abandonara o emprego. Seguramente por minha causa, concluiu Belafonte, cheio de remorsos.

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Marcial Salaverry (Regresso à Casa do Lago)

Fotografia por Diana Pereira
As recordações da infância sempre nos assaltam a memória.

 Buscamos as origens, procurando explicações para os fatos que nos levaram a tomar determinados rumos em nossa vida.

 Depois de longos anos afastado de minhas origens, ao saber que meu pai havia falecido, resolvi voltar ao passado, rever os fantasmas que me haviam afastado do convívio familiar.

 Ao entrar no trem que me levaria àquela pequena cidade onde vivera na minha infância,

 as imagens começaram a chegar à minha memória… aquela casa enorme, imponente, às margens do lago era o ponto marcante de tudo.

 A obsessão com que meu pai fazia questão de marcar as origens de nossa família, sempre entrava em choque com minha maneira de pensar.

 A mansão familiar ocupava um amplo terreno, dominando o lago. Considerava o ponto ideal para um hotel de luxo, aproveitando o visual, a topografia do terreno. Seria realmente um grande sucesso. Poderia fazer fortuna com esse empreendimento. Já havia uma incorporadora que desejava executar a obra.

 Tentei convencer meu pai a fazê-lo. Negou-se peremptoriamente. Disse que jamais macularia as tradições familiares por causa de dinheiro.

 Jamais me esquecerei da última discussão… Trocamos palavras amargas demais. Chamei-o de velho teimoso e retrógrado e coisas mais pesadas. Terminei dizendo que iria viver minha vida, e que não queria mais vê-lo… Mal sabia que não o veria mesmo.

 Consegui relativo êxito em minhas tentativas, sempre tropeçando no que meu pai sempre me dizia… minha precipitação, minha urgência em querer conseguir tudo.

 Muitas vezes me vi tentado a voltar, e reconhecer que ele estava certo. Mas a teimosia era hereditária. Recusava-me a admitir minha incapacidade para o enriquecimento que prometera a ele. Dissera que só voltaria após fazer fortuna. Rira quando ele disse que a fortuna estava ali, nas origens da família.

 Ao desembarcar na estação, e pegar o táxi que me levaria à mansão, que agora poderia vender e fazer o hotel de meus sonhos, era só nisso que pensava.

 Mas agora… sentado onde costumava ficar com meu pai… em um outeiro um pouco afastado da mansão, local que propicia uma visão fantástica da mansão, refletindo-a inteiramente nas mansas águas do lago.

 Fiquei absorto contemplando aquela imagem que me levava à infância, às conversas que sempre tivera com ele… e que tanta falta me fizeram depois, nos tropeços que dei pela vida afora.

 O casarão, imponente, lembrava as tradições que meu pai tão ferrenhamente defendera. Acontece que sua imagem, curiosamente refletia-se nas mansas águas do lago, como se estivesse de cabeça para baixo, ou seja, ao contrário.

 Naquele instante, as águas como que pararam, ficaram totalmente imóveis… Vi então, o que fizera de minha vida… a deixara de pernas para o ar, tentando provar alguma coisa, que agora me parecia totalmente irrelevante.

 Por causa disso, dessas minhas idéias, tinha perdido anos de convivência com minha família.

 Essa imagem da mansão refletida no lago, fez-me ver o que fizera de minha vida, movido por uma ambição sem limites.

 Tomei então a decisão. Iria voltar àquele vetusto casarão, trazer minha família e ensinar aos meus filhos toda a história familiar, procurando fazer com eles possam sentir o orgulho que eu sentia quando era criança, e que depois desprezei.

 Espero que não tenham que sentir sua vida, como senti a minha, vendo a imagem da mansão refletida nas plácidas águas do lago…

Fonte:
Garganta da Serpente

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Affonso Romano de Sant’Anna (A Mulher Madura)

O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

 De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria.A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

 Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

 A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

 A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

 A adolescente, com o brilho de seus cabelos , com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

 A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto, as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

 O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

 Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem `a mulher pobre, mas vem com tal violência, que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

 Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

 Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

 A mulher madura está pronta para algo definitivo..

 Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir `a Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

 A mulher madura é um ser luminoso e repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe , mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

 Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

Fonte:
Contos do Coral

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Hélio Consolaro (A Busca da Imortalidade)

Em sala de aula, explicando o tema da redação, ecologia, passei a mão pela cabeça e percebi uma área devastada no cocuruto, uma tonsura. Fiz uma pausa na explicação, para surpresa dos alunos. Mal sabiam que seu professor filosofava, e até se lembrava de um verso de Fernando Pessoa: “Nem sei bem se sou eu quem em mim sente”.

 Era um momento que o eu esgrimia com o universo, a criatura questionava seu criador. Dizem que nosso mal é se dar muita importância. Ninguém é educado para ser o tijolo de uma construção, todos querem ser o telhado, embora sejamos mesmo sempre a peça menor da construção. Então, na hora em que descobrimos a nossa insignificância, em vez de crescermos na humildade, a depressão nos invade.

 A proximidade da finitude é a apoteose desse sentimento. Nele passamos a entender a vida, mas ela acaba, e nem sabemos direito se continua ou não, como prometeram nas homilias.

 Nem me atrevi a explicar àquelas pessoinhas em início de trajetória pensamentos tão escabrosos. Para elas, o mundo começava a existir no momento do nascimento, agora que aprendiam aulas de História, se ligavam à marcha da humanidade. A vida era uma estrada longa, interminável, que nunca ia acabar. Ledo engano, mas viver o engano faz parte do show.

 O pseudomilitante do Greenpeace que esgoelava pensamentos ecológicos a jovens imberbes, a título de passar-lhes argumentos para a montagem de um texto dissertativo, queria mesmo era poetar. Quem o professor tanto defendia o atacava sorrateiramente via espelho. E a natureza era cruel, sempre agia friamente, sem nenhuma compaixão, como se eu fosse um detalhe sem importância, um parafuso desgastado de uma máquina.

 De repente, a natureza me arrebata como uma peça que já cumpriu a sua função e meu túmulo será visitado em Dia de Finados. Confesso, caro leitor, que não sou o primeiro a ter tais pensamentos. Sei também que tento ser original, mas tenho consciência de que os outros gritam em mim. O plágio só não é encontrado no texto n.º 1, mas ninguém o conhece, talvez tenha ficado com o Criador no Éden. Ou eram rabiscos de macacos bonobos. Então vivemos de um plagiar o outro.

 Como sou um sujeito que esperneia, que quer construir sua própria imortalidade, nem que seja numa cidade de interior, deixo livros, crônicas, e textos esparramados por jornais e internet. Talvez redigirei meu próprio epitáfio.

 Assim, hoje, percorro as ruas da cidade dos mortos. Um mundo virtual que teima em ficar em forma de arremedo. E novamente verso de Fernando Pessoa me vem: “Eu serei tal qual pareço em mim?”

Fonte:
Contos do Coral

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Monteiro Lobato (Uma História de Mil Anos)

–Hu… hu…

É como nos ínvios da mata soluça a juriti.
Doishus – um que sobe, outro que desce.

O destino dou!. .. Veludo verde-negro transmutado em som – voz das tristezas sombrias. Os aborígenes, maravilhosos denominadores das coisas, possuíam o senso impressionista da onomatopéia. Urutau, uru, urutu, inambu – que sons definirão melhor essas criaturinhas solitárias, amigas da penumbra e dos recessos?

A juriti, pombinha eternamente magoada, é todaus. Não canta, geme emu – geme um gemido aveludado, lilás, sonorização dolente da saudade.
O caçador passarinheiro sabe como ela morre sem luta ao mínimo ferimento. Morre em u…
Já o sanhaço é todoas. Ferido, debate-se, desfere bicadas, pia lancinante.

A juriti apaga-se como chama de algodão. Frágil torrão de vida, extingue-se como se extingue a vida do torrão de açúcar ao simples contato com a água. Umu que se funde. Como vivem e morrem juritis, assim viveu e morreu Vidinha, a linda criança afinada emu. E como não seria assim, se era Vidinha uma juriti humana – meiguice feita menina-e-moça, begônia sensível dos grotões?

Que amiga dos contrastes é a natureza!

Ali naquele barraco crescem no árido as samambaias. Rijas, ásperas, corajosas, resistem aos ventos, aos enxurros, ao cargueiro que as esbarra, ao viandante distraído que as chicoteia. Batidas, reerguem-se. Cortadas, rebrotam. Esmagadas, reviçam. Cínicas!

Mais adiante, na grota fria onde tudo é sombra e cerração, ergue-se a espaços, em meio dos caetés valentes e dos fetos rendados, a solitária begônia.
Tímida e frágil, o menor contato a magoa. Toda ela – caule, folhas, flores – é a mesma carne tenra de criança.
Sempre os contrastes.
Os eleitos de sensibilidade, os mártires da dor – e os fortes. A juriti e o sanhaço. A begônia e a samambaia.
Vidinha, a inocente criança, era juriti e begônia.
O Destino, como os sábios, também faz suas experiências. Permite vidas a título de experiência, na tentativa de aclimar na terra seres que não são da terra.
Vingará Vidinha, solta no mundo em meio da alcatéia humana?
Janeiro. Dia de mormaço a envolver o mundo sob a curva do céu imensamente azul.
A casa onde mora Vidinha é a única das cercanias – garça pousada no oceano verde-sujo das samambaias e sapezeiros.

Que terra! Ondula em mamelões verdolengos até encontrar o céu, longe, no horizonte. Hispidez, aridez – terra outrora bendita, que o homem, senhor do fogo, transfez em deserto maldito.

Os olhos pervagam: cá e lá, ’té aos confins, sempre o chamalote verde-oliva da samambaia áspera – esse musgo da esterilidade.
Entristece, aquilo. Cansa a vista o sem-fim da morraria nua de árvores – e o consolo é pousar os olhos na pombinha branca da casinhola.

Como a cal das paredes cintila ao sol! E como nos enleva a alma sua pequenina moldura de árvores domésticas! Aquele pá de espirradeira todo florido, o cercado de taquara; a horta, o canteirinho de flores, o poleiro das aves nos fundos sob a fronde da guabirobeira…

Vidinha é a manhã da casa. Vive entre duas estações: a mãe – um outono, e o pai – inverno em começos. Ali nasceu e cresceu. Ali morrerá. Inocente e ingênua, do mundo só conhece o centímetro quadrado de mundo que é o pequeno sítio paterno. Imagina as coisas – não as sabe. O homem: seu pai. Quantos homens haja, todos serão assim: bons e pais.

A mulher: sua mãe – um tudo.

Bichos?

O gato, o cão, o galo índio que canta pela alvorada, as galinhas suras. Sabe por ouvir dizer de outros muitos: da onça, – gatão feroz; da anta – bicho enorme ; da capivara – porco dos rios; da sucuri – cobra “desta” grossura! Veados e pacas já viu diversos mortos nas caçadas.

Longe do ermo onde está o sítio, é o mundo. Há nele cidades – casas e mais casas, pequenas e grandes em linha, com estradas pelo meio a que chamam de rua. Nunca as viu, sonha-as. Sabe que nelas moram os ricos, seres de outra raça, poderosos que compram fazendas, plantam cafezais e mandam em tudo.

As ideias que povoam sua cabecinha bebeu-as ali na conversa caseira dos pais.
Um Deus no céu, bom, imenso, tudo vê e ouve, até o que a boca não diz. Ao lado dele, Nossa senhora, tão boa, resplandecente, rodeada de anjos…
Os anjos! Crianças de asas e longas túnicas esvoaçantes. No oratório da casa há o retrato de um.
Seus prazeres: a vida da casa, os incidentes do terreiro.
– Venha ver, mamãe, depressa!
– Alguma bobagem…
– … o pintinho sura trepado nas costas do capão peva, tenteando-se nas asinhas!

Venha ver que galanteza. Ei… ei, caiu!

Ou:
Brinquinho quer por força pegar a cauda. Está que parece um pião, corropiando.

É bonita? Vidinha o ignora. Não se conhece, não faz de si nenhuma idéia. Se nem espelho possui… É, no entanto, linda, dessa lindeza das telas raras que jazem fora de moldoura nos desvãos ignorados.

Vestida à maneira dos pobrezinhos, vale o que não está vestido: o corado das faces, a expressão de inocência, o olhar de criança, as mãos irrequietas. Tem a beleza das begônias silvestres. Dêem-lhe um vaso de porcelana e cintilará.
Cinderela, a eterna história…

O pai vive na luta silenciosa contra a aridez do solo, disputando às formigas, às geadas, à esterilidade, uma colheitinhas curtas. Não importa. Vive contente. A mãe moureja o dia inteiro nos trabalhos da casa. Cose, arruma, remenda, varre.

E Vidinha, entre eles, orquídea que floriu em trnco rude, brinca e sorri. Brinca e sorri com seus amigos: o cão, o gato, os pintos, as rolas que descem ao terreiro. Em noites escuras vêm visitá-la, cirandando em torno à casa, seus amiguinhos luminosos – os vagalumes.

Os anos passam. Os botões se fazem flor.
Um dia Vidinha entrou em sentir vagas perturbações de alma. Fugia aos brinquedos e cismava. A mãe notou a mudança.
– Em que está pensando, menina?
– Não sei. Em nada… e suspirou.
A mãe observou-a ainda uns tempos e disse ao marido:
– É lado de casar Vidinha. Está moça. Já não sabe o que quer.

Mas, casá-la, como? Com quem? Não havia ali vizinho naquele deserto, e a criança corria o risco de estiolar-se como flor estéril sem que olhos de homem casadouro pusessem reparo em seus encantos.

Não será assim, todavia. O destino levará por diante mais uma cruel experiência.
O lobo fareja de longe a menina da capinha vermelha.
A begônia daquele deserto, filha das selvas, será caça. Será caçada por um caçador…
Está na idade do sacrifício.
O caçador não tardará.
Vem perto, piando em inambu, com a espingarda nas mãos. Trocará de bom grado, vão ver, os inambus perseguidos pela inocente juriti incauta.
– Ó de casa!
–??
– Venho de longe. Perdi-me nestes carrascais, coisa de dois dias, e não posso comigo de canseira e fome. Venho pedir pousada.
Os ermitões do samambaial acolhem de braços abertos o transviado gentil.
Bonito moço da cidade. Bem-falante, maneiroso – uma sedução!
Como são belos os gaviões caçadores de inocências…
Deixou-se ficar a semana inteira. Contava coisas maravilhosas. O pai esquecia a roça para ouvi-lo, e a mãe desleixava a casa. Que sereia!
No pomar, sob o dossel das laranjeiras abotoadas:
– Nunca pensou em sair daqui, Vidinha?
– Sair? Aqui tenho casa, pai, mãe – tudo…
– Acha muito isso? Oh, lá fora é que é lindo! Que maravilha é lá fora! O mundo! As cidades! Aqui é o deserto, prisão horrível, aridez, melancolia…
E ia cantando contos das Mil e Uma Noites sobre a vida das cidades. Dizia do luxo, da magnificência, das festas, das pedrarias que cintilam, das sedas que acariciam o corpo, dos teatros, da música inebriante.
– Mas isso é um sonho…
O príncipe confirmava.
– A vida lá fora é um sonho.
E desfiava rosários inteiros de sonhos.
Vidinha, num deslumbramento, murmurava:
– É lindo! Mas tudo só para ricos.
– Para os ricos e para a beleza. Beleza vale mais que riqueza – e Vidinha é bela!
–Eu?
O espanto da criança…
– Bela, sim – e riquíssima, se o quiser. Vidinha é diamante a lapidar. É Cinderela, hoje no borralho, amanhã, princesa. Seus olhos são estrelas de veludo.
– Que ideia…
– Sua boca, ninho de colibri feito para o beijo…
– !…

A iniciação começa. E tudo na alma de Vidinha se aclara. As idéias vagas se definem. Os hieróglifos do coração se decifram.

Compreende a vida enfim. Sua inquietação era amor, em casulo ainda, a agitar-se nas trevas. Amor sem objeto, perfume sem destino.
O amor é febre da idade, e Vidinha chegara à idade da febre sem o saber. Sentia-lhe o queimar no coração, mas ignorava. E sonhava.
Tinha agora a chave de tudo. O príncipe encantado viera afinal. Estava ali ele, o grande mago de palavras maravilhosas, senhor do Abre-te Sésamo da Felicidade.
E o casulo do amor rompeu-se – e a crisálida do amor, ébria de luz, fez-se ardente borboleta de amor…
O gavião da cidade, fino de faro, havia descido no momento oportuno. Dizia-se doente e ia ficando. Sua doença chamava-se – desejo. Desejo de caçador. Ânsia de caçador por mais uma perdiz.
E a perdiz veio-lhe para as garras, fascinada pela estonteante miragem do amor.
O primeiro beijo…
A florada maravilhosa dos beijos…
O último beijo, à noite…
Pela manhã do décimo dia:
– Que é do caçador?
Fugira…
Já não recendem os manacás. São negras as flores do jardim. Não brilham as estrelas do céu. Não cantam os passarinhos. Não luzem os vagalumes. O sol não alumia. A noite só traz pesadelos.
Uma coisa só não mudou: ohu, hu magoado da juriti, lá no recesso das grotas.
Os dias de Vidinha são agora vagueios agitados pelo campo. Detém-se às vezes ante uma flor, de olhos parados, como recrescidos no rosto. E monologa mentalmente:
– Vermelha? Mentira. Cheirosa? Mentira. Tudo mentira, mentira, mentira…
Mas Vidinha é juriti, corpo e alma afinados emu. Não desespera, não luta, não explode. Chora por dentro e definha. Begônia silvestre que o passante brutal chicoteou, dobra no hastil quebrado, pende para a terra e murcha. Chama de algodão… Torrão de açúcar…
Estava concluída a experiência do Destino. Mais uma vez provava-se que não vive na terra o que não é da terra.
Uma cruz…
E dali por diante, se alguém falava em Vidinha, o velho pai murmurava:
– Era a nossa luz de alegria. Apagou-se…
E a mãe, lacrimejante:
– Não me sai da memória a última palavra dela: “Agora um beijo, mamãe, um beijo seu…”
Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

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Francisco Miguel de Moura (A Mulher que não Ri)

Francisco Miguel de Moura
Encontrei-a na rua.

É bonita mas não chega a ser nenhuma miss. Nem ex-miss. Pelos olhos, pelo rosto, pelos cabelos, acredito que não freqüenta salões de beleza.

Ia andando de pé, pela cidade, e encontrei-a. É que ainda sinto prazer em andar e andar, sem propósito, sem preocupação, pelas ruas da cidade onde habito, apesar de todos os pesares. E nas minhas andanças, poucas vezes em busca de resolver meus quefazeres e tantas outras nas minhas caminhadas matinais e vespertinas, tenho observado hábitos e comportamentos. As diferenças me aprazem.

Como as criaturas são estranhas!

Há pessoas que, mesmo em se lhe dando bom dia, ou boa tarde, conforme a hora não se abrem, não dizem nada em resposta, às vezes nem olham, ou viram a cara. Raras são aquelas que, sem serem conhecidas, respondem à saudação dos passantes ou lhes dirigem a palavra junto com um sorriso prazenteiro.

Verdade que existe o medo dos estranhos, da perversidade dos ladrões, dos seqüestradores, dos assassinos, dos que só buscam fazer o mal. Mas também é certo que pessoas outras não se parecem nada com gente daquele naipe, no físico, nas feições. São comuns, nem precisam ter letreiro na testa. Ainda mais se entraram já na casa dos sessenta, com os cabelos pintados do branco permanente da velhice.

E foi por causa da idade que me vem chegando, talvez, que observei aquela moça especial, desde muito tempo na minha presença – quando a vejo e quando a deixo de vê-la, a que tomo agora por minha “persona”. Não é caminhante como eu e sim empregada de uma loja cujo nome não vai dito aqui porque seria uma propaganda gratuita, e mais, por resguardo da identidade daquela de quem falo ao meu leitor.

Ela, minha personagem, nunca ri. Fala pouco, só o necessário, embora seja expedita no atendimento dos que procuram comprar alguma mercadoria ou pedir informações, esclarecimentos. Mas não ri, não ri nunca. Está sempre ocupada, trabalhando. Seria por causa disto? Já a encontrei na rua outras vezes, além da primeira de que me lembro. É o mesmo comportar-se: o rosto não contraído, mas não ri; e tem poucas palavras para com as pessoas que a cercam, por exemplo uma companheira de trabalho com quem chega na loja. Daquela vez dei-lhe o meu bom dia e não ouvi resposta, ou então era muito baixa sua voz. Conheço-a de três anos a mais. Sabe, leitor, o que ela me falou até agora na loja? Apenas isto:

– Já foi atendido, senhor?

Outras colegas suas já me atenderam e soltaram seus meio-sorrisos, ou falaram alguma coisa mais que o referente ao simples ato comercial.

Minto. No ano passado, quando publiquei minha crônica costumeira de dezembro, ela me dirigiu duas palavras, em meio a seu serviço de vendedora. A provocação partiu de mim.

– Já leu meu conto de Natal deste ano? Eu sou escritor – apresentei-me.

– Como é seu nome? – ela perguntou.

Eu balbuciei meu nome, depois criei coragem e o disse completo.

– Meu nome literário!

E ainda acrescentei onde havia saído – o nome do jornal.

– Ah, sim! Li e gostei. É por ali mesmo.

Agradeci por ter a simpatia de tão agradável leitora e fiquei esperando seu sorriso.

Qual nada!

Por isto fico me perguntando como acontecem tais coisas, como as pessoas são assim, cada uma diferente. E todas iguais no comer, no dormir, no trabalhar, na pratica da vida diária.

Por que, meu Deus?

No ano seguinte, nova crônica de Natal no mesmo jornal, e fico na escuta dos leitores que se manifestam. Uns o fazem agradando, outros não. Pior os que esquecem. Ou não leram.

Continuei a passar por onde minha “persona” atende profissionalmente. E continuo freguês do estabelecimento. Esperando sua reação, lógico. Mas até hoje não me falou nada.

Esse é um dos enigmas que tento desvendar, talvez o mais difícil. Não me parece pessoa infeliz Nem doente. Ao contrario tem uma aparência agradável. Também não pode ser considerada feia de feição, muito menos de corpo. Não faz muito que a vi fora do balcão, mostrava toda a sua estatura, suas formas dentro de uma veste comum, de trabalho. Mulher atraente. Mas como milhares de outras por aí. Convenci-me de que não eram suas formas que me atraíam, nem seu olhar, nem seus cabelos. Era o enigma. Que faz de sua vida a moça que não tem o prazer do riso? Todos os seres humanos se enfeitam com o sorriso, a mulher então!…

Já pensava em quebrar mais um pouco de minha timidez, na próxima passagem por ali, coisa que não seria difícil porque minha andança em redor se tornara mais constante. Era só perguntar-lhe o nome. Depois emendava com outras perguntinhas à-toas. O nome é coisa importante para todo o mundo. É a partir dele que nascem outras palavras. E das palavras, uma história, o comentário de um fato, uma confissão mesmo diminuta. De seqüência em seqüência estaria lhe declarando amor nem que fosse para quebrar a cara. Quebrar a cara seria conhecê-la mais, até então o meu obsessivo propósito.

Qual não foi a minha surpresa quando, no dia seguinte, ela não voltou. Nem no outro, nem no outro. Uma semana inteira. E nenhuma de suas colegas quis dar-me seu endereço.

Pode ser que eu tenha sido o seu constrangimento e onde esteja agora sorria como qualquer criatura.

Fonte:
http://www.quemtemsedevenha.com.br/20contos/mulher_que_nao_ri.htm (site desativado)

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Monteiro Lobato (O Jardineiro Timóteo)

conto integrante do livro “Negrinha”, de Monteiro Lobato.

O casarão da fazenda era ao jeito das velhas moradias: – frente com varanda, uma ala e pátio interno. Neste ficava o jardim, também à moda antiga, cheio de plantas antigas cujas flores punham no ar um saudoso perfume d’antanho. Quarenta anos havia que lhe zelava dos canteiros o bom Timóteo, um preto branco por dentro.

Timóteo o plantou quando a fazenda se abria e a casa inda cheirava a reboco fresco e tintas d’óleo recentes, e desd’aí – lá se iam quarenta anos – ninguém mais teve licença de pôr a mão em “seu jardim”.

Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.

Não desses que fazem versos, mas desses que sentem a poesia sutil das coisas. Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera, desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio.

O jardim tornara-se a memória viva da casa. Tudo nele correspondia a uma significação familiar de suave encanto, e assim foi desd’o começo, ao riscarem-se os canteiros na terra virgem ainda recendente à escavação. O canteiro central consagrava-o Timóteo ao “Sinhô-velho”, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea. Nasceu faceiro e bonito, cercado de tijolos novos vindos do forno para ali ainda quentes, e embutidos no chão como rude cíngulo de coral; hoje, semidesfeitos pela usura do tempo e tão tenros que a unha os penetra, esses tijolos esverdecem nos musgos da velhice.

Veludo de muro velho, é como chama Timóteo a essa muscínea invasora, filha da sombra e da umidade. E é bem isso, porque o musgo foge sempre aos muros secos, vidrentos, esfogueados de sol, para estender devagarinho o seu veludo prenunciador de tapera sobre os muros alquebrados, de emboço já corcomido e todo aberto em fendas.

Bem no centro erguia-se um nodoso pé de jasmim-do-cabo, de galhos negros e copa dominante, ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobreexcedesse em altura. Simbolizava o homem que o havia comprado por dois contos de réis, dum importador de escravos de Angola.

– Tenha paciência, minha negra! – conversa ele com as roseiras de setembro, teimosas em espichar para o céu brotos audazes. Tenha paciência, que aqui ninguém olha de cima para o Sinhô-velho.

E sua tesoura afiada punha abaixo, sem dó, todos os rebentos temerários.

Cercando o jasmineiros havia uma coroa de periquitos, e outra menor cravinas.

Mais nada.

– Ele era um homem simples, pouco amigo de complicações. Que fique ali sozinho com o periquito e as irmãzinhas do cravo.

Dos outros canteiros dois eram em forma de coração.

– Este é o de Sinhazinha; e como ela um dia há de casar, fica a par dele o canteiro do Sinhô-moço.

O canteiro de Sinhazinha era de todos o mais alegre, dando bem a imagem de um coração de mulher rico de todos as flores do sentimento. Sempre risonho, tinha a propriedade de prender os olhos de quantos penetravam no jardim.

Tal qual a moça, que desde menina se habituara a monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos, chegando esta a ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?

Assim ela na família, assim o seu canteiro entre os demais. Livro aberto, símbolo vivo, crônica vegetal, dizia pela boca das flores toda a sua vidinha de moça. O pé de flor-de- noiva, primeira “planta séria” ali brotada, marcou o dia em que foi pedida em casamento. Até então só vicejavam neles flores alegres de criança: – esporinhas, bocas-de-leão, “borboletas”, ou flores amáveis da adolescência – amores-perfeitos, damas-entre-verdes, beijos-de-frade, escovinhas, miosótes.

Quando lhe nasceu, entre dores, o primeiro filho, plantou Timóteo os primeiros tufos de violeta.

– Começa a sofrer…

E no dia em que lhe morreu esse malogrado botãozinho de carne rósea, o jardineiro, em lágrimas, fincou na terra os primeiros goivos e as primeiras saudades. E fez ainda outras substituições: as alegres damas-entre-verdes cederam o lugar aos suspiros roxos, e a sempre-viva foi para o canto onde viçavam as ridentes bocas-de-leão.

Já o canteiro de Sinhô-moço revelava intenções simbólicas de energia. Cravos vermelhos em quantidade, roseiras fortes, ouriçadas de espinhos; palmas-de-santa-rita, de folhas laminadas; junquilhos nervosos.

E tudo mais assim.

Timóteo compunha os anais vivos da família, anotando nos canteiros, um por um, todos os fatos dalgumas significações. Depois, exagerando, fez do jardim um canhenho de notas, o verdadeiro diário da fazenda. Registrava tudo.

Incidentes corriqueiros, pequenas rusgas de cozinha, um lembrete azedo dos patrões, um namoro de mucama, um hóspede, uma geada mais forte, um cavalo de estimações que morria – tudo memorava ele, com hieróglifos vegetais, em seu jardim maravilhoso.

A hospedagem de certa família do Rio – pai, mãe e três sapequíssimas filhas – lá ficou assinalada por cinco pés de ora-pro-nóbis. E a venda do pampa calçudo, o melhor cavalo das redondezas, teve a mudança de dono marcada pela poda de um galho do jasmineiro.Além desta comemoração anedótica, o jardim consagrava uma planta a subalterno ou animal doméstico. Havia a roseira-chá da mucama de Sinhazinha; o sangue-de-adão do Tibúrcio; a rosa-maxixe da mulatinha Cesária, sirigaita enredeira, de cara fuxicada como essa flor. O Vinagre, o Meteoro, a Manjerona, a Tetéia, todos os cães que na fazenda nasceram e morreram, ali estavam lembrados pelo seu pezinho de flor, um resedá, um tufo de violetas, uma touça de perpétuas. O cão mais inteligente da casa, Otelo, morto hidrófobo, teve as honras duma sempre-viva rajada.

– Quem há de esquecer um bico daqueles, que até parecia gente?

Também os gatos tinham memória.

Lá estava a cinerária da gata branca morta nos dentes do Vinagre, e o pé de alecrim relembrativo do velho gato Romão.

Ninguém, a não ser Timóteo, colhia flores naquele jardim. Sinhazinha o tolerava desde o dia em que ele explicou:

– Não sabem, Sinhazinha! Vão lá e atrapalham tudo. Ninguém sa be apanhar flor…

Era verdade. Só Timóteo sabia escolhê-las com intenção e sempre de acordo com o destino. Se as queriam para florir a mesa em dia de anos da moça, Timóteo combinava os buquês como estrofes vivas. Colhia-as resmungando:

– Perpétua? Não. Você não vai pra mesa hoje. É festa alegra. Nem você, dona violetinha!… Rosa-maxixe? Ah! Ah! Tinha graça a Cesária em festa de branco!…

E sua tesoura ia cortando os caules com ciência de mestre. Às vezes parava, a filosofar:

– Ninguém se lembra hoje do anjinho… Pra que, então, goivo nos vasos? Quieto fique aqui o senhor goivo, que não é flor de vida, é flor de cemitério…

E sua linguagem de flores? Suas ironias, nunca percebidas de ninguém? Seus louvores, de ninguém suspeitados? Quantas vezes não depôs na mesa, sobre um prato, um aviso a um hóspede, um lembrete à patroa, uma censura ao senhor, composto sob forma dum ramalhete? Ignorantes da língua do jardim, riam-se eles da maluquice do Timóteo, incapazes de lhe alcançar o fino das intenções.

Timóteo era feliz. Raras criaturas realizam na vida mais formoso delírio de poeta. Sem família, criara uma família de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.

Era feliz, sim. Trabalhava por amor, conversando com a terra e as plantas – embora a copa e a cozinha implicassem com aquilo.

– Que tanto resmunga o Timóteo! Fica ali mamparreando horas, a cochichar, a rir, como se estivesse no meio duma criançada!…

É que na sua imaginação as flores se transfiguravam em seres vivos. Tinham cara, olhos, ouvidos… O jasmim-do-cabo, pois não é que lhe dava a benção todas as manhãs? Mal Timóteo aparecia, murmurando “A benção, Sinhô”, e já o velho, encarnado na planta, respondia com voz alegre: “Deus te abençoe, Timóteo”.

Contar isso aos outros? Nunca! “Está louco”, haviam de dizer. Mas bem que as plantinhas falavam…

– E como não hão de falar, se tudo é criatura de Deus, hom’essa!…

Também dialogava com elas.

– Contentinha, hein? Boa chuva a de ontem, não?

– …

– Sim, lá isso é verdade. As chuvas miúdas são mais criadeiras, mas você bem sabe que não é tempo. E o grilo? Voltou? Voltou, sim, o ladrão… E aqui roeu mais esta folhinha… Mas deixe estar, que eu curo ele!

E punha-se a procurar o grilo. Achava-o.

– Seu malfeitor!… Quero ver se continua agora a judiar das minhas flores.

Matava-o, enterrava-o. “Vira esterco, diabinho!”

Pelo tempo da seca era um regalo ver Timóteo a chuviscar amorosamente sobre as flores com o seu velho regador.– O sol seca a terra? Bobice!… Como se o Timóteo não estivesse aqui de chovedor na mão.

– Chega também, ué! Então quer sozinho um regador inteiro? Boa moda! Não vê que as esporinhas estão com a língua de fora?

– E esta boca-de-leão, ah! ah! está mesmo com uma boca de cachorro que correu veado! Tome lá, beba, beba!

– E você também, seu rosedá, tome lá seu banho pra depois, namorar aquela dona hortênsia, moça bonita do “zóio” azul…
E lá ia…

Plantas novas que abrolhavam o primeiro botão punham alvoroço de noivo no peito do poeta, que falava do acontecimento na copa provocando as risadinhas impertinentes da Cesária.

– Diabo do negro velho, cada vez caducando mais! Conversa com flor como se fosse gente.

Só a moça, com seu fino instinto de mulher, lhe compreendia as delicadezas do coração.

– Está aqui Sinhá, a primeira rainha margarida deste ano!

Ela fingia-se extasiada e punha a flor no corpete.

– Que beleza!

E Timóteo ria-se, feliz, feliz…

Certa vez falou-se na reforma do jardim.

– Precisamos mudar isto – lembrou-se o moço, de volta dum passeio a São Paulo. – Há tantas flores modernas, linda, enormes, e nós toda a vida com estas cinerárias, estas esporinhas, estas flores caipiras… Vi lá crisandálias magnífias, crisântemos deste tamanho e uma rosa nova, branca, tão grande que até parece flor artificial.

Quando soube da conversa, Timóteo sentiu gelo no coração. Foi agarrar-se com a moça. Ele também conhecia essas flores de fora, vira crisântemos na casa do Coronel Barroso, e as tais dálias mestiças no peito duma faceira, no leilão do Espírito Santo.

– Mas aquilo nem é flor, Sinhá! Coisas da estranja que o Canhoto inventa para perder as criaturas de Deus. Eles lá que plantem. Nós aqui devemos zelar das plantas de família. Aquela dália rajada, está vendo? É singela, não tem o crespo das dobradas; mas quem troca uma menina de sainha de chita cor-de-rosa por uma semostradeira da cidade, de muita seda no corpo, mas sem fé no coração? De manhã “fica assim” de abelhas e cuitelos em volta delas!…

E eles sabem, eles não ignoram quem merece. Se as das cidades fossem mais de estimação, por que é que esses bichinhos de Deus ficam aqui e não vão pra lá? Não, Sinhá! É preciso tirar essa idéia da cabeça de Sinhô-moço. Ele é criança ainda, não sabe a vida. É preciso respeitar as coisas de dantes…

E o jardim ficou.

Mas um dia… Ah! Bem sentira-se Timóteo tomado de aversão pela família dos ora-pro- nóbis! Pressentimento puro… O ora-pro-nóbis pai voltou e esteve ali uma semana em conciliábolo com o moço. Ao fim deste tempo, explodiu como bomba a grande notícia: estava negociada a fazenda, devendo a escritura passar-se dentro de poucos dias.

Timóteo recebeu a nova como quem recebe uma sentença de morte. Na sua idade, tal mudança lhe equivalia a um fim de tudo. Correu a agarrar-se à moça, mas desta vez nada puderam contra as armas do dinheiro os seus pobres argumentos de poeta.

Vendeu-se a fazenda. E certa manhã viu Timóteo arrumarem-se no trole os antigos patrões, as mucamas, tudo o que constituía a alma do velho patrimônio.

– Adeus, Timóteo! – disseram alegremente os senhores-moços, acomodando-se no veículo.

– Adeus! Adeus!…

E lá partiu o trole, a galope… Dobrou a curva da estrada… Sumiu-se para sempre…

Pela primeira vez na vida Timóteo esqueceu de regar o jardim. Quedou-se plantando a um canto, a esmoer o dia inteiro o mesmo pensamento doloroso:– Branco não tem coração…

Os novos proprietários eram gente da moda, amigos do luxo e das novidades. Entraram na casa com franzimentos de nariz para tudo.
– Velharias, velharias…

E tudo reformaram. Em vez da austera mobília de cabiúna, adotaram móveis pechisbeques, com veludinhos e friso. Determinaram o empapelamento das salas, a abertura de um hal l, mil coisas esquisitas…

Diante do jardim, abriram-se em gargalhadas. – É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé de Sousa, em pleno século das crisandálias!

E correram-no todo, a rir, como perfeitos malucos.

– Olhe, Ivete, as esporinhas! É inconcebível que inda haja esporinhas no mundo!

– E periquito, Odete! Pe-ri-qui-to!… – disse uma das moças, torcendo-se em gargalhadas.

Timóteo ouvia aquilo com mil mortes n’alma. Não restava dúvida, era o fim de tudo, como pressentira: aqueles bugres da cidade arrasariam a casa, o jardim e o mais que lembrasse o tempo antigo. Queriam só o moderno.

E o jardim foi condenado. Mandariam vir o Ambrogi para traçar um plano novo, de acordo com a arte moderníssima dos jardins ingleses. Reformariam as flores todas, plantando as últimas criações da floricultura alemã. Ficou decidido assim.

– E para não perder tempo, enquanto o Ambrogi não chega ponho aquele macaco e me arrasar isto – disse o homem apontando para Timóteo.

– Ó tição, vem cá!

Timóteo aproximou-se com ar apatetado.

– Olha, ficas encarregado de limpar de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?

Timóteo, trêmulo, mal pôde engrolar uma palavra:

–Eu?

– Sim, tu! Por que não?

O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:

– Eu? Eu, arrasar o jardim?

O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender daquela resistência.

– Eu? Pois me acha com cara de criminoso?

E, não podendo mais conter-se, explodiu num assomo estupendo de cólera – o primeiro e o único de sua vida.

– Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Mas, olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto há de virar um tapera de lacraias! A geada há de torrar o café. A peste há de levar até as vacas de leite! Não há de ficar aqui nenhuma galinha, nem um pé de vassoura! E a família amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros lazarentos!… Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina assim uma coisa que dinheiro nenhum paga.

Não se mata assim um pobre negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana! Deixa estar!…

E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça:

– Deixa estar! Deixa estar!

E longe, na porteira, ainda espalmava a mão para a fazenda, num gesto mudo:

– Deixa estar!

Anoitecia. Os curiangos andavam a espacejar silenciosamente vôos de sombra pelas estradas desertas. O céu era todo um recamo fulgurante de estrelas. Os sapos coaxavam nos brejos e vagalumes silenciosos piscavam piques de luz no sombrio das capoeiras.

Tudo adormecera na terra, em breve pausa de vida para o ressurgir do dia seguinte.Só não ressurgirá Timóteo. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre.

E lá encontrará a manhã enrijecido pelo relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para a fazenda num derradeiro gesto de ameaça:

– Deixa estar!…

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha. Ed. Brasiliense.

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Monteiro Lobato (Dona Expedita)

– …

– Minha idade? Trinta e seis…

– Então, venha.

Sempre que dona Expedita se anunciava no jornal, dando um número de telefone, aquele diálogo se repetia. Seduzidas pelos termos do anúncio, as donas de casa telefonavam-lhe para “tratar” – e vinha inevitavelmente a pergunta sobre a idade, com a também inevitável resposta dos 36 anos. Isso desde antes da grande guerra. Veio o 1914 – ela continuou nos 36. Veio a batalha do Marne; veio o armistício – ela firme nos 36. Tratado de Versalhes – 36. Começos de Hitler e Mussolini – 36. Convenção de Munich – 36…

A futura guerra a reencontrará nos 36. O mais teimoso dos empaques! Dona Expedita já está “pendurada”, escorada de todos os lados, mas não tem ânimo de abandonar a casa dos 36 anos – tão simpática!

E como se tem 36 anos, veste-se à moda dessa idade um pouco mais vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força de cores, rugas e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os seus famosos 36, era provável que desse a idéia duma bem aceitável matrona de 60…

Dona Expedita é “tia”. Amor só teve um, lá pela juventude, do qual às vezes, nos “momentos de primavera”, ainda fala. Ah, que lindo moço! Um príncipe. Passou um dia de cavalo pela janela. Passou na tarde seguinte e ousou um cumprimento. Passou e repassou durante duas semanas – e foram duas semanas de cumprimentos e olhares de fogo. E só. Não passou mais – desapareceu da cidade para sempre.

O coração da gentil Expedita pulsou intensamente naqueles maravilhosos quinze dias – e nunca mais. Nunca mais namorou ou amou alguém – por causa da casmurrice do pai.

Seu pai era caturra de barbas à Von Tirpitz, português irredutível, desses que fogem de certos romances de Camilo e reentram na vida. Feroz contra o sentimentalismo. Não admitia namoros em casa, e nem que se pronunciasse a palavra casamento. Como vivesse setenta anos, forçou as duas únicas filhas a se estiolarem ao pé de sua catarreira crônica. “filhas são para cuidar da casa e da gente”.

Morreu, afinal, e arruinado. As duas “tias” venderam a casa para pagamento das contas e tiveram de empregar-se. Sem educação técnica, os únicos empregos antolhados foram os de criada grave, dama de companhia ou “tomadeira de conta” – graus levemente superiores à crua profissão normal de criada comum. O fato de serem de “boa família” autorizava-as ao estacionamento nesse degrau um pouco acima do último.

Um dia a mais velha morreu. Dona Expedita ficou só no mundo. Quer fazer, senão viver? Foi vivendo e especializando-se em lidar com patroas. Por fim, distraía-se com isso. Mudar de empregos era mudar de ambiente – ver caras novas, coisas novas, tipos novos. Um cinema – o seu cinema! O ordenado, sempre mesquinho. O maior de que se lembrava fora de 150 mil réis. Caiu depois para 120; depois para 100; depois 80. Inexplicavelmente as patroas iam-lhe diminuindo a paga a despeito da sua permanência na linda idade dos 36 anos…

Dona Expedita colecionava patroas. Teve-se de todos os tipos e naipes – das que obrigam as criadas a comprar o açúcar com que adoçam o café, às que voltam para casa de manhã e nunca lançam os olhos sobre o caderno de compras. Se fosse escritora teria deixado o mais pitoresco dos livros. Bastava que fixasse metade do que viu e “padeceu”. O capítulo das pequeninas decepções seria dos melhores – como aquele caso dos 400 mil réis…

Foi vez que, saída de emprego, andava em procura de outro. Nessas ocasiões costumava encostar-se à casa de uma família que se dera com a sua, e lá ficava um mês ou dois até conseguir nova colocação. Pegava a hospedagem fazendo doces, no que era perita, sobretudo um certo bolo inglês que mudou de nome, passando a chamar-se o “bolo de cona Expedita”. Nesses interregnos comprava todos os dias um jornal especializado em anúncios domésticos, no qual lia atentamente a seção do “procura-se”. Com a velha experiência adquirida, adivinhava pela redação as condições reais do emprego.

– Porque “elas” publicam aqui uma coisa e querem outra – comentava filosoficamente, batendo no jornal. – para esconder o leite, não há como as patroas!

E ia lendo, de óculos na ponta do nariz: “precisa-se de uma senhora de meia idade para servicinhos leves”.

– Hum! Quem lê isto pensa que é assim mesmo – mas não é. O tal servicinho leve não passa de isca – é a minhoca do anzol. A mim é que não me enganam, as biscas…

Lia todos os “procura-se”, com um comentário para cada um, até que se detinha no que lhe cheirava melhor. “Precisa-se duma senhora de meia-idade para serciços leves em casa de fino tratamento”.

– Este, quem sabe? Se é casa de fino tratamento, pelo menos fartura há de aver. Vou telefonar.

E vinha a telefonada de costume com a eterna declaração dos 36 anos.

O hábito de lidar com patroas manhosas levou-a a lançar mão de vários recursos estratégicos; um deles: só “tratar” pelo telefone e não dar-se como ela mesma.

“Estou falando em nome duma amiga que procura emprego.” Desse modo tinha mais liberdade e jeito de sondar a “bisca.”

– Essa amiga é uma excelente criatura – e vinham bem dosados elogios. – Só que não gosta de serviços pesados.

– Que idade?

– Trinta e seis anos. Senhora de muito boa família – mais por menos de 150 mol réis nunca se empregou.

– É muito. Aqui o mais que pagamos é 110 – Sendo boa.

– Não sei se ela aceitará. Hei de ver. Mas qual é o serviço?

– Leve. Cuidar da casa, fiscalizar a cozinha, espanar – arrumar…

– Arrumar? Então é arrumadeira que a senhora quer?

E dona Expedita pendurava o fone, arrufada, murmurando: “Outro ofício!”

O caso dos 400 mil réis foi o seguinte. Ela andava sem emprego e a procurá-lo na seção do “precisa-se”. O súbito, esbarrou com esta maravilha: “Precisa-se duma senhora de meia-idade para fazer companhia a uma enferma; ordenado, 400 mil réis”.

Dona Expedita esfregou os olhos. Leu outra vez. Não acreditou. Foi em busca duns óculos novos adquiridos na véspera. Sim. Lá estava escrito 400 mil réis!…

A possibilidade de apanhar um emprego único no mundo fê-la pular. Correu a vestir-se, a pôr o chapeuzinho, a avivar as cores do rosto e voou pelas ruas afora.

Foi dar com os costados numa rua humilde; nem rua era – numa “avenida”. Defronte à casa indicada – casinha de porta e duas janelas – havia uma dúzia de pretendentes.

– Será possível? O jornal saiu agorinha e já tanta gente por aqui?

Notou que entre as postulantes predominavam senhoras bem-vestidas, como o aspecto de “damas envergonhadas”. Natural que assim fosse porque um emprego de 400 mil réis. Era positivamente um fenômeno. Nos seus… 36 anos de vida terrena jamais tivera notícia de nenhum. Quatrocentos por mês! Que mina! Mas com um emprego assim em casa tão modesta? “Já sei. O emprego não é aqui. Aqui é onde se trata – casa do jardineiro, com certeza…”

Dona Expedita observou que as postulantes entravam de cara risonha e saíam de cabeça baixa. Evidentemente a decepção da recusa. E o seu coração batia de gosto ao ver que todas iam sendo recusadas. Quem sabe? Quem sabe se o destino marcara justamente a ela como a eleita?

Chegou, por fim, a sua vez. Entrou. Foi recebida por uma velha na cama. Dona Expedita nem precisou falar. A velha foi logo dizendo:

“Houve erro no jornal. Mandei por 40 mil réis e puseram 400… Tinha graça eu pagar 400 a uma criada, eu que vivo à custa do meu filho, sargento da polícia, que nem isso ganha por mês…”

Dona Expedita retirou-se com cara exatamente igual à das outras.

O pior da luta entre criados e patroas é que estas são compelidas a exigir o máximo, e as criadas, por natural defesa, querem o mínimo, e as criadas, por natural defesa, querem o mínimo. Nunca jamais haverá acordo, por que é choque de totalitarismo com democracia.

Um dia, entretanto, dona Expedita teve a maior das surpresas: encontrou uma patroa absolutamente identificada com suas idéias quanto ao “mínimo ideal”- e, mais que isso, entusiasmada com esse minimalismo – a ajudá-la a minimizar o minimalismo!

Foi assim. Dona Expedita estava pela vigésima vez na tal família amiga, à espera de nova colocação. Lembrou-se de recorrer a uma agência, para a qual telefonou. “Quero uma colocação assim, de 200 mil réis, em casa de gente arranjada, fina e, se for possível, em fazenda. Serviços leves, bom quarto, banho. Aparecendo qualquer coisa deste gênero, peço que me telefone” – e deu o número do aparelho e de casa.

Horas depois retinia a campainha do portão.

– É aqui que mora madame Expedita? – perguntou, em língua atrapalhada, uma senhora alemã, cheia de corpo, e de bom aspecto.

A criadinha que atendeu disse que sim, fê-la entrar para o hall de espera e foi correndo avisar a dona Expedita. “Uma estrangeira gorda querendo falar c madame!”

– Que pressa meu Deus! – murmurou a solicitada, correndo ao espelho para os retoques.

– Nem três horas que telefonei. Agência boa, sim…

Dona Expedita apareceu no hall com um excessozinho de ruge nos beiços de múmia. Apareceu e conversou – e maravilhou-se, porque, pela primeira vez na vida, encontrava a patroa ideal. A mais sui-generis das patroas, de tão integrada no ponto de vista das “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

O diálogo travou-se num crescendo de animação.

– Muito boa tarde! – disse a alemã, com a maior cortesia. – Então foi madame quem telefonou para a agência?

0 “madame” causou espécie a dona Expedita.

– É verdade. Telefonei e dei as condições. A senhora gostou?

– Muito, mas muito mesmo! Era exatamente o que eu queria. Perfeito. Mas vim ver pessoalmente, porque o costume é anunciarem uma coisa e a realidade ser outra.

A observação encantou dona Expedita, cujos olhos brilharam.

– A senhora parece que está pensando com a minha cabeça. É justamente isso o que se dá, vivo eu dizendo. As patroas escondem o leite. Anunciam uma coisa e querem outra. Anunciam serviços leves e botam em cima das pobres criadas a maior trabalheira que podem. Eu falei, insisti com a agência: servicinhos leves…

– Isso mesmo! – concordou a alemã, cada vez mais encantada. – Serviços leves, porque afinal de contas uma criada é gente – não é burro de carroça.

– Claro! Mulheres de certa idade não podem fazer serviços de mocinhas, como arrumar, lavar, cozinhar quando a cozinheira não vem. Ótimo! Quanto à acomodação, falei à agência em “bom quarto”…

– Exatamente! – concordou a alemã. – Bom quarto – com janelas. Nunca pude conformar-me com isso das patroas meterem as criadas em desvão escuros, sem ar, como se fossem malas. E sem banheiro em que tomem banho.

Dona Expedita era toda risos e sorrisos. A coisa lhe estava saindo maravilhosa.

– E banho quente! – acrescentou com entusiasmo.

– Quentíssimo! – berrou a alemã, batendo palmas. – Isso para mim é ponto capital.

Como pode haver asseio numa casa onde nem banheiro há para criadas?

– Há, minha senhora, se todas as patroas pensassem assim! – exclamou dona Expedita, erguendo os olhos para o céu. – Que felicidade não seria o mundo! Mas no geral as patroas são más – e iludem as pobres criadas, para agarrálas e explorá-las.

– Isso mesmo! – apoiou a alemã. A senhora está falando como um livro de sabedoria. Para cem patroas haverá cinco ou seis que tenham coração – que compreendam as coisas…

– Se houver! – duvido dona Expedita.

O entendimento das duas era perfeito: uma parecia o Double da outra. Debateram o ponto dos “serviços leves” com tal mútua compreensão que os serviços foram levíssimos, quase-nulos – e dona Expedita viu erguer-se diante de si o grande sonho de sua vida: um emprego em que não fizesse nada, absolutamente nada…

– Quanto ao ordenado, disse ela (que sempre pedia 200 para deixar por 80), fixei-o em 200…

Avançou medrosamente e ficou à espera da inevitável repulsa. Mas a repulsa do costume pela primeira vez não veio. Bem ao contrário disso, a alemã concordou com entusiasmo.

– Perfeitamente! Duzentos por mês – e pagos no último dia de cada mês.

– Isso! – berrou dona Expedita, levantando-se da cadeira. – Ou no comecinho. Essa história de pagamento em dia incerto nunca foi comigo. Dinheiro de ordenado é sagrado.

– Sacratíssimo! – urrou a alemã, levantando-se também.

– Ótimo – exclamou dona Expedita. – Está tudo como eu queria.

– Sim, ótimo- repetiu a alemã. – Mas a senhora também falou em fazenda…

– Ah, sim fazenda. Uma fazenda bonita, toda frutas, leite e ovos, extasiou a alemã. Que maravilha…

Dona Expedita continuou:

– Gosto muito de lidar com pintinhos.

– Pintos! Ah, é o maior dos encantos! Adoro os pintos – as ninhadas… o nosso entendimento vai ser absoluto, madame…

O êxtase da ambas sobre a vida de fazenda foi subindo numa vertigem. Tudo quanto havia de sonhos incubados naquelas almas refloriu viçoso. Infelizmente, a alemã teve a idéia de perguntar:

– E onde fica a sua fazenda, madame?

– A minha fazenda? – repetiu dona Expedita, refranzindo a testa.

– Sim, a sua fazenda – fazenda para onde madame quer que eu vá…

– Fazenda para onde eu quero que a senhora vá? – tornou a repetir dona Expedita, sem entender coisa nenhuma. – Fazenda, eu? Pois se eu tivesse fazenda lá andava a procurar emprego?

Foi a vez da alemã arregalar os olhos, atrapalhadíssima. Também não estava entendendo coisa nenhuma. Ficou uns instantes no ar. Por fim:

– Pois madame não telefonou para a agência dizendo que tinha um emprego, assim, na sua fazenda?

– Minha fazenda uma ova! Nunca tive fazenda. Telefonei procurando emprego, se possível numa fazenda. Isso sim…

– Então, então, então… – e a lema enrusbeceu como uma papoula.

– Pois é – respondeu dona Expedita percebendo afinal o qüiproquó. – Estamos aqui feito duas idiotas, cada qual querendo emprego e pensando que a outra é a patroa…

O cômico da situação fê-las rirem-se – e gostosamente, já retornadas à posição de “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

– Esta foi muito boa! – murmurou a alemã, levantando-se para sair. – Nunca me aconteceu coisa assim. Que agência, hein?
Dona Expedita filosofou.

– Eu bem que estava desconfiada. A esmola era demais. A senhora ia concordando com tudo que eu dizia – até com os banhos quentes! Ora, isso nunca foi linguagem de patroa – dessas biscas. A agência errou, talves por causa do telefone, que estava danado hoje – além do que sou meia dura de ouvidos…

Nada mais havia a dizer. Despediram-se. Depois que a alemã bateu o portão, dona

Expedita fechou a porta, com um suspiro arrancado do fundo das tripas.

– Que pena, meu Deus! Que pena não existirem no mundo patroas que pensem como as criadas…

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha (contos). Ed. Brasiliense.

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Alfredo Monteiro Filho (Memória e Coração de um Cão)

Varando a névoa do anoitecer, o vulto de um homem bastante esguio, montado num mulo e acompanhado de um vira-latas adentrou a Grande Porteira, para, lentamente, vir na nossa direção, com a montaria trotando e ziguezagueando entre os corpos das reses que rotineiramente pernoitavam no grande pátio da fazenda Engenho Novo.

Se, naquela tarde-noite, fosse outra a minha idade e outros os meus conhecimentos, eu teria certamente fantasiado o cavaleiro, como o faço atualmente, mais de seis décadas depois, quando sua figura me invade a memória com um elmo na cabeça, armadura cobrindo-lhe o corpo e uma longa lança numa das mãos, montado num rocinante, e emparelhado com um cachorro bem pançudo. Mas estas imaginações de agora não devem emoldurar um quadro real, que, vindo de tão longe, ficou-me dependurado neste meu brumoso e exorcizante memorial. Entretanto, ainda que tentando ser fiel à realidade, retomo, nas descendentes linhas, a minha narrativa, sem ser também demasiadamente avesso à ficção.

Após vários “Quem será?…”, “Será algum conhecido?…”, “Será que vem pedir para pousar?…”, além de outras cogitações da platéia que o aguardava, o viajante, já a uns cinco metros do casarão, puxou o freio da montaria e, do alto da sela e de uma fidalguia incomum, estranha mesmo naquele sertão, indagou: “É com o Coronel Totonho que tenho a satisfação de falar?…”.

– Às suas ordens!… – respondeu meu pai, que, juntamente com o nosso capataz e alguns dos agregados, já se posicionara para a recepção.

– Martinho Lobo Penteado, seu criado!… – apresentou-se o desconhecido.

– Obrigado!… Vamos apear, seu moço!…

Só após o convite do meu pai, o homem pisou o chão e tirou o chapéu, não só para reverências não menos incomuns, mas também para as necessárias preocupações com o seu cachorro, o “Leão”, que já estava tendo dos nossos três fiéis cães uma recepção de rosnados e ranger de dentes.

Curta foi a prosa ali no pátio, tendo o senhor Martinho, com gestos e palavras que lhe davam credenciais de pessoa educada e respeitável, recusado aceitar qualquer alimento ou mesmo a água que lhe foram oferecidos, já que se dizia bem abastecido de matula e de provisão de líquidos.

Cerca de meia hora depois, o Sr. Martinho Lobo Penteado e seu cão já estavam acomodados num galpão que ficava no lado direito da nossa casa, e que proporcionava, em redes, sono para alguns agregados da nossa fazenda e para rudes viajantes que, com certa freqüência, nos pediam uma pousada. Naquela noite, o Sr. Martinho Lobo Penteado, pelos seus requintados modos, pela seriedade e serenidade, e até mesmo pela impostação com que declinava o seu nome, era uma raríssima exceção na nossa fazenda – um nobre pernoitando numa rústica estalagem.

Recomposta a nossa platéia, o inesperado visitante, cujo nome tinha curiosa sonoridade, transformou-se no tema do resto das conversações daquela noite. “Martinho Lobo Penteado, seu criado!… O Lobo e o Leão!… Não é engraçado?!…” – comentou meu pai, sorrindo e adivinhando a jocosidade que aquela apresentação havia provocado em praticamente todos os que, liderados por ele, compunham a rotineira assembléia vespertina da fazenda, na calçada do casarão.

No dia seguinte, logo cedo, o Sr. Martinho Lobo Penteado, depois de esclarecer que, vindo do norte do estado, estava indo para a Capital, resolveu deixar conosco o Leão, com o compromisso de recambiá-lo quando estivesse em viagem de volta, que deveria ocorrer dentro de poucas semanas.

E “Martinho Lobo Penteado, seu criado…” ficou como expressão jocosa não só na noite da sua chegada, mas também durante muito tempo, uma vez que muito tempo se passou sem que o Sr. Martinho sequer desse quaisquer notícias suas. Tanto tempo que, quando dele se lembravam, durante os soturnos bate-papos, na porta do casarão, quase que o transformavam num personagem meio mítico, de origem e destino nebulosos, uma vez que nem meu pai nem os agregados da fazenda se lembravam da cidade de onde ele viera, nem punham muita fé naquela história de estar indo para a Capital, a negócios.

Tanto tempo que, aos poucos, eu e meus irmãos fomos esquecendo as nossas zombarias e as tentativas de nos apelidarmos de “Martinho Lobo Penteado, seu criado”. Tanto tempo que o Leão se apegou à nossa família, enturmou-se com os nossos cachorros, engordou, e passou a fazer parte das nossas vidas.

E assim foi até que, num entardecer não muito nebuloso, um cavaleiro no dorso de um belo corcel surgiu lá na porteira de entrada do grande pátio da fazenda, para provocar mais uma rodada daqueles “Quem será?…”, “Será algum conhecido?…”, indagações estas que foram prematuramente interrompidas porque, quando o forasteiro estava a uns trinta metros do casarão, um dos nossos cachorros ergueu-se e correu em sua direção abanando prazerosamente a cauda.

– É o seu Martinho!… Como é que pode?… Fazendo mais de dois anos e o cachorro já farejou ele… – exclamou o nosso capataz.

– E você já viu um Leão esquecer um Lobo?… Ainda mais quando os dois se dão muito bem um com o outro!… Mesmo que fossem dez anos, o Leão estaria com o suor do Lobo nas ventas…

– Isso é verdade, patrão!… – asseverou o capataz.

Nessa noite, quando eu e meus dois irmãos mais velhos fomos dormir, levamos o Sr. Martinho para o nosso quarto, pelo menos durante o tempo que durou nossos protestos contra ele, que, nas nossas cogitações, cometeria uma grande ingratidão se quisesse reaver o Leão, depois de tão longa temporada de hospedagem e dos bons tratos que demos ao cachorro. Antes do mergulho no sono, ainda ouvi um dos meus irmãos afirmar: “Se ele quiser mesmo levar o cachorro, o papai devia cobrar dele um dinheirão”.

No dia seguinte, cedo, depois de mais um pernoite na nossa fazenda, o Sr. Martinho Lobo Penteado manteve, com o meu pai e o capataz, próximo do casarão, longa e meio sussurrada cerimônia de despedida e de uma certa negociação a que eu e meus irmãos assistíamos de longe, muito apreensivos, aguçando os ouvidos e captando apenas algumas palavras. O esquálido mulo, da primeira visita, fora substituído por um belo cavalo de ancas robustas, apetrechado com arreio novo e sofisticado, testemunhando que a capital do estado havia sido, naqueles dois anos, praça de bons negócios para aquele homem cujo reaparecimento não mais esperávamos, muito menos desejávamos. Mas, se ele, pronto para retornar às suas origens no norte do estado, confabulava com meu pai e o capataz, eu, meus irmãos e os nossos cachorros, inclusive o Leão, éramos apenas uma platéia agitada e ansiosa, à espera de uma decisão, que acabou chegando pela voz do Sr. Martinho, propositadamente alteada:

– Os senhores querem saber de uma coisa?… Ele é quem vai decidir!…

Após renovados agradecimentos e repetidas reverências, o Sr. Martinho, já com as rédeas nas mãos, ficou, por alguns instantes, do alto do seu trono e da sua fidalguia, a olhar para o Leão, lançando-lhe o anunciado desafio.

Como ansiosos espectadores, mais sentimos do que vimos o cão a olhar, com um ganido sofredor, ora para o seu antigo dono, ora para nós. Entretanto, o Sr. Martinho não lhe concedeu muito tempo. Manobrando as rédeas, fez com que sua montaria se virasse e saísse trotando em direção à Grande Porteira. Na verdade, ele, não o cachorro, acabava de tomar a decisão. E definitivamente o cão ficaria e ele se iria…

 Fonte:
O Conto Brasileiro Hoje – vol. II.

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Moacyr Scliar (História Portoalegrense)

Não penses que eu estou reclamando, não. Estou só contando a verdade e contar a verdade não pode fazer mal a ninguém. E a verdade é que a porto-alegrense sou eu; o orgulhoso és tu, mas a porto-alegrense sou eu. Eu já morava nesta cidade quando tu apareceste, o altivo filho de um fazendeiro da fronteira. Faz tempo isto, não é? Petrópolis nem existia, Três Figueiras era mato. Os bondes eram poucos… – Te lembras dos bondes? Bem. Eu era a modesta caixeirinha de um armarinho da Cidade Baixa. Tu, o garboso estudante que varava as madrugadas no Café Central ou no Alto da Bronze, declamando em voz alta os teus poemas. Tu eras o rapaz rico que vinha à loja onde eu trabalhava, trazendo imensos buquês de rosas.

Foi um escândalo, te lembras? O que se cochichava na Rua da Praia! É que desfilavas de braços comigo, desde a Praça da Alfândega até a Igreja da Conceição. Eu nem gostava desses passeios, mas tu ias de cabeça alta, desafiador – enquanto as senhoras e os cavalheiros nos olhavam, escandalizados. Se escandalizavam? Foste mais longe: alugaste para mim uma casa no Menino Deus. E que casa! O antigo palacete de um barão, situado no meio de um verdadeiro parque, com árvores, e estátuas, e um lago com peixinhos vermelhos. Instalaste-me ali porque eu era, dizias, a tua rainha; e de fato, como rainha eu vivia, com criados à disposição e até um carro – um dos primeiros automóveis de Porto Alegre, te lembras? – Um Edsel. Teu pai pagava tudo. Teu pai, o rico fazendeiro, achava que o filho tinha direitos de macho, não importava o que dissessem. Ou o que custasse. Pagava tudo.

E eu? Bem, eu gostava de ti. Gostava mesmo. Por tua causa, saí da casa de meus pais, na Cidade Baixa, e fui morar no palacete como uma cortesã. Mas eu gostava de ti, esta era a verdade.

Teus parentes – ricos fazendeiros como o teu pai, mas fazendeiros da cidade, dos Moinhos de Vento – deixaram de te convidar para festas. O que te irritou mais ainda. Te vingaste, alugando uma casa nos Moinhos de Vento, no reduto dos inimigos. Nos instalaste lá, eu e todos os empregados (só despediste a cozinheira, porque achavas que eu cozinhava melhor do que ela). Vinhas seguido. Não querias morar comigo, porque preferias a tua liberdade, mas vinhas seguido.

Moinhos de Vento… Lindo bairro, de casas finas. Teus parentes estavam furiosos; não te cumprimentavam. Se te encontravam na rua, viravam a cara.

Menos a tua prima, a Rosa Maria. Ela te olhava de esguelha, piscava o olho, travessa que era… Tu sorrias. Vocês se trocavam bilhetinhos. Pensas que eu não sabia? Eu sabia. Mas gostava de ti, esta é que era a verdade. E gostava da casa nos Moinhos de Vento. Um paraíso.

Um paraíso que durou pouco… Decidiste que eu deveria me mudar. Gostavas da casa, e a querias para ti, de modo que tive de sair. Fui para uma casa em Petrópolis. Comigo foram a empregada e o motorista que era também uma espécie de guarda. O jardineiro foi dispensado, porque a casa não tinha jardim; era uma casa relativamente modesta; e depois, para que jardim – era o que perguntavas, e ponderavas: jardim só dá trabalho. Eu gostava de jardim, mas não te respondi nada. Porque gostava de ti.

Casaste com a tua prima Rosa Maria e assumiste um cargo na direção da firma do pai dela. E aí começaste a aparecer cada vez menos; a vida de um homem de negócios é muito atarefada, dizias. Eu concordava, me lembrando da loja de armarinhos.

A cidade progredia e a esta altura eu já não tinha mais motorista, porque Petrópolis contava – me disseste entusiasmado – com transporte abundante, digno de uma cidade moderna: bondes, ônibus.

Petrópolis era realmente um bairro bom, mas com o passar dos anos começou a apresentar inconvenientes. Muitos de teus amigos – médicos, advogados, homens de negócio – moravam ali, além disto, a escola de balé que tuas filhas – duas garotinhas encantadoras – freqüentavam, também era em Petrópolis… Decidiste que eu deveria me mudar.

Me mandaste para Três Figueiras, um lugar que já não era mato, mas que ainda estava pouco povoado. Me instalaste numa casinha simpática. De madeira, mas muito simpática. Chovia dentro, mas eu não te incomodaria me queixando destes pequenos problemas. Vinhas me ver tão pouco que não era justo. Realmente não era justo. E a casa não era feia. Eu me distraía com as lides domésticas – a esta altura já não tinha mais empregada. (Para que empregada, numa casa pequena? – perguntaste, e estavas com a razão. Realmente, estavas com a razão).

Uns anos depois – me lembro muito bem, porque já estava costurando para fora – começaram a aparecer as primeiras casas elegantes nas Três Figueiras. Casas bonitas, as fachadas com pedra decorativa… Achaste que eu deveria me mudar para a Vila Jardim. Um pouco mais afastado, disseste, e tinhas razão; um verdadeiro jardim, disseste, o jardim que te faltava. É verdade que a casa não tinha água nem luz; mas eu não queria te incomodar. Passavas por uma fase de profunda depressão, de angústia existencial. Que é o dinheiro? – me perguntavas. Estávamos os dois com sessenta anos. Qual o sentido da vida? – teus olhos cheios de lágrimas. Eu, quase sem dentes, pensava numa dentadura nova – mas não ousava te pedir nada.

Me disseste para sair da Vila Jardim. O bairro estava ficando muito conhecido, poderiam te ver por lá. Me mandaste morar numa espécie de casa-barco que estava atracada no Guaíba, num lugar deserto, perto do Porto das Pombas. Interessante a casa-barco. Mais barco do que casa; esta, na verdade, era uma simples cabina de madeira coberta com uma lona.

Sacudida pelos temporais de inverno eu te esperava. Em um ano vieste só uma vez, no dia do teu aniversário. Estavas muito deprimido: Rosa Maria tinha morrido, tuas filhas não queriam saber mais de ti, só pensavam em viagens para a Europa. Procuravas as respostas para as grandes questões da vida no zen-budismo. Dizias que deveríamos mergulhar no nada. Eu olhava para a água que entrava no barco e concordava.

Um dia recebi um bilhete teu – trouxe-o o teu motorista, aliás o nosso antigo motorista… Dizias, numa letra muito trêmula, que a vida não tinha mais sentido para ti; que eu deveria soltar as amarras do barco e deixar que as correntes do Guaíba me levassem ao sabor do destino.

Pela primeira vez pensei em não te obedecer. É que eu gosto demais desta cidade, desta Porto Alegre que só avisto de longe e que mal reconheço. Lembro-me que gritei, não! não vou abandonar a minha cidade! E aí resolvi te escrever, lembrando toda a nossa história e te pedindo para voltares atrás em tua ordem.

Espero que recebas esta carta. É que estou escrevendo já do meio do rio – e é a primeira vez que mando uma carta numa garrafa jogada às águas. Mas espero que a recebas e que ela te encontre gozando saúde junto aos teus, nessa linda cidade de Porto Alegre.

 Fonte:
O Moderno Conto Brasileiro.

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Paulo Mendes Campos (Menina no Jardim)

Menina no Jardim (Tela de Cícero Dias)
Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre de Ipanema.

Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama. Determinada, levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem.

Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um senhor de bigodes, representante dos Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.

Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente urbano.

– Desce da grama, garotinha – disse a Lei.

– Blá blé bli bá – protestou a garotinha.

– É proibido pisar na grama – explicou o guarda.

– Bá bá bá – retrucou a garotinha com veemência.

– Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor.

– Buh buh – afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais agradável do que a sombra.

A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com um safanão. “Dura lex sed lex”.

– Onde está sua mamãe?

A garotinha virou as costas ao guarda com desprezo. A essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu sob chorosos protestos à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.

A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.

– Aberto o precedente os outros fariam o mesmo – disse o guarda com imponência.

– Que fizessem, deveriam fazê-lo – disse o pai.

– Como? – perguntou o guarda confuso e vexado.

– A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.

– Mas isso estraga a grama, cavalheiro!

– E daí? Que tem isso?

– Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela – raciocinou a Lei.

– E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver ela?

O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado, chegou à peroração:

– É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.

– Buh bah – concordou a menina, correndo em disparada para a grama.

– O senhor entende o que ela diz? – perguntou o guarda.

– Claro – respondeu o pai.

– Que foi que ela disse agora?

– Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para o diabo que o carregue.

 Fonte:
Para Gostar de Ler. antologia escolar.

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Malba Tahan (O Mensageiro da Morte)

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibete. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os monges imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão.

A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação.

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li. Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

– Han-Ru, ó gênio desapiedado! – exclamou. – Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-lí? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

– A tua inquietação é legítima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Lí-Tsen-li vai morrer!

– Piedade, Han-Ru! Piedade! – implorou Te-ha-tá. – Ela é tão jovem, e tão prendada! Deixa viver Li-Tsen-li!

O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse: – Sei que tens direito a uma vida longa e tranqüila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver. Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante? Aceitas essa proposta?

As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

– A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e me orientaram na vida?

– Farei como pedes, meu amigo – respondeu o Anjo da Morte. – Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deverás voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.

Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram muito apreciados.

Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

– A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

Ao ouvir a consulta do jovem, Nian-si não se conteve.

– É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas. Aqui mesmo (no Tibete) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a idéia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.

A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-ta.

– Vou ouvir – pensou o jovem – a opinião do prudente Kín-Sa. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

Kín-Sa, citado no Tibete como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

– Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranqüilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer motivo, não se mostrar digna de teu sacrifício, perderá o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

E concluiu o seu conselho com estas palavras:

– Fizeste bem em hesitar. A hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.

Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sa, e levou-a, sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

– Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim “emprestada”.

Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibete. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa “minha vida querida”.

Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou Ti-long-li e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

– Onde está Ti-long-li? – perguntou, ansioso, aos amigos. – Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à Ti-long-li?

Disse um dos amigos:

– Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá ! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

– Desgraça? – repetiu, aflito, Te-ha-tá. – Horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está Ti-long-li?

– Morreu!

– Morreu! – gritou Te-ha-tá, desesperado. – Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador. Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

– Han-Ru! – bradou, num tom de incontido rancor. – Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de Ti-long-li?

– Escuta, Te-ha-tá – respondeu Han-Ru. – Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

– E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela, mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!

 Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

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Arquivado em O Escritor com a Palavra, Rio de Janeiro

Caio Porfírio Carneiro (Maria Viviane)

Caio Porfírio Carneiro
Fivela prendendo os cabelos não bem penteados e de fios prateados, vestido azul desbotado, mancando da perna, ela percorria as vielas estreitas do cemitério, tentando, os olhos meio fechados da miopia, ler as lápides dos túmulos, alguns quase capelinhas, outros ao pés-do-chão. Desorientava-se. Via-se perdida entre cruzes. Ia e vinha, tentando ler.

Viu o homem que passava empurrando o carro-de-mão cheio de tijolos.

– O senhor sabe onde é que está a Maria Viviane?

– Maria de quê?

– Viviane.

– Não sabe o número da quadra?

– De quê?

– Da quadra.

– Não.

– Vá na administração. Lá eles informam.

– Onde é?

– Logo na entrada.

Perdeu-se muito para encontrar o pequeno escritório. O homem calvo examinava o livro aberto sobre o balcão, fazia anotações, não compreendeu bem o que ela dizia:

– O que é mesmo, minha senhora?

– A cruz de Maria Viviane.

– Maria de quê?

– Viviane.

– Como é o nome completo dela?

– Eu não sei.

– Não sabe qual a quadra, o número da rua? Tem lápide? – Tem o quê?

– Lápide. Nome dela gravado, data do nascimento e morte, essas coisas.

– Não sei.

– Assim fica difícil. Como é mesmo o nome completo dela?

– É Maria Viviane.

– Nome bonito. Mas deve ter sobrenome. Não sabe mais nada sobre ela, data da morte?…

Ela saiu desnorteada, sem saber onde encontrar Maria Viviane naquele oceano de túmulos e cruzes. O homem calvo ainda a chamou:

– Volte aqui. Vamos ver…

Foi crescendo dentro dela uma pena enorme de Maria Viviane, perdida no oceano de cruzes. Resolveu ir embora, manquitolando, apressada. O homem calvo chamou-a:

– Ei, minha senhora. Encontrei o nome dela. Sei onde está.

Não lhe deu atenção. Atravessou o grande portão, apressada, manquitolando junto ao muro alto do cemitério, amparando-se nele, uma angústia enorme no coração.

Desapareceu na esquina no vestido azul desbotado, a fivela prendendo os cabelos não bem penteados e de fios prateados.

 Fonte:
O Conto Brasileiro Hoje – vol. II

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Arquivado em Ceará., O Escritor com a Palavra

Mia Couto (Governados pelos mortos)

(- fala com um descamponês- )

–  Estamos aqui sentados debaixo da árvore sagrada da sua família. Pode-me dizer qual o nome dessa árvore?

– Porquê?

–  Porque gosto de conhecer os nomes das árvores.

– O senhor devia saber era o nome que a árvore lhe dá a si.

–  Depois de tanta guerra: como vos sobreviveu a esperança?

– Mastigámo-la. Foi da fome. Veja os pássaros: foram comidos pela paisagem.

–  E o que aconteceu com as casas?

– As casas foram fumadas pela terra. Falta de tabaco, falta de suruma. Agora só me entristonho de lembrança prematura. A memória do cajueiro me faz crescer cheiros nos olhos.

–  Como interpreta tanta sofrência?

– Maldição. Muita e muito má maldição. Faltava só a cobra ser canhota.

–  E porquê?

— Não aceitamos a mandança dos mortos. Mas são eles que nos governam.

– E eles se zangaram?

— Os mortos perderam acesso a Deus. Porque eles mesmos se tornaram deuses. E têm medo de admitir isso. Querem voltar a ser vivos. Só para poderem pedir a alguém.

–  E estes campos, tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?

– Foram. Nós só ficámos com o descampado.

–  E agora?

– Agora somos descamponeses.

–  E bichos, ainda há aqui bichos?

– Agora, aqui só há inorganismos. Só mais lá, no mato, é que ainda abundam.

–  Nós ainda ontem vimos flamingos…

– Esses se inflamam no crepúsculo: são os inflamingos.

–  E outras aves da região. Pode falar delas?

– Antes de haver deserto, a avestruz pousava em árvore, voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Agora, há nomes que eu acho que estão desencostados. . .

–  Por exemplo?

– Caso do beija-flor. É um nome que deveria ser consertado. A flor é que levaria o título de beija-pássaros.

–  Mas outros animais não há?

– A bichagem vai acabando. O mabeco, dito o cão-selvagem, vai sofrendo as humanas selvajarias. Antes de acabar a lição, ele já terá aprendido a não existir.

–  Parece desiludido com os homens.

– O vaticínio da toupeira é que tem razão: um dia, os restantes bichos lhe farão companhia em suas subterraneidades. Eu acredito é na sabedoria do que não existe. Afinal, nem tudo que luz é besouro. É o caso do pirilampo. Pirilampo morre? Ou funde? Suas réstias mortais aumentam o escuro.

–  Tanta certeza na bicharada…

– Você não olhou bem esse mundo de cá. Já viu pássaro canhoto? Camaleão vesgo? Papagaio gago?

–  Acredita em ensinamento de bichos?

– Todo o caranguejo é um engenheiro de buracos. Ele sabe tudo de nada. Há outros, demais. O mais idoso é o escaravelhinho. Mas, de todos, quem anda sempre de janela é o cágado.

–  Você não sofre de um certo isolamento?

– Sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam de bicho-do-mato. Em vez de me diminuir eu me incho com tal distinção. Como antedisse: a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa.

–  Mas a sua mulher não lhe faz companhia?

– Ela é minha patrã. De vez em quando a gente dedilha uma conversa. É uma acompanhia, faz conta uma estação das chuvas. Mas a tradição nos manda: com mulher a gente não pode intimizar. Caso senão acabamos enfeitiçados.

–  Uma última mensagem.

– Não sei. Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

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Carlos Drummond de Andrade (No Restaurante)

Reprodução de pintura de Van Gogh
– Quero lasanha.

Aquele anteprojeto de mulher – quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia – entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.

O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.

– Meu bem, venha cá.

– Quero lasanha.

– Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.

– Não, já escolhi. Lasanha.

Que parada – lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:

– Vou querer lasanha.

– Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.

– Gosto, mas quero lasanha.

– Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?

– Quero lasanha, papai. Não quero camarão.

– Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?

– Você come camarão e eu como lasanha.

O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:

– Quero uma lasanha.

O pai corrigiu:

– Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.

A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:

– Moço, tem lasanha?

– Perfeitamente, senhorita.

O pai, no contra-ataque:

– O senhor providenciou a fritada?

– Já, sim, doutor.

– De camarões bem grandes?

– Daqueles legais, doutor.

– Bem, então me vê um chinite, e pra ela… O que é que você quer, meu anjo?

– Uma lasanha.

– Traz um suco de laranja pra ela.

Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.

– Estava uma coisa, heim? – comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. – Sábado que vem, a gente repete… Combinado?

– Agora a lasanha, não é, papai?

– Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?

– Eu e você, tá?

– Meu amor, eu…

– Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.

O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem.

 Fonte:
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Paulo Mendes Campos (Meu Reino por um Pente)

 Filhos – diz o poeta – melhor não tê-los. Já o Professor Aníbal Machado me confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não ter explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los.

A conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara a certeza imperativa de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que não se discute, fora de alcance do radar filosófico. “Eu não sei por que, Paulo, mas fazer filhos é o que há de mais importante.”

Engraçado é que depois dessa conversa fui descobrindo devagar a melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do final de Memórias Póstumas: “não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente o pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos, como sabê-lo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.

Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo.

Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água a baixo o comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha cola… Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para Minas Gerais, renunciar…

Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de agüentar com relativa indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences. O que não suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.

Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear os cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara. Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor de pentes que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México. A princípio, pensou que eu estava substabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro, mas um dia eu lhe contei minha tragédia familiar, e ele sorriu e confessou: “Lá em casa é a mesma coisa”.

Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para você, quatro para você – segundo o temperamento e a distração de cada um. Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa operação ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo outros pentes por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás do exemplar dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno solenemente toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais ordinário encontrável na praça, e digo: “Este é o meu pente; este ninguém usa; neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou algum dos presentes deseja fazer alguma objeção?”

Estão todos de acordo. A sinceridade do meu clã nesses momentos é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que, afinal, venci, de que descobri o     approach certo para a família incerta. Mas, meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com certa malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual, depois de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e, como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: “Um pente, um pente, meu reino por um pente!”.

Eu não fui – diz o primeiro; – eu não fui – diz o segundo; – eu não fui – diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é comer meias e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente.

Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina.

Minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro.

Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo.

E sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em silêncio que, filhos, e pais, melhor tê-los.

Fonte:
Elenco de Cronistas

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